Cultura e Democracia

O Brasil ao alcance de todos: imagens da nacionalidade e comemorações dos 500 anos do descobrimento

Eneida Leal Cunha
UFBA

1. A Nação singular

Na produção discursiva que, entre as décadas de 30 e 70 do século XIX, promove a construção cultural da nacionalidade — compondo, como queria José de Alencar, a alma da Pátria — podem-se flagrar as estratégias de homogeneização primordiais, necessárias mas nunca suficientes, à existência da Nação moderna: a reprodução no tempo da continuidade física, territorial, do Estado Nação, a constituição de um tempo plano, ininterrupto, consistente, que funde origem e presente nacional[1].

Simultânea e complementar à produção desse tempo nacional homogêneo e permanente, os discursos empenhados na constituição da nacionalidade estão compelidos a fazê-lo também sob a pressão e a lógica de uma heterogeneidade, no sentido de que a nação só pode se constituir através de uma relação de contraste, de oposição ou de diferenciação ao não nacional, ao seu exterior. Trata-se de uma operação complexa porque a constituição da especificidade ou da particularidade nacional precisa manter dentro de si, como sua substância última, um universal, que a integra à sociedade humana mais larga, à civilização ocidental que historicamente nos marca, precisa simultaneamente auto-identificar-se como diferença e como o Mesmo.

A nacionalização dos indivíduos, a terceira operação — a mais visível e duradoura, no sentido de inacabável — fez-se por eleição e, seu corolário, por exclusão. Escritores do século XIX plasmam a comunidade possível, as imagens positivas e negativas de “brasileiros” e “brasileiras” que devem ser distribuídas aos indivíduos, para que se reconheçam como tais. Principalmente, no século XIX, fixam-se as estratégias discursivas de recalcamento da evidência histórica da separação, promovendo as versões aceitáveis do “romance irresistível”[2], na composição social de uma nacionalidade com matriz colonial e escravocrata, ou, dito de forma mais aguda, formada pelo exercício regular da dominação, reproduzido na prática de uma sexualidade interétnica.

Firmar a continuidade espacial, homogeneizar o tempo e “produzir o povo” ou produzir uma “etnicidade fictícia”[3] são as operações discursivas básicas que produzem a Nação. Sabemos por demais a esta altura o lugar (ou o não lugar) da enorme população africana ou afro-descentente, escrava ou já liberta, nas narrativas literárias brasileiras do século XIX. Quanto mais tendente à fundação mítica for a narrativa da nacionalidade, mais ausente o negro; quanto mais investida na reprodução do cotidiano social, mais expostos os estereótipos produzidos não só sobre sua subalternidade como sobre a sua periculosidade, sobre os efeitos de degradação e degenerescência que decorrem da sua intimidade no cotidiano familiar escravista[4].

Entre o final do século XIX e o fenômeno atual que contemplamos, a Nação não esteve menos no centro dos investimentos literários brasileiros. Embora seja permanente a ‘compulsão cultural’ de narrá-la, [que] se alimenta da [sua] impossível unidade […] como força simbólica”, como afirma Homi Bhabha, os modos de conceber, de referir-se e de avaliar a nacionalidade são sempre outros.

O segundo grande investimento da literatura brasileira na construção cultural da nacionalidade está no conjunto de discursos e práticas que, a partir da data emblemática de 1922, reencenam o Brasil movidos pela vontade múltipla de conhecer, completar, corrigir ou reverter as imagens instituídas do país e de, simultaneamente, modernizá-lo e atualizá-lo. Promovem, portanto uma outra emergência, diferida, daquelas mesmas operações de construção cultural da nacionalidade flagradas no século XIX, as quais são imprescindíveis tanto à narrativa da Nação como a qualquer outra narrativa: as operações com o espaço, com o tempo e no delineamento dos agentes.

A continuidade territorial plasmada reaparecerá fraturada pelas distâncias geográfica, social e cultural.[5] A etnicidade dupla, fundacional, ou a etnicidade múltipla, negativamente resposta como mestiçagem ao final do século passado — o “todos em Um” ou “todos com Um”, necessário à Nação — reaparece, como em Macunaíma, rasurados por uma operação simbólica (e aritmética) diversa, como o “Um em (pelo menos) Três”, ou seja, abre-se o espaço literário, ao menos na boa consciência do escritor, para uma representação não denegrida do negro (o prejuízo da sonoridade, aqui, é proposital e menor do que o efeito que desejo; não denegrir o negro — é o nosso impasse inscrito já na língua). O reconhecimento positivo da diversidade racial e étnica é precursor de um dos mais fortes aspectos da revisão das imagens da nacionalidade que são empreendidas pelo ou a partir do modernismo, toda ela tendente a explorar a diversidade daquilo que ficara reunido nas narrativas primordiais oitocentistas.

Articuladamente às novas visões, problematizadas, do território e do corpo da nação, o modernismo produz também o seu modo peculiar de firmar a temporalidade nacional, enfrentando o desafio de conciliar o ímpeto renovador com a tradição herdada, principalmente com o passado colonial. E o faz com estratégias diversas. Importa aqui a solução provida por Gilberto Freyre, que é parte da nossa herança modernista; em Casa-Grande & Senzala (1933) — mas não só — neutraliza-se o estigma da herança colonial e escravista que paralisara interpretações anteriores do país, ressaltando as vantagens da miscibilidade ou da plasticidade da colonização portuguesa e a convivência racial daí resultante. O conseqüente elogio da miscigenação significa um sensível avanço, em relação ao sentido anterior de degradação e de inviabilidade civilizacional da nação mestiça, mas hoje não podemos deixar de perceber — e com algum desconforto — a quem interessa preservar essa interpretação pacificada do país.

2. A distribuição da Nação

Desde a bibliografia mais clássica sobre o romance moderno que se firmou a compreensão do nexo entre o seu surgimento e o desenvolvimento não só das técnicas de impressão, mas da imprensa. Esta é também a origem histórica da nacionalidade moderna, como Gellner afirma: o “homem nacional” “requer uma fábrica especializada. O nome dessa fábrica é um sistema nacional de educação e de comunicações. Seu único guarda protetor é o estado”[6]. Benedict Anderson — a referência mais constante para a reflexão contemporânea sobre a nação — também ressalta a importância do desenvolvimento da palavra impressa como base para a emergência e a difusão da consciência nacional[7].

Se o Estado Nacional monárquico pôde dar-se como legítimo, nos meados do século XIX, constituindo-se para uma comunidade mínima — a população letrada —, mas a fração que importava dentro de uma ordem social escravista, patriarcal, profundamente hierarquizada e excludente, já no final daquele século a formulação de narrativas e imagens da nação republicana se constituem por um investimento intenso na produção visual — os monumentos, as pinturas, toda ordem de símbolos que, no trabalho de “formação das almas”[8], ultrapassassem os limites da pequena fração letrada da população.

Os escritores do modernismo estão cientes do impasse da distribuição social da Nação que desenham, e lidam com ele de forma ambígua; por um lado, exercitam uma linguagem mais próxima da coloquialidade ampla, mas, por outro, ao menos de início, não podem prescindir da renovação estética e de uma experimentação que tornam “o seu biscoito fino” inacessível ao destinatário no exterior de um sofisticado sistema de letramento. Quando se intensifica o “projeto ideológico” do modernismo,[8] a compulsão à comunicabilidade molda uma linguagem ainda mais aderida à experiência cotidiana, inclusive em suas nuanças regionais, busca também as formas mais tradicionais de narrar; ao mesmo tempo, o “projeto ideológico” põe esses recursos a serviço da narrativa de um quadro amplo da sociedade que explicita as separações e tensões de classe, embora o faça a partir de um lugar social que é sempre o mesmo — uma elite, no mínimo, intelectual.

“Enquanto isso”,[10] o Estado Nacional brasileiro desenvolve a sua aparelhagem de comunicação de modo a atingir um espectro cada vez mais amplo da sociedade. Nas décadas de 30 e 40 o governo Getúlio Vargas multiplica e sedimenta o sistema de rádio no Brasil — o principal veículo de propagação, pelo Estado, de uma nacionalidade frontalmente oposta às versões do país produzidas pelo modernismo. “Enquanto isto” também, o Estado promove o acesso de um número cada vez maior de indivíduos à escola. Nela, são escassas as oportunidades de atingir-se o nível de aprendizagem necessário à leitura de um texto literário canônico — o que ocorre, entre nós, cada vez mais, no segundo grau. A literatura circula na escola sim, mas na condição apontada por Etienne Balibar em “A forma nação, história e ideologia”: “quanto mais as sociedades (burguesas) são escolarizadas, mais as diferenças de competência lingüística (logo, literária, ‘cultural’, tecnológica) funcionam como diferenças de casta, assinalando os indivíduos para ‘destinos sociais’ diversos.”[11]

Se consideramos que as narrativas da nação (aqui desejo ser bastante específica), que as narrativas literárias que constroem e reconstroem a nacionalidade, em que pese a sua dimensão crítica, estão confinadas a um circuito restrito (quase) entre iguais, ou entre (mais ou menos) pares; se consideramos a dificuldade ou a quase impossibilidade da sua distribuição social ampla, parece-me difícil não admitir a conseqüência disso sobre a comunidade imaginária que se torna possível como sustentação do Estado nacional brasileiro: uma imensa população que se reconhecerá como nacional, sim, mas em uma narrativa unívoca, chamada História do Brasil (em sua versão mais primária, oficial, destinada à escola pública).

A tradição do Estado Nacional Brasileiro não inclui na sua agenda de nacionalização dos indivíduos o acesso amplo à cidadania, como se a Nação formada a partir do modelo herderiano devesse ser entre nós radicalizada, em uma comunidade nacional que se quis instaurar e reforçar exclusivamente a partir da língua comum e da socialização de um estoque mínimo de referências culturais e históricas compartilhadas. A homogeneidade construída é portanto rasa e, para a maioria dessa comunidade nacional, está muito distante ou mesmo inacessível a imagem criada por Ernest Renan, para a indispensável “vontade de nacionalidade”: “A existência de uma nação é, se me perdoarem a metáfora, um plebiscito diário”[12].

3. A Nação plural

Uma participação mais larga da população no “plebiscito diário” talvez esteja começando a acontecer em nossos dias, por caminhos que surpreendem e até desagradam a muitos de nós, integrantes dessa comunidade letrada especialíssima que é a academia, a universidade.[13] Os sinais do plebiscito diário a que me refiro têm, no Brasil, uma origem que pode ser considerada espúria — o sistema de radiodifusão, criado por um governo totalitário, e o sistema nacional de difusão televisiva, fruto do investimento planejado e vultoso em telecomunicações e nas comunicações em geral feito, a partir do final da década de 60 por outro, e longo, período de totalitarismo, pelos governos militares, como item forte da integração nacional. Foram pensados ambos como estratégia de controle de um Estado respaldado por uma comunidade cívica e uma consensualidade política produzidas à força.

Mas é no âmbito dos mídia, na televisão, especialmente, que podemos assistir de modo mais sistemático e concentrado, desde o início de 1998, o fluxo atual de imagens e narrativas da nacionalidade. Refiro-me às campanhas televisivas vinculadas às comemorações do V Centenário do Descobrimento do Brasil, um fato que a mídia em geral renomeou como 500 anos do Brasil e a rede Globo como “Brasil 500”.

A iniciativa das comemorações, um visível revigoramento da nacionalidade em tempos de fragilização dos Estados Nacionais, partiram do Governo Federal, através de uma Comissão criada em 1993 no âmbito do Ministério da Educação e do Desporto, reformulada e transferida, três anos depois, para o Ministério das Relações Exteriores e desde abril 1999 sob a responsabilidade do Ministério de Esporte e Turismo. Esse itinerário da liderança dos eventos de celebração da nacionalidade é já sintomático, e pode ser lido como sinal do deslocamento das premências do Estado Nacional, na atualidade, do plano interno e pedagógico para a órbita dos interesses do Estado na projeção exterior de sua imagem e, finalmente, para o domínio de uma das atividades econômicas mais promissoras no contexto contemporâneo e transnacionalizado.

Os discursos oficiais que presidiram as comemorações brasileiras fazem o trânsito entre o fato histórico da agenda colonial, o descobrimento, e o elogio da formação da nacionalidade, oscilando, portanto, entre a celebração da origem e a especificidade do corpo e da cultura da Nação. Nesse aspecto, o documento programático, publicado como pauta de decisões e investimentos governamentais, preserva as componentes tradicionais das narrativas do Estado Nação moderno: o relevo ao marco de origem, que funda a história comum; o território compartilhado; a etnicidade peculiar que promete agregar os indivíduos que o habitam. Na concepção de “cultura nacional” apresentada pelas Diretrizes das comemorações, em tom prescritivo, pode-se ler a versão do país que se quer preservar:

Deverá ser considerado que a cultura brasileira demonstra [...] essa pluralidade que se manifesta antes pela agregação que pela segregação e conflito. Como resultado desse caldeamento de etnias e culturas, o Brasil se apresenta hoje como uma inédita experiência de civilização tropical, com traços próprios e singulares.[14]

Reafirmada a peculiaridade da Nação, o documento oficial desdobra as comemorações numa chave programática — os eventos “de natureza festiva que permitirão ao povo brasileiro manifestar sua justa alegria por tão significativo aniversário” —, e, principalmente, na “Dimensão Prospectiva”, estimuladora de novas narrativas autorizadas, oriundas “das camadas mais instruídas”, a serem “transmitidas aos demais segmentos sociais”, ou ainda, narrativas que possam, a partir de um “balanço” dos 500 anos, “estabelecer as aspirações do povo brasileiro para a evolução nacional”. As perspectivas das comemorações expõem, portanto, de modo quase acintoso, a fundamentação pedagógica, civilizacional, herdada do projeto iluminista.

Apesar do detalhamento ambicioso, até final de 1997 as ações de comemoração não conseguiram ultrapassar as cerimônias oficiais, algumas exposições e o patrocínio de projetos de investigação da história nacional. Apenas quando foram convocadas as redes de televisão, em dezembro daquele ano, os “500 anos” se tornaram um fato com repercussões no todo social, passando a distribuir, em horários de grande audiência, a sua narrativa atualizadora da comunidade nacional, organizada a partir das ênfases previstas: o revigoramento do vínculo com a origem eleita, através da difusão de imagens pretéritas e presentes de Portugal, e a reapresentação enfática e espetacularizada do corpo mestiço da Nação.

Como é próprio ao meio, os 500 anos foram imediatamente assimilados pelo discurso publicitário, com algumas soluções estéticas e mercadológicas de alto valor, como a campanha da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos que recuperava em off o texto da Carta de Pero Vaz de Caminha para ilustrar flagrantes dos meios de comunicação intranacionais. Pode se destacar, entre os inúmeros investimentos da publicidade na temática nacional, o filme da Parmalat, uma multinacional da área de alimentos, como a melhor síntese desse elenco. Não deve ser difícil para quem tenha, no Brasil, concedido uma audiência mínima ao horário nobre da televisão, durante o ano de 1999, relembrá-la.

O video tape da Parmalat opera com o reconhecimento, repetindo elementos estáveis na campanha publicitária da empresa para seu principal produto: crianças vestidas como mamíferos, a natureza, os copos de leite. Na edição dedicada a homenagear a Nação brasileira, foi incluído, como um brinquedo, uma caravela, o ícone mais freqüente das comemorações, e, no centro da breve cena, uma criança afro-descendente, objeto do cuidado e carinho das demais crianças brancas. No jingle cantado por Dominguinhos, com uma melodia familiar, misto de xaxado e toada, a voz masculina entre o aliciamento e a advertência imperativa, lembra que “nós temos apenas quinhentos anos”, e convoca: “Bota esse menino na escola/ cuida da saúde do menino/ que o menino vai mudar a sua história/ vai conquistar esse mundo”. A criança é içada sobre o cenário apoteótico do que parece ser o litoral da baía de Guanabara, com fogos de artifício ao fundo. Ouve-se então a mensagem final: “Parmalat, amor pelo Brasil”.

As estratégias que atualizam a nacionalidade nessa brevíssima narrativa são as previsíveis: a articulação entre passado e presente, a aproximação amorosa da diversidade racial, o apelo ao futuro. Através da música, educação e saúde, que deveriam ser direitos garantidos pelo Estado, são repostos como apelo à afetividade, à solidariedade ou à responsabilidade do telespectador. Ou seja, ao final do século vinte, a distribuição de imagens da comunidade imaginada pela mídia reitera o que, desde a instituição da sociedade nacional há cento e cinqüenta anos, é símbolo da Nação brasileira: a criança não branca, a ser cuidada e educada preferencialmente pelos não mestiços[15].

A forma como pode ter operado o apelo, na audiência, é uma chave para que se considere a extensão e amplitude da mensagem. Pois a cena amorosa e cheia de promessas precisa concorrer, na memória social, com as demais cenas do cotidiano brasileiro, não mais exclusivas das ruas das grandes cidades, protagonizadas por crianças predominantemente negras ou negro-mestiças, semelhantes à que ocupa o centro da mensagem. A imagem bucólica e fraternal que quer homenagear a nacionalidade chega ao público montada sobre outras imagens, marcadas pela violência, pelo medo e pelo antagonismo social, que aquela mesma tela — o retângulo que representa o mundo — apresenta cotidianamente ao telespectador.

Lido por esse viés, o anúncio publicitário da Parmalat, tecnicamente impecável e à primeira vista tão “politicamente correto”, pode significar justamente o contrário de uma perspectiva emancipatória para a população representada na personagem central. Pode-se reconhecer nele a persistência do lugar social e étnico-racial onde sempre estiveram colocados o poder de decidir e a responsabilidade de construir o país; como pode-se ver nele também a reiteração do lugar da inferioridade, da menoridade e, ao mesmo tempo, do perigo — o lugar de uma iminência — para a sociedade nacional.

Muitos outros eventos e imagens comemorativos dos 500 anos veiculados na mídia reproduziram a imagem do país mestiço ou negro-mestiço, valendo-se inclusive do alto valor mercadológico do produto cultural afro-baiano, geralmente submetido à lógica apaziguadora das tensões sociais que parece hoje indispensável. Mas é outra, aqui, a questão principal. A popularização das comemorações através dos meios massivos e a sua utilização como apelo ao consumidor provocou respostas que ultrapassam as demandas do mercado. A distribuição diária de chamadas ao “aniversário do Brasil” estimulou e autorizou aqueles que as receberam a também pronunciarem-se sobre essa pauta geral em que se tornou o Brasil. Dito de outra forma: ao ato pedagógico de difundir o valor, o sentimento e a abrangência da nacionalidade instituída, corresponderam atos performáticos ou interpelações desconstrutoras da homogeneidade nacional, produzidos pelos receptores da mensagem. Desta forma, as comemorações do Descobrimento se tornaram algo muito maior, tenso e diversificado do que se poderia imaginar quando se as considera, apenas, como uma estratégia unívoca de afirmação do Estado nacional, ou quando se as examina exclusivamente dentro dos limites da produção canônica.

4. Outras imagens, outras vozes

Durante o ano de 1999 muitas ruas e logradouros públicos da cidade de Salvador exibiram painéis que são exemplares nesse sentido. A maioria deles foi estimulada, de algum modo, pelas comemorações dos 450 anos de fundação da cidade, mas exibiam as marcas da familiaridade entre a efeméride local e as comemorações do Descobrimento do Brasil, numa montagem de eventos e imagens que igualmente se referiam à origem e à identidade nacional, intensamente explorada tanto pela programação do Governo estadual e municipal, quanto na mídia local — não é gratuito que o slogan oficial tenha sido “Bahia: o Brasil nasceu aqui”.

Além disso, é importante ressaltar que as pinturas aqui escolhidas para análise[16] estiveram nos muros externos do estacionamento de um supermercado, na avenida Vasco da Gama, área pouco nobre e de grande densidade populacional, e conviveram com inúmeros outros painéis e murais espalhados nas ruas de Salvador. Não foram intervenções espontâneas ou transgressoras no espaço público, pois resultaram de uma ampla campanha envolvendo órgãos do Governo estadual, escolas e iniciativa privada.

A primeira delas (fig.1) foi escolhida como uma resposta mais direta ao anúncio da Parmalat. A questão étnica é também central e explícita, verbalizada em uma legenda — “Etnia, 450 anos, Liberdade”, mas impõe-se de um ângulo oposto à estratégia flagrada no anúncio publicitário da Parmalat a que o Brasil assistiu na televisão. Em vez do apelo ao afetivo, ao domínio das relações interpessoais, à fraternidade, uma clara alusão a um outro lema — à liberdade —, ao direito de ser representado e de representar-se, à cidadania, enfim. A bandeira é um dos mais caros símbolos da institucionalização de um território ou de um grupo, mas esse aspecto mais sígnico parece não bastar ao protesto, como se não fosse enfático o suficiente. À “bandeira” e ao lema estão acrescentados elementos que reforçam e compõem a comunicação: são muitas as cabeças representadas, em várias cores, com o visível predomínio quantitativo e qualitativo do negro e do não-branco; como se não bastasse ainda, o próprio corpo está reproduzido no protesto, através da impressão de mãos espalmadas por toda essa “bandeira de luta”.
Valendo-se, através da alusão, de uma composição familiar e permanentemente atualizada na representação histórica da Nação, a segunda pintura (fig.2) intervém corretivamente na simbologia instituída como síntese da formação histórica e racial brasileira. Num espaço recortado em três partes, re-encaixadas como pedaços de um quebra-cabeça, a tríade racial firmada desde o final do século passado é sintomaticamente recuperada e alterada, preservando-se o negro e o índio e substituindo-se o branco por uma caravela — um ícone das comemorações, tanto do descobrimento, quanto dos 450 anos da cidade de Salvador, explorado quase à exaustão. A sua presença recompondo a representação tradicional do país se torna estimuladora de mensagens muito mais amplas do que a leitura imediata da hierarquia marcada na distribuição espacial das figuras — o que é central, mas está abaixo da totalidade superior, compartilhada pelo negro e pelo índio. O jogo entre presença e ausência do elemento branco exige, de quem contempla a pintura, uma resposta ou uma interpretação: que sentidos têm a ausência e a substituição? Que sentido tem, aí, a caravela? A que tempo estão confinados o elemento ausente e as versões do país que insistem na proeminência da origem?

O cartaz do Fórum Internacional de História e Cultura do Sul da Bahia[17] (fig. 3), por sua fidelidade na reprodução da tríade racial — “Os povos na formação do Brasil” —, tal como nos é mais familiar e está presente em todos os livros escolares, é um contraponto útil para dimensionar a interpelação impressa no muros da cidade. Em que pese o empenho da programação acadêmica em propor uma seqüência diferenciada para o elementos em pauta, exposto no subtítulo “Nações indígenas, africanas e européias”, a imagem, contrastivamente, os repõe na hierarquia estabelecida.

O último exemplar dos painéis comemorativos nas ruas de Salvador (fig. 4), que estão sendo lidos como documentos da dissonância que a intervenção popular causa no discurso ou nas imagens que celebraram a nacionalidade, é contundente e esclarecedor, aliás, tão direto e rápido no seu efeito, quanto a linguagem que usa como referência — o traço das histórias em quadrinhos, já apropriado pela pop art norte-americana e associado ao desenho realista dos panfletos de denúncia política. A utilização da legenda da efeméride, transformada em uma venda para os olhos de uma figura masculina com visíveis indicadores da sua afro-descendência, produz impacto e veicula com veemência a crítica às celebrações, dos 450 anos da cidade e do Descobrimento do Brasil, induzindo quem o contempla a “visualizar” o que o espetáculo das comemorações esconde. Como nas anteriores, não deixa dúvidas sobre o ponto nevrálgico da nacionalidade hoje, no Brasil.

Os murais escolhidos, no seu conjunto, reivindicam a diferença cultural e, ao mesmo tempo, interpelam a Nação, enquanto comunidade e enquanto imaginário instituído. Uma interpelação que pode ser compreendida como o “efeito da perplexidade de viver nos espaços limiares da sociedade nacional”[18]. Não convém, portanto, ler tais imagens como um mero jogo de polaridades, nem entendê-las como fruto do conflito entre conteúdos oposicionais ou tradições antagônicas de valor cultural. Muito menos, parece-me, pode ser lida nessas imagens a desautorização da nacionalidade, enquanto virtualidade agregadora de indivíduos — não é conveniente esquecer que as pinturas foram encomendadas e realizadas como parte da programação que comemora a Nação. Mas podemos lê-las como intervenções que suplementam a composição da narrativa da nacionalidade, considerando que, enquanto suplemento, a diferença étnica não deseja acrescentar-se ou ser incorporada, diluída, no todo nacional. Quer, sim, ter o poder de “alterar o cálculo”, interferindo na univocidade que produziu e, até o presente, mantém o controle da composição e veiculação da brasilidade.

Não só nos muros da cidade de Salvador podem ser flagrados os atos interpelativos que, ao mesmo tempo, confrontam discursos instituídos e asseguram a permanência plástica da Nação. Elas estão em lugares e formas que são mais familiares para nós, como no poema “Efeitos colaterais”, de Jamu Minka, publicado na coletânea de “Poemas Afro-Brasileiros”, dos Cadernos Negros:

Na propaganda enganosa
paraíso racial
hipocrisia faz mal
nosso futuro num saco
sem fundo
A gente vê tevê
e finge que não vê
a ditadura branca
Negros de alma negra se inscrevem naquilo que escrevem
mas o Brasil nega
negro que não se nega.[19]

Tanto os painéis urbanos por ocasião das comemorações quanto o poema de Jamu Minka, assim como inúmeras outras estratégias de produção e publicização de versões à margem da tradição letrada ou canônica emergem, contemporaneamente, entre a população negro-mestiça brasileira. Fazem a afirmação de outros vínculos de pertencimento e de outras fidelidades que se confrontam com a desejada homogeneidade nacional. Mas nem por isso estão imunes à nacionalidade instituída.

A força e a permanência intrigantes da nação na contemporaneidade decorrem da qualidade plástica que a faz persistir, ao mesmo tempo, como racionalidade política, como construção cultural permanente — único modo de existência possível à comunidade imaginada —, e aquilo que Homi Bhabha designa como “o seu impasse”: os fragmentos ou retalhos de significação cultural que são ativados quando forças específicas interpelam na nação no interior dela própria, com a repetição diferida dos signos nacionais.20

Se no século passado a instauração do discurso da nacionalidade se fez pelo contraste com o exterior, o não nacional, para os modernistas ocupados com a produção corretiva de imagens do Brasil, como Oswald de Andrade, a nacionalidade deve também confrontar-se — e incorporar antropofagicamente — a exterioridade que está dentro do próprio país.21 Mas o cenário atual é outro, e talvez uma das suas marcas mais peculiares seja, exatamente, essa impossibilidade nossa, atual, de pensar o exterior, dada a contigüidade decorrente das práticas transnacionais, da globalização da economia, da translocalização maciça das pessoas e, principalmente, das redes mundiais de informação e comunicação. Mais nítida do que foi para os modernistas é a nossa experiência de um exterior que está dentro da “cobertura” da nação, mas recusa a sua incorporação pedagógica à comunidade dada. Exige o direito de ser visto e ouvido, o direito de sua auto-representação.

A força e a permanência da questão nacional nos estudos da literatura e da cultura podem ser compreendidas como emergências sucessivas de uma cena primordial, como o seu anacronismo, mas também como sua atualidade, ou como a sua diferença sempre atualizável. Desde que sejamos capazes de exercer a nossa leitura da nacionalidade para além da segurança que nos oferecem as obras canônicas e para além da hierarquia de valores — inclusive do valor estético — que nos foram legados pela “alta cultura” literária. Desde que sejamos capazes de articular cultura e democracia.

 

Notas

  • 1 Anderson, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989.
  • 2 Sommer, Doris. Irresistible romance: the foundational fictions of América Latina. In Bhabha, Homi (ed.). Nation and Narration. London/New York: Routledge, 1990. p.73-98.
  • 3 Balibar, Etienne. The nation: history and ideology. In: Balibar,E. e Wallenstein, E. Race, Nation, Classe: Ambiguous Identities. London: Verso, 1991. p. 96.
  • 4 Exemplares nesse sentido são narrativas pouco lembradas hoje, como O Demônio Familiar, drama de José de Alencar (1859) ou As Vítimas-Algozes, de Joaquim Manuel de Macedo (1869, republicada já em 1873). Mais conhecidos nossos são os estereótipos da negritude — e da mestiçagem — produzidos nas últimas décadas do século XIX, como O Cortiço, de Aluízio de Azevedo (1890).
  • 5 Estas distâncias estão representadas, por exemplo, na incomunicabilidade entre um escritório em São Paulo e o remoto, inacessível, adormecido, seringueiro da Amazônia, distância intransponível, marca da diversidade e da extensão da superfície do país, não importa a vontade intelectual e a vontade poética de acalantá-lo. “O seringueiro dorme”, não escutará jamais o poema de Mário de Andrade.
  • 6 Gellner. Nation and Nationalism. Oxford, Blackwell, 1983. Citado por Guibernau, Monteserat. Nacionalismos: o Estado Nacional e o Nacionalismo no Século XX. p.10.
  • 7 Anderson, op. cit., p. 6.
  • 8 Cf. Carvalho, José Murilo. A Formação das Almas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
  • 9 Expressão consagrada por Luiz Laffetá para dar conta dos desdobramentos do primeiro lance modernista.
  • 10 “Enquanto isso” é, segundo Anderson, a expressão do tempo próprio da nação, como o tempo marcado nos romances realistas.
  • 11 Balibar, op.cit., p. 103.
  • 12 Renan, E. Qu’est-ce qu’une nation? Citado por Bhabha, op. cit., p. 225 (e também por Anderson e Gellner).
  • 13 E dentro dela, mais especiais ainda, os institutos ou faculdades de Letras, e dentro das Letras o campo disciplinar da Literatura Brasileira — meu lugar de origem disciplinar e profissional, onde o conhecimento e reflexão acerca da nacionalidade brasileira nos devolve uma nação permanentemente reconfigurada, múltipla, tensionada, heterogênea, presentificada sempre “em outras palavras”. Para nós, o outro nome do Brasil tanto pode ser Iracema e O Guarani quanto Os Sertões, Triste Fim de Policarpo Quaresma, Pau Brasil, Macunaíma, Vidas Secas, Jubiabá, O Continente, Grande Sertão: Veredas, Viva o Povo Brasileiro ou Amazona.
  • 14 Comissão Nacional para as Comemorações do V Centenário do Descobrimento o Brasil. Regulamento e Diretrizes. Brasília, 1997. p. 10.
  • 15 A referência que se têm aqui chama-se Moacir, filho e fruto do sacrifício indígena ao ato colonial de possuir e semear à terra, como narra José de Alencar, em Iracema (1865) — romance indispensável no processo de escolarização de todos os brasileiros que ultrapassam o nível do ensino fundamental.
  • 16 As imagens fotográficas dos painéis constam do acervo documental do Projeto Reconfigurações do imaginário e reconstruções de identidades, sob a minha coordenação, e vinculado ao Projeto PRONEX/FINEP Identidades: reconfigurações de cultura e política, sediado na UNICAMP. Entre 1997 e 2000, fez-se o registro tanto das repercussões da comemoração dos 500 anos na mídia brasileira quanto de emergências interpelativas das comemorações oficiais, produzidas por segmentos da sociedade em meios diversos.
  • 17 O Fórum Internacional de História e Cultura do Sul da Bahia, promovido pela Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, Porto Seguro, BA, abril de 1999, fez parte da intensa agenda comemorativa da instituição.
  • 18 Bhabha, op. cit., p. 227.
  • 19 Minka, Jamu. Efeito Colateral. Cadernos Negros: Poemas Afro-Brasileiros. São Paulo, n.19, 1996. p. 82.
  • 20 Bhabha, op. cit. p 202.
  • 21 Cf. Santos, Roberto Correia. O político e o psicológico, estágios da cultura. In: Oswald Plural. Teles, G.M.(org). Rio de Janeiro: UERJ, 1995.