Regina Zilberman
PUC-RS
Una vez, te acuerdas?, vimos a ocho o diez mozos reunirse y seguir a uno que les decía: Vamos a hacer una barbaridad! Y eso es lo que tú y yo anhelamos: que el pueblo se apiñe y gritando vamos a hacer una barbaridad! Se ponga en marcha.
Miguel de Unamuno[1]
O nacional — isso mesmo: um adjetivo no lugar de um substantivo — constituiu um dos principais apanágios de nossos intelectuais românticos. Historiadores da literatura de um país cujo nascimento haviam presenciado há pouco, eles pesquisavam material que pudesse responder pela até então indefinida poesia brasileira, posto que integrada à produção portuguesa. Gonçalves de Magalhães, em 1836, no “Ensaio sobre a história da literatura do Brasil” que escreveu para Niterói, revista que ele mesmo, em Paris, dirigia, denuncia, pelo avesso, o problema. Assumindo o encargo de redigir uma história para a literatura brasileira, como declara publicamente aos sócios do Instituto Histórico de Paris em 1834, admite que se tratava de “uma empresa difícil”.[2] Depois de quase dois anos consultando os “documentos esparsos”, chega a um resultado pífio, confessando, no “Ensaio”:
Aqui terminaremos a vista geral sobre a história da literatura do Brasil, desta literatura não no país nascida.[3]
Trinta anos depois, Gonçalves de Magalhães republica o “Ensaio”, com algumas modificações: altera o título para “Discurso sobre a história da literatura do Brasil” e adota a seguinte redação para a frase citada:
Aqui terminaremos a vista geral sobre a história da literatura do Brasil, dessa literatura sem um caráter nacional pronunciado, que a distinga da portuguesa.[4]
A mudança aponta para o conceito de nacional observado pelos românticos: trata-se de um caráter emanado de um certo espaço geográfico, a saber, o país onde aparece. É assim que encontramos aquela noção, seja entre os historiadores estrangeiros que lidaram com a literatura do Brasil — os mais notáveis sendo Almeida Garrett e Ferdinand Denis, cujos textos formadores foram publicados, ambos, em 1826 — seja entre críticos, escritores e intelectuais atuantes sobretudo no Rio de Janeiro, entre os quais reconhecemos os nomes de Joaquim Norberto, José de Alencar, Machado de Assis e Francisco Adolfo de Varnhagen.[5]
Para eles, o nacional desprende-se do país onde aparecem as obras culturais, com ênfase nas literárias, que o expressam e sintetizam, numa vinculação de reciprocidade e complementaridade. O nacional não se aloja no Estado, e sim na cultura, não é resultado do povo, e sim dos criadores, estabelecendo-se uma relação que, por efeito de sua enunciação, legitima, num mesmo movimento, o lugar de quem enuncia: os artistas, responsáveis pela formulação do conceito e pela revelação de seu caráter, são igualmente detentores de poder de produzi-lo e retratá-lo.
O resultado é circular, mas nem sempre eficiente: os que buscam o nacional nas manifestações da cultura, especialmente na literatura, são os mesmos que desejam torná-lo presente por efeito de seu trabalho; mas são também os mesmos que denunciam sua carência, encetando a corrida interminável atrás do principal objeto de desejo da vida intelectual do Brasil. Todos sabemos o que é o nacional na cultura e na arte, mas nunca o encontramos, desencadeando a história sem fim de uma procura insatisfeita.
Machado de Assis, no sempre citado “Notícia da atual literatura brasileira”, conhecido como “Instinto de nacionalidade”, diagnostica o problema e retoma a associação verificada antes em Gonçalves de Magalhães. Abrindo o estudo com o período notório e seguidamente reproduzido — “Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade” — afirma, na seqüência: “Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país”.[6] Também no texto de Machado, expressar a “nacionalidade” significa “vestir-se com as cores do país”, sendo o geográfico corporificação do espírito singular que distingue a pátria: “Interrogando a vida brasileira e a natureza americana, prosadores e poetas acharão ali farto manancial de inspiração e irão dando fisionomia própria ao pensamento nacional.”[7] O crítico rejeita a idéia, pois sua pretensão é a de substituir o dito “instinto” pelo “sentimento íntimo” de que cada escritor pode ser dotado, facultando-lhe mostrar-se “homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”.[8] Isto não significa, contudo, que não tenha flagrado o problema experimentado pelos contemporâneos, de que procurou escapar, no que obteve sucesso individual, sem, todavia, sensibilizar os companheiros a acompanharem suas escolhas.
Por causa disso, o diagnóstico de 1873 talvez valha para a literatura brasileira de antes e depois, já que o nacional continuou significando “vestir-se com as cores do país”, processo substitutivo talvez da falência do projeto coletivo de estabelecimento de um Estado-nação representativo de um povo, tal como a ideologia burguesa prometia e a sociedade capitalista ambicionava. Conforme propõe Florestan Fernandes, a história da revolução brasileira narra o fracasso da burguesia na tentativa de tomar o poder e modernizar a sociedade, desencadeando, também por este ângulo, a estrutura em espiral da retomada de projetos inconclusos por malsucedidos.[9]
A data em que a primeira edição do livro A Revolução Burguesa no Brasil apareceu é significativa: em 1974, o governo brasileiro falava em “distensão lenta, gradual e segura”, prometendo uma luz no final do túnel obscurantista em que o país estava mergulhado desde 1964, com mais intensidade depois de 1968, com a proclamação do AI-5, e de 1969, com a tomada do poder pelos militares da direita mais radical. No mesmo ano, a Revolução dos Cravos imprimia outro sentido ao verso escrito em 1973 por Chico Buarque de Holanda, que, no “Fado tropical”, sonhava ver o Brasil transformado num “imenso Portugal”.[10]
O nacional — ainda e sempre um adjetivo no lugar de um substantivo — tinha sido, depois de 1970, uma das pedras de toque do governo, que, montado em slogans como “Brasil: ame-o ou deixe-o”, abria as portas, aliás já arrombadas pelos presos políticos permutados por diplomatas seqüestrados e espalhados por vários cantos do planeta, para expelir os dissidentes e sugerir que os que ficavam eram mais brasileiros que os outros. O excesso de “eu te amo, meu Brasil, eu te amo”, versos cantarolados por Don e Ravel nas paradas de sucesso, acabou por nocautear o nacional, associado ao pior da repressão, à exclusão e à intransigência.
De certo modo, antes mesmo de as teorias pós-estruturalistas e pós-modernistas proclamarem a liquidação das grandes narrativas e começarem a suspeitar de conceitos totalizantes como os de nação e Estado nacional, o totalitarismo exercido pelos grupos detentores do poder no Brasil tratava de esvaziar essas idéias de qualquer conteúdo progressista e liberador. Esse, se desejado, talvez tivesse de provir de outro lugar, para os anos 70, especialmente depois da distensão, presenciarem a emergência de novo tipo de projeto nacional, que englobasse a perspectiva emancipadora que urgia providenciar.
O projeto, sem fugir à regra histórica, trouxe no bojo o adjetivo substantivado “nacional”, só que desta vez acompanhado por outro qualificativo, “popular”, formando a expressão composta, “nacional-popular”, em que se reconhecem formulações de Antonio Gramsci. O pensador italiano, vítima do fascismo italiano, foi traduzido para o português do Brasil na década de 70, e a difusão de suas idéias ajudou a camada intelectual a rediscutir o problema em pauta. Exemplar não apenas o ensaio de Carlos Nelson Coutinho, cujo conteúdo se expõe a seguir, mas a proposta, patrocinada pela FUNARTE e desenvolvida por pesquisadores da Universidade de São Paulo, “O nacional e o popular na cultura brasileira”, cujos resultados foram publicados, entre 1982 e 1983, pela editora Brasiliense, em seis volumes.
Carlos Nelson Coutinho traduziu dois dos livros seminais de Antonio Gramsci: Literatura e Vida Nacional e Os Intelectuais e a Organização da Cultura, publicados pela Civilização Brasileira; na coleção Fontes do Pensamento Político, organizada pela L&PM, de Porto Alegre, lançou Gramsci, contendo uma exposição de suas principais concepções sobre democracia, Estado e estratégia de luta partidária. Desse período é também o texto “Cultura e democracia no Brasil”, datado originalmente de 1977-1979 e colocado em obra de 1980, A Democracia como Valor Universal e Outros Ensaios.
O estudo aparece no quadro do temário geral do livro, que se volta à discussão das relações entre o pensamento marxista e a prática democrática. Antes da derrocada do bloco socialista no Leste europeu, mas dentro da moldura representada pela ascensão do eurocomunismo em países como a Itália, o autor está procurando refletir sobre as possibilidades de articular a tendência totalizante proposta pelo Estado comunista com o funcionamento democrático da sociedade, que não pode ser descrita desde uma ótica uniforme, massificante e homogeneizadora.
O “caso brasileiro”, como o autor o chama, apresenta algumas particularidades, especialmente se pensado a partir das ligações entre cultura e democracia. Primeiramente pelo que não afirma diretamente, mas deixa inferir: se a sociedade não é democrática, a cultura também carece dessa qualidade; depois, pela propriedade mais evidente e dolorosa da cultura brasileira: ela é produto da importação de componentes estrangeiros, adaptados aos interesses da classe social que os adota. Incorporada por uma camada dominante para quem a cultura tem tão-somente valor ornamental, ela assume essa condição e torna-se tão elitista, quanto supérflua. Revela-se mais interessante “quando ‘transplantada’ para o Brasil por uma classe progressista e anticolonial”; nesse caso, “uma corrente cultural avançada contribui para formar em nosso País uma consciência social efetivamente nacional-popular, contrária ao espírito da dependência.”[11]
Por aí entra o “nacional-popular”: ele quebra “o distanciamento entre os intelectuais e o povo, distanciamento que está na raiz do florescimento da cultura ‘intimista’ ou do elitismo cultural e que, no mais das vezes, não resulta de uma escolha voluntária do intelectual.”[12] Identifica-se aí a bem-comportada aplicação de um princípio exposto por Gramsci, que critica a Inteligentsia italiana do passado por não ter sabido “satisfazer as exigências intelectuais do povo”, mais precisamente, por não ter sido capaz “de se difundir até as camadas mais toscas e incultas, como era necessário do ponto de vista nacional” e ter-se “mantido ligada a um mundo antiquado, mesquinho, abstrato, demasiadamente individualista e de casta”.[13]
Construir, pois, uma “literatura popular”, título do capítulo em que aparece o citado trecho de Gramsci, significa empregar linguagem que aproxime intelectual e povo, as camadas populares que, no caso brasileiro, conforme Coutinho, “são freqüentemente ‘decapitadas’ e lutam com grandes dificuldades para dar uma figura sistemática à sua autoconsciência ideológica.”[14] O apelo ao nacional-popular patenteia o alinhamento dos intelectuais ao povo, ao lado de quem se revelam “‘intelectuais orgânicos’ das correntes populares”[15], emprego peculiar da noção ainda de origem gramsciana, já que o intelectual orgânico responde ao chamado da classe dominante, e não ao dos segmentos subalternos.
De todo modo, o nacional-popular resolveria vários dilemas da cultura brasileira:
— mesmo que nascido de uma proposta suscitada por um conceito transplantado, associa-se a um projeto “progressista e anticolonial”; por isso, contraria o “espírito da dependência”;
— como, para Antonio Gramsci, o nacional-popular corresponde, não a representações coletivas de manifestações características da totalidade geográfica, e sim ao que interessa às camadas subalternas, aqueles adjetivos substantivados deixariam de coincidir com a pesquisa, promovida por intelectuais e escritores, de criações literárias que tivessem expressado ou viessem a expressar a especificidade ao país;
— logo, o intelectual alia-se e comunica-se com o povo, entendido esse como camada popular, por oferecer-lhe a possibilidade de figurar sistematicamente “sua autoconsciência ideológica”.
— Por conseqüência, a cultura deixa de ser elitista ou “intimista”, propriedades vizinhas mas indesejadas ambas pelo intelectual. A superação do elitismo, aliás, constitui o principal desafio colocado aos produtores culturais no país:
A tarefa primordial dessa batalha ideológica, no Brasil de hoje, é precisamente a de contribuir para a superação do elitismo cultural e para uma transformação em sentido nacional-popular da cultura e da intelectualidade brasileiras.[16]
Pode parecer pouco, mas já é bastante: conferir sentido nacional-popular à cultura e ao pensamento brasileiro coloca-os na linha de frente da transformação, permitindo não apenas superar a tônica elitista, mas a pecha de ornamental, revitalizando-os por mostrarem-se úteis e voltados aos usuários, e não mero adorno efêmero e decorativo.
O raciocínio apresenta lógica e coerência; por outro lado, percebe-se que não foge ao projeto dos românticos, para os quais o nacional, representando o país, detinha papel substitutivo: já que não temos uma nação, valemo-nos de sua imagem simbólica, satisfazendo-nos com a máscara por faltar o rosto. O nacional-popular pode corresponder a outra máscara, mas o rosto continua ausente. Talvez nem exista rosto, mas o problema está em acreditar que uma máscara pode desempenhar o mesmo papel.
O projeto que a FUNARTE, através do Núcleo de Estudos e Pesquisas, financiou, e Marilena Chauí, Carlos Zilio, João Luiz Lafetá, Ligia Chiappini de Moraes Leite, Enio Squeff, José Miguel Wisnik, Jean-Claude Bernardet, Maria Rita Galvão, Carlos Alberto M. Pereira, Ricardo Miranda, José Arrabal e Mariângela Alves de Lima executaram, estava provavelmente calcado em princípios e busca similares. No seminário introdutório, Marilena Chauí parte da noção de nacional-popular, elaborada por Antonio Gramsci, e verifica seus efeitos, quando manipulada por Estados totalitários, como foram os do fascismo italiano e nazismo germânico. Ao estabelecer a ponte com os conceitos de Estado, nação e povo, parece pôr o dedo na ferida: essas idéias são também totalizações, cuja representação mais acabada é a língua, entendida como expressão coletiva. Ela conclui:
A nação só atinge o estatuto de realidade social, política, cultural e histórica através do e enquanto enunciado lingüístico. A nação só existe enquanto objeto de um discurso sobre ela e que a constitui enquanto tal.[17]
Nação e totalização, nação e discurso: essas formulações são desenvolvidas por autores conhecidos e difundidos a partir dos anos 80 e 90. Nos anos 70 e começos do 80, questionava-se, contudo, o totalitarismo, mas não se suspeitava de conceitos hoje tão pouco confiáveis como totalidade e continuidade. O nacional-popular, herdeiro do nacional tout court, parece padecer do mesmo mal, embora tenha fracassado enquanto projeto antes mesmo de passar pelo descrédito de que atualmente são vítimas formulações inteiriças como a que ele deixa transparecer.
Em tempos de descontinuidades e rupturas, ele parece uma idéia muito sólida para não se dissolver no ar. Contudo, não poderia, tal qual um cavaleiro roto, marginalizado e idealista, estampa de quixote em final de milênio, vir em socorro de uma dama, a cultura, agora que a globalização a ameaça e descaracteriza?
Quem diz globalização talvez pense em desterritorialização, porque, em ambos os vocábulos, está presente a abolição das fronteiras. A globalização despatrializa os meios de produção, porque, sendo economicamente conveniente e lucrativo, uma fábrica norte-americana pode-se deslocar para o Hemisfério Sul, sem se sentir diminuída ao colar um made in China, Indonesia ou Paquistan aos objetos manufaturados que distribuir aos mais distantes mercados do planeta. Nem os consumidores preocupam-se mais em portarem materiais de diferente procedência, falsos ou verdadeiros, mas também efêmeros e supérfluos, comportamento de que é sintoma uma recente propaganda da Rénault brasileira: o anúncio coloca o automóvel fabricado pela montadora do Paraná ao lado de objetos provenientes de diferentes geografias, todos compartilhando saudável igualdade quando utilizados pelas pessoas que ali se apresentam.
A globalização oferece, pois, igualdade, destituindo os nacionalismos de pretensas superioridades que já causaram intermináveis guerras e parecendo desafiar teorias consideradas obsoletas sobre primazias étnicas e excelências tecnológicas. Perdem-se a pátria e a identidade, e o sujeito transforma-se em cidadão do mundo, conforme promete outro reclame, agora o do Yázigy, que disponibiliza a aprendizagem de inglês para os que se habilitam àquela posição, encarada com naturalidade. Apetecem-lhe também a democracia e a superação do preconceito e do atraso, utopia concretizada por propagandas como as da Benetton, de um lado, aparentemente transgressoras ao desafiarem o poder da Igreja, retratarem a doença e a miséria e denunciarem os prejuízos raciais, de outro, contudo, oferecendo-se como realização dessas aspirações, portanto, substituindo o desejo e o esforço social por combater tais problemas.
Com tantas promessas, a globalização, corporificada na sua provável principal expressão cultural, a propaganda, toma o lugar do nacional, rejeitado, sem remorsos, para segundo plano; mas parece incorporar a qualidade desse último, a saber, a totalização, até de modo mais coerente, porque a ela nada se defronta: não existe alteridade para a globalização, porque, em termos conceituais, equivale ao tudo, o que sempre faltou ao nacional, mesmo o mais onipotente e monopolista, desejoso de engolir e suprimir o oponente. Misto de totalidade e igualdade, a globalização toma o lugar do ideal do comunismo, sociedade paritária, em que estariam excluídas as diferenças e os cortes. Em crônica recente, Luís Fernando Verissimo sintetizou o paradoxo:
Uma das tantas perversões da História nestes últimos anos foi que “O Capital” assumiu a retórica das melhores intenções socialistas. Nunca houve, pelo menos com este nome, uma Internacional Capitalista, mas todos os projetos universalistas deste evento hipotético poderiam se declarar triunfantes hoje. A especulação financeira se livrou dos seus algozes, o dinheiro se livrou dos seus grilhões, os capitalistas realizaram o ideal de todos os sonhos redencionistas e chegaram à sua pátria única, a do lucro. Quem disse que a utopia não é possível?[18]
Não é preciso tanto para sabermos quão falsa e ilusória é a igualdade oferecida pela globalização, embora seu feitiço pareça praticamente irresistível, canto de sereia oriundo da atração exercida pela idéia de um mundo sem fronteiras geográficas, de moeda única e estável. Nossos salários, porém, não se fixam em dólares ou euros, e os limites físicos proliferam, sintetizados em grades e separações que espelham a profunda e cada vez mais tensa divisão social. L. F. Verissimo que o diga:
Enquanto isto, trabalhadores de todo o mundo — a não ser os contemplados nos sorteios de vistos para entrar nos Estados Unidos — estão cada vez mais limitados por fronteiras nacionais, sem poder imitar o dinheiro e ir para onde se ganha mais.
Só que o nacional, desprestigiado e impotente, não consegue mais colar os fragmentos, reunir as peças, desenhar uma imagem que possa ocupar o lugar da máscara; com efeito, talvez sua melhor representação seja o fragmento e o mosaico, grudado de modo irregular e imperfeito.
Também por isso a globalização pôde se constituir a expressão mais recente da ambição de totalidade que fundou o conceito de nação, conforme o qual um segmento dominante representa o conjunto — a saber, o povo — e fala por ele. Pode agora, porém, prescindir da idéia de nação e seus correlatos, como nacionalismo, nativismo e caráter nacional, porque o substituiu por outro mais eficiente, onde, contudo, ainda está presente o que mais interessa: a aspiração à totalização, sem abrir mão do princípio metonímico, segundo o qual a parte responde pelo inteiro.
Eis por que não mais se pede à arte que seja nacional ou nacional-popular, pois o sistema que formulou o projeto fundador dessa exigência não têm mais lugar. Prescreve-se até que ela desterritorialize, intertextualize, estabeleça o diálogo intercultural para além das fronteiras geográficas. Não será talvez o caso de se agregar a tais reivindicações, outra vez, a proposta nacional, porque agora talvez seja o momento de ela representar a discordância e a renovação, a contracorrente ou o avesso da globalização?
Notas