Cenas da vida moderna e mundialização da cultura:

O Brasil no imaginário português

Eneida Leal Cunha
UFBA

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São freqüentes as restrições ao termo "descobrimento" para significar o episódio da chegada dos portugueses ao litoral que posteriormente se denominaria Brasil, mas aponta-se menos a segunda impropriedade, contida na expressão que plasma a inauguralidade do fato ocorrido há quase cinco séculos e recentemente comemorado com veemência: a impropriedade da referência ao próprio Brasil, enquanto nome que designa a terra aonde chegaram os portugueses no século XVI, pois este nome sobrepõe a efetividade física, social e cultural que conhecemos e com a qual convivemos (ou na qual vivemos) ao que existia aqui até abril de 1500.

Foi outra - Terra de Vera Cruz - a designação primeira registrada na Carta de Pero Vaz de Caminha, que dá existência discursiva ao território, ao tempo em que dele se apropria, como valor e posse. Um século após, na primeira História da Colônia portuguesa na América, escrita por Fr. Vicente do Salvador, estão patentes as ressalvas que ainda se faziam à substituição do "sacro nome" pelo "daquele pau com que tingem panos, do qual há [havia] muito, nesta terra".[1]

O nome próprio não é um significante que individualize sem predicar, descrever ou atribuir sentido e valor. A questão do nome da terra - "que não a designa como simples extensão, designa-a [ao mesmo tempo] como compreensão, como alguma coisa, qualidade ou propriedade"[2] - é uma providencial abertura para delimitar a compreensão de imaginário - ou do "imaginário português" - que preside este texto.

Pode-se ler, na argumentação restritiva de Fr. Vicente do Salvador à passagem do nome sacro ao profano e na sua previsão do insucesso que daí decorreria, a prevalência do imaginário cristão e ocidental do século XVI que o historiador compartilha com Pero Vaz de Caminha, sobre o valor material da terra e a lógica mercantilista. Mesmo que não nos seja mais possível pensar o mundo e as sociedades como repercussões de uma ordem divina, algo existe nessa forma de conceber a história que não é de todo estranha a inquietações e elaborações contemporâneas. Se, por um lado, não nos é possível conceber um retorno, no sentido de uma repetição não diferida da mentalidade dominante à época de Fr. Vicente do Salvador, por outro lado, é sensível a existência de algum tipo de articulação entre a sua formulação, oriunda da ênfase no componente imaginário, e o esforço contemporâneo para escapar ao confinamento na determinação econômico-funcional que floresceu com o pensamento moderno.

O diálogo com Fr. Vicente do Salvador se torna possível a partir de um modo de compreender a história readmitindo que significações imaginárias extrapolam os limites do funcional na determinação do simbólico. Ou seja, compreendendo o imaginário como "um investimento inicial do mundo e de si mesma, pela sociedade, com um sentido que não é 'ditado' por fatores reais porquanto é ele que confere a esses fatores reais tal importância e tal lugar no universo que constitui para si mesma a sociedade".[3]

Importa principalmente para esta leitura de algumas visões do Brasil, produzidas em circunstâncias históricas bastante diferenciadas, compreender o imaginário não como um indeterminado, mas como um determinante, um motor na produção de sentidos, valores e significações, um conjunto de traços - incisões ou inscrições indeléveis em uma superfície - que têm longa duração, como se pode ler na descrição da memória feita pelo primeiro Freud.[4] Traços que tenderão a se repetir diferidos, formas cujo valor, qualidade ou sentido poderão ser alterados, rasurados, invertidos, sem que isso impeça que possamos reconhecê-los em seu retorno. São esses traços que vou buscar na Carta de Pero Vaz de Caminha, por considerá-la um lugar primordial de leitura das significações plasmadas pelo imaginário português que darão existência discursiva e simbólica a "essa terra nova".

Retomo alguns trechos da Carta que descrevem as primeiras visões e apreciações desta terra e de seus "habitantes naturais",[5] nos quais leio os sentidos mais reincidentes, que organizam a percepção e o relato de Caminha. Ou seja, trechos que insistem em dois aspectos. Em primeiro lugar, a ênfase nas dimensões, quantidades e qualidades, na grandeza da terra:

E neste dia, a horas de vésperas, houvemos vista de terra, isto é, primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo, e de outras serras mais baixas ao sul dele e de terra chã com grandes arvoredos, ao qual monte alto o capitão pôs nome o Monte Pascoal e à terra, a Terra de Vera Cruz.[6]

A partir desse trecho que reproduz a visão inaugural da quarta-feira, 22 de abril de 1500, inúmeros outros existem nos quais se pode ler, reiterada, a visão de uma surpreendente e acolhedora grandeza, do todo e das partes, como no registro do dia seguinte, 23 de abril: "[...] acharam os ditos navios, um arrecife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada."

Registros de grandeza que culminam na apreciação final, da sexta-feira, 1o de maio:

Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até a outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha, que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Traz ao longo do mar em algumas partes grandes barreiras, delas vermelha, e delas brancas, e a terra, por cima, toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia muito chã e muito formosa; pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos, que nos parecia mui longa a terra.
Nela até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem nenhuma coisa de metal, nem de ferro; nem lho vimos. Porém, a terra, em si, é de muitos bons ares, assim frios e temperados com os de Entre Douro e Minho, porque nesses tempos de agora os achávamos como os de lá. Águas são muitas, infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem.

O segundo eixo da Carta que retomo é mais complexo, diz respeito às "gentes", e nesse caso as imagens são menos panorâmicas. Desde a primeira referência aos homens vistos em terra, para além da precisa e minuciosa descrição física que já levou alguns analistas a verem em Caminha o "nosso primeiro etnógrafo", importam aqui dois traços plasmados do gentio que retornam, nuançados, inúmeras vezes: a nudez, referida como geral - "pardos, todos, nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse as vergonhas" -, mas apre-ciada repetidamente nas mulheres, e ainda a receptividade, formada pela docilidade, alegria e "inocência", daqueles que encontrou.

Ali andavam, entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos, pelas espáduas; e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que de as nós muito bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha.

Caminha retorna à nudez das mulheres em diversos momentos da Carta, modulando a palavra "vergonha" de forma a recobrir um campo semântico onde as idéias-força são sexualidade, sensualidade e permissividade. As razões disso são óbvias ou já por demais exploradas. Interessa-me aqui articular essa ênfase na ausência de interdição a outros trechos que dão conta do segundo item, a receptividade e a alegria.

[...] levou consigo um gaiteiro nosso, com sua gaita, e meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos. E eles folgavam e riam e andavam com ele mui bem, ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto os com aquilo muito segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza, como monteses. E foram-se para cima. [Domingo, 26 de abril, referindo-se a Diogo Dias.]
À segunda feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram muitos [...] E traziam já muitos poucos arcos e estiveram assim um pouco afastados de nós. E depois, poucos e poucos, misturaram-se conosco e abraçavam-nos, e folgavam (e alguns deles se esquivavam logo.)
Andavam todos tão dispostos e tão bem feitos e galantes com suas tinturas, que pareciam bem. Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mui boas vontades, e levavam-na aos batéis. E andavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós andávamos deles. [...]
Enquanto ali, este dia, andaram, sempre ao som de um tamborim nosso dançaram e bailaram com os nossos, em maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus. (Quinta-feira, 30 de abril)

A reduplicação das imagens visivas construídas pelas palavras de Caminha em imagens fotográficas recentes, no ensaio publicado pelo Museu Aberto do Descobrimento, tem o sentido geral de ratificar aquilo que em outro momento abordei:[7] o movimento predominante na narrativa de Caminha tem seu equivalente contemporâneo no movimento de uma câmera, que se aproxima progressiva e reiteradamente de uma mesma cena, repetindo-a, ampliando-a, tornando-a aos poucos mais precisa, mais nítida e mais abrangente. A analogia mais forte, porém, entre o texto de Caminha e a câmera está na unilateralidade e exterioridade absoluta do seu relato. O escrivão escolhe, compõe e registra imagens, a tudo contempla com o seu olhar e testemunho, mas lhe é impossível ultrapassar a superfície plástica que se lhe oferece, a terra e os homens permanecerão, até o final do relato, inapreensíveis enquanto interioridade, motivação, valor. Dessa opacidade foi feita, por Caminha, a leitura possível a um homem europeu, cristão, quinhentista e mercador.

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É possível reconhecer, no texto de Caminha, estruturas de percepção e de constituição de imagens do Brasil que maquinalmente ainda estão se repetindo em nossos dias, nos modos como concebemos o país: a compulsão do olhar exteriorizado, plano e generalizante; a incapacidade de interlocução com a diversidade; a vontade de tudo integrar numa harmonia redutora. A diferença entre Caminha e o nosso tempo está em que já não é possível o álibi, legítimo naquelas suas circunstâncias, de um Outro desconhecido e surpreendente.

A grandeza promissora da terra, a sensualidade, a cordialidade, a hospitalidade e a alegria das gentes são, bem o sabemos, os traços mais nítidos e persistentes dessa visão da terra que a instituiu como realidade e propriedade da coroa portuguesa. A partir dela, sobre ela e nela, funda-se também a nacionalidade e constroem-se os estereótipos da brasilidade. Estivemos a ver o quanto essas imagens da brasilidade voltaram à cena principal dos discursos na maioria dos eventos que, entre 1998 e 2000, comemoraram os descobrimentos portugueses. Entre ambos, entre o imaginário imperial instituinte e o imaginário nacional instituído, há em comum a mesma tensão da concepção civilizacional européia imposta à efetividade de um outro lugar espaço-temporal e das emergências constantes de civilizações outras, que vazaram e vazam entre as estratégias de apagamento, recalque e hierarquização.

Que têm esses trechos a ver com algumas imagens atuais do Brasil, produzidas pela contemporaneidade cultural portuguesa?

O projeto de pesquisa Reconfigurações do imaginário e reconstruções de identidades: produções simbólicas e relações político-culturais contemporâneas que (re)articulam Brasil e Portugal[8] investiga como o trânsito contemporâneo dos corpos, das culturas, dos capitais e dos bens de consumo, sobretudo dos bens simbólicos, vem produzindo reconfigurações de identidades nacionais, dos limites e feições dos Estados-Nação modernos e das relações que entre si mantêm. Nesse contexto globalizado, foram recolhidos e analisados discursos e imagens do Estado-Nação decorrentes das comemorações dos descobrimentos, no Brasil e em Portugal, a partir dos quais se avaliam as plurívocas expressões contemporâneas da nacionalidade, com o foco no jogo entre as resistências dos imaginários instituídos, suas reapropriações e ressignificações, suas descontinuidades ou transgressões. Como pano de fundo dessas expressões contemporâneas, relêem-se os diferenciados processos de construção de nacionalidades e a historicidade das relações entre Brasil e Portugal.

No bojo desse trabalho foram entrevistados em Lisboa, em 1998, portugueses que de alguma forma estivessem vinculados à produção e às políticas culturais. Foram ouvidos indivíduos que cabem, de um modo geral, na ampla rubrica de "intelectuais": escritores, artistas, professores, políticos, jornalistas, diplomatas, em especial aqueles que mais direta ou indiretamente fossem responsáveis, como planejadores ou executores, pelas iniciativas culturais que então efetivavam as comemorações dos descobrimentos ou que profissionalmente se ocupassem da intensa promoção cultural que faz parte da política externa portuguesa.[9] Não significam, portanto, uma amostragem da sociedade como um todo, na sua diversidade de valores e interesses, mas veiculam predominantemente perspectivas do Estado português e de sua elite intelectual sobre a nacionalidade e sobre as relações de Portugal com o mundo dito lusófono. Foram todos os entrevistados instigados a falar, entre outros itens, sobre a sua visão do Brasil e sobre as relações, presentes e pretéritas, entre os dois países.

O confronto que se vai estabelecer, entre essas falas contemporâneas e o texto do escrivão Pero Vaz de Caminha, está a considerar que são eles analogamente porta-vozes qualificados de um discurso profundamente contaminado pelo veio institucional - em que pese as diferenças de enfoque pessoal que lhe dão sabor - e neles podem ser igualmente lidas as confluências, com quase quinhentos anos de intervalo, de visões, imagens e avaliações de Portugal sobre o Brasil.

A mais óbvia e reincidente aproximação está na rigorosamente inescapável referência preliminar à "grandeza", no sentido dimensional e no sentido de riqueza, do Brasil - "um país desmesurado, que no fundo é metade da América do Sul", como diz um dos entrevistados. Diversamente de Caminha, entretanto, esse é um dado formulado comparativamente, explicitando-se sempre o seu contraste com a "pequenez" e a "pobreza" de Portugal.

Portugal é um país pequeno, pequeníssimo. E tenta iludir essa pequenez lembrando o grande que se foi..
Somos tão pequeninos, Portugal... uma coisa tão pequenina, tão poucochinhos... É bom ter o espaço do Brasil, o espaço do Brasil é como se desse a possibilidade de ampliar, de multiplicar, de diversificar... que Portugal não tem... Para mim o Brasil é um enriquecimento impressionante e, nesse sentido, nós devíamos estar muito mais abertos.

A incidência de expressões como "Portugal é um país pequeno" ou "Portugal é um país pobre" poderia chegar à monotonia, se o contexto de elocução não deixasse abertura para que se vislumbrasse a contrapartida das restritas dimensões materiais ou físicas, fixadas desde Camões e Os Lusíadas, em um outro traço, também de longa duração, no imaginário lusitano: a grandeza do destino, fundada na grandeza pretérita do império, grandeza essa que nostálgica e imaginariamente reúne Portugal e Brasil:

O Brasil foi a nossa jóia da coroa, em termos..., não digo em termos de colônia, só, digo em termos de orgulho. Portugal criou um grande país, que se tornou independente, que fala português, que seguiu o seu próprio caminho, mas que é necessário à construção da nossa própria identidade. Nós somos nós mais o que o Brasil fez de si.

Ou ainda:

Para os portugueses, o Brasil tem uma dimensão - é uma questão de escala -, o Brasil tem uma dimensão muito grande e Portugal tem dificuldades em pensar, seja uma política de presença do livro, seja uma política de difusão do cinema ou da música portuguesa, seja uma política cultural no seu conjunto. Quer dizer, a dimensão brasileira excede a nossa capacidade em termos de escala.

Essa composição resulta ainda, em outros depoimentos, numa suspensão do presente, seja ele brasileiro ou português, que lança o Brasil em algo bem nosso conhecido, na condenação permanente do país a uma existência plena apenas no futuro e, ao mesmo tempo, confina Portugal no passado. Dessa forma, mesmo tendo-se em pauta as contingências contemporâneas, é como se esse discurso paralisasse Portugal numa insuperável perspectiva de ancestralidade em relação ao Brasil, o que contradiz aquilo a que hoje só nos referimos entre aspas: a "irmandade" entre esses países ou a "retórica da fraternidade".

O segundo ponto que focalizo faz parte também da repetição do texto de Caminha que é incorporada e reproduzida, aqui no Brasil, para consumo interno e externo: a ênfase na sensualidade, alegria, cordialidade, hospitalidade, generosidade, que igualmente não dispensam um enfoque comparativo e contrastante com Portugal:

O público que é caloroso, generoso, entusiástico e gosta de ganhar, portanto quando sai de casa para ver um espetáculo quer que ele seja bom, e isso já é logo metade para que as coisas corram muito bem... O público, no Brasil, é aberto, generoso, como não é o público português. O público português é avarento, o público e a crítica.

Esse aspecto, entretanto, raramente é referido de modo simples ou ingênuo, tal como se encontra, por exemplo, no discurso publicitário recente em Portugal ou nos folhetos de divulgação turística - esses, lá, como aqui, aferrados à estereotipia do exótico. Sensualidade, alegria, espontaneidade e ausência de interdição são repostos nos discursos de modo a conformar o velho binômio entre cultura e natureza, ou uma sua versão mais erudita, que dicotomiza a racionalidade (ocidental, européia) e a irracionalidade, instintiva (advinda das culturas e dos espaços não europeus).

O que é difícil de conciliar é aquilo que na sua aparência são duas dimensões completamente opostas. Por um lado, a minha relação muito estreita com a França e com todos os hábitos culturais franceses [...] que é uma relação, de facto, muito viva com o que se passa em França, país onde me sinto muito bem, mas que aparentemente é um país mais cartesiano, controlado, cerebral, intelectualizado, sofisticado. Com o lado brasileiro, que aparentemente seria o oposto, mais ligado ao incontrolável, ao pulsional, ao musical, ao desviante, a essa dimensão de emoção em estado puro, a dimensão afetiva nas relações sociais, que é o contrário da França.

Sintomático nesse depoimento é o "entre-lugar" português na polaridade constituída, pois o entrevistado completa:

Digamos, nos dias mais otimistas, vejo Portugal como um equilíbrio entre um estado e outro, e nos dias mais pessimistas posso ver Portugal como algo que não chega a ser a França, em termos intelectuais, e não chega a ser o Brasil, em termos pulsionais.

Da avaliação dessas falas pode-se construir uma primeira hipótese sobre o modo de existência contemporânea do Brasil no imaginário português, o qual o reconhece - no triplo sentido de reencontrar, de tornar possível a existência e, finalmente, de afirmar a relação familiar - na chave da semelhança e da continuidade, ou seja, na repetição de traços plasmados pelo imaginário quinhentista. Permanecem e são reiterados os traços que atestam a familiaridade ou semelhança, não entre Brasil e Portugal, mas entre o Brasil percebido ou falado na contemporaneidade e os primeiros traços que desenharam e atribuíram valor à terra "descoberta", a Terra de Vera Cruz. Ao mesmo tempo, essas visões do Brasil operam com a diferença, reiteram, projetando aqui, tudo aquilo que, para esse mesmo imaginário, Portugal não é: grandeza física, alegria, carnalidade, sensualidade, não-civilização. Se se quiser psicanalisar esse romance familiar inelutável que reúne Portugal e Brasil (o que não é de todo improcedente quando se reflete sobre relações identitárias), ter-se-á que recorrer ao conceito freudiano de melancolia, que descreve a perda de um objeto de desejo não processada pelo trabalho do luto.[10]

Há, entretanto, nos depoimentos recolhidos na atualidade, uma contrapartida das visões fundadas na familiaridade (aqui também no triplo sentido de semelhança, reconhecimento e vínculo familiar), exposta nos índices de um - também reiterado - estranhamento, que pode ser lido, nessas entrevistas, em relação às diferenças ou à não coincidência do Brasil de hoje com a visão inaugural do século XV, estranhamento este que incidirá principalmente em dois tópicos: as matrizes da efetiva diversidade racial na composição demográfica e cultural do país e a percepção do Brasil como realidade econômica, política e, principalmente, como experiência cultural americana, no sentido de não-européia.

O primeiro fator sintomático desse estranhamento decorre da impossibilidade, flagrante nos depoimentos, de se conceber, ainda hoje, o relevo que tem para o Brasil e para a identidade cultural brasileira os milhões de africanos que resultaram aqui do regime colonial escravista. Fala-se da mistura, da miscigenação, da diversidade, mas em nenhum momento é admitida a presença efetiva no país dos milhões de negros e de seus descendentes, ignorando-os ou recusando-os até enquanto dado relevante na formação demográfica.

A única coisa extraordinária (em relação ao Brasil) é - mas eu nunca estudei isso, vocês devem saber isso muito melhor do que eu - é que houve no processo de... eu ia dizer europeização, mas também há japoneses, e há libaneses, e há outros povos, mas, basicamente, de europeização. Como é que conseguiram e quando é que conseguiram saltar de um "recrutamento" exclusivo de colonos portugueses, o que nunca permitiria que o Brasil tivesse hoje à volta de 180 milhões de habitantes ou coisa que o valha. Houve ali uma diversificação, que também há no Uruguai, na Argentina, mas nunca pode ter sido quantitativamente tão expressiva quanto foi no Brasil, porque senão o Brasil não tinha podido em tão pouco tempo atingir a demografia que tem hoje.

Em relação ao segundo tópico do estranhamento, vale a pena, pela expressividade, deixar falarem os entrevistados, sobre a própria resistência à substituição do mapa imperial - no qual o Brasil é uma continuidade, apenas espacialmente interrompida, de Portugal -, pelo desenho hoje continental do antigo Novo Mundo:

Depois, tem essa coisa da aproximação do Brasil aos Estados Unidos, à América, afinal o tal avozinho produziu uma outra realidade que se reconhece num outro contexto, que se entende e que se organiza num outro contexto, que é o continente americano. E a aproximação do Brasil com os Estados Unidos é também uma outra enorme razão de perplexidade, relativamente à nossa relação com esse país filho, irmão, grandão, que nos produzia um enorme orgulho em todos os aspectos.
[...] é um grande país, é uma potência, é um país de língua portuguesa no continente americano, pertence a uma outra
realidade econômica que é um Mercosul, que a gente não sabe muito bem o que é, mas que calcula que seja uma coisa parecida com a Comunidade Econômica Européia, que integra o Brasil e que faz como que uma ponte que parecia natural, este trânsito de irmãos, que nos parecia uma coisa natural, de repente já não é tão verdade assim.
E o Brasil, cada vez mais ligado a um eixo, seja Mercosul, seja com a América do Norte, os Estados Unidos da América, não mantém essa relação de hostilidade, de tensão em relação a Portugal, mas de certo modo esquece muitas vezes esse tipo de presença portuguesa.

Flagrar este jogo entre familiaridade e estranhamento, atração e recusa, pode ser um caminho promissor para que se avaliem as ambigüidades sempre presentes nas aproximações políticas e culturais entre Brasil e Portugal que estão, por exemplo, na base da formulação de um "Bloco Lusófono", na geopolítica contemporânea. Ou, num ângulo menos aberto e mais aderido ao campo do literário, nos diferenciados diálogos e imaginações recíprocas, entre Brasil e Portugal, que podem ser lidos tanto na literatura quanto na produção crítica que a avalia, pelo menos desde o século XIX.

Um análogo do modo como as expressões atuais do imaginário português, lidas nas entrevistas, repõe a sua própria ambigüidade entre familiaridade e estranhamento também pode ser reencontrado em Caminha, quando o texto do escrivão aponta, repetidamente, a "enquivança" do gentio - ou "esquiveza" do gentio, conforme prefere a versão da Carta aqui adotada - como a explicação plausível para os comportamentos dos "habitantes naturais da terra" que resultavam na frustração das suas próprias expectativas ou decorriam dos limites do quadro de referências que produzia o relato do seu encontro com um mundo e uma gente inteiramente Outros. Valendo-se de um termo mais forte - "a ingratidão" - um dos entrevistados deixa vir à tona o desconforto do desencontro entre as forças que constituíram o imaginário imperial lusitano e a sua experiência atual do Brasil.

[...] uma curiosíssima reflexão sobre a ingratidão: Com que direito é que o Brasil está mais perto da América do que de nós? Com que direito é que eles deixam evoluir a língua e deixam penetrar a língua por anglicanismos americanos? Com que direito é que os nossos hábitos, que nós transportamos para lá, e que conhecíamos cristalizados, como aquelas palavras que gostamos de ouvir os brasileiros dizerem e que nós perdemos pelo caminho: o tal trem, o tal ônibus, o tal cardápio, o tal enxergar... São palavras que nós perdemos no fim do século XIX, princípio do século XX, de que nós gostamos muito...

Notas:

  • 1 Fr. Vicente do Salvador, História do Brasil: 1500-1627, 5 ed., São Paulo, Melhoramentos, 1965, p. 58.
  • 2 Cornelius Castoriadis, A Instituição Imaginária da Sociedade, 3 ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p. 178.
  • 3 Id., ibid., p. 157.
  • 4 Cf. Freud, "Projeto para uma psicologia científica", in: Publicações Pré-Psicanalíticas e Esboços Inéditos, Rio de Janeiro, Imago, 1977.
  • 5 Os trechos da Carta de Pero Vaz de Caminha aqui selecionados podem ser, todos eles, cotejados com as belas imagens atuais que compõem o ensaio fotográfico publicado no livro que lança o MADE - Museu Aberto do Descobrimento (Roberto Costa Pinho, Museu Aberto do Descobrimento; o Brasil Nasce onde Renasce, São Paulo, Fundação Quadrilátero, 1994.
  • 6 Das inúmeras versões atualizadas da Carta, escolhemos para citar aqui a de responsabilidade de José Manuel Garcia, em Viagens dos Descobrimentos, p. 245-263 (Lisboa, Presença, 1983).
  • 7 Cf. Eneida Leal Cunha, "Ainda a Carta de Pero Vaz de Caminha", Quinto Império, Salvador, n. 4, p.11-20, primeiro semestre de 1995.
  • 8 Integrante do Projeto Identidades: reconfigurações de cultura e política (PRONEX/FINEP) coordenado por Dra. Bela Feldman-Bianco e sediado no Centro de Estudos de Migrações Internacionais da UNICAMP.
  • 9 Essas entrevistas, realizadas juntamente com a Dra. Izabel Margato (PUC-Rio) estão sendo editadas e negociadas, com os entrevistados, as necessárias autorizações para publicação em livro. Como parte delas ainda não tem autorizada a sua publicação, omitem-se aqui os dados identificadores dos entrevistados.
  • 10 Freud, "Luto e Melancolia".