Izabel Margato
PUC-Rio / CNPq
Este texto é dedicado a Edite Cardoso Pires, que tão generosamente me cedeu a fotografia do Largo do Carmo na manhã do 25 de Abril de 1974. É impossível não destacar a importância desta foto histórica. Por isso a escolhemos como emblema de nosso seminário.
Com ela inicio o meu texto, recolhendo olhares, gestos — atitudes irrepetíveis — e posições de militantes e soldados no instante primeiro em que surge uma nova paisagem portuguesa: a da Revolução dos Cravos.
Há muita ansiedade e inquietação contidas nos olhares que compõem esta foto. São olhares que contemplam, mas que também são contemplados. Há muito de reciprocidade nessa cena única que faz, de cada um, um “Nós” expectante. Também é significativo o lugar ocupado pelos soldados: eles estão em segundo plano, em pé e abaixo de um grupo de desconhecidos civis com cabelos e barbas longos o que, na época, era uma maneira de imprimir no corpo o desejo de liberdade. Entre os civis, um se destaca pelo sorriso — sorriso franco —, sorriso de escritor, de intelectual comprometido com a construção desse 25 de Abril. Trata-se do nosso homenageado: José Cardoso Pires.
Cidadão atuante e coerentemente solidário com a luta pela Democracia, José Cardoso Pires soube construir — mesmo antes do 25 de Abril — uma obra independente e participativa para fazer frente ao tempo obscuro que lhe foi dado viver. Soube construir uma obra de resistência ao “discurso competente”[2]que a ditadura salazarista inventou para impor a sua verdade lacunar e autoritária, e tornar “legítima” a sua ficção oficial[3]. O olhar agudo e crítico de Cardoso Pires soube desvendar e desfazer internamente os mecanismos de ocultamento desse discurso[4], analisando seus mitos de identidade, através de um contradiscurso ou, para citarmos com mais ênfase as palavras de Marilena Chauí, através de um “discurso crítico que não é um outro discurso qualquer oposto ao ideológico, mas o antidiscurso da ideologia, o seu negativo, a sua contradição.”[5]
Através de fábulas — de duvidosa inocência — como a do Dinossauro Excelentíssimo, publicada em maio de 1972, ou de pequenas histórias de “desocupados”, Cardoso Pires dá voz à sua especial identificação com o país — uma espécie de amor rancoroso, como ele diz — e, com ela, atinge internamente as máscaras e contradições da grande ficção oficial que o discurso do salazarismo instituiu.
É nesse sentido que saudamos a escrita em liberdade de José Cardoso Pires. É por esse sentido que a ele dedicamos este seminário, pois ao longo de meu trabalho de pesquisa, em que a sua obra ocupa o espaço central, a todo instante releio (revendo-me) a verdade tão simples e tão difícil de sua frase:
Há mil maneiras de dizer liberdade e mil maneiras de a aprender, ...[6]
Interrompendo agora esta primeira parte (mas deixando essa frase em suspenso), passo ao desenvolvimento das duas outras seqüências que compõem esta comunicação. A primeira apresenta uma leitura da crônica “Café des Artistes”[7] , publicada em 1994, onde Cardoso Pires retoma uma Lisboa do final dos anos 40 e rememora a inquietação de jovens artistas que discutiam os destinos do país, enquanto buscavam construir um projeto que lhes permitisse criar uma nova expressão nas artes. A segunda parte é uma leitura do texto “A Charrua entre os Corvos”, que apresenta, em 1963, os contos reunidos no livro Jogos de Azar.
Esses dois textos escolhidos não são muito conhecidos, nem figuram entre as obras que mais referenciam o autor. Poderíamos dizer que são textos menores ou, mais precisamente, textos marginais se os compararmos aos grandes romances O Delfim, Balada da Praia dos Cães, Alexandra Alpha ou a Lisboa, Livro de Bordo.
No entanto, esta escolha não foi feita ao acaso, pois esses textos podem ser lidos como pólos de interlocução com outros textos, ou como imagens concentradas que permitem um outro mapeamento dos traços que singularizam a produção literária de José Cardoso Pires e a sua inserção na vida cultural e política do país. Passemos, então, à leitura do primeiro texto.
A crônica “Café des Artistes”, publicada no livro A Cavalo no Diabo, é mais um recorte condensado com que Cardoso Pires dá “sentido de vida” a um episódio da história cultural de Lisboa.
Éramos jovens e aquilo, sim, tinha o desmazelo de um café des artistes fora das coordenadas culturais da Lisboa do fim da guerra mundial. Café Hermínius, chamava-se ele. Resumia-se a uma porta estreita e a uma vitrina aberta para a Avenida Almirante Reis, algumas mesas povoadas de reformados a jogarem o dominó, jovens desempregados a pensarem o fumo do cigarro numa solidão muito lenta e contrabandistas menores a negociarem coisa nenhuma em dialeto de subentenda-se.[8]
Café Hermínius, “esse obscuro café” que não por acaso é nomeado Café des Artistes, era, antes de tudo, “uma porta estreita e uma vitrina aberta para a Avenida Almirante Reis.”[9] Mais precisamente, o Café Hermínius era uma espécie de refúgio para os habitantes que não tinham um lugar definido na cidade. Mais precisamente ainda, o Café Hermínius era o ponto de encontro de pessoas anônimas, habitantes incertos que viviam à margem dos grandes enredos da cidade. De um lado, os chulos, os contrabandistas menores e os reformados do dominó que se juntavam todos os dias para viver, como um jogo, a monotonia das mesmas histórias. Eles formavam uma espécie de sombra, de sobra esquecida nas margens da cidade. De outro lado, mais “fora das coordenadas culturais vigentes”, havia um grupo de jovens artistas
Que se interrogavam, em mesa à parte, sobre os destinos da geração a que pertenciam e as novas expressões com que procuravam descrevê-la na pintura ou no poema. Tinham vindo quase todos da Escola António Arroio — Pomar, Vespeira, Cesariny, Fernando Azevedo — e participavam da rebelião estudantil contra a ditadura do Estado Novo.[10]
Fazendo frente à ditadura do Estado Novo e recusando, como artistas, as “coordenadas culturais vigentes”, esses jovens posicionaram-se duplamente à margem para chegar aos caminhos “que os tornaram inconfundíveis.”[11]
Inconfundíveis porque escolheram um caminho de resistência que corroía as imagens oficiais, ao mesmo tempo que redimensionavam a própria imagem que tinham em relação à realidade portuguesa.[12] Esta foi, notadamente, a postura do grupo surrealista que muitos desses jovens vieram a assumir. José Cardoso Pires esteve próximo deles, mas apenas próximo.
Eu nunca me aproximei nem deixei de me aproximar dos surrealistas. Era companheiro do Cesariny, do Vespeira e do Pedro Oom desde há muito, e nos anos de contestação ao neo-realismo populista participei com eles na procura de novos caminhos.[13]
Participou, esteve próximo... mas a sua vida “a várias experiências”[14] era uma recusa à “integração conceituada”[15],
Aliás eu nunca me senti integrado em tertúlias ou em grupos, digo-lhe isto e não pense que o digo por gosto ou por individualismo [...] mas, não sei porquê, as rotinas literárias sempre me foram difíceis de cumprir. E as tertúlias ainda mais.[16]
[...] eu nunca cultivei qualquer espírito de grupo. Quando muito, talvez nunca tenha passado em toda a minha vida de um integrado marginal ou coisa que se pareça [...] Para aí, sim: Integrado e marginal [...] [17]
Como integrado e marginal, Cardoso Pires freqüentou o Café Hermínius, esse “café ignorado onde os marginalizados da cidade viviam lado a lado com artistas que, por si mesmos, se queriam marginalizados da regra e do gosto oficiais.”[18]
Colocar-se à margem da regra e do gosto oficiais é buscar um outro ponto de observação que os limites do realismo socialista e da arte panfletária não podiam abarcar. Colocar-se à margem é posicionar-se “para lá do real imediato”, em nome de um projeto que “procurava o sol da vida através dos fantasmas do real.”[19] Em outras palavras, é assumir um ponto de vista que não prescinde da leveza de que nos fala Italo Calvino. A leveza incita a uma mudança do ponto de observação para “considerar o mundo sob uma outra ótica, uma outra lógica, com outros meios de conhecimento e controle.”[20] Nesse sentido, a opção pela margem significa negar a arte de testemunho e a arte panfletária, para se posicionar no lugar inseguro (como são inseguras todas as margens), mas necessário a toda escrita que se constrói como um vôo livre e consciente.
“Com uma visão de mundo para lá do real imediato”, a arte nova de Cardoso Pires não havia de possuir uma cartilha precisa e de orientação segura para as novas rotas que ensaiava. Esta foi a sua conquista, a sua libertação. Situada na margem, a sua escrita revela, antes de tudo, um olhar interrogativo, a lúcida posição que vê a escrita como um exercício “para se completar, para se descobrir...”[21] e, ao mesmo tempo, como uma forma de “rebeldia, um isolamento obstinado para não se identificar com a escrita vigente nem com o establishment cultural.”[22] Daí porque, ao longo de sua vida, uma sua frase assume um relevo tão significativo:
Quantas asas pede um vôo que partiu em busca de um outro equilíbrio?
Esta indagação poderia funcionar como o segundo eixo significativo neste mapeamento da trajetória cívica e literária de José Cardoso Pires. Com esses dois tópicos, mais ou menos deixados em suspenso, eu passo agora à terceira parte de meu texto: A leitura de “A Charrua entre os Corvos”.
Em 1963 José Cardoso Pires reúne alguns dos seus primeiros contos e os reedita sob o título Jogos de Azar. São contos anteriormente publicados em datas diferentes: primeiro em 1949 e depois em 1952. A esses contos acrescenta o texto “A Charrua entre os Corvos”
Há anos um pescador da Fonte da Telha a caminho da Albufeira descobriu, em certo ponto da costa, uma charrua carcomida, apontada para o mar. Encontrou-a entre as ervas do areal, cravada a fundo e de rabiça levantada, como se tivesse ido longe de mais na sua tarefa de lavrar a terra e estacasse, num grande pasmo, diante do oceano. Os maçaricos e os corvos-marinhos cobriam-na de excrementos, a brisa salgada esfarelava-lhe o corpo de ferro.
À distância, o pescador em viagem julgou tratar-se de algum cadáver sobrevoado por pássaros vorazes. Mas quando se aproximou e reconheceu a charrua, olhou o mar, olhou o deserto de areia, olhou, enfim, a mata brava que se alongava por toda a costa, e perguntou a si próprio por que milagre aquele engenho de camponeses vencera a floresta e as dunas para vir morrer ali, entre os corvos do mar.[23]
Este é o início da “Charrua”. O desenvolvimento desse texto, gradativamente, vai abandonar o tom de mistério das primeiras páginas, para funcionar como uma “Visita à Oficina” , uma análise de “uma experiência literária já vivida” ou, como diz Cardoso Pires,
[...] uma oportunidade de confronto e de meditação sobre o artesanato do escritor, sobre o jogo de fortuna e azar em que se lança alguém quando descreve um pouco do seu tempo.”[24]
Para mim, o que na verdade distingue esse texto é a eficaz interpretação que Cardoso Pires faz dos contos desse livro a partir desse texto de apresentação. Isto é, o modo como interpreta a natureza “pouco heróica” que, a traço forte, marca a “vida” de quase todos os seus personagens. “São em grande parte histórias de desocupados”, nos diz o apresentador. São charruas entre corvos, nos sugere a apresentação.
O arado encalhado em praia de pescador pode ser visto apenas como a focalização detalhada de um pormenor com que o autor prende a atenção do leitor. Ele é responsável pelo tom de mistério. Mais do que isso, é uma falsa “isca” que aguça a imaginação para, finalmente, transformar-se em imagem condensada que interpreta os contos de outra maneira. Além disso, e ao mesmo tempo, essa imagem cifrada nos revela um pouco da estratégia do autor: o “Jogo de Azar” com que ele enfrentou o discurso organizado que por muito tempo encobriu os outros possíveis sentidos de uma charrua perdida entre corvos. O seu jogo de “fortuna e azar” evidencia, antes de tudo, um cerrado exercício de desconstrução de imagens de ocultamento ou de dissimulação. Mas esse processo não se revela numa linguagem direta, antes se constrói num jogo cifrado, cujo sentido vai sendo apenas pressentido num jogo de recusas e aproximações.
Nas primeiras sugestões interpretativas que o texto apresenta (num jogo de possibilidades que se multiplicam e se anulam), a charrua fora do lugar é associada a um “eco indecifrável”, mas capaz de sugerir imagens de identidade. Gradativamente essas imagens vão sendo desmontadas, ao mesmo tempo em que o arado abandonado vai, cada vez mais, ganhando o contorno de uma alegoria que, ao concentrar motivos dos textos seguintes, os elucida e emblematiza. A charrua torna-se uma imagem. Imagem que o autor desdobra para deixar claro que a margem habitada por esses personagens pouco heróicos indicia uma espécie de fome. Fome que,
[...] não é apenas um problema de sobrevivência, é uma questão de impossibilidade do exercício das capacidades do homem e do seu rendimento como tal.[25] [grifo meu]
Com essa leitura, o leitor abre mão dos ecos históricos sugeridos no início do texto, porque o autor, numa tomada de posição politicamente mais eficiente, abriu mão da grande metáfora que poderia condensar imagens do passado, para focalizar o país no presente, na situação mais evidente e imediata que a sua interpretação da charrua abandonada expõe:
Não a vejo como ilustração do espírito medieval, como instrumento insólito abandonado em território de pescadores. Nem tão-pouco como último destroço da moral dos lavradores, tão temerosa de progresso e tão apegada às hierarquias divinizantes. Não. Para mim a charrua lançada aos corvos é um exemplo figurado da amputação do homem, um testemunho de certa destruição que se exerce, não imediatamente sobre ele, criatura física, mas sobre os instrumentos que o rodeiam, sobre os gestos e sobre as manifestações de actividade que os tornam utilizável como homem. E isso é uma outra espécie de fome, uma outra destruição.[26] [grifos meus]
Analisando os mecanismos da “incompetência social”, Cardoso Pires atinge internamente o cerrado discurso da competência e propõe outros sentidos para a marginalizada vida daqueles desocupados que, como arado em praia de pescador, ficaram de fora, ficaram fora do lugar.
Com sua interpretação lúcida e comprometida com a democracia, leva ao limite as possíveis leituras, marcadamente ideológicas, que esse símbolo poderia ter, para destruí-las internamente e substituí-las, num trabalho de “clarificação”, por um discurso crítico que transforma “eco indecifrável” em “imagem significativa”.
E agora é o momento de recuperarmos os dois trechos que eu deixei em suspenso:
Há mil maneiras de dizer liberdade e mil maneiras de a aprender [...][27]
Quantas asas pede um vôo que partiu em busca de um outro equilíbrio?
Em relação ao primeiro é possível perceber as mil (ou mil e uma) maneiras de dizer e aprender a liberdade: elas estão inscritas nos textos de Cardoso Pires. O testemunho de sua vida e obra é prova mais do que evidente desse contínuo exercício.
Quanto à sua pergunta existencial, eu tenho a certeza de que jamais conseguirei responder-lhe. Penso, no entanto que essa pergunta subjaz ao vôo de todos aqueles que se arriscam a viver em liberdade.
Notas