José A. Bragança de Miranda
Universidade Nova de Lisboa
Estávamos atentos às matérias e sopros do mundo expressos em imagens e vozes autónomas.
Herberto Helder
1. Retiro uma infinidade de consequências da ideia de que sem as imagens somos meros joguetes de "forças" que por todo o lado irrompem, dobrando tudo à sua passagem. Quem não sentiu a violência verde das raízes que dobram o alcatrão das estradas, ou os musgos que vão destruindo as cantarias de pedra? E se as pedras se liquefazem ao som das bacantes é, como disse Nietzsche, porque desde que haja uma pedra haverá uma imagem. Forças contra forças, todas comungando de uma primitividade que incessantemente retorna; que, por exemplo, alimenta a ficção de James Ballard, nomeadamente em The Drowned World,[1] autor de uma escrita obcecada por essa experiência arcaica e o seu retorno inevitável. Em suma, a "vida" é um vórtice de forças que tudo nivelam, tal como uma camada de neve com todas as diferenças com uma imensa película branca. A "imagem" existe para se poder conviver com a violência de tais forças; ela é a forma em que a vida se singulariza, se torna vivível e "humana".
Afirmar que a imagem é o começo do "humano" pode parecer bizarro. A estranheza provirá talvez de mal podermos reconhecer o que é uma "imagem", apesar de todo palavreado que as envolve. A imagem antes de ser uma "cópia" é uma divisão, e um efeito de divisão. A imagem é, assim, uma lesão primordial da opacidade das "coisas". A opacidade é dissipada pela divisão que extrai imagens leves da "densidade" da matéria. Acrescenta-se a ela, desmultiplicando-a. Somente nesta perspectiva se pode entender Fichte quando afirmava que
[...] só existem as imagens: elas são a única coisa que existe, e têm conhecimento de si mesmas à maneira das imagens - imagens que passam, flutuantes, sem que haja nada diante de quem passar; que se relacionam umas às outras através de imagens de imagens.
Aliás, as próprias coisas são, por uma lógica inapelável, "imagens de imagens" que estão sempre para além dessa divisão originária. É com as imagens que, secretamente, se origina a história, a qual se consumiria indefinidamente no esforço inglório contra a entropia universal, se não fosse propulsado pela "imagem".
De um ponto de vista rigorosamente "materialista" esta divisão é ilusória. Mas é por tal ilusão que tudo começa, caracterizando para o melhor ou o pior a cultura ocidental, pelo menos desde os gregos. Se dizemos que é "ilusória" é porque nela assenta o "vazio" essencial em que se funda a liberdade humana. Toda a metafísica, herdeira tardia da teologia,[2] se alimenta dessa cisão, mesmo quando, na sua maioria, a deseja abolir.[3] Uns para fundir-se com a "natureza", outros para "concluir" a história, outros para realizar a "imanência absoluta", outros ainda para serem "orientais"....
O humano está em causa sempre que esta divisão originária é cancelada.[4] Dizíamos que esta divisão era ilusória, diremos agora que é um acrescento necessário. A definição grega do homem como zoon politikon dá conta desse acrescento, em si mesmo enigmático. Eis um animal e algo mais. A imagem tem a ver com esse "algo mais". Percebe-se, assim, a hipótese do filósofo alemão Hans Blumenberg, que sustenta que o humano só é possível a partir de uma fragmentação do "absolutismo do real",[5] cuja melhor imagem são as longas noites pré-históricas, sem sol nem lume, e o terror sem fim que originam. A luz do sol é um dos operadores, e bem importante, dessa divisão, mas porque é retomada por uma outra "luz", a do mito, que repete e cria outra maneira de dividir o "contínuo" ameaçador da natureza, dando-lhe "nomes", desagregando-a, inventando deuses, tornando conhecido o desconhecido, ou, pelo menos, tornando-o cognoscível (e controlável). Como diz Jean-Pierre Vernant, no mito grego da origem do universo "é preciso que advenha alguma coisa que permita criar o espaço, isto é, um intervalo".[6] A divisão onde se origina a experiência humana abre, portanto, a "presença" ou a "natureza", instalando todo um jogo de forças e possibilidades, cujos efeitos se prolongam até aos nossos dias.
O mito é a primeira forma de registo dessa divisão originária, embora a narrativa mítica procure desde logo anulá-la. Mas enquanto sismógrafo do terror inicial o mito repete inevitavelmente a divisão em que se origina. Aquém do mito está a imperceptível divisão operada pela imagem. Oculta no mito de Narciso está a experiência elementar do espelhismo e dos reflexos, que se desmultiplica nesse mito e em todos os outros. A própria Razão, que se inicia pela vontade de expurgar as "imagens" em que se fundava o mito, traz em si as marcas desse processo.[7] Assumindo o seu trabalho de "controle" da existência e, acima de tudo da "exterioridade", a metafísica grega constrói-se por um trabalho infindável em torno dessa divisão, visando cancelá-la, assumindo o controlo total da "existência" e, acima de tudo, da "exterioridade".[8]
Sem podermos ir muito mais longe na nossa demonstração, diremos apenas que na separação platónica entre "ideias" e "fenómenos", que instaura a divisão essencial da metafísica e o seu processo contra o existente, ecoa ainda a divisão originária com que a imagem se inicia. Somente nesta perspectiva se percebe inteiramente a crítica de Platão à "imagem", como falso eidos, como ontologicamente falsa. Ela é "aspecto", algo "incorporal", mas que pode ganhar corpo. Na interpretação de Nestor-Louis Cordero, "a imagem pertence ao domínio do não-ser"; "a imagem estava 'em falta' de ser".[9] Mas isso não impede que ela possa ser "produzida", nem que exista uma "técnica" da imagem. Como se lê n'A República "nós definimos o imitador (mimetés) como aquele que produz imagens (eídola)" (599d3). Portanto, a imagem é duplamente degradada, pois se os fenómenos são uma degradação do Ser, a imagem é uma imitação dos "fenómenos", ou seja, uma segunda degradação. Se a imagem pode ser o efeito de uma techné, a técnica só se autonomiza quando escapa ao "retard en verre" que toda a imagem implica.[10] Apesar disto, a divisão platónica entre efémero e eterno, entre fenómeno e ideia corresponde a uma "anamorfose" da divisão originária da "imagem". Daí que somente a partir de "imagens" como as da "caverna" possa Platão rarificar as imagens míticas, senão mesmo destruí-las.
De maneira perversa, querendo abolir as "imagens" míticas, Platão abre caminho à instalação do "dispositivo óptico" ocidental que, trabalhando internamente todas as divisões e binarismos, se expressa "cinematicamente". A divisão metafísica que, contrariamente à pluralidade do mito, é dual, hierarquiza uma série de outras divisões, complexamente articuladas: presença e ausência, visível e invisível, original e cópia, possível e actual etc. Enquanto a teologia católica privilegiava a divisão entre visível e invisível, que sobredeterminava todas as outras, os modernos irão acentuar a lógica pura dos possíveis, procurando reger as passagens entre "real" e "possível".[11] Nas suas diversas formas estamos perante uma estrutura de longa duração que atravessa toda a história. Aliás, mesmo o antiplatonismo de Marx, Stirner e Nietzsche é ainda determinado pelo platonismo, que nas suas anamorfoses é sempre o fundamento de todas as "inversões" ou deslocações.[12]
Em suma, no espaço aberto pela divisão metafísica actuam estratégias de controlo, que Lacoue-Labarthe descreveu como uma "mimetologia generalizada",[13] estratégias essas que procuram cancelar a divisão em que tal espaço se funda. A "metafísica" baseia-se numa divisão que, de imediato, procura cancelar. Aliás, só é enunciável através desse cancelamento, cuja realização metafísica se esgota imediatamente, mas só é realizável no "mundo" através de um trabalho contra a divisão, que o divide. A queda cristã, ao mesmo tempo que lança a história no caminho da redenção, de uma unidade perfeita, instala uma divisão do mundo para melhor poder realizar o seu projecto. Ou seja, tem de "inventar" uma divisão para acabar com todas as divisões. Neste entramado de ambiguidades, o que está em acto, de facto, é um esquema de controlo, modelo de toda a técnica ocidental, que se acha, assim, constituído desde a metafísica grega.[14] Daí que detectemos desde sempre, na nossa cultura, um desejo de imediaticidade, que é o fundamento de toda a mística, sendo ele que alimenta todo o desejo de "fusão", todo o redentismo teológico e boa parte das utopias políticas. O cruzamento da técnica com este desejo constitui a ameaça que desde sempre impende sobre nós.
2. Para haver desejo de "reunião" ou de "fusão", foi necessária primeiramente uma divisão mais originária que nenhuma "imagem" esgota. De facto, só há imagens no plural, e nem todas dependem da visão ou do olhar. É preciso um outro ponto de partida, que a imagem permite perceber, porque também é afectada por ele e é um efeito dele. Comecemos apesar de tudo por ela, pois a sua análise permitirá compreender o que está em causa. Isto implica um afastamento radical relativamente às actuais tendências que privilegiam a visão ou "olhar" (gaze) e, em geral, a percepção.[15]
Originária, dissemo-lo já, é somente a divisão, sendo dela que tudo depende. E a divisão originária, materialmente considerada, é a da matéria ela mesma quando se reflecte ou desdobra. É a divisão da Physis por reflexo, ainda antes de haver qualquer "sujeito" ou "consciência". O que faz a superioridade de Lacan sobre a infinidade de conversa sobre a imagem é ter-se dado conta disso mesmo. Como ele diz:
Une image, ça veut dire que les effets énergétiques partant d'un point donné du réel - imaginez-les de l'ordre de la lumière, puisque c'est ce qui fait le plus manifestement image dans notre esprit - viennent se réfléchir en quelque point d'une surface, viennent frapper au même point correspondant de l'espace. La surface d'un lac peut aussi bien être remplacée par l'area striata du lobe occipital, car l'area striata avec ses couches fibrillaires est tout à fait semblable à un miroir. De même que vous n'avez pas besoin de toute la surface d'un miroir - si tant est que cela veuille dire quelque chose - pour vous apercevoir du contenu d'un champ ou d'une pièce, que vous obtenez le même résultat en manoeuvrant un tout petit morceau, de même n'importe quel petit morceau de l'area striata sert au même usage, et se comporte comme un miroir. Toutes sortes de choses à l'intérieur du monde se comportent comme miroirs. [16]
Apesar de longa trata-se de uma passagem instrutiva. De facto, do ponto de vista da divisão originária que as imagens iniciam não há diferença essencial entre "natureza" e "consciência", entre "interior" e "exterior", todos imersos num espaço único, que só a imagem pode abrir.
As imagens no início são as "conversas" da matéria consigo mesma, e, por etéreas que pareçam as imagens, elas são "sublimações" dos estados pulverizados da matéria, eflúvios desta, não apenas da vista, mas do olfacto etc. Todo o mistério está em romper a continuidade e opacidade do "real" ou da "matéria", com a própria matéria. No soneto de Baudelaire sobre as "correspondências" isso é claro: "os perfumes, as cores e os sons conversam", "tendo a expansão das coisas infinitas,/como o âmbar, o almíscar, o benjoim e o incenso/que cantam os transportes do espírito e dos sentidos".[17] Ao mesmo tempo, ruptura e continuidade, continuidade da ruptura, que tem de ser permanentemente redividida. Não é isso mesmo que a obra de Helena Almeida nos incita a ver? Que o incenso signifique hoje algo de teológico é porque é possível construir mundos sobre essas imagens, mas também porque é possível recuperá-las na sua "inocência" primeira. Matérias como reflexos, espelhismos, ecos e miragens. Só numa ontologia idealista se trata de "cópias" ou "imagens". Como se verifica com Baudelaire, as idealidades são outros estados da matéria, a matéria em todos os seus estados.
O espelhamento, os ecos, os perfumes e sublimações, tudo espelhismos de uma matéria sem espelhos, mas que são facilmente extraíveis de dentro dela. O espelho é a máquina arcaica por excelência, contendo todas as máquinas "futuras". Mas o primeiro efeito é de uma multiplicação infindável. Imaginemos uma coisa objecto A que ao espelhar-se cria um objecto virtual A', que é ao mesmo tempo A e à (não-A), sem por isso ser uma simples privação ou mera parte de A. Trata-se de uma "coisa", eventualmente, um "objecto", pois a sua presença, mesmo que efémera, apesar de ter permanecido uma infimidade tem a fatalidade de alguma vez "ter sido". Daí à sua fixação pela linguagem (o "mito", por exemplo) ou outra máquina qualquer, como a pictórica ou a fotográfica, vai um passo, e nem o mais decisivo. A fixação humana varia entre ser testemunho ou ser mnemotécnica, tendo ambas a mesma raiz. Depois de aparecer no mundo, nem que seja virtualmente, surge ao mesmo tempo a possibilidade de o fixar, criando novos "objectos", que se separam e destacam do continuum da Physis.[18]
Percebe-se, assim, apesar da enorme evidência do espelho, que este é sempre segundo, é uma mecânica para produzir artificialmente o reflexo. Mas antes dele temos de pensar a linguagem, o mito e, em geral a poesia. O conflito entre a poesia e o óptico é sinal de uma catástrofe. Quase se poderia dizer que miragens, ecos, cheiros, como a famosa madeleine de Proust, testemunham essa primeira mnemotécnica, de importância crucial. Mas na mnemotécnica está à espera a técnica. Daí que o grande salto técnico acabe por ser a fixação, a permanência dos reflexos. Temos que nessa capacidade para fixar, para produzir a permanência, a origem da "técnica", mas também todo o pensamento especulativo. A máquina elementar é, então, o espelho, e no fundo toda a superfície espelhante. Mas a sua capacidade para "reproduzir" depressa será capturada pela técnica do "produzir". Do espelho arcaico, ao espelho da Branca de Neve que é activo, ao espelho de Alice que entra dentro dele, até à perda do reflexo no espelho do Erasmo de E. T. A. Hoffmann, vai todo um percurso que se funda na elementaridade da imagem iniciante.[19]
3. Na divisão originária têm início todas as imagens que, em contragolpe, a fixam. É no início da "imagem" que podemos apreender a origem das "máquinas". Como diz o grande poeta cubano Lezama Lima: "No hay nada más que el cuerpo de la imagen, y la imagen del cuerpo. La imagen al fin crea nuestro cuerpo y el cuerpo segrega imagen... Y lo único que puede captarlo es la poesía...".[20] Lezama refere algo de essencial: o humano está na encruzilhada da sua invenção pela "imagem" e prolifera numa infinidade de imagens, com que "abre a história".[21] Mas não dá suficientemente conta de que a "captação" não é apenas operada pela poesia, mas que "entre" reflexo e coisa se instaura um espaço, onde se podem introduzir e extrair "máquinas".[22] As máquinas não esgotam a técnica, embora sejam um efeito desta. A técnica é o controle das passagens, entre "imagens" e "coisas", "real" e "potencial". Techné e poiesis estão em conflito e têm afinidades. Diria que a techné tende a ser uma poiesis que controla as "ligações", as passagens, instaurando trajectórias conhecidas e repetitivas, enquanto a poiesis é uma techné que desconhece os caminhos, e é única, singular.[23]
Deste ponto de vista as "imagens" fixadas por aparelhos ópticos não se diferenciam de qualquer outra forma de fixação. Em última instância, "espelhar" imagens, sons ou cheiros não é essencialmente distinto. Só a nossa metafísica opticamente orientada impediu de reconhecer este facto. E a própria "imaginação" romântica está ainda na sua continuidade. Por exemplo, no Prelúdio de Wordsworth lê-se:
Mas não raro ele fica perplexo e nem sempre pode separar a sombra da substância, distinguir as rochas e o céu, os montes e as nuvens, reflectidos nas profundezas da água clara, das coisas que habitam ali e têm ali sua verdadeira morada. Ora ele é atravessado pelo reflexo de sua própria imagem, ora por um raio de sol, e pelas ondulações vindas não sabe de onde…
E é por isso que no que vê, nas imagens, ele "imagina muitas outras" (id., ib.). O privilégio dado à imaginação tem a ver com a possibilidade de se criarem "imagens" que nunca existiram, ou então com o "invisível". Porém, as novas "imagens", como o revelam hoje as gráficas dos computadores, se nunca existiram, são produzidas por um aparelho que, esse existe desde os princípios e que hoje se formaliza crescentemente. Não se trata de "símbolos" ou "metáforas" apenas, apesar de o serem também, mas de algo que é "produzido" pela máquina que a superfície da água contém ocultamente. A superfície da água é uma extractora de imagens, de "fora" de nós e de "dentro" de nós, que irrompem, rompem mesmo, com as imagens extraídas, fazendo delas outra coisa. Não são "símbolos" nem metáforas, são afloramentos do "espelhável" ou "registável". E desde que aflorem são sempre realizáveis.
Ao produzir novos seres, mas agora isolados, e extraídos da grande cadeia da Physis, que vagueiam nomadicamente por todo o lado, deduz-se de imediato o problema da "ligação", a "erótica" que constitui o "humano" em torno de um enigmático projecto erótico. Ligações dos corpos, das propriedades, dos objectos, e, em geral, das "imagens", eis o que gere essa "erótica". O mundo que permite as imagens, está obcecado pelo proliferar das imagens naturais, que a sua primeira "nomeação" pagânica "controla" minimamente, mas também de outras imagens que derivam destas. Inventados os "deuses" para fragmentarem o continuum da natureza, produz-se anarmorficamente "Deus" e todas as "imagens" da totalidade, encarregadas de um bom ordenamento dos "reflexos", das "especulações", dos ecos etc. As imagens da "totalidade" são, evidentemente, imagens particulares que se absolutizaram, na vontade de abolir a divisão.[24] Não admira, portanto, que a divisão seja a origem de toda a crise. Não por acaso o Padre António Vieira descrevia o espelho como "diabo mudo". Seria possível distinguir entre máquinas divinas e máquinas diabólicas? No fundo todas elas são um efeito da divisão, sendo todas "diabólicas" no sentido de Vieira. Ora, Deus é um efeito da mesma divisão de onde saíram as máquinas. Como disse Lacan: "Certains sont forts inquiets de me voir me référer à Dieu. C'est pourtant un Dieu que nous saisissons ex machina, à moins que nous n'extrayons machina ex Deo".[25] A passagem do Deo ex machina para a machina ex Deo corresponde à crise dos processos de framing, que constituíam os espaços do "aparecer" aceitável. Estamos, hoje, a assistir à crise dos framings históricos...
Se durante toda a história as imagens da totalidade conseguiram controlar a eflorescência do "imaginário", apesar de ameaçadas por duplos, fantasmas, e demónios de todo o tipo, é porque se conseguiu estabilizar, ordenar, classificar os "reflexos", primeiramente como "imagens", seguidamente como escrita, depois como registo do som que o gramofone revolucionou. A oposição metafísica ao movimento, ao devir dos fenómenos, é decisiva neste aspecto. Com efeito, qual é a origem do "movimento", quando não se quer usar uma teoria do "desejo" como "falta"? Este é historicamente comprovável, mas como surge e de onde? Ou melhor, como pode ser activado? Todo o desafio é encontrar uma resposta lógica. O movimento é o da Physis que faz com que o permanecer ou desaparecer seja algo intensamente dramatizável. A mudança dos dias e das noites é sinal disso. Mas também a finitude, o envelhecimento, a morte. Neste quadro entende-se que na metafísica ocidental o problema não seja o movimento, mas a "paragem".[26] E não é daqui que o desejo provém, como vontade de deixar de desejar e acabar assim o movimento?
No fundo são estas "imagens" de imagens (as "ideias" platónicas, Deus etc.) que estiveram encarregadas de controlar a "cornucópia" aberta pela fixação e produção de novos seres, como imagens, objectos e corpos, bem como a sua mobilização. Desde sempre que as imagens tiveram de ser controladas, porque enquanto fragmentação do continuum do "real" elas descontrolam os nossos sistemas de enquadramento, de framing. Trata-se de um fenómeno bem descrito por Maine de Biran, de maior alcance que o meramente psicológico:
Dans le sommeil de la pensée, lorsque toute faculté active de combinaison est suspendue, diverses images ou fantômes viennent assiéger le sens intérieur, s'y succèdent, s'y remplacent et s'y agrègent de toutes les manières et forment des tableaux mobiles, irréguliers, disparates dans toutes leurs parties, sans plan, ni liaison, sans unité de sujet ni d'objet.
As instâncias de controlo proliferaram historicamente, pluralizando a tentativa "ontoteológica" para controlar esses novos entes. A domesticação das imagens alimentou boa parte de outras domesticações e interdições. Censura, pornografia, critérios estéticos, todos colaboram neste trabalho de controlo.
O "desejo" de parar, de impedir a deriva dos espelhismos, é ambivalente, pois metafisicamente ou teologicamente só se pode parar numa "imagem" absoluta. A abertura do existente às possibilidades místicas da unidade absoluta e da reconciliação, exige um movimento, sempre entendido como provisório, uma espécie de cinemática generalizada.[27] A função do "desejo" como imagética da propulsão é historicamente evidente, mas demasiado parcial. O poder seria, talvez, a melhor explicação pela sua capacidade de fazer "repetir" uma dada "imagem" ou "fotografia" do real. Daí a mobilização generalizada dos corpos, das máquinas e das formas, que trabalham a paragem para melhor acelerar tudo. Parece no entanto mais correcto considerar o cinematismo como o efeito da imagem teológica (e metafísica), que faz de todo o existente um "veículo" para a salvação ou além. Estranha história, a nossa, propulsada por uma imagem à frente que se origina bem atrás.
Nos nossos dias a imagem atingiu sua coisidade absoluta, e são controladas como gifs, tiffs, bmps etc. E, em contrapartida, as coisas ficaram elas próprias enfraquecidas. Como diz Francis Ponge: "Quelle étonante servilité!! Les choses sont sages comme des images. À la lettre: comme des images!".[28] Infelizmente as imagens estão a tornar-se tão dóceis como as "coisas". Com o que se perdem umas e outras.
4. Falhada a teologia, abalada a metafísica, ultrapassada a história, o cinematismo actual é alimentado pelo automatismo da técnica. Muito depende da maneira de lhe responder. Recordemos aqui uma recomendação de Francis Ponge: "Vous l'avez compris, chers architectes, c'est à sa demeure, Dieu merci, et non à lui-même, que doivent être attachés les appareils que l'homme sait s'inventer. Or ces appareils sont devenus électriques. Concluez". A tristeza de Ponge com a perda de força das "coisas" só é compreensível porque compartilhamos ainda a memória de figuras essenciais, nas quais se reflecte a afirmatividade com que a divisão originária incita o humano. No cinematismo actual está em causa uma "fusão" sinteticamente produzida, uma imediaticidade dentro do analítico, que tem de ser contrariada.
É esta a lição de Heiner Müller no esplêndido poema intitulado "imagens".
As imagens significam tudo a princípio. São sólidas. Espaçosas.
Mas os sonhos coagulam, fazem-se forma e desencanto.
Já o céu não há imagem que o fixe. A nuvem vista do
Avião: um vapor que nos tira a vista. O grou, um pássaro, mais
Nada.
Até o comunismo, a imagem final, sempre refrescada
Porque lavada com sangue tantas vezes, o dia-a-dia
Paga-lhe um salário modesto, sem brilho, cego de suor,
Escombros os grandes poemas, como corpos muito tempo
Amados e
Postos de lado agora, no caminho da espécie exigente e finita
Nas entrelinhas lamentos
Sobre ossos feliz carregador de pedra
Porque o belo significa o fim provável dos terrores.[29]
Como restituir principialidade às imagens, elas que se esgotaram na "história" e que são infindavelmente recicladas pelo cinema ou a televisão? Tudo se passa como se tivéssemos de continuar a redividir a divisão já feita. Para isso será preciso ir contra a fixação que a história lhes deu. Eis a crise: perderam as imagens o seu estatuto inicial, de iniciação, de começo, onde "são sólidas. Espaçosas". De onde lhes provém a solidez e a extensão? Das próprias coisas que elas "recobrem" imperceptivelmente. As imagens no início são as próprias coisas a que elas se colam imperceptivelmente, mas que alteram. A poesia é essa máquina de alterar, que cria outros espaços e extensões, impossíveis mas necessários. Müller não se detém neste aspecto, atendendo mais à entrada em crise, em descontrolo, das grandes imagens da história. Mas só pode haver descontrolo porque as imagens podem "precipitar-se", "coagular-se", tornar-se em "forma e desilusão", perdendo a sua capacidade de maravilhamento. Tudo recai na mudez da fisicalidade, coisas e "imagens". Eis o motivo para que seja possível separar coisas e imagens. A crise que inquieta Müller é repetida. De facto, esvaziado o "céu", já sem deuses, fica sozinho, "sem nenhuma imagem que o fixe", as próprias nuvens vistas de um avião são um obstáculo, "um vapor que nos tira a vista". A ascensão torna-se técnica, o olhar do céu é impedido pelas nuvens nas quais já se pôde caminhar um dia. Müller tem razão, ecoando a lição de Mallarmé sobre o estranho empobrecimento do "azul", mas o poeta francês ainda está hanté pelo azul.[30] Nele a ausência ainda fala, o "azul" assedia porque ausente continua a acenar no simulacro que foi, e cuja memória perdura, mesmo na sua inanidade. No fundo Müller dá-se conta do processo niilista, que afecta a capacidade originária das imagens, cujo modelo é o "céu". Contrariamente a Mallarmé para quem nenhuma "imagem" pode abolir o acaso, não se prende a nenhuma. O desespero de Müller tem a ver com o facto de que o mesmo processo afecta a imagem do "comunismo", a "imagem final", aquela em que os humanos se lançaram ao assalto dos céus,[31] com algo mais do que "aviões", para o fazer voltar à terra. Todo o problema é que na "imagem final" se acaba por destruir o início das imagens.
No entanto este processo era inevitável. Precipitada sobre a Terra a grande imagem, seja a de Deus seja a do humano, ela fragmenta-se numa infinidade de pedaços. Como conviver com tal fracturação? Trata-se de redescobrir a força de iniciar, no seio dos fragmentos que estão esparzidos pelo "real", perdidos entre muitos outros. Tudo se deve iniciar, uma e outra vez, apesar desta fragmentação. A violência não assusta excessivamente Müller, apesar da "imagem final" ser "sempre fresca" porque "lavada com sangue", o que perturba é ser em vão. Mas mesmo se perde o "brilho" a imagem ainda lá está, mesmo se fragmentada pela moedas em que se trocou. Sobrevive como uma afecção do "comum"? Brusca mudança a de Müller, com o "ideal" trocado em "miúdos", perdido na imensidade de fragmentos, de poemas e de corpos, que foram longamente amados, e são agora desnecessários ou inúteis, mas que constituíram o caminho do humano, na sua indigência, precisão, e finitude.
A imagem no início é a poesia, e tal como as imagens da história também os poemas são fracturados. Não era isso necessário, quando a inteireza das imagens se volta contra o gesto que as cria e as fixa? Se calhar é mesmo a única maneira de, por entre as linhas, se continuarem a ouvir os "lamentos", e a exigência de alegria que eles impõem. No fundo cada "corpo", cada "fragmento" carrega o peso das imagens tornadas pedra, que forçam a continuar. O grande poema é fracturado para que o maravilhamento que é possa encontrar outras vias. A imagem que se inicia como resposta ao terror, acaba por contê-lo dentro de si. Entrada em crise esse terror dissemina-se por todo o lado, não havendo sangue que o possa justificar. Se, como diz Müller, "o Belo significa o possível fim do Horror", é porque as imagens "espaçosas e sólidas" não são abolíveis no fim da história, mas porque prometem a história ao "belo como fim do terror". Para isso era preciso pulverizar as "imagens" tornadas pedras, e na pedra encontrar a beleza. O niilismo é necessário para abalar o arco que vai da imagem inicial à imagem final. A sua refracção em cada um dos pontos. A beleza não vem da recomposição da "imagem final", nem do seu ocultamento nos fragmentos, onde apesar de tudo ainda brilharia. Onde afinal concorreria com outras imagens, grandes e pequenas. Em última instância é a poesia que recolhe a fracturação do "azul" e do "comum". Mas a beleza está não no poema, nem no azul, nem no comum, mas na poesia. A poesia está por todo o lado, onde menos se pode reconhecê-la. É ela que salva todos os possuídos pela falta da imagem ou os embriagados pelo excesso delas. A poesia é, assim, política, porque afecta o "comum", cria as formas do "comum". É nestas que o humano tem lugar.
Claro que quando se fala de "poesia" estamos menos a referir-nos à escrita que ao gesto livre que a "imagem" ilumina, que divide as imagens contra si próprias, respondendo a um terror que agora é humano, demasiado humano. É a poesia que anima os esforços de artistas como Tony Oursler, Artur Omar, Jimmie Durham ou Salvatore Puglia..., mas também os de todos nós, que não temos mais alternativa do que viver poeticamente ou viver mal.
As fotografias de Inês Gonçalves, aqueles pobres objectos de museu, as imagens arquivadas, os corpos modelados e como que torturados, as máquinas de ver fazem apelo à primitividade de um olhar que no começo dos tempos se deixou abismar por ténues reflexos, por espelhismos de todo o género. Na sua pálida beleza lutam contra a ingenuidade de uma mão que mergulha na água para agarrar a flor-narciso que aí está, fazendo-a desaparecer. Toda a história foi o desenvolvimento deste gesto, tornado maquinal. Trata-se de abrir a mão...
Notas: