Maria Helena Werneck[1]
UNI-Rio
Na Bienal Internacional de São Paulo de 1998, dois trabalhos dirigiam os olhos dos visitantes para uma invasão permitida no universo da vida privada: a instalação Desvio para o Vermelho, de Cildo Meireles,[2] composta por três ambientes sucessivos pintados de diversas tonalidades de vermelho; o conjunto de fotografias Quartos, de Rochelle Costi,[3] seqüência de 16 painéis fotográficos (1,80 por 2,30m) registrando diferentes quartos de dormir de habitantes da cidade de São Paulo.
O primeiro ambiente da instalação de Cildo Meireles atinge de imediato o espectador pelo contraste entre o vermelho dos objetos e as paredes brancas. Depois de uma primeira visada, quando o olhar fica saturado pela cor, a atenção volta-se para observar os detalhes: no aquário ornamental nadam insignificantes peixinhos vermelhos, na geladeira, se a curiosidade de visitantes interativos nos leva a abri-la, recende o perfume de frutas vermelhas. Nas paredes expõe-se pequena coleção de arte brasileira contemporânea, refinadamente composta em torno de variações gráficas da cor vermelha. O crítico Dan Cameron descreve o efeito simbólico desta apurada monocromia:
Embora o ambiente pareça chapado, cada objeto transpira uma perturbadora vivacidade, como se a proximidade visual do sangue tivesse contaminado a mobília inanimada com incrível força própria. A observação prolongada leva invariavelmente à vertigem, sugerindo a hipótese de que o impacto visual da cor está ligado a memórias primordiais da experiência humana tal como as percepções de tato e sabor.[4]
A busca dos objetos des-representados se torna exercício quando o olhar é chamado a perceber as nuances dos tons de vermelho. A instalação criaria, assim um oásis de estímulo perceptivo para o visitante da exposição:
A mensagem parece ser a de que a abstração em arte, quando confrontada com o terror da experiência atual, é inevitavelmente cooptada pelas circunstâncias, convertida, à revelia, em sinal de que tudo continua bem no universo.[5]
O circuito da instalação nos leva para o segundo ambiente, situado no canto esquerdo da sala, onde entramos num corredor que escurece à medida que nele se avança ("Entorno", 1980). No corredor, uma poça de vermelho escorre do gargalo de uma minúscula garrafa, ampliando a superfície da cor à medida que o limite do percurso aponta para nova guinada à esquerda em direção à escuridão e, adiante, nos coloca frente a uma pia, onde "descobrimos que a água tem o mesmo vermelho vivo que se espalha atrás de nós" ("Desvio", 1980). Ainda segundo Dan Cameron,
[...] esse recurso quase cinemático é [...] o primeiro sinal de movimento dentro de Desvio para o Vermelho, e sua irrupção abrupta sugere a cena de um crime, ao mesmo tempo que provoca um impulso de eliminar a evidência fechando-se a torneira.[6]
Segundo a "dramaturgia" criada pelo crítico para esta instalação, a nossa reação emocional seria mais aguçada do que nas duas salas anteriores. E a água vermelha tornar-se-ia um sinal de crise, de uma maneira que não ocorreria nas situações anteriores. Seríamos tomados por uma sensação de súbita cumplicidade que nos levaria a uma necessidade de fuga urgente, antes mesmo de compor esse enredo aterrorizante. O vermelho torna-se sangue na terceira sala e não há como separar este fato das superfícies invadidas dos ambientes anteriores. O crítico adianta a releitura que nos compete fazer desde a primeira sala do percurso: "não estamos apenas nos banhando em sangue, mas a partir de uma pista contida no título, ele nos impregna de dentro para fora".[7]
Sem cair na fantasmagoria do medo, interessa-nos destacar a "paradoxal intensidade" do trabalho de Cildo Meireles, particularmente a que contrapõe o abrigo perceptivo da monocromia com a ameaça da vermelhidão. As coisas são possuídas de uma gênese vermelha. Segundo a crítica Lisette Lagnado:
Cildo reconstrói toda uma gama cromática "natural industrial", produzida pela fábrica. Os objetos se inscrevem no mundo através de seu discurso de origem, híbrido entre natureza e indústria, sem contudo ser artificial.[8]
Em Desvio para o Vermelho, a contaminação da cor única ao mesmo tempo que des-singulariza cada objeto em face do mundo cotidiano dá-lhe novo valor no mundo da arte, estabelecendo-se, no primeiro ambiente, uma proporção quase igual entre objetos do cotidiano e objetos de arte.
Avançando nesta equação de proporcionalidade entre mundo cotidiano e mundo da arte e registrando uma recepção particular do trabalho, é possível pontuar que a instalação de Cildo não apenas se referencia pelo impacto do rendimento perceptivo interno do trabalho e pela vinculação da proposta à arte abstrata, mas abre-se à possibilidade de incorporar sentidos, de produzir alegorias, além do comentário da memória funcionalista do corpo humano. Assim, o vermelho vivo sugere mais do que a memória sensorial pode guardar. Em contraste com a ordem perfeita da disposição da mobília e dos objetos decorativos, ali se deposita um rastro de paixão e conflito, um imenso borrão de ações incomuns deixado por desmesurados habitantes do apartamento-país-mundo, cujas vidas tivessem emigrado da pele de seus humanos corpos para o ambiente paralisado. E ainda pulsassem nos nossos ouvidos de espectadores-invasores, ao final do percurso da instalação, totalmente impregnados de todos os vermelhos.
Já a coleção de fotografias de quartos de dormir registrados por Rochelle Costi não provoca nenhum páthos especial. Sua característica principal é erguer-se como documento etnográfico de um pedaço do cotidiano de brasileiros,[9] constituindo, "no limite, um ensaio sobre o homem urbano, suas aspirações, seus desejos, sua carga cultural, seus fetiches e carências".[10] Na ausência da figura humana, desprezada pela objetiva da fotógrafa, os objetos e os móveis, funcionam como decifradores de seus segredos e, simultaneamente, como muros de proteção diária contra a rudeza do cotidiano. O realismo fotográfico acentua a ilusão de que os donos daqueles quartos podem voltar a qualquer momento e neles se instalar para uma noite de merecido descanso. Diante dos painéis, os visitantes da exposição tornam-se intrusos, violadores de privacidade ou simplesmente voyeurs em busca de um segredo que nos pudesse ser revelado através de indícios de algo distinto da pura banalidade diária: um inesperado lirismo, que se insinua ao percebermos a fina estética com que cada dono de quarto constrói o seu refúgio na selva da cidade. Através deste lirismo constitui-se uma temporalidade que talvez seja a única forma de ligação entre parcelas de população tão distantes entre si como as que habitam as grandes cidades brasileiras hoje.
O espaço recortado da instalação e a bidimensionalidade da fotografia impõem uma teatralidade forte, seja a que capta a exceção de um estado extremo,[11] em Desvio para o Vermelho, de Cildo Meireles, seja a que prefere recriar o despojamento e a redução[12] ao essencial do sentimento comum. Nos dois casos, o espaço que podemos espreitar, esquadrinhar, devassar parece ainda quente da figura humana que ali deixara, na cor e no acúmulo de objetos, os despojos de uma confissão ou de uma memória a ser reencontrada.
