Jorge Fernandes da Silveira
UFRJ
Para Isabel Cristina Rodrigues
Cena 1
Vem o inverno aproximando o tempo
de se chegar àquele ponto grave
onde somente ficaremos vendo
a linha perspicaz da eternidade.
Estaremos ali. Com o silêncio
também a aproximar-se
dum espaço que vai ficar aberto.
Mesmo depois de sermos só idade.
Mesmo que utopicamente, para alguns que o reivindicam, há um ponto ótimo de visão mimética em que o discurso do presente é o lugar em que se ouve em "linha" cruzada e, portanto, dupla e tensa, um resto significante do passado, mobilizado para o futuro, ou para a morte. Um modo de assistir ao espetáculo do mundo que nos assiste. "Um espaço que vai ficar aberto" como uma obra (Eco, 1968), um livro de literatura, de poesia, esses lugares mais antigos do nosso imaginário hoje mundializado. Como, por exemplo, o "ponto grave" da matura idade presente no segundo verso e, mais precisamente ainda, no último verso deste belo poema de Fernando Echevarría, nas Geórgicas, a abrir a comunicação: "Mesmo depois de sermos só idade" (Echevarría, 1998:109).
Soidade?
Sim: "só idade"/soidade.
Tempo duplo de sermos antigos, contemporâneos dos mortos, não necessariamente em termos de idéias ou biográficos, já que o tempo que aqui se conta é o do horizonte cultural de expectativas do leitor. Leitor capaz de ler na expressão chave do verso o que Luiz Costa Lima, analisando conceito famoso de W. Iser (The Act of Reading, 1978), compreenderia por "representação-efeito" (Lima, 2000:201). Ou seja, uma recepção motivada em que o leitor atualiza alguns "lugares vazios" do texto, na medida em que ler o que está escrito é um ato de produzir outros sentidos, de pôr os sentidos do texto em expansão.
Deve ser esse o "espaço aberto" de que fala o poema das Geórgicas de Echevarría.
Numa comunicação que se intitula Cenas de amor na idade mídia, chama-se, de início, atenção para a função do tempo, ou melhor, para a permanência do tempo passado no presente duma cultura em que a passagem para a idade mídia - e não propriamente a passagem da idade média à idade mídia, extensão intransmissível que não cabe no espaço de uma comunicação e muito menos na bagagem cultural do seu autor - pode estar impressa, como que dublada/dobrada, nessa sobreposição de vozes em que se ouve "só idade" e soidade, e não se sabe mais qual vem antes qual vem depois. Numa palavra: um tempo a um tempo progressivo e regressivo.
Sem querer reduzir o acesso à interpretação a um fato de linguagem (Lima, 245), a um chiste, hoje saudade, se entendida como a expressão do orgulho dos falantes nativos de língua portuguesa que lhe assinalam a originalidade entre todas as línguas, isto é, como a palavra síntese da excentricidade identitária portuguesa (Lourenço, 1978) é um termo que não cabe em si mesmo, já que nele assombra a espantosa mitologia dos (des)concertos da sociedade lusíada nas dimensões mítica, histórica e literária.
Sem chegar ao exagero de reeditá-la, vale a pena ouvir de novo, num recorte, a maldição do Velho do Restelo. Isto porque, a meu ver, no inverno neoliberal da nossa desesperança, o primeiro verso do poema da primeira cena ("Vem o inverno aproximando o tempo") é uma clara reminiscência de outros d'Os Lusíadas, como os da estância 9 do canto X ("Vão os anos decendo, e já do Estio"), agora rejuvenescidos. Mas, vamos ao Velho que diz, ou vocifera segundo o seu narrador Vasco da Gama: "Idade de ouro, tanto te privou,/Que na de ferro e de armas te deitou:" (Lus., IV, 98, 7-8)
Cena 2
Par Deus, coitada vivo,
pois non ven meu amigo;
pois non ven, que farei?
meus cabelos, com sirgo
eu non vos liarei.
Pois non ven de Castela,
non é viv', ai mesela,
ou mi-o detem el-rei:
mias toucas da Estela,
eu non vos tragerei.
Pero m'eu leda semelho,
non me sei dar conselho;
amigas, que farei?
en vós, ai meu espelho,
eu non me veerei.
