Renato Ortiz
Unicamp
No debate atual sobre o mundo contemporâneo uma certeza se impõe cada vez mais: vivemos um momento de mudanças aceleradas e profundas. Na esfera da política, a debacle soviética, o fim da Guerra Fria, a constituição da Comunidade Européia, a emergência do Japão e dos "tigres" asiáticos, redefinem o desenho geopolítico herdado do pós-guerra. Dentro deste contexto, a divisão bipolar entre comunismo x liberalismo, União Soviética x Estados Unidos, é ultrapassada por novas relações de forças determinando uma outra configuração da ordem internacional. No domínio econômico, a consolidação de um mercado global traz ainda aberturas e dilemas para o século XXI. Deslocalização da força de trabalho, controle administrativo transnacional, capitalismo flexível, avanços tecnológicos, fazem com que a lógica da produção tenha cada vez mais uma abrangência planetária. De alguma maneira esse processo de mudanças se traduz pelo acúmulo de termos que surgem para compreendê-lo: pós-modernidade, globalização, sociedade pós-industrial, sociedade de redes, pós-colonialismo etc. Por isso as Ciências Sociais, neste início do século XXI, buscam por novos conceitos que consigam apreender este movimento de redefinição das coisas. No fundo, a discussão sobre a "crise paradigmática" exprime a inadequação do estoque de conceitos do qual dispomos e a realidade que os desafia a todo momento. A dimensão da cultura não escapa a essas transformações. A "revolução" tecnológica (computadores, internet, satélites, fibras óticas, miniaturização dos aparelhos eletrônicos etc.) permite uma circulação planetária dos bens culturais numa escala inteiramente nova. Eles já não mais se circunscrevem a esse ou aquele país, transbordando as fronteiras nacionais. A cultura tornou-se ainda uma esfera da expressão de conflitos diversos, disputas étnicas, fundamentalismo religioso, afirmação de gêneros, trazendo a discussão das identidades para um primeiro plano. Nesse sentido, o debate sobre a ordem internacional tornou-se mais complexo, pois, ao lado das contradições anteriores, interesses econômicos, divisão entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, acrescenta-se uma outra, a afirmação de identidades culturais diferenciadas e algumas vezes antagônicas.
Se as mudanças no panorama mundial são claras resta no entanto um problema: como qualificá-las? Neste ponto os diagnósticos muitas vezes caminham em direções opostas. O debate se faz hoje sob o signo de uma contradição aparente. Afirma-se simultaneamente conceitos que muitas vezes parecem ser excludentes: integração, globalização. Alguns analistas de marketing não hesitam em preconizar a existência de um planeta homogêneo, unidimensional, unificado apenas pelos vínculos de uma sociedade de consumo. Em todos os sítios os indivíduos teriam em princípio as mesmas necessidades básicas. Caberia ao mercado e aos bens materiais padronizados satisfazê-las. Uma visão antagônica encontra-se entre aqueles que sobrevalorizam os movimentos étnicos (seja para afirmá-los como elementos de construção de identidades locais, seja para rejeitá-los como uma ameaça a qualquer movimento de unificação). O declínio do Estado-nação teria inaugurado uma era de fragmentação social, salutar ou perigosa, de acordo com as inclinações mais ou menos otimistas. Por isso a metáfora da "balcanização" se generalizou. Longe de ser unilinear, o mundo contemporâneo seria constituído por espaços desconexos, por fragmentos (alguns dizem "fractais") diversos, independentes uns dos outros. No contexto da formação dos blocos econômicos, por exemplo Comunidade Européia, a mesma polaridade analítica se reproduz. No início a ênfase é colocada no primeiro termo, a integração. Privilegia-se assim a dimensão da expansão das fronteiras - moeda única européia, mercado comum, livre circulação das pessoas, intercâmbio entre os países etc. Porém, uma vez considerado este aspecto integrador, como se por receio, retorna-se imediatamente a uma premissa anterior: a diferença cultural - a idiossincrasia das regiões, a riqueza das culturas locais, a variedade dos povos e das culturas nacionais. O debate oscila desta forma da "totalidade" à "parte", da "integração" à "diferença", da "homogeneização" à "pluralidade". Tem-se a impressão de estar diante de um mundo esquizofrênico. Por um lado pós-moderno, multifacetado ao infinito, por outro uniforme, idêntico em todos os lugares.
Esta bipolarização ilusória se agrava quando é rebatida no plano ideológico. Totalidade e parte deixam de ser momentos da análise intelectual para se transformarem em pares antagônicos de disposições políticas. De um lado teríamos o "todo", apressadamente assimilado a totalitarismo, de outro as "diferenças", ingenuamente celebradas como expressão genuína do espírito democrático. Modernidade x pós-modernidade, Habermas x Foucault, escolher uma dessas trincheiras torna-se um imperativo de sobrevivência epistemológica. Tudo se passa como se vivêssemos uma Guerra Fria no plano dos conceitos. Esta seria a única forma de superarmos a contradição aparente entre "integração" e "diferenciação", encolhendo-se cada um em seu universo seguro e compartimentado. Mas seriam as sociedades passíveis de serem compreendidas desta forma?
Creio que não. É inteiramente falso imaginar o processo de globalização como sendo equivalente ao de homogeneização do planeta. Por isso propus uma diferenciação entre os conceitos de globalização e de mundialização.[1] Quando falamos de uma economia global, nos referimos a uma estrutura única, subjacente a toda e qualquer economia. Os economistas podem inclusive mensurar a dinâmica desta ordem globalizada por meio de indicadores variados: as trocas e os investimentos financeiros. Pode-se dizer o mesmo da tecnologia na medida em que ela é a mesma em todo o planeta. Podemos assim falar em economia e em tecnologia global. No entanto, a esfera da cultura não pode ser considerada da mesma maneira. O processo de mundialização da cultura não implica necessariamente o aniquilamento das outras manifestações culturais: ele coabita com elas e delas se alimenta. Nesse sentido, não existe nem existirá uma cultura global única, idêntica em todos os lugares. O que se tem é a consolidação de uma matriz civilizatória, a modernidade-mundo, que em cada país se atualiza e se diversifica em função de sua história particular. A modernidade-mundo carrega um elemento diferenciador: eis sua natureza. Isso significa que a mundialização é simultaneamente uma e diversa. Uma enquanto matriz civilizatória cujo alcance é planetário. Nesse sentido, parece-me impróprio falar em "modernidade japonesa", "modernidade européia", "modernidade latino-americana", como se fossem estruturas distintas. Uma matriz não é um modelo econômico no qual as variações se fazem em função dos interesses em jogo ou das oportunidades de mercado. Capitalismo, desterritorialização, formação nacional, racionalização do saber e das condutas, industrialização, urbanização, avanços tecnológicos, são elementos partilhados por todas essas "modernidades". Os sociólogos podem considerá-las parte de um tronco comum revelando seus nexos constitutivos. Mas, a modernidade é simultaneamente diversa. Ela atravessa de forma diferenciada cada país ou formação social específica. Sua realização ocorre segundo as histórias dos lugares. As nações são diversas porque cada uma atualiza de maneira diferenciada os elementos de uma mesma matriz. A modernidade varia, portanto, de acordo com as situações históricas (possui uma especificidade na América Latina, outra no Japão ou nos Estados Unidos). Talvez pudéssemos qualificar o processo de globalização como uma "situação" (à maneira como os fenomenólogos o faziam) que reordena os elementos que a constituem. Não se trata pois de um "novo" paradigma que torna o "velho" obsoleto mas de um contexto histórico no qual o todo e as partes adquirem um outro significado.
Mas quais seriam as implicações dessas mudanças recentes? A primeira delas diz respeito ao Estado-nação. Desde a Revolução Industrial a nação afirmou-se como um elemento de aglutinação social. Sua totalidade integrava a economia, a vida social e política dos povos. Cada nação definia assim uma territorialidade e uma centralidade próprias, no seu bojo, pelo menos em princípio, se realizariam os sonhos de emancipação, de democracia e de liberdade. Cada território, cada país, envolvia seus cidadãos dentro de uma identidade particular, distinta da de outros países. A nação se apresentava assim como um espaço dotado de autonomia capaz de ordenar a sociedade nacional de acordo com sua historicidade, suas forças econômico-sociais, enfim, suas contradições internas. O processo de globalização redefine este quadro de equilíbrio. A modernidade-mundo é uma tendência que extrapola as fronteiras nacionais. Isso não significa que o Estado-nação esteja prestes a desaparecer. Apenas uma visão ideológica pode alimentar este tipo de ilusão. Entretanto, a globalização retira muito de sua autonomia anterior. Primeiro, autonomia política (o que é um dilema crucial do século XXI). Parte substantiva do poder já não mais se encontra circunscrita ao território do Estado-nação. Ele se situa no interstício das forças transnacionais (corporações, bancos, G-7, FMI etc.). Neste sentido, a idéia de "projeto nacional", que durante todo o século XX prevaleceu particularmente na América Latina (desenvolvimentismo, varguismo, peronismo), torna-se cada vez mais uma proposta política irrealizável. Isso significa que o destino da nação já não pode mais ser equacionado em termos preponderantemente endógenos.
Segundo, autonomia cultural. Sabemos que durante os séculos XIX e XX o destino das nações é diferenciado. No entanto, pode-se dizer que cada uma delas se configura em um núcleo de irradiação cultural. A nação define um espaço geográfico no interior do qual se realizam as aspirações políticas e os projetos pessoais. O Estado-nação não é apenas uma entidade político-administrativa, ele é uma instância de produção de sentido. A identidade nacional galvaniza as inquietações que se exprimem em sua territorialidade. Certamente, sua afirmação não se faz sem problemas, afinal a so-ciedade moderna é clivada pelo antagonismo de classes. Por outro lado, para se constituir enquanto tal, a nação deve acomodar os interesses dos grupos diversificados - as nacionalidades, os povos indígenas, as populações de origem negra. Até mesmo a língua, um de seus elementos unificadores, tem de conquistar sua legitimidade, isto é, demarcar sua autoridade diante da diversidade lingüística e dos dialetos locais. Entretanto, mesmo assim, o Estado-nação consegue equacionar minimamente o conjunto dessas contradições. Diante de outras orientações alternativas, a identidade nacional se afirma como hegemônica, ou para utilizar uma expressão weberiana, o referente nação detém o monopólio da definição do sentido do que seria a "autêntica" identidade nacional. Ele é o princípio dominante de orientação das práticas sociais. As outras identidades possíveis estão a ele subsumidas. Isso ocorre desde que as contradições existentes sejam contidas no interior das fronteiras do Estado-nação. No entanto, no momento em que a modernidade-mundo se radicaliza, acelerando as forças de descentramento e de individuação, os limites anteriores tornam-se exíguos. A "unidade moral, mental e cultural" nacional (para falarmos como Marcel Mauss) é implodida. Se até então a nação era a fonte privilegiada da produção de sentido coletivo, temos agora ao seu lado outras instâncias identitárias (etnias, culturas populares, civilizações). Cada uma delas é produtora de sentido afirmando suas idiossincrasias de maneira concorrente ou complementar.
Dentre as implicações da globalização um último aspecto merece ainda ser apontado, trata-se de uma dimensão que afeta diretamente o universo da cultura. O processo de mundialização incide sobre a própria noção de espaço. Na história das sociedades humanas a cultura sempre esteve, de alguma maneira, enraizada no meio físico que a envolvia. A tribo, a cidade-estado, a civilização, a nação, são áreas geográficas com fronteiras bem delimitadas. Dentro delas se exprimem as identidades culturais de cada povo. Por isso um autor como Marc Augé considera a noção de "lugar antropológico" como sendo um território investido de sentido.[2] Território que pode circunscrever uma tribo indígena, uma cidade ou uma civilização. Nele se enraizariam os homens e as mulheres, sua espacialidade constituindo os limites identitários dos grupos que o compõem. Instaura-se assim a existência de um "nós", fonte permanente de referência, que se contrapõe a um "eles", situado fora de suas fronteiras. O espaço torna-se assim o lugar no qual se materializa cada cultura. Nesse sentido, o planeta seria composto por um conjunto diferenciado de sociedades particulares. Cada unidade ecológica corresponde a um "povo". Com seus costumes, suas vestimentas, suas crenças, suas maneiras de trabalhar o solo, seu modo de vida, cada povo se enraizaria no domínio de sua fixidez. A globalização rompe (mas sem anular) esta relação entre cultura e espaço físico. Por isso o conceito de desterritorialização torna-se cada vez mais uma ferramenta utilizada na compreensão da realidade atual. Desenraizamento que se desdobra no plano da produção (a fábrica global), da tecnologia e da cultura. A desterritorialização dos bens culturais (filmes, música popular, revistas em quadrinho etc.) e dos produtos (vestimentas, aparelhos eletrodomésticos, televisores etc.) é um bom exemplo disso. Consumidos no mercado global, eles se afastam muitas vezes de suas raízes nacionais ou regionais. As transformações ocorridas no universo da técnica agudizam esta tendência de "desencaixe" (parafraseando Giddens). As tecnologias comunicacionais mudam nossa concepção de proximidade e distância, de familiaridade e estranhamento. O que se encontrava "lá fora", nos era "estrangeiro", passa agora a fazer parte de nosso cotidiano. O distante torna-se familiar e o vizinho algumas vezes se distancia de nós. Neste processo o espaço não deixa, porém, de existir. A desterritorialização cria uma espacialidade desvinculada imediatamente do meio físico mas ela é também um lugar de interação entre os indivíduos (por exemplo os estilos de vida mundializados). O mundo contemporâneo não é, portanto, um "mundo sem fronteiras", como muitas vezes se diz. Surgem na verdade novas fronteiras que, sem eliminar as anteriores, as redefinem, as reorganizam. O problema que se coloca não é pois o da anulação do espaço, como se a história tivesse chegado ao seu final, mas como se organiza uma outra história no contexto de um novo mapa-múndi.
Se o processo de globalização implica um movimento de integração diferenciada cabe perguntar sobre a natureza dessas diferenças. Creio que neste ponto é possível distinguirmos pelo menos duas linhas que separam o que estamos entendendo por diferença. Primeiro, o termo é utilizado como sinônimo de formações sociais diferenciadas - tribos indígenas, etnias, civilizações passadas, nações. Esse é um aspecto que gostaria de sublinhar pois encontra-se pouco explicitado no debate contemporâneo. Mesmo considerando o eixo hegemônico da expansão da modernidade-mundo é preciso reconhecer a existência de um legado da história. Civilizações, etnias, tribos indígenas, não são anacronismos "fora" do tempo. A não ser que acreditemos numa ideologia do progresso popularizada pelo evolucionismo do século XIX. Mundo islâmico, sociedades indígenas, grupos étnicos (na África ou na Europa Central) não são testemunho de atraso ou sinal de barbárie. São formações sociais plenamente inseridas na atualidade, isto é, imersas nas relações de forças que as determinam. Pensá-las como vestígio é desconhecer que a história é também presente momento de entrelaçamento de tempos não-contemporâneos. Segundo, o termo se aplica ainda à diferenciação intrínseca à modernidade-mundo: indivíduos, movimento feminino, homossexual, negro, crise de identidades etc. Movimento que se acelera a ponto de muitos o perceberem como sintoma de uma nova fase histórica, de uma pós-modernidade. Tudo se passa porém como se essas linhas distintas em relação às diferenças fossem equivalentes. Entretanto os antropólogos conhecem as especificidades dos povos indígenas. Cada unidade étnica possui uma centralidade que se articula em torno de um eixo próprio. É isso que torna importante a questão da terra (isto é, das fronteiras). Perdê-la seria desenraizar-se, o que, no processo de industrialização, aconteceu com os camponeses na Europa, e na América Latina com diversos grupos indígenas. Os chamados povos primitivos sob pena de desaparecerem devem defender-se da expansão das fronteiras, sejam nacionais ou mundiais. Diversidade, neste caso, significa a afirmação de uma modalidade social radicalmente outra. O caso das sociedades islâmicas é de outra natureza. A civilização que afirmam encontra boa parte de seu sentido nos princípios religiosos do Alcorão mas seria incorreto imaginá-las como inteiramente à parte da modernidade. As transformações ocorridas ao longo dos séculos XIX e XX, mesmo apontando para o fracasso da "modernização", indicam a existência de sociedades que absorveram da Revolução Industrial não apenas o processo tecnológico, como muitas vezes se costuma dizer. O dilema do mundo islâmico, que no seu interior não é homogêneo, é equilibrar e conter os elementos de modernidade no quadro de um Estado e de uma sociedade civil nos quais o código religioso pretende ser ainda a última fonte de legitimidade. Inteiramente distinta é a questão feminina. Ela emerge como uma reivindicação no interior da matriz da modernidade. Luta-se pela igualdade de oportunidades e de tratamento entre os sexos. Identificar os movimentos indígenas ao das mulheres, classificando-os como minorias, é confortavelmente confundir as coisas. A construção de identidade nos movimentos de gênero é resultado dos ideais e da organização interna das sociedades modernas. A oposição entre masculino e feminino não é algo insuperável. Homens e mulheres, malgrado sua sensibilidade diferenciada, vivem num mesmo universo. No caso das sociedades indígenas qualquer superação implicaria o desaparecimento dessas culturas. Estou, portanto, dizendo que na discussão sobre as diferenças é necessário qualificá-las. É um equívoco postulá-las como equivalentes como faz o discurso pós-moderno.
A diversidade cultural não pode ser vista ainda apenas como uma "diferença", ou seja, algo que nos remete a alguma coisa outra. Toda diferença é produzida socialmente, sendo portadora de sentido simbólico e de sentido histórico. Uma análise, por exemplo hermenêutica, que considere apenas o sentido simbólico corre o risco de isolar-se num relativismo pouco conseqüente. Tudo se passaria como se as culturas fossem realmente textos, cada um com seu significado próprio. Não haveria portanto uma relação necessária entre os textos; na sua irredutibilidade, as culturas seriam incomparáveis entre si. Afirmar o sentido histórico da diversidade cultural é submergi-la na materialidade dos interesses e dos conflitos sociais (capitalismo, socialismo, colonialismo, globalização). A diversidade se manifesta pois em situações concretas. Neste caso, o relativismo é uma visão que pressupõe a abstração das culturas de suas condições reais (hoje imersas num mundo globalizado), tem-se a ilusão de que cada uma delas seria inteiramente autocentrada. Na verdade, este estatuto, postulado pelo raciocínio metodológico, é negado pela história. As sociedades são relacionais mas não relativas, suas fronteiras se entrecruzam e muitas vezes ameaçam o território vizinho.
Dizer que a diferença é produzida socialmente nos permite distingui-la da idéia de pluralismo. Traduzir o panorama histórico-sociológico em termos políticos é enganoso pois pressuporia que as múltiplas unidades diferenciadas existentes no planeta tivessem a mesma validade. Nesta perspectiva a questão do poder se esvai. Não há hierarquia ou dominação. A rigor, aceitaríamos implicitamente a tese de que ou o contexto histórico não interfere junto às diversidades ou, em última instância, que ele próprio, o contexto, é pluralista e democrático, o que é um contra-senso (visão sustentada pela ideologia de mercado). Na verdade, no mundo contemporâneo, as "diferenças" não existem enquanto textos autônomos, mas participam de um "pluralismo hierarquizado" administrado pelas instâncias do-minantes no contexto da modernidade-mundo. Segue-se, portanto, que as diferenças também escondem relações de poder. Por exemplo, o racismo afirma a especificidade das raças para em seguida ordená-las segundo uma escada hierárquica. Por isso é importante saber quando a questão da diversidade cultural oculta a da desigualdade, sobretudo quando se move num universo no qual a assimetria entre países, classes sociais e etnias é insofismável. A imagem de que o mundo seria "multicultural", constituído por conjunto de "vozes", é insatisfatória. Na verdade, o mundo pouco tem de caleidoscópio (metáfora empregada por vários autores), instrumento que combina fragmentos coloridos de maneira arbitrária em função do deslocamento do olho do observador. As interações entre as diversidades não são arbitrárias, elas se organizam de acordo com as relações de força manifestas nas situações históricas. Se as diferenças são socialmente produzidas, isso significa que, à revelia de seus sentidos simbólicos, elas serão marcadas pelos interesses e conflitos definidos fora de seu círculo interno. A diversidade cultural é diferente e desigual porque as instâncias e instituições que a constroem possuem distintas posições de poder e legitimidade (países fortes versus países fracos; transnacionais versus governos nacionais; civilização "ocidental" versus mundo islâmico; estado nacional versus grupos indígenas). Essas linhas de força manifestam-se claramente no domínio da cultura. Se, por um lado, ele é atravessado por um movimento de diferenciação, de afirmação de identidades distintas, por outro, há uma nítida tendência para a concentração e a oligopolização das indústrias culturais: cinematográfica, fonográfica, midiática. Movimento que se encontra intimamente associado à expansão de um mercado global.
Considerando que o processo de globalização é uma nova "situação histórica", cabe perguntar quais as possibilidades de ação no seu interior. Isso nos leva a discutir sobre a esfera da política. Creio que é possível dizer que a política é um tipo de atividade que se desenvolve no âmbito de um domínio específico. O objetivo da Ciência Política (quer ele seja preenchido ou não) é justamente o de desvendar a lógica desse espaço, dando inteligibilidade às ações dos indivíduos que nele atuam, assim como às instituições e aos interesses que lhes dão suporte. Supõe-se, portanto, a existência de um homo politicus que se comportaria de acordo com as metas estabelecidas por suas intenções. Nesse caso, a esfera da política constituiria uma espécie de subsistema da sociedade, com regras e funcionamento próprios. Pode-se então dizer que "fazer política" se enraíza em determinados territórios: sindicatos, partidos, governos, movimentos sociais etc. No entanto, a política possui uma particularidade: ela se atualiza no seio do Estado-nação. Eleições, disputas partidárias, conflitos sindicais, desequilíbrio econômico, distribuição de renda são problemas equacionados no seu horizonte. "Fazer política" significa, prioritariamente, se ocupar de temas localizados no seu interior. Até mesmo as incursões que ultrapassam o Estado-nação confirmam sua centralidade. Este é o caso das relações internacionais.
Cada país, em função de seus interesses e capacidade de persuasão, econômica ou militar, age de forma independente dos outros. A globalização coloca, porém, um novo desafio: como imaginar a política em termos mundializados. A premissa fundadora do pensamento político moderno era de que o universal se realizaria no âmbito de cada país. Democracia, justiça, igualdade e liberdade seriam valores experimentados em um território específico. Os ideais da Revolução Francesa implicavam universalidade e nação. Foi esse o fermento das lutas anticolonialistas. Essa conjunção se cindiu. Para se exprimir, os princípios de cidadania devem, portanto, ampliar seu alcance. A modernidade-mundo exige que a política seja pensada como cosmopolitismo e mundialidade. No entanto, sabemos que a história do "universalismo" encerra muitos percalços. Da razão instrumental ao etnocentrismo. No fundo, a ideologia do progresso escondia uma vontade de "ocidentalização" do mundo. Sob o manto da racionalização ocultavam-se os interesses de dominação e poder. Por isso, diante de um movimento integrador e diferenciado como o da mundialização, é preciso contemplar a ação dentro de uma perspectiva cosmopolita e diferenciada. Pois, afinal, toda diferença só pode existir historicamente quando recortada pelas forças integradoras que a englobam e ultrapassam. Dentro desta perspectiva a discussão sobre direito e cultura, tema deste seminário, torna-se fundamental. Desde que entendamos o direito como um valor cosmopolita que ao se historicizar legisla sobre a matéria diferenciada dos povos e das sociedades.
Referências bibliográficas:
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Notas: