Cenas da vida moderna e mundialização da cultura:

O que significa ir além das fronteiras?

Eduardo Jardim de Moraes
PUC-Rio

A história do Modernismo no Brasil nos anos 20 revela a presença de dois tempos do movimento - o primeiro, de 1917, ano das primeiras manifestações modernistas em São Paulo, a 1924 e o segundo, de 1924 em diante. O propósito destas duas etapas era promover a entrada da cultura brasileira no que se chamava de "o concerto das nações cultas". No primeiro tempo, isto era assegurado pela adoção de uma perspectiva imediatista - pensava-se que a simples adoção das linguagens artísticas modernas, em voga em Paris, sobretudo, garantiria a entrada da cultura brasileira no contexto da vida moderna. No início de 1922, Mário de Andrade expressou em carta a Manuel Bandeira esta primeira posição:

Sei que dizem de mim que imito Cocteau e Papini. Será já um mérito ligar estes dois homens diferentíssimos como grácil lagoa de impetuoso mar. É verdade que movo como eles as mesmas águas da modernidade. Isso não é imitar: é seguir o espírito duma época.[1]

A posição imediatista, expressa muitas vezes de forma ingênua, foi revista em 1924, ano da publicação do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade - um marco importante desta mudança de atitude. Nesta altura, o universalismo que constituía a base do ideário do movimento, que traduzia o anseio de participação na vida moderna, foi redefinido e introduziu-se a referência ao tema da nacionalidade, considerada a mediação necessária para alcançar a incorporação pretendida. Em carta a Joaquim Inojosa, de 1924, Mário de Andrade dava conta desta alteração de rumos, ao afirmar que

[...] o Brasil pra ser civilizado artisticamente, entrar no concerto das nações que hoje em dia dirigem a civilização da terra tem que concorrer pra esse concerto com a sua parte pessoal, com o que o singulariza e individualiza, parte essa única que poderá enriquecer e alargar a civilização.[2]

No segundo tempo do Modernismo, a afirmação dos traços específicos da cultura nacional passou a constituir a via de acesso do país à vida moderna. Este acesso era concebido como a incorporação da parte, o Brasil, em uma totalidade, o concerto das nações cultas. Assim, ganhou importância a determinação da fronteira nacional, pois ela permitia definir o contorno da parte que devia ser introduzida no contexto geral.

Os modernistas do segundo tempo entenderam a fronteira não como algo que restringe. Eles pensaram, ao contrário, que ela abria a possibilidade de contato e de participação na vida moderna. Apenas à medida que a cultura nacional apresentar uma fisionomia própria, em que suas características forem delimitadas, ela comungará os ideais modernos universais. Ainda na carta a Joaquim Inojosa, Mário de Andrade esclareceu que assim como do ponto de vista prático a nossa colaboração para a economia da Terra tinha que contar com o produto nacional, a borracha, o açúcar, o café e a carne, também

[...] nós teremos nosso lugar na civilização artística no dia em que concorrermos com o contingente brasileiro, derivado das nossas necessidades, da nossa formação por meio da nossa mistura racial transformada e recriada pela terra e clima, pro concerto dos homens terrestres.[3]

O Modernismo foi sempre movido pelo anseio de aproximação da vida nacional do âmbito geral do concerto das nações. Foi esta a base em que se sustentou o ideário universalista do movimento. Seu propósito foi sempre diminuir as distâncias entre a parte e o todo. No caso do Modernismo do segundo tempo, a partir de 1924, isto deveria ocorrer não pela supressão, mas pela afirmação das fronteiras nacionais.

Por tudo isto depreende-se que as posições modernistas dependem da definição de pressupostos com critérios espaciais que orientam sua apreensão da realidade. Isto aconteceu com a descrição, retomada muitas vezes, da posição da parte, o elemento nacional, relativamente ao todo, o concerto das nações, com o esforço de delimitar os contornos da entidade nacional, e, de forma mais decisiva, com o propósito central do movimento de diminuir a distância entre o elemento nacional e o contexto da vida moderna.

O processo de encurtamento das distâncias pretendido pelo Modernismo constituiu o traço fundamental do cenário cultural do século XX. Ele foi intensificado graças à importância assumida pelo desenvolvimento da técnica em sua máxima aceleração. O fato de as modernas tecnologias, sobretudo as de telecomunicação, com a experiência da comunicação instantânea, terem possibilitado uma situação de radical encurtamento das distâncias, fez com que muitos se perguntassem sobre a ocorrência na atualidade de um abandono dos critérios espaciais que até hoje tinham determinado o curso da história. Será isto possível? A este propósito serão examinadas as posições de dois autores - Hannah Arendt e Paul Virilio.

A Condição Humana é o livro que Hannah Arendt dedicou à elaboração de uma fenomenologia da vida ativa, em que examina as atividades do labor, do trabalho e da ação. Como o título indica, estas três atividades são condicionadas, e a Terra é considerada a quintessência da condição humana. Ela é a morada do homem. O prólogo do livro indica que o recente desenvolvimento da técnica teria provocado, de forma decisiva, intervenções nestas condições. O cenário deste mundo transformado, de um modo como nunca antes acontecera, constituiu a motivação para as interrogações de Hannah Arendt.
Uma das novidades do contexto contemporâneo é de que o século XX presenciou a ocupação da Terra em toda a sua extensão e, o que à primeira vista pode soar paradoxal, ao mesmo tempo, isto se acompanhou do distanciamento e da alienação face a ela. Para Hannah Arendt, a ocupação do globo terrestre significou um processo de encurtamento das distâncias. Já no momento em que ela escrevia, nos anos 50, nenhuma parcela significativa da vida humana - anos, meses, semanas ou mesmo dias - era mais necessária para se atingir qualquer ponto do globo.

Em A Condição Humana Hannah Arendt procurou explicar que esta situação se enraíza em um dos eventos que marcaram o início da era moderna no século XVI - os grandes descobrimentos. Os descobrimentos foram o primeiro passo da história da ocupação do globo que se completou no século XX. O propósito dos primeiros navegadores e descobridores foi de ampliar a Terra. Eles se fizeram ao mar para isso. No entanto, uma visão retrospectiva percebe que nada que pode ser medido pode permanecer imenso. Neste sentido, o resultado deste processo foi, na verdade, o apequenamento da Terra.

O processo de encurtamento das distâncias ou de apequenamento da Terra, deu-se junto com um outro para o qual Hannah Arendt chamou a atenção. Ele foi alcançado no momento em que o homem deslocou-se com o avião para fora da superfície do globo e pôde, de fora, resumir todo o contexto espacial. A ocupação de toda a extensão da Terra, o apequenamento da Terra, dependeu de um afastamento com relação a ela. Apenas no momento em que o homem se desprendeu da Terra, em que abandonou sua superfície, pode-se dizer que venceu todas as distâncias.

O mesmo sentido de alienação do homem com relação à Terra estava presente na corrida espacial cujos primeiros passos Hannah Arendt presenciou. Chamaram sua atenção as declarações, que acompanharam o lançamento dos primeiros satélites artificiais, de que aquele constituía o primeiro passo para libertar o homem de sua prisão na Terra. Esta declaração de um jornal da época fazia eco, lembrou Hannah Arendt, ao que tinha sido gravado anos antes no mausoléu de um cientista russo: "A humanidade não permanecerá para sempre presa à Terra."[4]

O distanciamento do homem com relação à sua morada, que é fuga da própria morada, constitui para Arendt um traço característico da era moderna. Em sentido amplo, ela é marcada pela alienação do homem em dupla direção - da Terra para o universo e do mundo para dentro do homem.

Nesta altura, de novo, deveria ser colocada a questão de saber se a furiosa arremetida da velocidade eliminou a importância das distâncias e pôs em xeque a idéia de fronteira. Significaria tudo isto uma ultrapassagem dos critérios espaciais?

Para Paul Virilio, urbanista e pensador contemporâneo, o processo acelerado de desenvolvimento das modernas técnicas de comunicação levou efetivamente ao questionamento dos critérios espaciais que sustentam a idéia de fronteira. Os temas de Virilio são a velocidade e a aceleração.

Virilio traça um panorama do desenvolvimento da técnica desde o século XIX, destacando dois momentos. Um primeiro, que correspondeu à revolução dos transportes de massas no século XIX, possibilitou o desenvolvimento do sistema ferroviário, do rodoviário e, mais tarde, da aviação. Ele descreve o percurso histórico que vai desde a situação em que o porto marítimo era ponto de partida e de chegada até o século XIX, quando ele foi substituído pela estação ferroviária e, finalmente, no século XX, pelos aeroportos.

Cada uma destas etapas envolveu operações que resultaram em alcançar velocidades cada vez maiores dos meios de transporte. Isto fez com que as distâncias se encurtassem cada vez mais até presenciarmos, no século XX, uma segunda revolução. Trata-se da revolução das transmissões, ou das telecomunicações, que ocorreu graças à disponibilização das propriedades de difusão instantânea das ondas eletromagnéticas, no rádio e no vídeo. Dela, sobretudo, ocupa-se a obra de Virilio - da revolução das telecomunicações, que levou ao máximo o encurtamento das distâncias que já vinha se processando.

Para Virilio, a nova revolução apresenta-se como um marco de descontinuidade. Nas décadas recentes teria ocorrido uma total abolição das distâncias e todas as referências locais teriam desaparecido. Como urbanista, Virilio referiu-se ao processo de urbanização do espaço real que conduziu, finalmente, ao que chamou de um buraco no espaço.[5]

Na descrição feita por Virilio, em tons bastante sombrios, do cenário contemporâneo, não são mais as cidades que ocupam o centro da vida atual. Não é

[...] mais o espaço real com sua geometria - centro, periferia - que domina. Ainda existem cidades, mas elas estão desqualificadas. O verdadeiro centro é o do tempo real, uma espécie de hipercentro, de cidade virtual, que não está em parte alguma e que é um dos elementos do que é chamado de acidente geral.[6]

No mundo contemporâneo, a aceleração das técnicas de comunicação, além de conduzir à abolição radical dos critérios espa-ciais até então vigentes, leva ao questionamento do conceito usual de tempo, medido cronologicamente, representado como um continuum. Impõe-se, nesta altura, a experiência do tempo como algo instantâneo. Para Virilio, trata-se de mais uma forma de urbanização, agora do tempo real, que faz com que ele se refira também a um buraco no tempo.[7] O lugar antes ocupado pelo aeroporto é agora ocupado pelo teleporto. Para sublinhar esta ruptura das técnicas contemporâneas com os padrões espaciais, Virilio crê que não sejam mais válidos nem mesmo os conceitos de utopia ou atopia. Ele prefere referir-se ao conceito de teletopia.[8]

De novo, aqui, cabe indagar se a aceleração promovida pelo desenvolvimento das técnicas de comunicação, tal como Virilio ressalta, conduz efetivamente a uma supressão dos critérios espaciais.
É evidente que a aceleração está na base do encurtamento das distâncias promovido pela revolução das comunicações. Pode-se mesmo notar que as distâncias foram neutralizadas ou tornaram-se inaparentes neste novo contexto. Hoje, faz-se referência a uma dimensão instantânea da comunicação, à telepresença e é verdade que os aeroportos foram suplantados pelos teleportos.

Não obstante, a idéia proposta aqui é de que os critérios espaciais estão presentes mesmo na experiência do instantâneo promovida pelos novos meios de comunicação. Mesmo neste novo contexto está-se tratando da trajetória de um objeto entre pontos diferentes no espaço. Esta trajetória é percorrida agora de forma rapidíssima, trata-se de um deslocamento aceleradíssimo, a ponto de não se poder distinguir as etapas que o compõem. De qualquer forma, há ainda deslocamento de alguma coisa no espaço, mesmo quando nem mais notamos esta alguma coisa, mesmo quando ela torna-se propriamente inaparente. Mas se desacelerarmos minimamente, vamos reencontrar um pequeno intervalo, e se desacelerarmos mais ainda, um intervalo maior e recuperaremos, deste modo, a dimensão da distância. Nota-se que ainda aqui os critérios espaciais permanecem vigentes.

Por qual motivo os critérios espaciais impõem-se usualmente com tanta força? Porque nos inserimos no mundo, primeiramente, desde uma perspectiva pragmática. Ao entrarmos em contato com o mundo, precisamos lidar com as coisas instrumentalmente, fazemos uso delas, sem o que nossa sobrevivência não estaria assegurada. Antes de mais nada, o homem é homo faber. Portanto são critérios de natureza técnica ou instrumental que marcam nossa relação básica com a realidade.

Ora, a perspectiva instrumental, isto é, nossa intervenção no mundo, desde a que se faz com o recurso das nossas mãos, dos instrumentos mais simples, até dos dispositivos técnicos mais sofisticados, exige que possamos apreender as coisas dispostas espacialmente. Nossas mãos, os braços, e seus prolongamentos - as máquinas e os instrumentos, incluindo as técnicas contemporâneas de comunicação - exigem referências estáveis, balizamentos. Nossa ação só se exerce comodamente quando pode contar com pontos fixos distribuídos espacialmente.

Bergson, que de algum modo inspira este comentário, definia a inteligência - mas não o pensamento, cuja natureza é intuitiva - como capacidade de adaptação, que se caracteriza por sua dimensão utilitária, pois ela serve para preparar nossa atuação no mundo. Ora, a inteligência necessita, para isto, apreender as coisas em um cenário que se descortina à nossa frente, sempre presente, no qual tudo se dispõe e se apresenta com contornos claramente definidos.[9]

Já se pode perceber o ponto que se pretende destacar: o de que a possibilidade de superação dos parâmetros espaciais só se dá com a suspensão dos interesses pragmáticos, isto é, com a quebra do propósito de intervenção na realidade e isto só é alcançado pela experiência do pensamento. Para começar a tratar deste ponto, vou referir-me à pergunta formulada por Hannah Arendt que dá título a um dos capítulos de A Vida do Espírito, sua última obra - "Onde estamos quando pensamos?". Como se percebe, a questão formulada diz respeito ao "onde", isto é, à determinação do lugar ou do tópos da atividade do pensamento. Assim, a reflexão de Arendt se inicia levando em conta pressupostos espaciais na consideração do que é o pensamento.

A Vida do Espírito acompanha o esforço feito pela tradição filosófica para definir o lugar do pensamento. A este respeito, quem não recorda o momento inaugural da tradição, a Alegoria da Caverna, contida no início do sétimo livro de A República, em que Platão descreve o deslocamento do filósofo na direção do mundo das

Idéias, o mundo verdadeiro? A filosofia, desde então, definiu a sua tarefa como a busca deste lugar, caracterizado muitas vezes como lugar de calma em que o filósofo preferiria habitar.

Hannah Arendt, entretanto, dá um passo importante, em outra direção, na consideração deste ponto. Ela observa que é inadequada a formulação da questão sobre o que é o pensamento, quando feita em uma perspectiva espacial. Com razão, ela indaga se não seria, na verdade, falaciosa a pergunta sobre o pensamento, quando insiste em buscar uma caracterização do seu lugar, do tópos noétos. E continua - é mais provável que a pergunta sobre o pensamento exija, antes, uma alteração completa dos critérios que a orientam, isto querendo dizer que os critérios espaciais precisam ser substituídos por critérios temporais.

O fio condutor da exposição de Hannah Arendt é, a partir deste ponto, o tema da memória. Ela ressalta dois aspectos na memória: de um lado, a memória implica um distanciamento do que se apresenta na percepção imediata. Toda lembrança pressupõe uma forma de subtração do presente. Isto é o mesmo que dizer que há na experiência do pensamento e da memória algo como um desprendimento ou uma liberação dos interesses que determinam nossa consideração pragmática das coisas. Para que possamos recordar é necessário que nos desocupemos de atuar sobre a realidade. Este desprendimento do atual possibilita, de outro lado, uma aproximação daquilo que não é mais presente: o passado. O pensamento, pela memória, torna possível a aproximação do que está distante.

Para Hannah Arendt, o jogo de distanciamento e de aproximação promovido pela experiência do pensar e da memória ocorre em uma dimensão temporal. Para ela, o acesso à experiência do pensar não envolve qualquer forma de deslocamento. Não é de espaço que se está falando quando se faz referência ao pensamento e não existe um outro mundo situado fora e acima da caverna platônica para onde o filósofo almeja escapar.

É claro que o pensamento constitui uma experiência de interrupção dos nossos afazeres habituais e que, nesta medida, ele implica em uma forma de abandono do mundo. Mas esta interrupção referida por Hannah Arendt incide sobre o fluxo temporal. Por este motivo, ela caracteriza a experiência do pensamento como dando-se no intervalo entre o passado e o futuro e recorre a esta expressão para dar título a um de seus livros. A expressão é retomada, também, sempre que precisa dar conta do ponto de vista pensante em que se situa.

Entretanto, a tese arendtiana chega a um impasse que tem a ver com o modo como caracteriza a interrupção do fluxo temporal provocada pelo pensamento-memória. Com efeito, Hannah Arendt fez considerações da maior importância sobre o poder extraordinário de alteração do sentido do tempo na experiência do pensar. É mesmo possível que o impacto desta experiência, que faz com que, espantosamente, possamos ser contemporâneos do nosso passado, tenha sugerido a ela que esta interrupção, este intervalo (gap), como preferia, seja uma forma de anulação do próprio tempo. Hannah Arendt referiu-se, em mais de uma ocasião, à trilha de não-tempo que a experiência do pensamento abre para caminhar. No prefácio de Entre o Passado e o Futuro ela mencionou "a trilha plainada pelo pensar, essa picada de não-tempo aberta pela atividade do pensamento através do espaço-tempo de homens mortais e na qual o curso do pensamento, da recordação e da antecipação salvam o quer que toquem da ruína do tempo histórico e biográfico".[10]

Mas será o caso de perguntar: trata-se aqui de uma experiência de anulação do tempo ou está-se diante da via privilegiada de acesso a uma forma mais intensa e originária da temporalidade? Em outras palavras, a memória, ao possibilitar o contato com as coisas do passado, promove apenas a abolição da distância entre o presente e o passado ou exige, propriamente, o reconhecimento de que somos do tempo, de que transitamos no tempo? A resposta a estas questões deverá situar o tema da temporalidade no centro das considerações. Para poder iniciá-las, serão dadas algumas indicações na forma de um resumo.

Diferentemente do que pretendeu a tradição, aqui não se entende que o pensamento se desloca para um outro lugar, que ele dá as costas ao mundo sensível. Também a redefinição do problema por Hannah Arendt não é satisfatória. É verdade que Hannah Arendt escapa dos pressupostos espaciais tradicionais e indica a necessidade de adoção de novos critérios na consideração da experiência do pensamento. No entanto, sua visão de que o pensamento é atemporal não é suficiente. O pensamento promove, efetivamente, uma alteração de atitude, que é obtida pela suspensão da perspectiva utilitária ou interessada de lidar com as coisas. A perspectiva utilitária fixa a consideração do tempo à exclusiva dimensão de tempo presente.

Se esta alteração de atitude se der, a memória surgirá como uma dádiva, como uma ampliação da atenção, para quem se desinteressou de restringir-se à consideração da realidade visando a atuar sobre ela. E não será isso que interessa muitíssimo a quem lida com problemas que, de algum modo, envolvem a história?

Tudo isto foi muito mais bem dito no poema "Duração", incluído no livro As Impurezas do Branco, de Carlos Drummond de Andrade:[11]

O tempo era bom? Não era.
O tempo é, para sempre.
A hera da antiga era
roreja incansavelmente.
Aconteceu há mil anos?
Continua acontecendo.
Nos mais desbotados panos
estou me lendo e relendo.
Tudo morto, na distância
que vai de alguém a si mesmo?
Vive tudo, mas sem ânsia
de estar amando e estar preso.
Pois tudo enfim se liberta
de ferros forjados no ar.
A alma sorri, já bem perto
da raiz mesma do ser.


Bibliografia:

ANDRADE, Carlos Drummond. Nova Reunião I. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.
ANDRADE, Mário de. Cartas a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1967.
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense, 1991.
---. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988.
BERGSON, Henri. La Pensée et le Mouvant. Paris: Félix Alcan, 1934.
INOJOSA, Joaquim. O Movimento Modernista em Pernambuco. Rio de Janeiro: Gráfica Tupy, [s.d.].
VIRILIO, Paul. La Vitesse de Libération. Paris: Galilée, 1995.
---. Entretien. Magazine Littéraire, n. 337, novembre 1995.

 

Notas:

  • 1 Mário de Andrade, Cartas a Manuel Bandeira, Edições de Ouro, 1967, p. 24.
  • 2 Joaquim Inojosa, O Movimento Modernista em Pernambuco, Gráfica Tupy, s.d.
  • 3 Id., ibid., p. 340-341.
  • 4 Hannah Arendt, A Condição Humana, Rio de Janeiro, Forense, 1991, p. 9.
  • 5 Paul Virilio, La Vitesse de Libération, Paris, Galilée, 1995, p. 49.
  • 6 Paul Virilio, Entretien, Magazine Littéraire, n. 337, novembre, 1995, p. 102.
  • 7 Paul Virilio, La Vitesse de Libération, op. cit., p. 49.
  • 8 Id., ibid., p. 67.
  • 9 Henri Bergson, La Pensée et le Mouvant, Paris, Félix Alcan, 1934, p. 12.
  • 10 Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro, São Paulo, Perspectiva, 1988, p. 40.
  • 11 Carlos Drummond de Andrade, Nova Reunião I, Rio de Janeiro, José Olympio, 1983, p. 456.