Cultura e Democracia

Vestígios de sintaxe antiga na fase moderna do português: a concordância do particípio passado com o complemento de verbos transitivos

Carlos Alberto Mayer

Depoimento do artista

Sempre senti particular fascínio pelos sinais inventados pelos homens, cuja sintaxe busca atribuir sentido ao mundo. Através deles, com engenho e arte, idéias são transmitidas, novas dimensões da realidade são criadas e o universo perceptivo se expande, rompe limites, faz-se infinito. Contudo, somente há coisa de uns cinco anos ocorreume mergulhar no instigante mundo dos signos, símbolos e alfabetos com o objetivo de verificar a possibilidade de extrair elementos para tematizar meu trabalho de criação em gravura. A experiência foi fascinante e produtiva: hoje estou com algumas dezenas de papéis pintados que serão mostrados ao público, em exposição, no mês de outubro de 2.000, sob o título de “Signos e Graphias”. E já estava eu nos preparativos de armazenar as lembranças pelos arquivos da memória afetiva quando um convite aceito, melhor dito, um desafio — criar a logomarca para a Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses da PUCRio, feito por minha dileta amiga Professora Doutora Izabel Margato — me transporta ao tempo passado onde descubro outro valor para a referida experiência : o da utilidade. Refirome aos processos criativos. Como num passe de mágica, o conhecimento acumulado aflorou e naturalmente passou a balizar minhas ações, de forma tão agradável e gratificante, em nada semelhando as incertezas que marcaram os primeiros e segundos passos dos estudos e pesquisas basilares para a criação das gravuras. Inseguranças pessoais à parte, eu novamente submergia no mar de sargaços já antes navegado e conhecido, só que desta feita trazendo comigo valioso instrumental de apoio: bibliografia, iconografia ... etc., e uma grande certeza: voltar a trabalhar com a sensibilidade, o olhar, a percepção, a afinidade, a síntese e um sentido estético particular, “corpo de critérios” irracionais, limitados e pessoais, pois entendo que a criação em arte nem sempre requer instrumental teórico, nem abordagem científica ou metodológica racionais.

As primeiras reflexões visavam a uma tomada de decisão quanto ao rumo, a diretriz plástica para a logomarca Nessa primeira etapa, tudo é possível e essa infinitude de possibilidades é assustadora e amedronta. Conseqüentemente a decisão é difícil e se realiza mais ou menos intuitivamente e quase sempre através de um processo de exclusão que privilegia a empiria. 0 aspecto mais curioso, ou invulgar, desta fase diz respeito ao pensamento e de como se organizam, se cruzam e se processam as idéias, ora excluindo, ora aceitando opções, não só em frações de segundos como, também, concomitantemente. Explicando melhor, reportome à capacidade humana de pensar duas ou mais propostas ao mesmo tempo. Um estágio mais elaborado do que entendo por capacidade humana, eu testemunhei em Cantão, na China, quando um senhor de mais de 80 anos, que dominava mais de quarenta e cinco mil ideogramas, e que por isto era considerado um sábio, escrevia com ambas as mãos, concomitantemente, textos diferentes. O sábio chinês realizava a façanha não só de desenvolver dois pensamentos distintos, mas expressálos, também duplamente e concomitantemente, através da escrita. Sem dúvida um caso excepcional que extrapola as teorias neurológicas relativas às funções das zonas cerebrais localizadas nos hemisférios do cérebro.

Na verdade, a primeira visão plástica que me ocorreu foi a do círculo que representa a trindade do corpo, da mente e da alma, expressa no antigo signo medieval a seguir:

onde a imortal essência, a alma, está situada no ponto central, o círculo do meio representa a vida intelectual, a mentalidade do homem, enquanto o círculo externo diz respeito ao aspecto físico, ao corpo humano. Além disso, o círculo e as curvas planas convexas fechadas, como, por exemplo a elipse, estão simbolicamente impregnados de proteção e sintetizam a harmonia e o equilíbrio.

Noutro vetor do pensamento, outra forma geométrica assumia destaque: o triângulo. E não gratuitamente, pois em sua forma equilátera representa o equilíbrio por contraposição, ou seja, uma imagem cuja forma realiza a coincidência de conceitos geométricos opostos : equilíbrio e contraposição. A figura do triângulo, desde os primórdios, sempre esteve presente nas criações humanas, dentre outras, nos campos da religião, da magia, da mística e do esoterismo e muito freqüentemente representou a Santíssima Trindade , as Virtudes Teologais, Trimurti, a Trindade Brahmânica, estando também presente nos amuletos e nos círculos mágicos, entre outros registros.

Foi nessa sucessão de pensamentos, de idas e vindas, que em dado momento também me dei conta de que as iniciais de Cátedra Padre Antônio Vieira possuem qualidades gráficas que poderiam ser trabalhadas plasticamente. As ilustrações a seguir dão conta disso:

A logomarca

O processo de criação de uma marca funciona mais ou menos assim: primeiro a acumulação, análise, análise, análise… depois, já na fase decisória, a exclusão, síntese, síntese, síntese. Rabiscam-se incontáveis esquemas gráficos, folhas e folhas de papéis são consumidas, questões de fundo e forma são problematizadas e, lá pelas tantas, as preferências vão se manifestando e o trabalho se concentra em questões mais objetivas e práticas, dirigindose já para soluções, concretização de metas, definição de sentidos. Plasticamente a logomarca aflora ao mesmo tempo (notese novamente a questão da concomitância das ações) que seu criador constrói um discurso — a prosa do artista — sobre o que criou. Imagem e texto, na minha forma de ver, nascem juntos e completam um ao outro.

No presente caso, a primeira, senão a principal decisão, constou de elaborar a logomarca com as iniciais C P A V. A seguir, haveria a superposição de letras, numa sugestão de tridimensionalidade, que colocasse em primeiro plano as iniciais, a meu ver, mais importantes: A e V. Depois, as letras deveriam estar dispostas de maneira a harmonizar uma forma curva com um triângulo. A opção pela forma curva recaiu na elipse, “curva plana, convexa e fechada”, a quem cabe sustentar, como fundo, a estrutura plástica da marca, com as letras C e P.

O resultado final dessas conjecturas textuais e gráficas produziram a logomarca estampada a seguir que concretiza, metafórica e estilizadamente, um dos mais caros símbolos portugueses, o globo terrestre, presente na bandeira pessoal de D. Manoel I, sob cujo reinado Cabral aportou no Brasil. Esse traço permite ler na trama das letras o complemento da designação da Cátedra Padre Antônio Vieira: “de Estudos Portugueses”.

Estudo de cores

A cor também desempenha importante papel numa logomarca, não só no que respeita aos aspectos visuais, de atratividade, etc. mas também noutros intrinsecamente ligados à natureza daquilo que a marca pretende representar tanto nos níveis mais concretos de associação como em outros que se prestam às relações simbólicas. A escolha sempre se dará em função de interpretações que, quase sempre, desprezam as sugeridas pelo artista, autor da logomarca, e, assim, prevalecem as preferências pessoais de quem detém alguma parcela de decisão.

Eu ficaria muito feliz se a escolha recaísse no uso de uma só cor, em duas tonalidades diferentes, ou, no máximo, em duas cores afins, sempre evitando contrastes gritantes.[1]

 

Notas

  • 1 Atendendo ao desejo do criador da logomarca, usaram-se na impressão desta as cores preto e cinza. (Nota da redação)