De alguma forma, os trabalhos do artista plástico e da fotógrafa acabam demandando o olhar que o teatro exercita desde as suas origens: a teichoskopia,[13] visão através dos muros. Indicam, pela construção cenográfica, contraditoriamente antimimética e alegórica em Cildo Meireles, decisivamente mimética e ilusionista em Rochelle Costi, que este espaço íntimo, ainda quando projetado para proteger o indivíduo de uma vida assustadora e violenta, não só abriga dentro de seus limites o vulcão das angústias, das dores particulares e revoltas sociais, mas também abre um tempo de trégua para o silêncio e o repouso. Nestas topografias construídas estamos, por instantes, dentro e fora do tempo e do espaço instalados por redes comunicantes circulares que atravessam a geografia das grandes cidades, e nos projetam na perspectiva espaço-temporal da esfera da mundialização.[14]
O movimento de esvaziamento e preenchimento de um espaço íntimo, onde se concretizam as possibilidades de circularidade e escape, onde se desenham a presença e a ausência, configurado nos dois trabalhos plásticos descritos, representado pela monocromia de Desvio para o Vermelho e pela temporalidade suspensa das imagens de Quartos, nos serve de metáfora crítica para a análise de monólogos do teatro brasileiro, escritos e encenados em décadas diferentes: Corpo a Corpo, de Oduvaldo Vianna Filho (1971), Nardja Zulpério, de Hamilton Vaz Pereira (1988). A encenação de Corpo a Corpo a ser analisada é a apresentada pelo Grupo Tapa, dirigida por Eduardo Tolentino em 1995,[15] e remontada deste então com o ator Zé Carlos Machado. A montagem de Nardja Zulpério referida[16]é a dirigida pelo autor, com Regina Casé no papel-título apresentado em 1989 no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro.[17]
Enquanto na instalação de Cildo Meireles e nos painéis fotográficos de Rochelle Costi atravessamos o espaço para deixá-lo como ele havia se apresentado a nós - vazio, nos monólogos pouco monocromáticos que vamos analisar, o movimento que acompanhamos é de saturação da voz, de exposição máxima do corpo, que preenche o palco e nos arrasta atrás.
Entramos no apartamento de Luiz Toledo Viváqua, um quarto-e-sala concebido pelo cenógrafo Carlos Eduardo Colabone em dois planos superpostos. A impregnação logo se anuncia, mas não vem certamente da cor vermelha predominante no chão e nas paredes da sala. O personagem Viváqua acaba de chegar em casa para viver uma noite infernal. A porta se fecha impedindo a passagem da noiva que tenta acalmá-lo. Este primeiro embate - um corpo/uma porta/um corpo do lado de fora - transfere-se para dentro do personagem, para a dimensão agonizante e vigorosa de um homem que carrega dentro de si uma convulsão. Viváqua, sociólogo que trabalhou na Fundação Getulio Vargas, tem de escolher em definitivo o destino que quer dar à sua vida: a demissão da firma de publicidade, gesto de solidariedade ao amigo ameaçado de perder o emprego, ou a adesão subserviente aos comandos da indústria capitalista, que sabe capturar o seu talento de cineasta para filmetes de publicidade ("propaganda é isso, uma corrida desesperada de todo mundo pra vender cenários e humilhação... sou pago pra vender cenários e humilhação, sou pago pra não tomar conhecimento do povo pra provar pra ele que uma geladeira é um deus superior, que uma loja é um templo onde se dá a multiplicação dos liquidificadores..."). O corpo duplicado pelo espelho na primeira imagem de cena está apenas começando a se despedaçar, ampliado em sua potência de ira, remorso e cinismo, pela bebida e pela cocaína consumida durante toda a noite.
Como se trata, neste caso, de monólogo dramaturgicamente concebido para representação naturalista, empregam-se recursos para suprir a ausência de um outro respondente. Afinal, a fala carrega a responsabilidade de apresentar-se como ação, e toda a ação tem como correlata a crença na mudança. Procurar as pessoas que compõem o núcleo de seu conflito de consciência funciona como pré-condição da decisão a tomar, atitude que preenche o tempo que escorre durante a noite. A cena, então, se povoa de vozes que vêm de personagens próximos fisicamente mas ausentes na cena, como a noiva Suely no início da peça e os supostos vizinhos, que reclamam da barulheira que salta pela janela do apartamento de Viváqua. Vêm do telefone e de um aparelho de radioamador outras vozes de interlocução não corporificadas no palco. E são inúmeros os telefonemas: ao amigo na bica da demissão que, inesperadamente, não volta cedo para casa, a uma antiga namorada, ao colega que faz filmes enquanto Viváqua aguarda sua oportunidade, ao preposto do chefe, que está em viagem nos Estados Unidos, além do decisivo chamado para a casa da mãe doente em Aracaju. Entre cada telefonema o motor gira combustando ressentimento e droga, o corpo se contorce, se arrasta, arremessa objetos pela janela, atira coisas nas paredes. O bicho enjaulado dentro de si, por um instante, pára e chora desesperado, esfacelado, como indica a rubrica e a exuberante e emocionada atuação de Zé Carlos Machado, do Grupo Tapa, confirma.
No cume da desintegração surge a voz do radioamador boliviano. Feliz por poder responder a um brasileiro em plena madrugada, já que agora encontra-se aposentado e seus filhos deixaram a casa em La Paz. Esta é a notícia que tem a trocar com o brasileiro: o abandono dos filhos. Porque "têm a ansiedade dos jovens de hoje" um dos filhos sai em busca de uma cidade com edifícios mais altos e o outro, que considera habitável apenas Miraflores, o bairro da elite social boliviana, partiu para fora do país. Completa o pai boliviano: "foram-se todos - tinham vergonha porque somos índios e mestiços, mastigamos a coca, dançamos a cueca, o taquirari, lá sei eu...".
Segundo Leslie Damasceno a fala do radioamador representa a "única e verdadeira comunicação na peça", o que já configura um forte contraste, uma vez que se trata de voz anônima que irrompe no tempo e se apresenta como a única emissão que provoca conforto na solidão da noite, sinal da "crença de Vianinha na solidariedade continental".[18] Esta voz, no entanto, será desconectada logo a seguir, o que, para a pesquisadora da obra de Vianinha, introduz o desencontro entre o caminho tomado pelo personagem e a expectativa primeira do autor: Viváqua renega a identidade latino-americana quando canta uma canção "Take back your samba, and your rumba, and your conga ai ai ai... South America, take it away", ao mesmo tempo que rasga a mensagem em que pede a um amigo certo favor relativo ao envio de dinheiro à mãe no Nordeste.[19]
No cenário da montagem do Grupo Tapa o imenso painel com a imagem de Che Guevara, guardião dos ideais revolucionários postos em tom menor na crise vivida por Viváqua, dialoga sem interrupções com os movimentos do personagem e se impõe ora como contraponto, ora como antecipação de conteúdos revelados no jorro contínuo de transfigurações do publicitário. Desde o início da peça, quando entra em seu apartamento, Viváqua tem refletido seu corpo em imenso espelho, posto ao lado da porta de entrada. Espelho que reduplicará outras imagens do corpo do personagem, no violento ato de dizer-se e contradizer-se ao longo da peça. E que na direção de Eduardo Tolentino se movimenta em movimentos verticais e horizontais, ocupando todos os centímetros do palco e fazendo do despir-se e vestir-se um recurso enfático do ajuste de contas consigo mesmo. Mas a verdade do espelho, em sua mutabilidade, é impossível de fixar. Assim, a imagem de Guevara está lá o tempo todo, historicizando duplamente a cena, apontando para o presente do texto e o novo presente da encenação dos anos 90. No primeiro tempo o Che não encontra mais seguidores, no segundo tempo, o da encenação, trata-se de uma outra força que se impõe, não mais da utopia revolucionária, mas a da imagem reproduzida à exaustão até transformar-se em pôster, artefato da indústria cultural, ícone que perdeu a carga da sua localização para transformar-se em rastro mundializado, que nos situa familiarmente num lugar que não é exatamente aquele das nossas raízes identitárias nacionais.
Decisivamente, então, em vez de se apresentar como elegia nostálgica, a imagem de Che, contraposta intensivamente com a corporeidade do ator que interpreta Viváqua transporta-nos para a dinâmica da modernidade-mundo, que, segundo Renato Ortiz, baseia-se no rompimento do vínculo entre a memória nacional e os objetos. Em decorrência da globalização da sociedade e da desterritorialização da cultura forjam-se referências culturais mundializadas,[20] de cujo estoque a imagem do Che faz parte. Através destas referências, a recepção da peça de Vianinha nos anos 90 nutre-se desta imagem-citação, que aciona um arquivo de lembranças, necessário para fazer a peça trafegar em dois presentes, não só o da escrita e da vivência biográfica do autor,[21] mas também o presente da nova encenação. A imagem do pôster agigantado funciona ainda como comentário das convenções do teatro ilusionista propostas pelo texto da peça.
Pensando, portanto, a partir da temporalidade construída pela encenação, a fala do radioamador de La Paz ganha nova dimensão quando superposta à imagem arrebatadora de Che Guevara. Primeiro ganha caráter épico na solidariedade do boliviano que a reduplica e tem efeito imediato sobre a primeira decisão do personagem - abandonar o trabalho e visitar a mãe em Aracaju. Mas simultaneamente parece estar ali apenas para, por contraste com a narrativa do radioamador sobre seus filhos, precipitar a decisão seguinte de Viváqua. Não há mais tempo de partir para Sierra Maestra. O dia amanhece e o destino obrigatório é os Estados Unidos da América. Vem de lá o telefonema do dono da agência, Tolentino, convidando-o para acompanhá-lo em viagem de negócios para compra de novos equipamentos para a agência. Assim como partiram os filhos do radioamador, parte Viváqua. Da fala afetiva do radioamador, que combina com o clamor da carta da mãe lida por Viváqua em momento de lúcida e lírica reconciliação consigo mesmo, não sobra nada. Sem passar pelo aval da agência Fulbright, o samba e a rumba, até mesmo a conga, não valem nada. A lucidez apaziguada do dia seguinte vivida pelo personagem de Vianinha contamina o apartamento de ordem e de um lastro de sono.
Entramos num segundo apartamento, logo invadido pelo monólogo Nardja Zulpério, de Hamilton Vaz Pereira. A personagem "chega da rua, derrotada, engolfada em pensamentos. Coloca bolsa, casaco, pacotes e compras em cima da mesa de trabalho. Liga as luminárias, o computador, a televisão, o som". A rubrica do autor indica o novo espaço: não mais um apartamento monocromaticamente impregnado de terror ou do silêncio onde se despe monologicamente uma personagem super-individualizada. Aqui não há impregnação, mas reprodução e disseminação. Estamos no espaço em que o monólogo é uma espécie de game e o discurso se baseia no regime da troca e da demonstração, como nos adianta a rubrica "O estúdio é pequeno e subterrâneo mas tem tudo o que ela precisa para pôr um show em movimento.
Nardja faz um pacto artístico consigo mesma. Um solo teatral acontece numa oficina espetacular".
As vozes guardadas na secretária eletrônica estabelecem uma rede de falas que são, se quisermos adotar uma perspectiva de Lyotard, sintetizada por Jameson em prefácio à edição americana de La Condition Postmoderne: "menos um processo de transmissão de informação ou mensagens do que uma produção de trapaças".[22] Diz Nardja respondendo a um recado da irmã: "Ontem eu fui falar no Congresso Brasileiro de Pesquisadores de Arte. Tinha gente à beça. Todo mundo queria saber do papai, saber por que ele parou de fazer teatro. Todo mundo que foi lá, foi por causa do sobrenome do velho - pensou que era o papai que iria estar lá. Só tinha gente inteligente - só gente de óculos. Ué tive de me virar, fazer o quê? Você sabe como é. Eu gosto de falar, eles gostam de ouvir. Então ficamos ali...".
Como personagem de comédia renascentista que recebe confidências de todo mundo e dirige a ação, trapaceando aqui e ali, Nardja vai enviando books de projetos de trabalho, aceitando compromissos, fazendo um teste para comercial - "Eros e Psiquê, roupas íntimas para homem e para mulher". O momento de conversa mais íntima, com o ex-marido, acontece num telão, logo desligado para ouvir música no walkman e pausa: lê fragmentos de Zaratrusta, dá entrevista pelo telefone, grava uma música, acende um fogão e frita um ovo. Prepara-se para dormir e entre o sono e a vigília tenta imaginar o solo "O paquiderme voador", que apresentará no dia seguinte, mas que constitui a performance a que a platéia do espetáculo Nardja Zulpério assistirá em seguida. Se antes a narratividade do monólogo se via posta em suspensão por um certo dialogismo composto através da "sucessão de vozes telefônicas que invadem o cotidiano da protagonista, e das vozes registradas em sua secretária eletrônica, transformadas, segundo Flora Süssekind, em verdadeiro fio condutor do espetáculo,[23] a partir da seqüência em solo simulado-encenado por Nardja Zulpério a narratividade não se estilhaça mais, garantida pela narração diretamente voltada para o público, pela alta voltagem da ligação direta narradora-platéia, que instala no espetáculo um segundo tempo de experiência compartilhada. Sai de cena o cotidiano comum, mundializado em sua rotina pela presença das máquinas de memória e mediação do contato verbal e instaura-se o lugar fora do mundo circunstanciado através do relato do mito de Eros e Psiquê.
No ensaio-delírio, voltado para aqueles que "gostam de ouvir e contar histórias", Nardja Zulpério resolve falar de si (de sua falta de tempo, do lanche servido no vôo da ponte aérea) num longo "improviso", que retoma a tradição da dramaturgia do Grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone de "trabalhar plasticamente as matérias da vida",[24] de sugerir pela utilização criativa da boca de cena uma intimidade entre atores e espectadores, mas principalmente dos atores com o próprio trabalho. Dessa noção de intimidade decorre ainda uma maneira de encarar o trabalho de autoria teatral (o coletivo, o imperfeito, o nunca inteiramente concluído, o bric-à-brac da composição dos originais) e de interpretação baseada em técnica diferente, que opera um despojamento, um relaxamento do ator.[25]
Baseando-se na estrada do Asdrúbal, em que o ator ocupa a cena sem o esforço de uma caracterização, de um apuro específico na construção de qualquer personagem, Regina Casé entra e sai das personagens que narra, recompõe-se como Nardja, depois de apresentar a terceira tarefa proposta por Afrodite a Psiquê (subir num rochedo íngreme e apanhar água numa fonte guardada por terríveis dragões) para rebelar-se contra Afrodite, mas rebelar-se também como atriz, contra o cansaço de fazer um solo, de responder ao desacordo entre a recepção do público e da crítica. Da conversa com o público retoma a narrativa do mito até que o telefone toca com a chamada-despertador. Sem perceber que já se passou uma noite, pede à telefonista para chamá-la às 6h30min. Mas já são 6h30min e só resta lembrar a agenda e partir para mais um dia infernal, renovado pelo nascimento da Volúpia, filha de Eros e Psiquê. A aposta no dia é uma aposta no teatro: "Ontem eu cheguei da rua carregando as minhas próprias cinzas. Mas aí aconteceu tanta coisa aqui dentro que agora eu vou embora pegando fogo. Tudo graças a vocês, fantasmas".
No monólogo Nardja Zulpério encenam-se jogos de linguagem. A performer, aqui mais perfeita encarnação do homem que vende narrativas, coloca em foco a habilidade do trabalho teatral em si, dirigido para estabelecer um nexo entre confidentes ou persuadir a audiência, na verdade inteiramente composta de membros de uma "sociedade espetaculoísta". O monólogo obedece, então, à lógica segundo a qual "o fim não é nada, o desenrolar é tudo. E o espetáculo não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo".[26] O palco passa a ser o lugar onde se abriga a volúpia que consiste em uma pessoa preparar-se para iludir e finalmente iludir exercendo a sua plena capacidade de expressão. Hamilton Vaz Pereira, autor do monólogo, que participou da criação coletiva da dramaturgia dos espetáculos do Grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, explica: "Sempre eu colocava tudo para ampliar os gestos, a voz, para clarear o corpo das pessoas".[27]
Clarear o corpo sem deixar que as palavras o escureçam. Este o desafio de individuação que os monólogos pretendem seguir perseguindo, mesmo quando as individualidades são absorvidas nos fluxos de comunicação e consumo da mundialização. Transformam-se, assim, em discursos de espera de um tempo em que os objetos internacionalmente grifados ou indiferentemente massificados sejam inteiramente recobertos de múltiplos tons de vermelho e o cotidiano seja invadido pelo mundo da arte.
Notas: