Cultura e Democracia

Imagens do Brasil: Diadorim

Heloisa Maria Murgel Starling
UFMG

Em 1965, em entrevista que ficou famosa, realizada em Gênova durante o Congresso de Escritores Latino-Americanos, Guimarães Rosa insistiu na íntima afinidade entre narração e rememoração, vale dizer, entre uma atividade que articula a noção de experiência como objeto de uma construção e a exigência, muito humana, de resguardar o passado do esquecimento por intermédio da palavra: “nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso sangue narrar estórias; já no berço recebemos esse dom para toda a vida. Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que às vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel. Deste modo a gente se habitua, e narra estórias que correm por nossas veias e penetram em nosso corpo, em nossa alma, porque o sertão é a alma de seus homens. Assim, não é de estranhar que a gente comece desde muito jovem. Deus meu! No sertão o que pode uma pessoa fazer do seu tempo livre a não ser contar estórias?”[1] Publicado em maio de 1956, o romance Grande Sertão: Veredas traduz uma espécie de síntese desse projeto literário fundado na heteronomia do mito, no impulso ficcional de inscrever no cotidiano dos homens as possibilidades ainda latentes de uma determinada realidade, convidando-os a imaginar que as coisas no mundo poderiam ser diferentes do que realmente são.

Nesse convite à imaginação do possível ou, para usar os termos do próprio Guimarães Rosa, nesse esforço para extrair no horizonte do real “o que aqui se quer tirar: o leite que a vaca não prometeu”,[2] as fronteiras do fazer literário recuperam um ponto essencial da articulação entre história, política e ficção; e recuperam-no poeticamente, vale dizer, retomando o princípio que orientava a tarefa do poeta grego arcaico: conferir fama imortal às palavras e às façanhas humanas, transmitindo-a de geração a geração e obtendo para isto, tal como ocorria com os adivinhos e com os profetas, acesso às partes do tempo inacessíveis aos demais homens — o que existiu no passado, o que ainda não chegou a existir.[3]

Com efeito, a capacidade de tornar visível no mundo suas formas potenciais, própria do fazer literário, e a faculdade de atuar, de criar nesse mesmo mundo novas formas mais satisfatórias de vida, característica da política, estão interligadas; por um lado, devem suas existências à uma mesma fonte — a imaginação. Por outro lado, repartem a singular tarefa de inserir no espaço da convivência humana critérios e referências que, em si, ele não tem, produzindo condições para um atento e não premeditado enfrentamento do homem com a realidade do mundo que o cerca, sem que isso queira significar submeter-se mansamente ao seu peso.

De certo modo, esta capacidade de experimentar o mundo como realidade e como valor permite, inclusive, ao fazer literário provocar, por suas reordenações e invenções, uma dúvida radical sobre a substância mesma de que é feita a política — a fatalidade da ação e das determinações que a orientam. Não por acaso, insistia ainda Guimarães Rosa, “a vida também é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. E a gente, por enquanto, só a lê por tortas linhas”[4].

De fato, o caminho da ficção é torto ou enviesado, num duplo sentido: pelo lado da forma, “uma espécie de rede ardilosamente tramada para colher, no real, verdades que não se vêem a olho nu, e que, vistas, obrigam a reformular o próprio real”; e pelo lado da memória, produzindo um esforço retrospectivo de imaginação, orientado pela fantasia.[5] No dizer do velho Riobaldo Tatarana, personagem central de Grande Sertão: Veredas, trata-se de um esforço para presentificar o passado por um caminho “sem o razoável comum, sobrefalseado”, isto é, feito de situações únicas e rasgos isolados “como só em jornal e livro é que se lê”,[6] capaz de recriar experiências já ocorridas por meio de palavras dotadas de uma densidade tão intensa que provocam uma emoção atual.

Todas as vezes em que acontece esse esforço de rememoração, uma história irrompe, por assim dizer, em algum ser humano, o relato do ocorrido aí se detém e “uma narrativa composta, um parágrafo a mais, acrescenta-se aos recursos do mundo”[7] — ratificada pelo poeta ou pelo historiador a narração da história se integra à realidade dos homens, obtendo permanência e estabilidade. Nessa tentativa de caminhar para trás no tempo e chamar de volta ao coração o “desamargado dos sonhos” (GSV: 314), história, mito e poesia ainda se graduam “como matizes de uma mesma cor”[8] ainda registram os embricamentos possíveis entre as fronteiras do histórico e do literário, ainda produzem as condições para um esforço retrospectivo da imaginação criativa, baseada no trabalho da memória, que tem o mundo como horizonte, as imagens como técnica de deciframento e a linguagem como mediação.

Emerso desse território característico onde literatura, política e história encontram suas raízes, Grande Sertão: Veredas pode ser entendido, entre muitas outras possibilidades, como a surda tentativa de iluminar uma visão do Brasil e convertê-la em palavras, por meio da contemplação espantada de um mundo arcaico, longínquo, fechado sobre si mesmo, supostamente imóvel e mítico — o Sertão. Como conseqüência, o núcleo central do romance consegue realizar o trabalho de recriar, literariamente, os pontos de tensão e de ancoragem entre uma configuração histórica bem-determinada — as relações sociais e de poder consolidadas ao longo dos primeiros cinqüenta anos da República brasileira, especialmente durante a República Velha —, e as tentativas de transformação de uma comunidade territorial, lingüística, étnica ou religiosa numa república, vale dizer, numa forma de vida política duradoura, um espaço de interação de homens capazes de deliberarem livremente e em conjunto sobre questões que dizem respeito a um destino comum.

Ao longo desse processo, a revelação do potencial político de um mundo que nunca se apresenta por inteiro, e escapa sempre aos olhos de todos através dos meandros da linguagem e da escrita, parece desdobrar-se, metodologicamente, em Grande Sertão: Veredas, à maneira de um “gigantesco mapa alegórico”,[9] no interior do qual se encontram assinaladas longas seqüências de sinais indicadores de eventos, ao mesmo tempo caóticas e organizadas, reais e imaginadas, atuais e históricas — caminhos por onde a história, a biografia e a mitologia se articulam à experiência política e combinam seus fios de maneira inextrincável. Na prática, e seguindo um ritmo análogo ao do jagunço Riobaldo Tatarana e de sua gente, “vereda em vereda como os buritis ensinam”, varando “para após”(GSV:53), o mapa redesenha, literariamente, as trilhas da realidade histórica e da experiência política nacional por meio da utilização de determinados recursos de reconfiguração, questionamento e ruptura característicos da narrativa — como, por exemplo, os recursos de desconstrução, estranhamento, deslocamento e choque.[10]

Assim, como se desejasse compor uma outra nova espécie de toponímia para imaginar o país, o mapa de Grande Sertão: Veredas assinala tanto os fundamentos que compõem a natureza de uma forma característica da vida política que não se qualifica necessariamente por referência ao estado-nação — o republicanismo —, quanto os diferentes modos de descrever o Brasil nas possibilidades e limites dessa forma. Não por acaso, em ambas as situações, esse mapa está aberto sobre a constatação da existência de um vazio original instituinte da história do Brasil, uma espécie de marca primitiva de desterro que o projeto literário de Guimarães Rosa retrata, considera e avalia em, pelo menos, três perspectivas diferentes: a da fundação de uma comunidade política; a da inserção dessa comunidade no cenário agudamente contemporâneo de uma modernidade inconclusa; e, no caso que cabe explorar nos limites desse texto, a perspectiva da oportunidade de um povo, como o nosso, construir uma identidade comum.

“A gente viemos do inferno” (GSV:45), afirmava categórico o jagunço Riobaldo Tatarana, logo no início de sua narrativa em Grande Sertão: Veredas. Pertencemos ao inferno, purgamos nossas penas no Sertão: estamos atolados numa terra tumultuária e caótica, eternamente condenada à experiência do avesso, onde a luz solar traga e traduz as muitas sombras de um processo irrefreável de fabricação de desertos e a exuberância de uma paisagem majestosa e implacável mergulha a vida dos homens no abandono de uma história que se consome antes de se formar plenamente.

Evidentemente, essa tradição do inferno que a narrativa de Riobaldo retoma e reitera ultrapassa os limites de uma paisagem natural e humana arruinada, marcada pelo abandono, pela instabilidade e pela desordem.[11] Assim, não é necessário abismar-se nos “fojos do mundo”, entrar “aonde lá, era o sertão churro, o próprio mesmo” (GSV:356), para experimentar a sensação de estar dentro de uma epifania demoníaca — e conseguir enxergar, por exemplo, os moradores do povoado do Sucruiú, amontoados diante das casas “queimando pilhas de bosta seca de vaca” como fosse remédio, sem nada ter aparentemente em comum além da “fumaça acinzentada e esverdeada” (GSV:366) que subia vagarosa por entre o murmurar das rezas. Ver toda essa gente, confessava Riobaldo incrédulo, inumana pelo efeito da miséria abjeta e degradante espalhada por toda a parte, foi como pensar o “inferno feio deste mundo” (GSV:364).

De fato, para entender a força da presença dessa tradição infernal, talvez seja preciso deter-se na existência de homens profundamente solitários perambulando como condenados pela superfície da nação, homens tragicamente isolados de seus semelhantes e de si mesmos: “sertão é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade” (GSV:7). De fato, em todas essas cenas, vigora o princípio estrutural de sustentação do inferno dantesco: a descida ao horror até atingir um mundo ao avesso, sem medida nem ordem temporal, onde quem desce contempla, ao mesmo tempo, um espaço submundano fundado pela violência e habitado por demônios e decaídos, e o desejo intenso desses condenados purgarem finalmente suas culpas acedendo à memória humana através do acesso à palavra.[12]

Nesse sentido, o traço infernal mais resistente de uma produção literária como a nossa parece sobreviver no tenso movimento de alternância e complementariedade, divergência e equilíbrio que constitui o imprevisível da experiência brasileira — vale dizer, sobrevive na evidência de uma fratura produzida pela oscilação entre a realidade política e histórica de uma formação social e cultural precária, profundamente instável, móvel e irregular e a constante demanda pela elaboração de marcos destinados a colocar o país em perspectiva. Construído em torno desse dilaceramento de convicções, filiações e referências, o esforço para alcançar a figuração de uma imagem original do Brasil aponta uma maneira característica de se enxergar o país. Nos termos de Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, trata-se do reconhecimento do traço bovarista da identidade brasileira, construído com base na idéia de que “o país não pode crescer pelas suas próprias forças naturais: deve formar-se de fora para dentro, deve merecer a aprovação dos outros”.[13]

Seja como for, esse é um tema básico para compreender a natureza dos laços que unem o discurso literário ao processo de construção dos grandes modelos histórico-políticos de interpretação do Brasil contemporâneo. Não por acaso, em todas essas imagens, o Sertão de Guimarães Rosa é enunciado como uma das mais fortes representações do processo de construção da identidade brasileira, vestígio renitente de uma “essência original da nacionalidade” interiorizada entre a natureza e a barbárie. Na fronteira desse encontro, a tensão permanente entre o que se é e o que se acredita ser, entre a obsessão pelo enraizamento e a marca original do desterro, suscita um movimento de afirmação de gênese e identidade nacional que se organiza como uma ascensão, “como um nascimento do obscuro ao claro, da barbárie à civilização, do velho ao novo, do atraso ao progresso, do passado ao futuro, do sub ao desenvolvimento, do olvido à lembrança, da tirania à democracia”.[14]

Mas não apenas isso. Em diversos momentos da história da interpretação do Brasil, irrompe sob a forma de um salto esse movimento de ascensão “em busca de um eu que passou e nos espera, de uma outra margem, de uma ilha afortunada que não sabemos qual seja, e cujo olhar já cego para as coisas desse mundo nos encara com sua ironia civilizadora”[15]. Um salto destinado a encurtar enormes distâncias com o objetivo de alterar a visão do povo e do país, uma espécie de promessa de aceleração do tempo destinada a mobilizar as condições de ruptura necessárias para a conclusão dos processos de mudança social que levam ao moderno.

A rigor, é na forma desse movimento de passagem do Sertão para a cidade, do espaço arcaico, em suas múltiplas gradações, desgarrado de qualquer temporalidade, para o espaço urbano, imerso no presente e numa promessa de modernidade, que se arma uma das mais expressivas matrizes temáticas de interpretação da obra de Guimarães Rosa, de dimensão histórica e/ou sociológica.[16] Talvez sua melhor tradução possa ser apontada na imagem de ambivalência que constrói sobre o Sertão e seus opostos, perigosamente próxima de uma leitura sobre um país que se supõe contrastado, dividido por uma fórmula bifronte entre duas realidades conflituosas — um país carregando um destino de duas caras, como já sugeria Mário de Andrade ainda no final dos anos 20.[17]

Assim na dualidade do destino desse país, a categoria Sertão é resultado da convicção de um Brasil quebrado pelo reconhecimento de que, de algum modo, falta alguma coisa nessa geografia imaginada que é a nação, existe algo lá que ainda não está terminado. Uma espécie de paisagem original em duplicada, o Sertão é, nesse caso, uma imagem espacial e simbólica inquietantemente vazia, de contornos e tonalidades previamente demarcados por leituras antagônicas: em uma delas, a mais conhecida, Sertão representa a força primitiva de uma região ainda em trânsito entre natureza e cultura, dominada pela resistência ao moderno e imersa na tradição; em outra imagem, o sinal se inverte e o Sertão preserva algo da gênese da nação produzindo, se não um gesto, um lugar fundador na cena imaginária da nacionalidade — uma espécie de começo histórico marcado não mais pela chegada do português e pela ocupação do litoral, mas pela conquista de sua própria e interminável vastidão interior.[18]

Evidentemente, as dicotomias que marcam a imagem do país bifronte deságuam, de pronto, na oposição entre formas de ordem social estruturalmente distintas mas de ocorrência simultânea: comunidade/sociedade, rural/urbano, modernidade/tradição. Como resultado, essa mesma imagem aponta para a precariedade da vida política brasileira, indicada em pelo menos três caminhos característicos: um, na crença de que o Estado deve assumir a tarefa de transformar o vazio e organizar a nação; o outro, na fragilidade dos laços que definem a idéia de público e relacionam as figuras políticas do indivíduo e do cidadão; por último, na impiedosa vulnerabilidade da relação entre o poder público e a sociedade, sempre orientada por uma combinação de repressão e paternalismo.

Entretanto, em qualquer um desses caminhos o Sertão permanece como domínio público degradado, um mundo de espelhos invertidos onde aportam homens profundamente solitários, cenário de uma terra ainda por conquistar e sempre eqüidistante em relação ao poder do Estado e aos projetos de modernização engendrados no decorrer da história republicana brasileira: “Sertão é onde os pastos carecem de fechos”, insistia, preciso, Riobaldo; “onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus arredado do arrocho de autoridade” (GSV:7) — um mundo onde tudo ainda está por fazer e, seu avesso, o lugar do desterro, onde uma grande oportunidade se perdeu irremediavelmente.

Mas essa é também uma imagem ao avesso que afirma determinados signos para indicar outros e faz do registro das coisas deixadas para trás seu entorno espacial e temporal: “Sertão: estes seus vazios” (GSV: 29), adivinhava o velho Riobaldo Tatarana operando sua rede narrativa no tenso esforço de encadear palavras umas nas outras para debruçar-se sobre esse vazio da experiência nacional brasileira, não com o objetivo de conseguir superá-lo positivamente por meio de um conteúdo que lhe seja oposto e supra a decadência, mas para contemplar demoradamente a marca de seu avesso — o reflexo instável e incerto da trajetória de um país que parece estar ao mesmo tempo mergulhado na modernidade e emerso dela.

Um país cuja população, por conseqüência, parece habitar uma zona limítrofe onde as relações humanas remetem à precariedade, à intermitência e à reviravolta, e cujas fronteiras encontram-se perpetuadas pelo embaraçamento das referências, pela confusão dos registros étnicos e culturais, pela produção de híbridos, pelo entrecruzamento do vivido e da ficção, pela mistura do sagrado e do profano, sem que uma clivagem radical venha a separar qualquer um desses termos.[19] Ou, talvez, Sertão seja outra coisa: a imagem prismática de um país em vias de desaparição a escapar por entre os dedos de Riobaldo, queimando vidas que nunca se formam plenamente — subúrbio do moderno colocando-se de viés sobre a história do Brasil para desatar suas secretas e interditas afinidades[20]

E, para revelar, num golpe súbito, a continuidade, o entrecruzamento, a contradição e a sobreposição daquilo que parecia ser, no caso brasileiro, apenas uma realidade social dicotômica e contrastada.[21] De fato, na narrativa do velho Riobaldo, o Sertão vai riscando, aos poucos, toda essa extensa superfície dividida da Nação para fazer aflorar nela uma espécie de risca terceira que coloca em causa os limites entre os dois brasis: o país litorâneo, urbano, que participa das benesses da moderna civilização capitalista ocidental e o outro, excluído desse processo; ou ainda, o Brasil profundo, genuíno, mítico, cerne de uma pretensa identidade nacional e sua antítese, o litoral, supostamente contemporâneo, lugar de aparência e cópia reverberando uma cultura de elite alienada de si própria.

Nesse lugar em que o Brasil está por um triz, a narrativa do velho Riobaldo recompõe o significado da idéia de margem, fronteira do reconhecimento de uma identidade sem garantias e sem limites certos. Nos termos de Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, trata-se de identificar a imagem de um país dilacerada pelo peso de uma ausência: ausência de si, a procura de uma identidade que, se de fato há, está à deriva, provocando, como resultado, uma tensão permanente entre o que se é e o que se acredita ser, entre a tentativa de simular que é alguém e a dolorosa redução à condição de ninguém.[22]

A rigor, trata-se de identificar a imagem do país com um certo tipo de extravio, intui Riobaldo, como o que esconde e protege dos olhos de Diadorim o absurdo de sua própria condição; ou, como uma forma específica de submissão da mente, uma espécie de obstinação lógica que arrasta consigo todo o Sertão, característica de indivíduos que, feito Diadorim, por algum motivo, foram excluídos de qualquer dimensão do mundo comum, político, inscrito no discernimento das opiniões, dos valores e dos sentimentos compartilhados. Afinal, foi por engano — ou não foi? — que Diadorim consumiu sua vida nessa recusa rígida do mundo, tendendo, por um lado, a tomar sua própria subjetividade como referência exclusiva de verdade e julgamento e, por outro lado, a levar a mascarada de sua feminilidade até o limite de um vazio intolerável:[23]“O senhor lê. De Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins — que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor...” (GSV:565)

Estranho destino o de Diadorim, que, ausente a si mesma, “é ela e mais que ela própria”[24], senhora de um poder emblemático que se exerce como jogo de sedução, inclusive sexual, e desemboca na fantasmagoria, fazendo de si mesma simulacro, imagem e iluminação. Destino equívoco que atravessou o Sertão como um flagelo vindo, não do exterior, mas de dentro, para expor sua realidade instável, mutilada, cotidianamente submersa no desconhecido e no imprevisível.

Destino que incidiu sobre essa realidade já como lembrança, reconhecia também Riobaldo, ao final de sua narrativa, como se o desaparecimento, a condenação ao efêmero, fosse a condição determinante para Diadorim ser e cumprir sua tarefa fantasmática — uma luz singular que ilumina, com seu brilho estranho, o tempo presente do Sertão e que se apaga, deixando entrever na claridade aquilo que a condenou, seu outro e seu contrário: a busca de uma identidade primeira e recalcada que se abre sobre a angústia de uma gente que ignora quem se é e o que se é; o desejo de contemplar essa identidade recoberta e deslocada e a dolorosa percepção do vazio que a institui; o medo e o fascínio diante da brutalidade original com que essa identidade foi entretecida.

“O Urucuia é ázigo” (GSV:556), afirmava o velho Riobaldo, um rio singular e único como os olhos verdes de Diadorim, exprimindo a solidão trágica de quem habita permanentemente nas bordas, margens de dispersão, explosão e fronteira entre mundos de diferenças sobrepostas, onde a alteridade se manifesta na multiplicidade de contatos com o outro até atingir a diferença radical: em lugar de outro homem, o outro do homem.[25] Zonas limítrofes entre identidade, substância e permanência, caos e violência, punição e encantamento, os olhos de Diadorim expressam a determinação de quem já não tem nada a perder, desejam empurrar para longe a guerra e a destruição e revelam, tragicamente, sua afinidade irrevogável com a morte: “Tenho meus fados. A vida da gente faz sete voltas”, explicou certa feita a Riobaldo. E completou, com voz sucinta: “A vida nem é da gente...” (GSV:145)

Entretanto, há, na afirmativa de Diadorim, a medida de uma identidade implícita e cruel, fruto dessa onipotência de quem nasceu sem nada a perder, dessa pretensão feminina de ser também homem sem deixar de ser mulher, pretensão que ela pagaria duas vezes com a morte: a morte física do corpo e a morte de um reconhecimento por parte de Riobaldo. Com efeito, só quem ama, como Diadorim, é capaz de se fazer homem para ser ainda mais digna do amor, e fazer de seu amor o dom maior, enobrecido pelo sacrifício. Simultaneamente, porém, é no momento em que sustenta sua posição de homem diante de Riobaldo e luta, ainda assim, com toda determinação, para ser correspondida, que a virilidade de Diadorim revela o mesmo traço que marca sua feminilidade: imaginação, desmesura, atrevimento, intrepidez, crueldade, cólera, tenacidade, inteligência, extravio.

Dito de outra maneira: é no momento em que transforma seu destino imposto em um destino intensamente desejado, que Diadorim passa a dar conta das possibilidades de identificação e de deslocamento dos atributos e posições tidos como masculinos. Assim, livre para se desenvolver como homem — isto é, como protagonista, como sujeito da ação que se realiza publicamente — a Diadorim cabe, a partir de então, traduzir numa linguagem potencialmente política[26] os termos dessa transformação: de um lado, é evidente, trata-se de uma conquista de direitos, a recuperação de alguma coisa que de fato lhe pertence e de que foi levada a se privar; de outro lado, porém, se é impossível roubar a feminilidade a Diadorim, essa impossibilidade coloca em questão a própria identidade masculina como representação de um dispositivo discursivo ou de uma categoria mobilizadora através da qual o mundo pluralista da política pode vir a ser reduzido a uma fórmula homogênea.

Como conseqüência dessa interpenetração dos territórios masculino e feminino, ao assumir seu destino Diadorim desloca o sentido daquilo que tem como medida a vida de cada um, e aquilo que tem o mundo como medida — o doméstico e o social, o público e o privado, o subjetivo e o intersubjetivo. Na realidade, trata-se de um deslocamento essencial para sugerir os termos de uma igualdade que se funda no reconhecimento de uma mínima diferença — a única que separa homem e mulher. E que, precisamente por ser mínima e aproximar demais os territórios, se não for reconhecida, transforma o outro em alvo de discriminação e intolerância.[27]

Quem ama vê fantasmas, lembrava o velho Riobaldo, vazios contornados de significados, visíveis em sua vacuidade. Vazios que revelam a origem de seu caráter dúbio, ao mesmo tempo, ilusão de possibilidades e iluminação, projetados sobre a narrativa, sobre o tenso esforço de Riobaldo para repisar na memória essa terra de experiências extremas sem jamais conseguir capturá-la numa definição única, literal, completa, formalmente adequada. Por aí também se entende a importância que esse velho Riobaldo confere à narração, a essa palavra que ultrapassa o silêncio de uma vida não vivida, uma vida que findaria fracassada não fosse ele contar sua aventura, viver o vazio insuportável que o habita, levar Diadorim consigo para não morrer, também ele, em Paredão. A rigor, essa é sua herança e consolo: narrar uma história sobre a periferia do mundo, uma terra que se já perdeu o tempo de todas as chances, ainda conserva a esperança de encontrar passagens em meio às suas ruínas.
Travessia.

 

Notas

  • 1 Günter Lorenz. “Diálogo com João Guimarães Rosa”, em Eduardo Coutinho (org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1983. p. 69.
  • 2 ROSA, João Guimarães. Tutaméia. In: Ficção Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 519.
  • 3 Sobre essa dupla visão comum ao aedo, ao adivinho e ao profeta, ver: Jean Pierre Vernant, Mythe et Pensée Chez les Grecs. Paris: Maspéro, 1965.
  • 4 ROSA, João Guimarães. Tutaméia. Op. cit. p. 519.
  • 5 Leyla Perrone-Moisés, “A criação do texto literário”, em Flores da Escrivaninha, op. cit; Charles Baudelaire, “O pintor da vida moderna”, in: Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996.
  • 6 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 21. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 129. Para maior facilidade das referências bibliográficas dessa obra, será utilizada daqui em diante a forma abreviada (GSV), seguida pela indicação do número da página referente a essa edição.
  • 7 Hannah Arendt. “Sobre a humanidade em tempos sombrios; reflexões sobre Lessing”, em Homens em Tempos Sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 28.
  • 8 Para pensar a importância dos mecanismos de rememoração na constituição desse núcleo narrativo comum à história e à literatura, e sua articulação com o mundo político, através do significado dado pela palavra ao acontecimento, ver: Walter Benjamin. “O narrador”, em Textos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 65; Hannah Arendt. “Sobre a humanidade em tempos sombrios; reflexões sobre Lessing”. op. cit.
  • 9 Willi Bolle. “Grande sertão: cidades”. Revista USP, 24 (1994-5). p. 91.
  • 10 Sobre os recursos próprios a esse núcleo narrativo comum à história, à política e à literatura, ver especialmente Walter Benjamin. “Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo”, em Obras escolhidas. op. cit. vol. III; Willi Bolle. Fisiognomia da metrópole moderna. São Paulo, Edusp, 1994; Rainer Nägele. “The poetic ground laid bare (Benjamin reading Baudelaire)”, em David S. Ferris (org). Walter Benjamin; theoretical questions. Stanford, Stanford University Press, 1996.
  • 11 Como ocorre, por exemplo, na narrativa de Euclides da Cunha, onde o tema das ruínas precoces – “eterno retorno da natureza caótica e violenta sobre o tempo histórico dos empreendimentos civilizados da humanidade” – aponta para a condenação desses últimos ao jogo tumultuário e bruto “dos elementos, ao choque babélico entre culturas descompassadas em suas paisagens e épocas e ao encadear trágico de fracassos e incompletudes”. A esse respeito, ver: Francisco Foot Hardman. “Brutalidade antiga: sobre história e ruínas em Euclides”. Estudos Avançados. vol.. 10, nº 26, jan-abr 1996. P. 294; Alfredo Bosi. “Céu, inferno”, em Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo, Ática, 1988.
  • 12 Flávio Aguiar. “Visões do inferno ou o retorno da aura”, em Adauto Novaes (org.), O olhar. São Paulo, Companhia das Letras, 1988; Carlo Salinari. Profilo Storico della Letteratura Italiana. Roma, Riuniti, 1972. vol. 1, p.98ss; Ernst R. Literatura Européia e Idade Média Latina. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1957. P. 374ss.
  • 13 Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, 1994. p . 125; Olgária C. F. Matos. “Construção e desaparecimento do herói: uma questão de identidade nacional”. Tempo Social, 6, (1995). p. 83-90.
  • 14 Flávio Aguiar. “Visões do inferno ou o retorno da aura”. op. cit. p. 324
  • 15 Flávio Aguiar. “Os enredos da cultura brasileira”. Revista do Brasil. 4, (1985).
  • 16 Ver, por exemplo, Walnice N. Galvão As formas do falso; um estudo sobre a ambigüidade no Grande Sertão: Veredas. op. cit; Davi Arrigucci Junior. “O mundo misturado; romance e experiência em Guimarães Rosa”. Novos Estudos, 40 (1994); Ligia Chiappini. “Grande Sertão: Veredas – a metanarrativa como necessidade diferenciada”. Scripta, 3 (1998).
  • 17 Gilda de Mello e Souza. O Tupi e o Alaúde. São Paulo, Duas Cidades, 1979.
  • 18 Para uma reflexão crítica sobre essa tendência de se pensar o país recorrendo-se a polaridades que expressam contrastes e/ou oposições e sua marca na imaginação social brasileira ver, especialmente: Nísia Trindade Lima. Um Sertão Chamado Brasil. Rio de Janeiro, IUPERJ; Revan, 1999; Candice Vidal e Souza. A Pátria Geográfica: Sertão e Litoral no Pensamento Social Brasileiro. Goiânia, Editora da UFG, 1997; Janaína Amado. “Região, sertão, nação”. Estudos Históricos, 15 (1995).
  • 19 Serge Gruzinski. “Do barroco ao neobarroco: fontes coloniais dos tempos pós-modernos. O caso mexicano”, em Lígia Chiappini & Flávio Aguiar (org.), Literatura e História na América Latina. São Paulo, Edusp, 1993; Peter Osborne. “Modernity is a qualitative, not a chronological category”, em Barker, F & Hulme, P & Iverson, M. (orgs.) Postmodernism and the Re-reading of Modernity. Manchester, Manchester University Press, 1992.
  • 20 Para essa relação das periferias como sendo a experiência de um limiar, ver: Olgária C. F. Matos. “Drama barroco: topografias do tempo”. Ver também: Walter Benjamin. “Exposés”, em Paris, Capitale du XIX Siècle: Le Livre des Passages. Paris, Les Éditions du Cerf, 1997.
  • 21 Para uma análise do sertão de Guimarães Rosa como esse lugar de dobra deslizando entre significante e significado, ver: Ettore Finazzi-Agrò. “A força e o abandono; violência e marginalidade na obra de Guimarães Rosa”, em Francisco Foot Hardman (org.), Morte e Progresso: Cultura Brasileira como Apagamento de Rastros. São Paulo, Unesp, 1998; Ettore Finazzi-Agrò. “A cidade e o deserto: (des) caminhos urbanos no Grande Sertão”. Brasil/Brazil (1998); Willi Bolle. “Grande sertão: cidades”. Revista USP, 36 (1994-95).
  • 22 Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. op. cit.
  • 23 Sobre a feminilidade como máscara, ver: Maria Rita Kehl. “A mínima diferença”, op. cit.
  • 24 Numa tentativa de aproximação com o sentido atribuído por Nicole Loraux a Helena de Tróia. Nicole Loraux. Les Experiénces de Tirésias: le Féminin et l’Homme Grec. Paris. Gallimard, 1984. p. 234.
  • 25 Jean-Pierre Vernant. La Mort dans les Yeux. op. cit; Suely Rolnik. “À sombra da cidadania: alteridade, homem da ética e reinvenção da democracia”, em Maria Cristina R. Magalhães (org.). Na Sombra da Cidade. São Paulo, Escuta, 1995.
  • 26 No sentido de sinalizar um desejo de mudança das estratégias do corpo político que parte da esfera privada mas não pode ser adequadamente discutido no seu interior. Hannah Arendt, Rahel Varnhagen; a vida de uma judia alemã na época do romantismo. op. cit; Nicole-Claude Mathieu. “Banalité du mal et ‘consentement’: des non-droits humains des femmes”, em Marie-Claire Caloz-Tschopp (org.). Hannah Arendt, la “banalité du mal”comme mal politique. op. cit. vol. 2; Mary G. Dietz. “Hannah Arendt and feminist politics”, em Lewis P. Hinchman & Sandra K. Hinchman (org.). Hannah Arendt; critical essays. op. cit.
  • 27 Para uma reflexão sobre o masculino e o feminino nos termos dessa interpenetração original dos territórios, e suas conseqüências no âmbito da cultura ocidental moderna, inclusive no campo literário, ver especialmente: Maria Rita Kehl. A mínima diferença; masculino e feminino na cultura. op. cit; Maria Rita Kelh. Deslocamentos do feminino; a mulher freudiana na passagem para a modernidade. São Paulo, Imago, 1998; Sigmund Freud. “O mal-estar na civilização”, em Freud. São Paulo, Abril Cultural, 1978.