Estas dõas mui belas
el mi-as deu, ai donzelas,
non vo-las negarei:
mias cintas das fivelas,
eu non vos cingerei.
CV 505; CBN 918
Sinto uma paixão extrema por esta cantiga de amigo de Pero Gonçalves. Penso um dia dedicar-lhe todo um ensaio. Ou, talvez, tudo acabe como agora em considerações motivadas por interesses afins.
Há, no poema de Echevarría, um tempo futuro em que congelados, feito imagens, havemos de ficar olhando a barra do horizonte. Um tempo sem expectativas? Espectadores sem futuro? Não, se a figura da morte presente no poema não for reduzida à idéia de fim. Alguém, como quem mexe um botão ou abre um livro, pode vir a nos ligar, mantendo o "espaço aberto".
No fundo, é isto que me encanta há muito nesta cantiga medieval.
Idade Média, tempo em que amar seguia os rigorosos padrões da "arte de trobar", segundo sobretudo os preceitos da cantiga de amor, em que ele, o amador, mesmo que coitado, era o autor da sua própria dor de amor, o senhor da sua "coita". Amar à maneira de amigo era ele fazer uma cantiga para ela, a amiga, que ora era a filha "velida" a driblar a censura da mãe ou o olhar cúmplice da ama; ora, uma pobre coitada a carregar sobre o próprio corpo as leis de um Estado em que Deus e El-Rei eram os senhores absolutos da lei e da grei.
E é esta última, a coitada, a que fala às amigas na cantiga de Pero Gonçalves.
O que, afinal, me encanta nessa cantiga?
Simplesmente isto: um corpo de mulher que se desnuda dos excessos das convenções do amor.
Mas esse corpo é ele mesmo um objeto extraordinário, já que dá a ver para muito além da sua nudez. "Fremosa e não segura". Feliz ou desgraçada? Pouco importa. A resposta mais justa tem de levar os dois estados em conta. É toda ela um corpo acumulativo, pois quanto mais se despoja dos objetos de adorno - as "dõas", ou seja, as prendas do enxoval que asseguram a promessa de casamento do soldado-cavaleiro a serviço da pátria - mais se cobre dum vestido de talho mais justo e rigoroso, como se fosse um estranho adereço, o avesso da liberdade nua e crua. E, nesse sentido, apresenta-se a hipótese do trabalho interpretativo desta comunicação: "Dõas mui belas", significam, em suma, que, desde o princípio da literatura, a qualidade do amor é um valor quantitativo.
Sim, é isto, sendo mais que isto. Pois, quanto mais se afasta do recato que guarda a "prez" impulsionadora do cantar de amor, mais a amiga se fará objeto de escárnio e maldizer, o que significa, no âmbito do poético, um sujeito digno de deslouvor, ou mais tragicamente ainda, no nível da censura imposta à ordem social, poder vir a ser a imagem da bela jovem que pelo amor-paixão vai-se transformando até chegar, louca de amor, morta por amor, à figura horrenda de si, a metamorfose limite: a feiticeira.
Optando por não se reconhecer no espelho - numa atualíssima dualidade em que o leitor não sabe se se trata do espelho ele mesmo ou das outras donzelas, reflexo especular da virgindade - a jovem põe a nu, interpelando-o, "o aparato verbal e a sociedade a que serve" (Lima: 334).
Preferimos lê-la assim, "espaço aberto": um corpo generosamente fraturado que se projeta para o futuro; uma referência não abolida, mas fortemente abalada nas suas formas sociais e culturais. Ao fim e ao cabo, mesmo que o que mude seja o "gênero" de composição em que ela venha a ser cantada ou, à força, contra a sua vontade de potência, lhe seja reservada a fogueira da Santa Inquisição, essa mulher está a caminho de uma outra idade. Uma alteridade.
Toda a beleza será louvada assim como toda a nudez será castigada? [1]
Não sei. Sei que vem se aproximando uma outra imagem no espelho. Descabelada, destoucada, desagrilhoada, logo, sem rosto. Nua em pêlo, portanto? Melhor, em cabelo. Essa pode ser a expressão movente da imagem dessa donzela como representação-efeito de um sujeito fraturado em trânsito na literatura portuguesa. Seja o exemplo das mães desesperadas pela partida dos filhos no início da conquista das Índias, n'Os Lusíadas ("Qual em cabelo: 'Ó doce e amado esposo'", IV, 91,1), seja o exemplo dos desempregados do fim das Índias, os comerciantes aborrecidos, em "O sentimento dum ocidental" de Cesário Verde ("Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!", Silveira, 1995:117). Cesário, um poeta que está na zona de turbulência desse roteiro e que tem tudo a ver com a questão proposta por este Seminário. Cenas da vida moderna e mundialização da cultura: "Madrid, Paris, Berlim, São Petersburgo, o mundo".
O mundo? "Que mundo! Coitadinha!" (Silveira, 1995:95). Talvez o poeta de "Contrariedades" respondesse assim à questão, ele, que meditando sobre a Idade Média e a sociedade mercantilista, revelou-se um exacerbado analista de corpos mortificados pelo trabalho no espaço aberto pela modernidade, em que assistia ao declínio da aura e do sentido do belo.[2]
Cena 3
Uma questão complexa não precisa ser uma questão confusa. Muitas vezes, porém, é difícil dizer-se quando isso não é também aquilo. É o que sucede com uma estranha esquizofrenia que atravessa as últimas décadas do milênio: os media são cada vez mais recheados de imagens e matérias sobre astros e personalidades; seus pequenos ou grandes escândalos; suas manias e idiossincrasias, ao passo que uma parte considerável do pensamento sério rejeita as categorias de representação, de uma ou outra maneira associadas à imagem, e de sujeito, quase sempre associada ao humano. Em suma, representação e sujeito se tornam objetos de consumo de massa, enquanto uma importante central produtora os desqualifica enquanto conceitos. Não é ocasional que muitos vejam no desprezo ou descaso pelo sujeito um indicador da "pós-modernidade" (Lima, 75).
Este texto é de Luiz Costa Lima e está no seu livro mais recente, Mímesis: Desafio ao Pensamento, publicado este ano, 2000.
Em 1970, há exatos trinta anos, freqüentava eu a turma inaugural do mestrado em Letras da PUC-Rio e iniciava-me nos desa-fios da Teoria da Literatura através das aulas memoráveis do Professor Luiz Costa Lima. Esta comunicação quer ser também uma homenagem àquele tempo em que o Estruturalismo, então em moda, juntava-se à Estilística, que eu trazia de aulas igualmente dignas de memória da Graduação em Letras na UFRJ, para definir até hoje o princípio do meu modo de ler textos.
Da citação de Costa Lima, salto imediatamente para a cena seguinte, em que os termos fortes da passagem - as categorias de representação e sujeito - ao invés de aplicados ou demonstrados (não é assim que leio literatura) constituem o referencial metodológico necessário para uma interpretação do amor entre duas idades, ou na pós-modernidade, se quiserem.
Cena 4
[...]
Era uma cena com as letras as figuras as imagens
que são a memória inextinguível de corpos há muito extintos;
uma cena com copos e cinzeiros brilhando como as cores do deus
sabe quanto amei; uma cama para o amor restante - e dirás
[feliz -,
uma cama para o sofrimento excessivo, a certeza tanta do morrer
que excede já o medo de morrer.
Uma cena antes do fim
em que o seu corpo frágil, golpeado, a abraçar-te, era já só a
[aura a onda trémula
de um amigo longe, num filme onde as famílias se confundiam
e ele fora já o pai se não podia ser o amante - o homem que
[tinha a estrela
e te queria ensinar que não pode queimar quem não pode ser
[queimado -
o irmão se não podia ser o amante, e o filho
ou o amigo
só porque ia morrer mais cedo.
Ele pudera dizer, citava: stop feeling sorry for yourself.
E agora a tristeza já não podia ser pena.
[...]
É uma barra (a) suportar esse vasto vasto mundo! Haja coluna! Da idade média à idade mídia a barra deslizante do signo acumula um repertório espetacular de representações. Como diz Costa Lima: "A mímesis tem uma relação paradoxal com a realidade: independente dela por sua impulsão, dela, entretanto, se aproxima e se alimenta, porque é nas formas sociais com que se mostra a realidade que a mímesis encontra o meio em que a sua dinâmica se atualiza. [...] Assim entendida, a mímesis, em vez de afastar sujeito e representações, termina por configurá-los." (Lima: 148).
O fragmento de "Poema" que abre a quarta cena desta comunicação é de Manuel Gusmão, excelente ensaísta, extraordinário crítico de poesia, professor amado por seus colegas e alunos, autor de dois belos livros de poemas: Dois Sóis, a Rosa - a Arquictetura do Mundo (1990) e Mapas o Assombro a Sombra (1996). Títulos em que sobressaem a "razão do poema" (Merquior, 1965), porque "a escrita é aqui entendida como construção e transformação da realidade e não como representação de uma anterioridade empírica" (Guerreiro citado em Gusmão, 1996), e a "a paixão fonética dos nomes" (Gusmão, 1996:47), porque, segundo versos do próprio autor, reveladores já da sua cartografia benjaminiana, "A catacrese é uma catástrofe benévola que pode acontecer/à língua da paixão" (Gusmão:36), "e ele chama a chama, o assombro a sombra" (Gusmão: 43). É nesta língua das paixões por analogias às figurações processuais, como a música (Bloch, 1981:143), que sinto "só idade" soidade. "É talvez que a beleza seja/ uma palavra que esconde uma outra.", diz Gusmão (1996:89).
Os versos do excerto transcrito não estão em nenhum desses dois livros e os leio, ainda sem informação mais precisa acerca da fonte, em cópia xerox, num conjunto de mais cinco poetas selecionados por outro grande intérprete português do nosso tempo, Eduardo Prado Coelho, para recente curso na Faculdade de Letras da UFRJ.[3] Como Manuel Gusmão já tomou parte em atividades acadêmicas semelhantes, tendo inclusive participado de um seminário anterior da Cátedra Padre António Vieira, não deixa de ser oportuna a sua volta. São mais duas homenagens. Interessa acrescentar ainda que, apesar de possuir os dois livros de Gusmão, fico restrito (com duas ou três exceções) à escolha dos poemas feita por Prado Coelho, todos do segundo livro. É um modo de experimentar o gosto do outro.
Se, contra toda a lógica do bom senso, em se tratando de questão de tempo, repetíssemos o fragmento de versos de "Poema", a economia interpretativa ganharia em muito. Repetiríamos, pois, mais precisamente, os quatro primeiros versos, interrompendo o quarto antes de concluí-lo, em "deus sabe quanto amei", a fim de projetá-lo numa cadeia de outros significantes.
Num gesto brusco, mas não impensado, movidos pelo mecanismo de transferência juntemos a esses versos, primeiramente - como se fosse um suplemento utópico, pois não aderem totalmente ao original: "a utopia, sabes?, é imperfeito o mundo" (Gusmão:39) -, o que nos versos da cantiga medieval são os complementos que cobrem o corpo feminino cativo por um amor ausente pelo qual não morre e talvez se veja flagelar. "Era uma cena com as letras as figuras as imagens"... da Idade Média, como por exemplo: el-rei, amigo, Estela, sirgo, toucas, cintas das fivelas e espelho. Juntemos, agora, aos versos de Gusmão (noutros seus lê-se: "corpo velido da noite [...] corpo velado da paixão", 1996:88) a sentença principal deste Seminário, a meu ver, uma dobra resistente entre a vivência moderna e a experiência pós-moderna: "Cenas da vida moderna e mundialização da cultura": "as letras as figuras as imagens/que são a memória inextinguível de corpos há muitos extintos". Já que a problematização no princípio de continuidade da História se cruza com a construção da mímesis "como emergência da diferença sob um horizonte de semelhanças" (Lima:353), pois, como diz o poeta Gusmão, numa cena de sonoridade à E. Bloch, "Há na música o modo da utopia que reconheces: é que// é aqui e agora. Mas há um intervalo e uma mudança de voz:/ aqui e agora não coincidem. E depois repetem-se noutra figura./ Há contigo uma evidência de alegria nas mãos da música." (Gusmão:33), nada impede de atualizar, por hipóteses, os lugares vazios do texto, "que", e insisto nos versos de Gusmão, "são a memória inextinguível de corpos há muitos extintos". Ora, para uma hipótese de interpretação sobre o paradoxo fundamental do fragmento, a inextinguibilidade do extinto, bastam uma releitura da nossa leitura do poema de Fernando Echevarría, uma volta à última citação de Luiz Costa Lima e a vontade de saber mais sobre o Princípio Esperança, segundo Ernst Bloch, uma utopia concretamente mediatizada por um futuro autêntico, o horizonte utópico: "Le marxisme n'est pas le contraire d'une utopie mais au contraire le novum d'une utopie concrète" (Bloch, 1981:180). No fundo, há na tríade - as letras, as figuras, as imagens - um registro na fronteira, a inscrição de que entre o real e o sujeito interagem as representações do mundo que, como num espelho - ou como Gusmão vai insistir no "écran" -, encenam eternamente o imaginário e o simbólico da cultura: o inextinguível retorno do extinto.
E é assim que no desenvolvimento da primeira seqüência interrompida do fragmento - pois são duas, se se notam os dois versos recuados no conjunto - o leitor não deve se surpreender com a volta do sujeito histórico porque é ele a coluna que suporta mais uma vez e para sempre o mundo das representações. A cena que brilha, atualizada agora "com copos e cinzeiros", é uma das mais comoventes do cinema americano nosso de todos os dias. Nela, outra vez, um corpo de mulher é escudo contra a morte do homem. É Shirley MacLaine correndo para a morte apontada para Frank Sinatra no Deus Sabe quanto Amei, Some Came Running, no original, de Vincente Minnelli. Uma cena que, na já sabida paixão fonética do poeta, é "uma cama para o amor restante - e dirás feliz -,". E esse tu já é também o leitor que reconheça na narração da cena esse título estranho na história dos trágicos romances de amor na literatura portuguesa: Um Amor Feliz (1986), de David Mourão-Ferreira. Se infelizes, Amores-inês, digo eu. Ela mesma, a Castro, uma citação nos poemas de Gusmão: "estavas posta em sossego mais alguém/ na tua história acende o sobressalto com que desconheces o que lês." (Gusmão:21) Por isso, é tudo aqui "um sofrimento excessivo", acendido, como um clarão, na sala escura do nosso imaginário, quero dizer, do cinema.
Começa, assim, a segunda seqüência desse fragmento: "Uma cena antes do fim/em que o seu corpo frágil, golpeado, a abraçar-te, era já a aura a onda trémula de um amigo longe, num filme [...]". Se há alguma delicadeza na minha leitura não vou buscar esse "amigo longe" na Idade Média, mas também não vou deixá-lo sem chão, desistoricizando-o, numa comunicação que começa num tempo de cantigas e, sobretudo, num texto poético em que no início, na parte cortada pela mão da censura do tempo, "É de novo uma manhã do mundo:" (grifo meu) Tous les matins du monde? Um despertar de amantes em que revejo uma "alba", (na terceira parte dos Mapas, "A noite a manhã ou a morte", há um grupo de três poemas: "Alba e bailia"), assistida aqui em terceira pessoa por um narrador como se fosse ele mesmo, protagonista, um outro de si que, coadjuvante, entre um tu e um eu apaixonados, se confundisse como se confundem o voyeur e o sujeito que fala com boca de pelo menos duas línguas ("Tenho a boca alucinada com a tua língua na minha língua na tua boca", Gusmão:36). É esta, aliás, a matéria dessa segunda seqüência, em que uma família são gerações em processo, cuja troca de papéis corresponde à idéia de progresso em cadeia, "sobre o chão do mundo" (Gusmão:34), de "ossos eléctricos" (Gusmão:18), "uma tempestade eléctrica" (Gusmão:36), já que só sabe do fogo a chama e a sombra quem por eles se deixa queimar, como bem o sabem o Camões do "amor é um fogo" e o Carlos de Oliveira de O Aprendiz de Feiticeiro (1971). Noutras palavras: leitor inteligente desses autores, Gusmão encena o mundo, feito de luz desde o seu nascimento mítico, como um efeito da luz, câmera, ação! sobre um "écran", de fortes cores benjaminianas, onde batem-se a "aura" dos objetos antigos e as suas formas fragmentárias na idade das tecnologias. "Imagens dialéticas". Como num filme, portanto, "põe as mãos aqui; no écran onde passa o filme. As mãos na luz/ atravessadas pelas sombras e os brilhos dos personagens./ O filme é a preto e branco como as formas e as cores destas// letras que não cessam. Mexes as mãos à procura do som das falas." (Gusmão:35).
"Uma cena antes do fim". Nesse sistema em movimento de nomes e coisas que se internalizam ou se interiorizam, não se sabe bem se "o amigo" que deve "morrer mais cedo" está atrasado ou adiantado para o seu tempo de protagonista na história. Porque a morte é aqui um estado do morrer não absoluto, mas de passagem para um novo estado, "essa metamorfose do terceiro corpo" (Gusmão:50), mediatizado por um mundo de imagens, onde os acontecimentos são organizados por efeitos de citação, de corte, de montagem: "É de novo uma manhã do mundo". Ou como dizem incomparavelmente bem estes versos do poema mais belo entre os escolhidos por Eduardo Prado Coelho: "Atrasas-te/ e contudo. Nunca chegarás à hora de nascer e contudo/ nasces. Nunca chegarás e isso dança. Isto chama por um nome// qualquer.
Sem nome. Isto: o atraso é/ uma diferença de velocidade nos mundos do mundo" (Gusmão:32). E dá logo vontade de que estes não sejam esquecidos: "Agora no sol do pátio a camélia abriu./ levou um ano a desabrochar. Não parece real. Esse é/ um dos espantos com o real. é que não se parece." (Gusmão:84).
"E agora", num mundo como este, de um humanismo de desconcertadas raízes camonianas, "a tristeza já não podia ser pena". Talvez este verso final do fragmento resuma a encenação das artes miméticas nesses poemas. A tristeza na idade mídia já não pode ser escrita à pena apenas. Verso, versão de mundo: outrora. Pena na mundialização da cultura são penas, os múltiplos meios tecnológicos de reprodução que nos representam. Filhos e amantes, pais, uma cadeia de transmissão por efeito assimétrico de reprodução, um labirinto borgiano onde um é a citação do outro. O prógono e o epígono. E vice versa. O livro que Cesário queria exacerbado é hoje uma cartografia alucinada. "Que mundo!" Coitadinhos!... de nós... cheios de nós?
Cena 5
Par Deus, coitada vivo,
Deus sabe quanto amei
Um deus ex machina ("um deus rodoviário apagando o medo", Gusmão, 1996:89) parece levantar-se na configuração dessa montagem. Da citação do poema de Echevarría à reminiscência da sentença condenatória do Velho do Restelo, esta comunicação fala, conceitual e metaforicamente, de mecanismos imaginários e simbólicos sobre idades de representação do mundo.
São essas as duas cenas principais da minha comunicação. Um verso antigo e o título dum filme do fim dos anos novecentos e cinqüenta. Sinto-me como um tradutor simultâneo que matou a literatura, e foi no cinema. Vendo-as assim é como se entretanto ouvisse uma cantiga de amor e de amigo em versos de seis sílabas. Misturando-as assim, leio os poemas de Manuel Gusmão como quem, primeira e finalmente, enuncia a hipótese de interpretação deste trabalho: entre a idade média e a idade mídia, não há objeto vazio; a qualidade do amor é um valor quantitativo, e, a seguir, interpreta a tese VI "Sobre o conceito de História" de Walter Benjamin na versão de Olgária Matos: "articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência tal qual ela brilha no instante de um perigo." (Matos, 1993:56).
E, se assim os leio, é porque a eles volto, certo de que no "mor perigo" é ela sempre, a poesia, que me socorre nas mitologias das paixões. Literatura de resistência. Como neste poema de muitos nomes[4] (Dante, Petrarca, Luiza[5]), sem título, sobre o retrato de Laura:
Há o retrato dela por trás dele. É pois só a imagem
da imagem de Laura que o atormenta. que vibra como
o halo do candeeiro
na imaginação
do amor.
O medo de a ter perdido antes de a ter encontrada.
A alucinação entretanto faz que o mundo venha até aqui.
A dois passos.
É no limiar que ela vem. E é a aura dela
que trémula a precede junto dele que estremece
na sombra do coração.
Laura é minha Beatrice, he said.
Ma io non sapevo. E ele olha para, como se
pudesse olhar para aqui. como se de aqui lhe pudesse
vir algum
socorro.
Fim!
Rio de Janeiro, 21 de novembro de 2000
Referências bibliográficas:
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Notas: