Benjamin Abdala Junior
USP
Na atmosfera de desalento e de falta de perspectivas para o pensamento crítico que tem marcado este final de milênio, pode se tornar imediata uma relação analógica com o final do século XIX. Viemos a nos debater nesses dois momentos - eis a semelhança - entre duas frustrações: aquela dos finais do século passado, motivada pelas promessas não concretizadas de uma espécie de religião das ciências que foi o evolucionismo positivista; neste final de século e milênio, a frustração pode ser creditada - por equivalência de gestos - à derrocada dos ideais libertários da modernidade. Há, entretanto, uma diferença nessas situações: há cem anos os horizontes, em termos de pensamento hegemônico, não se levantavam para além das balizas liberais do capitalismo industrial, que começava a mudar, se quisermos nos valer ainda de um modelo analógico, do mecanicismo das máquinas a vapor para uma energia mais refinada e menos visível, que afinal veio a ser decisiva no encurtamento das distâncias - a eletricidade. Agora, estamos em meio a um turbilhão onde se reformula a própria maneira de ser dessa produção industrial, que passa ao capitalismo informacional. O encurtamento do mundo é vertiginoso e ainda mais radical por estender conexões em níveis múltiplos, que se entretecem para se colocar como presença hegemônica numa escala mundial.
São essas questões de distância e de percursos que serão abordadas nesta exposição, tendo em vista discutir o realismo literário, a partir do distanciamento de nossa situação discursiva. Analogamente também nesses dois momentos finisseculares são problematizadas proposições realistas e, mais do que isso, modos de se pensar e representar a realidade que se debatem entre a particularidade do recorte temático e a aspiração de totalidade do discurso realista. Este estudo está associado a um ensaio de nossa autoria sobre o percurso desse realismo em Portugal e no Brasil, que acabou de ser publicado,[1] quando discutimos as matizações dessa tendência artística a partir de Eça de Queirós, procurando mostrar alguns de seus impactos no Brasil, tal como se deram em Graciliano Ramos e de como este escritor brasileiro vai marcar o romance do ficcionista português Carlos de Oliveira. Graciliano vai permitir assim, indiretamente, uma releitura de ênfase social de Eça via Brasil, por parte dos escritores de Portugal, a par da continuidade, é evidente, de uma tradição de leitura interna e direta, própria do sistema literário português.[2]
Voltamos a discutir assim o problema da distância crítica em Eça de Queirós, retomando a seguinte observação que indicamos no capítulo biográfico do livro Eça de Queirós, publicado pela Editora Abril:
A procura de um sentido para justificar a construção da obra de Eça de Queirós leva-nos a um fator biográfico altamente significativo: o distanciamento dos fatos que mais o sensibilizaram.
Desde muito cedo, o escritor teve consciência do afastamento: menino ainda, não conviveu com os pais; passou a juventude num colégio interno; e, mais tarde, a vida diplomática o levaria para fora de Portugal [...] os momentos de aproximação de sua terra são de curta duração, fixando-se na memória do escritor como lembranças, posteriormente registradas em sua obra.[3]
Após a biografia do escritor, desenvolvida a partir dessas observações, inserimos nesse livro uma coletânea de textos selecionados de Eça de Queirós, aberta com o artigo "Idealismo e Realismo" - um texto escrito pelo autor para ser o prefácio à segunda edição de O Crime do Padre Amaro (1880), ou, melhor dizendo, a terceira versão desse romance se for considerada a edição de 1875, publicada em fascículos na Revista Ocidental. Esse ensaio já se nos afigurava básico para a discussão das tensões e mesmo das ambigüidades do pensamento crítico de Eça de Queirós. Como se sabe, o escritor só aproveitou como "Nota à segunda edição" um trecho desse texto, limitando-se à questão do pretenso plágio, levantada por Machado de Assis em 1878.[4] A parte que sobrou - de maior extensão - refere-se à defesa do método realista, igualmente atacado por Machado - foi publicada postumamente por seu filho, quase trinta anos após sua morte, nas Cartas Inéditas de Fradique Mendes e Mais Páginas Esquecidas.[5] Para Carlos Reis, na introdução à edição crítica de O Crime do Padre Amaro,[6] publicada neste ano, cem anos após a morte do escritor, Eça acabou por levar em consideração as críticas recebidas de Machado de Assis, na grande revisão que procedeu na segunda edição, em livro, desse romance.
Em 1879 quando escreveu o artigo, Eça de Queirós já estava há sete anos vivendo sua vida de diplomata, então em Bristol, na Inglaterra, após ter passado por Havana. Distante de seu país, ele faz nesse artigo uma veemente defesa do princípio naturalista da observação, em oposição à imaginação que seria própria do romantismo. Para Eça o realismo confundia-se com o naturalismo:
O naturalismo [diz Eça] é a forma científica que toma a arte, como a república é a forma política que toma a democracia, como o positivismo é a forma experimental que toma a filosofia.
Tudo isto se prende e se reduz a esta fórmula geral: que fora da observação dos fatos e da experiência dos fenômenos, o espírito não pode obter nenhuma soma de verdade.[7]
Ironicamente, o escritor procura demonstrar seu ponto de vista valendo-se do exemplo da construção de uma personagem, de acordo com as perspectivas que imaginava seriam próprias do romantismo e do realismo. Utiliza, para tanto, conforme indica, uma fórmula familiar:[8] a descrição literária de uma menina de nome Virgínia, que vive na Baixa, região central de Lisboa. A tarefa seria dada ao mesmo tempo a um escritor romântico e a um realista. Para Eça, o primeiro não iria querer sequer ver essa menina. Preocupar-se-ia apenas em se recordar dos textos que leu, desenhando-a então, em seus caracteres psicológicos, da seguinte forma:
[...] na figura, a graça de Margarida; no coração, a paixão grandiosa de Julieta; nos movimentos, a languidez de qualquer odalisca (à escolha); na mente, a prudência de Salomão, e nos lábios, a eloqüência de Santo Agostinho…[9]
Essa é a opinião de Eça sobre as imagens das morgadinhas dos canaviais de um Júlio Dinis. Enquanto isso, o realista faria, de acordo com sua opinião, uma revolução na arte por ter uma atitude diferente: ir ver Virgínia, antes de escrever sobre ela:
Este homem vai ver Virgínia [diz], estuda-lhe a figura, os modos, a voz; examina o seu passado, indaga da sua educação, estuda o meio em que ela vive, as influências que a envolvem, os livros que lê, os gestos que têm […]
Através do primeiro escritor, o romântico, segundo Eça, o leitor teria "uma moeda falsa". No segundo encontraria "uma lição de vida social", permitindo-lhe entender o caráter da mulher com quem teria que viver, ou com a nora que estaria reservada para ele.[10]
Na distância do repertório crítico de hoje, sabemos que o escritor não representa diretamente a realidade, mas opera a partir das formulações discursivas sobre ela. Além disso, o olhar que vê e observa essa realidade é conceitual e se prende à discursividade dos campos de conhecimento da cultura. Entre essas formulações culturais, figuram os elementos estruturais da narrativa, que se dispõem como verbetes de um dicionário - um repertório a ser apropriado pelo escritor. E, dessa forma, o autor realista, preocupado em fazer da literatura uma forma de consciência de uma realidade que precisaria ser transformada, deveria estar imbuído de um princípio que pudesse ensejar ação (político-social), sem tolher a imaginação criadora.
Faremos agora um corte de quatorze anos e vamos encontrar Eça de Queirós em Paris. Neste momento o escritor não se nutria da atmosfera cultural francesa apenas através de livros e de periódicos, como na vida diplomática anterior. A sinergia com as transformações culturais que ocorriam em muitas áreas do conhecimento eram maiores e mais diretas na capital francesa - o locus da "civilização ocidental". É desse local que escreve o artigo "Positivismo e idealismo", publicado no jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em 1893. Ao analisar aí o questionamento do naturalismo na França, inclusive por parte dos estudantes, Eça assinala - num direcionamento oposto àquele de "Idealismo e realismo" - que ele (o naturalismo) era uma reação à unilateralidade do materialismo do século, que trouxe - segundo suas palavras - "O estridente tumulto das cidades, a exageração da vida cerebral, a imensidade do esforço industrial, a brutalidade das democracias..."[11] Ecoam em nós com grande atualidade crítica essas observações do Eça maduro, porque extensiva a este nosso tempo de democracia neoliberal, com o seu correlato companheiro, o capitalismo neo-selvagem, onde a liberdade e o respeito à diferença, pretensamente democráticos, são confundidos com indiferença social.
Nesse segundo artigo, Eça de Queirós volta à fórmula familiar para expor suas idéias, mas sua perspectiva já é outra, como dissemos:
O homem [diz o escritor] desde todos os tempos tem tido (se me permitem renovar esta alegoria neoplatônica) duas esposas, a razão e a imaginação, que são ambas ciumentas e exigentes. [...] O positivismo científico, porém, considerou a imaginação como uma concubina comprometedora, de quem urgia separar o homem; - e, apenas se apossou dele, expulsou duramente a pobre e gentil imaginação, fechou o homem num laboratório a sós com a sua esposa clara e fria, a razão. O resultado foi que o homem recomeçou a aborrecer-se monumentalmente e a suspirar por aquela outra companheira tão alegre, tão inventiva, tão cheia de graça e de luminosos ímpetos, que de longe lhe acenava ainda, lhe apontava para os céus da poesia e da metafísica, onde ambos tinham tentado vôos tão deslumbrantes.[12]
Na tensão estabelecida entre razão cartesiana/imaginação, muda-se assim a dominância. Se em "Idealismo e realismo" Eça procura reduzir o realismo (naturalista) à observação direta dos fenômenos a serem analisados - uma impossibilidade em face dos olhares conceituais, como vimos -, em "Positivismo e idealismo" ele procura analisar a realidade relevando o vôo da imaginação, sem desconsiderar a razão. Seis anos antes, nesse mesmo jornal brasileiro, o ficcionista havia publicado na forma de folhetins o romance A Relíquia, que teve como subtítulo a frase "Sobre a nudez forte da verdade - o manto diáfano da fantasia", que pode ser lida igualmente como uma epígrafe a esse romance, cuja metalinguagem permite situá-la como motivo condutor metodológico dessa narrativa.[13]
Narrada pela personagem Teodorico Raposo, o Raposão, A Relíquia é um relato da história da viagem dessa personagem à Terra Santa, para sensibilizar a carolice e ganhar a herança da tia rica, a "titi". Raposão trouxe de lá uma pretensa relíquia - uma coroa de espinhos. Na viagem de volta, veio a ocorrer, entretanto, uma troca de pacotes e no lugar da coroa do martírio de Cristo acabou entregando uma camisa de dormir, presente de Mary, uma amante inglesa, com a seguinte dedicatória: "Ao meu Teodorico, meu portuguesinho possante, em lembrança do muito que gozámos", com a assinatura de M. M. (isto é, Miss Mary). Deserdado, Raposão se recuperou economicamente vendendo relíquias. Afasta-se assim de um modo de circulação mais patrimonial, próprio da fidalguia católica decadente, centralizada na figura de sua "titi" de nome Patrocínio, passando a operar - de acordo com os ares do tempo - à circulação comercial, de caráter burguês. Do produto pretensamente ímpar, a coroa de Cristo, encaminha-se assim para a produção em série... E o resultado foi encontrar-se depois com seus pares comerciantes, terminando por se casar não propriamente com uma mulher, mas com seu valor emblemático (e dote), a sociedade na prestigiosa firma "Crispim & Cia.". A fórmula familiar dos exemplos da teorização realista, como se vê, já é outra. E a imaginação (vale dizer, a fantasia) não apenas não impede que o autor aponte a "nudez forte da verdade", mas abre a possibilidade de uma denúncia mais funda das perspectivas religiosas passadiças e valores burgueses que tudo subordinavam à ótica da empresa. Nova analogia com os nossos tempos, quando a própria representação das dinâmicas sociais e o repertório da crítica pode seguir o modelo de articulação empresarial... Como se vê, novos espaços de negociação...
É de se destacar ainda a fala final de Raposão, que no aconchego do lar burguês afirma que a única coisa que tem a lamentar desse episódio da troca dos pacotes foi que lhe faltou na ocasião "a coragem de afirmar".[14] Poderia ter gritado, no momento em que abriu o pacote para a tia, que a camisa de dormir era de Maria Madalena (não M. M. de Miss Mary, mas de Maria Madalena) e "o muito que gozámos" da dedicatória referir-se-ia ao que ele gozou ao mandar à santa suas orações. O resultado, então, seria bem outro: teria certamente o reconhecimento da Igreja e o próprio papa lhe enviaria uma bênção apostólica. Não seria só isso: atendidas essas "ambições sociais", poderia vir a ficar igualmente satisfeito do ponto de vista intelectual, pois a camisa prestar-se-ia ao estudo "científico"
[...] das camisas da Judéia no primeiro século, [mais ainda, para reflexões sobre] o estado industrial das rendas da Síria sob a administração romana, [ou ainda, diríamos nós, pensando na história do cotidiano, para estudar] a maneira de abainhar entre as raças semíticas... Eu surgiria [diz Raposão] na consideração da Europa, igual aos Champollions, aos Topsius, aos Lepsius, e outros sagazes ressuscitadores do passado. [...]. [Entretanto, ele perdera tudo isso] porque [lamenta] houve um momento em que me faltou esse "descarado heroísmo de afirmar", que, batendo na terra com pé forte, ou palidamente elevando os olhos ao Céu - cria, através da universal ilusão, ciências e religiões.[15]
Essa voz que nivela ciências e religiões a construções discursivas ilusórias é de Raposão. Entretanto a raposice não se revela ao curso do romance como predicado exclusivo da personagem, que às vezes carrega as marcas implícitas do autor. Ao mesmo tempo sua ironia às vezes bem-humorada, às vezes destrutiva, nada coloca diretamente no lugar daquilo que discursivamente ela implode. Ficam, não obstante, a crítica social e inferências sobre sua visão inconformista. Como se observa, Eça de Queirós já está bastante longe dos postulados naturalistas do primeiro texto crítico aqui referido. A "nudez forte da verdade" a que aspira já solicita, como matéria constitutiva da busca, "o manto diáfano da fantasia", isto é, a imaginação.
Para escrever A Relíquia, Eça valeu-se de anotações feitas em 1869, quando de sua viagem ao Egito e Oriente Médio, em companhia do Conde de Resende, seu futuro sogro. As notas constituíram marcações ambientais para o livre vôo da efabulação. A distância e a ausência de observação direta que lamenta na correspondência que então escreveu parecem uma forma de desculpa para esses vôos imaginativos, que não deixam entretanto de perseguir pelo distanciamento irônico a "nudez forte da verdade". E a conseqüente distorção desse livre jogo da "fantasia" contribui para o seu afastamento do fenomenismo estrito dos antigos postulados naturalistas.
No Brasil, conforme indicamos, Eça de Queirós sensibilizou as gerações literárias ligadas às novas tendências realistas que se firmaram no século XX. A adesão às perspectivas abertas pelo ficcionista português explicita-se, por exemplo, no artigo de Linhas Tortas,[16] publicado no Jornal de Alagoas, de Maceió, em 1915, em que Graciliano Ramos reage com indignação à agressão ao monumento a Eça de Queirós, em Lisboa, justamente naquele em que aparece o subtítulo de A Relíquia: "Sobre a nudez forte da verdade - o manto diáfano da fantasia". A empatia de Graciliano por Eça é tamanha que seu discurso crítico recobre o do ficcionista português tal como ele aparece no artigo "Idealismo e realismo", embora ele não o tivesse lido, pois foi publicado só em 1929, como indicamos. Graciliano aí afirma, com Eça, que as personagens do autor português
[...] não são, por assim dizer, entidades fictícias, criação de um cérebro humano - são indivíduos que vivem a nosso lado, que têm os mesmos defeitos e virtudes, que palestram conosco e nos transmitem idéias mais ou menos iguais às nossas [...].[17]
Esse será um dos pólos de atração de Graciliano, o primado da realidade. A diferença será a ênfase na experiência, por parte do ficcionista brasileiro, experiência creditada à teoria da práxis marxista, que coloca o homem como ser ontocriativo, isto é, como indivíduo que ao interagir com o mundo modela seus pensamentos e ações. Outra diferença virá do encurtamento da distância: tendo vivenciado de forma direta e intensa o ambiente de suas representações literárias, Graciliano procurará ainda reduzir a distância entre a perspectiva de seus narradores e esses dados referenciais.
Mais, essa distorção, enquanto efeito de realidade, será enfatizada quando Graciliano Ramos procurou adequar o mundo interno/externo de seus narradores com imagens literárias que lhes seriam próprias, no percurso que vai de Caetés (1933) a Angústia (1936), passando por São Bernardo (1934),[18] com base na práxis de suas personagens narradoras João Valério (Caetés), Paulo Honório (São Bernardo) e Luís da Silva (Angústia). Como Gonçalo Mendes Ramires, de A Ilustre Casa de Ramires, de Eça de Queirós, também essas personagens escrevem um livro, no plano da história, para buscar um equilíbrio interior através de um encurtamento das distâncias entre o romance que escrevem (texto referido) e aquele que elas vivenciam e nós lemos. Entretanto, o destino de cada uma dessas personagens será diferente das aspirações que a motivam a escrever essa narrativa embutida no romance (mise en abîme). Se Eça parodia através de Gonçalo um estilo passadiço, essa personagem constrói a "moeda falsa" referida no artigo "Idealismo e realismo", terminando por fazer dela também uma moeda de troca de favores políticos. João Valério equilibra-se nesse enquadramento quando constata as simetrias entre a antropofagia dos índios e a prática competitiva burguesa. Entre devorar e ser devorado, dirá depois o ficcionista português Carlos de Oliveira, o melhor é ir afiando os dentes.
São Bernardo e Angústia já mostram uma transformação nessa adequação de Graciliano Ramos. Em São Bernardo, Graciliano pretendia escrever um livro em língua de sertanejo, conforme revela em carta a sua esposa Heloísa Ramos.[19] Nesse romance é ironizada a pretensão de Paulo Honório escrever um romance seguindo a práxis capitalista da divisão do trabalho e da apropriação do trabalho alheio. Ao final do romance, essa personagem problematiza sua auto-representação. Vê-se como um bicho, devido à brutalidade de sua práxis existencial, e sua imagem é registrada à maneira cinematográfica:
Ponho a vela no castiçal, risco um fósforo e acendo-a. Sinto um arrepio. A lembrança de Madalena persegue-me [...] Foi esse modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos de outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.[20]
A luz bruxuleante da vela dá as bases materiais para a imagem da distorção. Já observamos em texto de 1993[21] que
O "modo de vida", isto é, o modelo de se trabalhar a realidade do chamado "capitalismo selvagem" brasileiro, como se lhe classificou Florestan Fernandes, acaba por impregnar o próprio pensamento de Paulo Honório. Da práxis social provêm formas de articulação do pensamento, que acabam por balizar as formas de pensamento e de conduta da personagem. Como essas formas se afastam do humanismo, simbolicamente elas podem marcar a própria caracterização física de Paulo Honório. Ele se vê distorcido, um aleijado com "coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes", com "um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes". Enfim, "deformidades monstruosas" provenientes de uma práxis social inumana.
Essa imagem de Paulo Honório mostra uma deformação expressionista. Podemos ver nessa deformação uma pintura de um Portinari, por exemplo, com as deformações que vêm da práxis social. Se em Portinari as personagens são proletárias, aqui ela se situa também na classe dominante. Como poderia dizer Graciliano Ramos, os atores desses setores também são reduzidos a "bichos". A alienação também os atinge. E a distorção opera-se simetricamente, modelando caracteres físicos com caracteres psicológicos.
Dessa forma, em função da própria representação de um homem historicamente concreto, ocorre a distorção para que seja revelado um sistema de predicação mais fundo do que aqueles situados no registro mais superficial de aspectos fenomênicos da realidade. De uma referencialidade mais fotográfica, caminhamos, assim, para uma referencialidade mais essencial. O campo intelectual, associado à literatura empenhada da década de 30, encaminhava-se para o expressionismo. Os modelos realistas do século passado, ainda visíveis em Caetés, são comutados pelo novo realismo ou novo humanismo, ou ainda o neo-realismo - todos esses rótulos como o que se vulgarizou no Brasil, o de "regionalismo" - são insuficientes, quando não arbitrários. A literatura participante dos anos 30 coloca-se como vanguarda, com uma prática artística similar à de outros artistas que participavam da atmosfera ideológica da frente popular antifascista.[22]
Esse novo realismo na representação da personagem, que pressupõe a distorção reveladora, como nas pinturas de Portinari que ilustravam os livros de Graciliano Ramos, marcou igualmente as imagens cinematográficas numa tradição que veio de Einsenstein. Essa tendência de se desvelar o fenomênico pela distorção de seus aspectos visíveis teve continuidade nos anos seguintes. Na série literária, como indicamos, houve a apropriação de Graciliano pelos ficcionistas de ênfase social de Portugal. Referimo-nos mais especificamente a Carlos de Oliveira, cuja admiração por Graciliano pode ser situada como correlata àquela que o ficcionista brasileiro nutria por Eça de Queirós. Se A Ilustre Casa de Ramires foi modelo de partida para os romances com narradores de primeira pessoa de Graciliano, São Bernardo desempenhará o mesmo papel para os romances Casa na Duna (1943), Pequenos Burgueses (1948) e Uma Abelha na Chuva (1953).[23] Carlos de Oliveira utilizava politicamente o nome de guerra de uma das personagens de Graciliano Ramos: Casimiro, de São Bernardo, personagem que mantém certa analogia com Firmino, de Casa na Duna. Visualizava talvez entre ele e a personagem de Graciliano um comportamento análogo, atores à margem dos centros de decisão, mas presentes pontualmente em situações de emergência. A ambiência desses romances é simétrica à de São Bernardo: a decadência da pequena propriedade em face da concentração econômica capitalista; personagens/atores sociais que mantêm entre si não apenas caracteres paradigmáticos correlatos, mas também nomes semelhantes, como Paulo Honório (São Bernardo) e Mariano Paulo (Casa na Duna); o meio geográfico nordeste/gândara etc.
O sentido da distorção que apontamos em Graciliano por referência ao modo de apreensão da realidade de Paulo Honório e Luís da Silva, em Carlos de Oliveira se explicita ainda mais, como se pode observar na voz de Dr. Neto, personagem de Uma Abelha na Chuva:
O reflexo trêmulo das chamas batia-lhes no rosto e desfigurava-os: os olhos do padre muito mais encovados, a cana do nariz mais torta e luzidia; as bochechas de D. Violante inchadas como se tivesse a boca cheia de ar; uma recôndita sensualidade nos lábios de D. Maria dos Prazeres; a palidez de Álvaro Silvestre a resvalar num amarelo de cidra e idiotia [...]
À primeira vista, o gosto da razão científica tão arreigado no seu espírito não se coadunava bem com deduções dessa natureza. No entanto, pensando melhor, tais juízos partiam de argumentos consistentes: os tiques psicológicos e morais de cada um, por exemplo. Conhecia-os como as suas mãos, de modo que podia deduzir o seguinte sem se atraiçoar: vê-los desfigurados é vê-los verdadeiros [...][24]
Verifica-se, pois, em Graciliano como em Carlos de Oliveira, a partir de aparatos físicos, uma distorção nas imagens representadas, cujo sentido é explicitado pelo Dr. Neto: "vê-los desfigurados é vê-los verdadeiros". Em Eça, a luz é fixa, mesmo em situações narrativas onde ocorrem distorções, como no sonho de Gonçalo, de A Ilustre Casa de Ramires:
Despido, soprada a vela, depois de um rápido sinal da cruz, o Fidalgo da Torre adormeceu. Mas no quarto, quando se povoou de sombras, começou para ele uma noite revolta e pavorosa. André Cavaleiro e João Gouveia romperam pela parede, revestidos de cotas de malha, montados em horrendas tainhas assadas! E lentamente, piscando o olho mau, arremessavam contra seu pobre estômago pontoadas de lança, que o faziam gemer e estorcer sobre o leito de pau-preto. Depois era, na Calçadinha de Vila Clara, o medonho Ramires morto, com a ossada a ranger dentro da armadura e el-rei D. Afonso II, arreganhando afiados dentes de lobo, que o arrastavam furiosamente para a batalha das Navas.[25]
As distorções do pesadelo foram motivadas pela má digestão. Gonçalo acorda e resolve o problema através de um sal de frutas. Pode voltar então a sonhar com o paraíso africano, à maneira romântica:
[...] readormeceu logo, muito longe, sobre as relvas profundas dum prado da África, debaixo de coqueiros sussurrantes, entre o apimentado aroma de radiosas flores, que brotavam através de pedregulhos de ouro.[26]
Mais tarde, a personagem explicitaria a razão do pesadelo:
[...] passei uma noite horrenda, Bento! Pesadelos, pavores, bulhas, esqueletos... Foram os malditos ovos de chouriço; e o pepino...[27]
A vela do ambiente exterior foi, então, apagada por Gonçalo quando ele se deitou, iluminando-se, em seguida, no pesadelo, a interioridade dessa personagem, sem jogos de luz e sombra, como em Graciliano e Carlos de Oliveira. As imagens são nítidas e a distorção, pode-se dizer, vem de associações oníricas que poderiam vir a ser designadas surreais no século XX, evidentemente sem as "legendas" contextuais explicativas, como no exemplo acima. Há um processo de colagem de partes de imagens pertencentes a campos semânticos diversos, revelando-se pela montagem inusual aspectos marcantes das tensões interiores de Gonçalo. A razão dessas associações é creditada pela personagem unicamente à indigestão, que para ela se faz veículo e razão de ser do pesadelo. Não se reduzem assim as marcas implícitas do irônico narrador, que torna o pesadelo uma forma de revelação de fixações psicológicas centrais à vida de Gonçalo. Essa personagem não conseguia equacionar as cobranças de sua rígida tradição fidalga com suas "necessidades" de ascensão na sociedade burguesa, a solicitarem cada vez mais condutas maleáveis e fisiológicas.
Nesses exemplos, temos um percurso do realismo, que vai de imagens referenciais mais fixas para mais dinâmicas, e do sentido de se equacionar a observação e a experiência entre os níveis interiores e exteriores das personagens: a distorção possível no pesadelo de Gonçalo e aquelas que ocorrem no "pesadelo" social exterior às personagens, mas que se interiorizam na escrita literária, como em Graciliano Ramos. No próprio Eça de Queirós, a luz mais fixa do realismo do século XIX desloca-se do exterior para a interioridade. Lá ela é capaz de construir imagens que são reveladoras justamente por serem distorcidas, afastando-se da observação de superfície, creditada a Gonçalo. Ficam delimitadas as áreas de luz e de sombra: no sonho o que seria "sombra" se faz luz. As partes dos objetos "coladas" pela associação onírica são nítidas.
Depois, no século XX, em Graciliano e Carlos de Oliveira, essa luz já não precisa fundamentar-se em pesadelo, para revelar um homólogo pesadelo psicossocial mais abrangente. Aqui a revelação interior das personagens - registro das distorções humanas, para além da aparência enganadora - é dada por um jogo concreto de luz e sombra, que motiva a reflexão crítica. A sombra também é significativa, indefinindo aspectos superficiais dos objetos, de maneira a imprimir maior complexidade ao princípio da observação e da experiência. Essa forma de representação das superfícies exteriores pelos escritores realistas passou a contar também com os repertórios da linguagem cinematográfica, como indicamos, para além daqueles provenientes da pintura e da fotografia, como ocorreu no realismo do século XIX.
Eça de Queirós, Graciliano Ramos e Carlos de Oliveira são três escritores embalados pelas aspirações de uma literatura de intervenção social cujas produções permitem estudar aspectos da circulação literária nas duas margens do Atlântico. Se o vetor da circulação literária, neste caso, dirigiu-se inicialmente de Portugal para o Brasil, depois houve inversão dessa direção vetorial, do Brasil para Portugal. Aproximando esses autores, estabelecendo uma espécie de continuum comunicacional, estava o subcampo de grupos de escritores inclinados a uma literatura empenhada, onde a escrita deveria estar associada a uma práxis mais ampla, de inserção ativa da cidadania. O veículo da circulação é evidentemente a língua portuguesa, facilitada pela existência de laços comunitários supranacionais. A veiculação não acarretou apenas a circulação dos repertórios, que servem de contexto para novas formas de atualizações literárias, mas também favoreceu o estabelecimento de laços de solidariedade. O artigo de Graciliano é um bom exemplo das interações solidárias entre atores do mesmo campo intelectual e das articulações supranacionais das literaturas em português. Sem dúvida, a literatura se mostra uma das manifestações mais dinâmicas nas relações culturais entre o Brasil e Portugal. Uma forma comunitária de poder simbólico que pode propiciar, como nos exemplos aqui estudados, a interatividade necessária, entendemos, para fazer face aos processos de estandardização do mercado de trocas simbólicas da atual etapa do processo de mundialização da economia capitalista.
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Notas: