Monica Velloso[2]
Fundação Casa Rui Barbosa (Faperj)
1. Redimensionando o modernismo
Na análise do modernismo brasileiro tem sido procedimento comum tomar-se como referência a influência das vanguardas artísticas européias, mais particularmente a francesa e a italiana como móvel das transformações. Evidentemente não se trata de negar tal influência mas antes de relativizá-la, na perspectiva de tentar ampliar a discussão sobre a instauração do processo modernizador.
Por que tais vanguardas aparecem tão nitidamente no horizonte cultural brasileiro que se projetava em direção ao moderno? Até que ponto o imaginário da época não estaria operando um deslizamento de sentido em relação à inclusão do patrimônio cultural ibérico? No papel de antiga metrópole colonizadora, Portugal provavelmente acabou corporificando a representação de um passado o qual se desejava esquecer.
A memória social é construída precisamente com base neste movimento dialético da lembrança e do esquecimento. Dessa forma, ela se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, nas imagens e no objeto (Nora, 1984). O que equivale a dizer que a memória é uma construção destinada a ordenar e dar sentido a determinada ordem social, inconsciente das apropriações, manipulações que possa vir a efetuar. Essas questões apontam para a necessidade de se refletir mais detidamente sobre a memória do modernismo, indagando como se deu a construção dessa idéia. A historiografia brasileira freqüentemente associou o modernismo a um tempo e espaços precisos: a cidade de São Paulo, década de 1920. Essa perspectiva de análise — em parte reforçada pela história da literatura — predominou até o final da década de 1970. A tendência hoje é a de pensar 1922 como um momento de confluências de idéias que já vinham sendo esboçadas na dinâmica social. Esses “sinais de modernidade” estavam presentes em várias cidades e capitais brasileiras, desde a virada do século XIX para o XX, conforme vêm mostrando algumas análises mais recentes (Hardmann, 1992).
Nos escritos de Gonzaga Duque, Os Contemporâneos (1900), assim também como nos de Graça Aranha, A Estética da Vida (1912), encontramos uma vertente da modernidade que privilegia o ritmo estético e a filosofia como os mais adequados para a apreensão da brasilidade (Moraes, 1979).
A reavaliação da “tradição de ruptura” (Santiago, 1998) insere-se precisamente nesse esforço analítico que articula o antigo ao moderno, mostrando a dinâmica complexa do movimento. A minha proposta é a de pensar o modernismo a partir da sua inserção na cultura do cotidiano: como as percepções, sensibilidades e padrões de comportamento social vão se modificando nos chamados tempos modernos?
É na vivência do dia-a-dia que ele vai sendo construído socialmente. O que significa dizer que é no entrecruzamento do antigo e do moderno, da permanência e da mudança, que o modernismo adquire sentido. Por isso, procede pensar em termos de uma “cultura do modernismo” que começa a se manifestar na virada do século XIX para o XX (Karl,1988).
No Rio de Janeiro, cidade capital, essas manifestações culturais adquirem múltiplas expressões, presentificando-se nas rodas dos cafés literários, nas festas populares, nas folias carnavalescas, no linguajar das ruas, no teatro de revista e particularmente na imprensa cotidiana. No início do século, a imprensa configura-se como esfera de socialização de idéias e de valores; o espaço público impõe-se decisivamente na formação de opinião (Habermas, 1984). É, portanto, através desse espaço que se vão esboçando novos hábitos, valores, comportamentos, que integram a cultura da modernidade.
No Rio de Janeiro, há um grupo de intelectuais profundamente sintonizados com essa nova dinâmica comunicativa: os humoristas boêmios. Esse grupo é composto por escritores e jornalistas como Lima Barreto, Emílio de Menezes, José do Patrocínio Filho, integrando também os caricaturistas mais populares da época: Raul Pederneiras, Kalixto e J. Carlos.[3]
Desde a virada do século XIX, eles participam da imprensa cotidiana, publicando os seus escritos satíricos e caricaturas nas revistas humorísticas ilustradas e nos jornais de grande circulação. A revista D.Quixote (1917-27) sob a direção de Bastos Tigre, funciona como pólo agregador do grupo, exercendo o papel de verdadeiro formador da opinião pública da época. O impacto e a sedução provocados por uma linguagem visual de fácil decodificação era considerável para uma população caraterizada pelo baixo índice de escolaridade.
Através da D.Quixote, o grupo constrói um pensar moderno que tem um raio de ação inusitado para os padrões de comunicação da época. Esse pensar se articulava na sociabilidade cotidiana, referindo-se aos aspectos banais e corriqueiros, aos pequenos gestos e acontecimentos (Maffesoli, 1984). Ao mesmo tempo, tratava dos fatos que mobilizavam o cenário nacional. Dirigindo-se ao universo do cidadão comum e abordando questões do seu cotidiano, esse discurso iria mostrar-se altamente mobilizador. Através das charges e escritos satíricos, o grupo dos humoristas buscava familiarizar os seus leitores com as mudanças drásticas que ocorriam no cenário urbano. Assim, eles funcionavam como vetores de um pensamento que poderíamos chamar de moderno. É neste sentido que o humor desponta como uma das expressões significativas da modernidade brasileira. Vamos enfocar o cotidiano enquanto lugar onde se inscreve o processo — às vezes tortuoso e certamente conflitante — de instauração da modernidade. Na reflexão historiográfica contemporânea vêm ressaltando-se as práticas do cotidiano enquanto espaço sugestivo para se pensar a questão da dissolução das culturas e instauração de novos modos de ser consubstanciados na mudança (Dias, 1998).
A idéia de uma memória nacional uniformizadora de lembranças, no afã de construir a chamada identidade nacional moderna, acaba fazendo submergir outras memórias que povoam a dinâmica do cotidiano. É neste espaço que ocorrem o confronto e a absorção de influências e valores culturais os mais diversos, remetendo a múltiplas espacialidades e temporalidades. É aí que entra uma das influências significativas da cultura portuguesa, ou mais precisamente, através da imprensa cotidiana. Em que momento particularmente do nosso processo modernizador teria tal fato ocorrido? Qual o apelo de atualização que poderia veicular um país que presentificava o passado, na condição de metrópole colonizadora? E, afinal de contas, que voz era essa da tradição capaz de sensibilizar o público leitor brasileiro?
Para responder a tais indagações é necessário nos deslocarmos no tempo e no espaço.
2. As Farpas chegam ao Brasil:
Em 1872 Eça de Queirós, junto com Ramalho Ortigão, fundava a revista Farpas definida como “ mordente, cruel, incisiva, cortante e sobretudo revolucionária (Lyra, s.d). Um dos alvos prediletos da caricatura de Eça era precisamente a figura do nosso imperador: D. Pedro II.
As suas freqüentes viagens ao exterior, a duplicidade de nomes — Pedro II ou Alcântara, dependendo da ocasião — a sua liberalidade em relação aos seus “colegas soberanos”, enfim, tudo servia de inspiração para caricaturar não só a figura do imperador mas as práticas do Império. A revista objetivava fazer a crítica e a caricatura das instituições monárquico-liberais e dos cânones da literatura romântica (Saraiva, 1999, p.128).
Eça de Queirós deixava claro o seu entusiasmo pelas chamadas “idéias revolucionárias”, argumentando ser a revolução a “alma do século”. Percebia as revistas como veículo das modernas tendências que já se faziam anunciar na literatura, na política e na sociedade em geral. Em carta a um amigo de Coimbra, procurando convencê-lo da importância de tais idéias, argumentava:
Aqui, meu caro Garcia, conspira-se, há clubes, projetam-se jornais, há muita excitação e bastante vontade. Não penses que é um movimento isolado de alguns espíritos mais esclarecidos: é uma intenção quase unânime e que se apoia no pequeno comércio e na classe operária.
Temos esperanças. Eu mesmo e que te falo sou membro da Internacional. (Vianna Filho, 1984, p. 58-59).
Eça acreditava que à imprensa cabia exercer o papel de força renovadora, capaz de traduzir o espírito moderno aos povos. Tais idéias chegaram rapidamente ao Brasil, alcançando insuspeitado raio de ação quando os adversários do regime monárquico passaram a publicar clandestinamente exemplares de Farpas nas colunas do Jornal do Recife, incentivando os movimentos nativistas. Eça de Queirós ressaltava o papel do humor como arma de crítica social: “O riso é a mais antiga e ainda a mais terrível forma de crítica. Passa-se sete vezes uma gargalhada em volta de uma instituição e a instituição alui-se.” (Vianna Filho, 1984).
Se essa era a idéia de Eça em relação ao papel do humor na sociedade, não viu com bons olhos o plágio de suas idéias pela imprensa brasileira, mais precisamente pelos jornais do Recife. A polêmica se acirra bruscamente quando Eça torna a caricatura do imperador extensiva ao brasileiro em geral. Seu tipo físico é descrito galhofeiramente como o “figurão barrigudo e bestial dos desenhos facetos” ou “burguês como uma couve”, “tosco como uma acha de lenha”. A acusação mais grave: o brasileiro era covarde e sem caráter porque “vivia de negócios de negro”, ou seja, era escravocrata (Lyra, s.d., p.82).
Como resposta ao artigo de Eça, surge em Recife a revista Os Farpões, cujo objetivo era o de fazer a caricatura dos portugueses. Toda essa polêmica vai ser revertida, anos mais tarde, em Uma Campanha Alegre, livro publicado por Eça em 1890. Trata-se de uma reedição da revista Farpas (1871) mas com uma sutil diferença: o destinatário das caricaturas não é mais o povo brasileiro. Curiosamente Eça transforma a caricatura do brasileiro na caricatura do imigrante português. Procurando diferençar a cultura brasileira da portuguesa, o autor cria um novo vocábulo: “brasílico”. Entende por esse o brasileiro que nasce em terras brasileiras (Lyra, s.d., p.106).
Mas a influência de Eça de Queirós não cessa em Farpas. Muito ao contrário: durante quase 20 anos — de 1880 até 1897 — ele iria colaborar semanalmente em um jornal brasileiro: a Gazeta de Notícias. Tal espaço na imprensa acabou formando toda uma geração de intelectuais profundamente influenciada pelo pensamento do autor português. O seu estilo crítico, irônico e a sua irreverência sutil atraíram polemistas, historiadores, poetas, romancistas, teatrólogos, parlamentares com alguns dos quais Eça travaria amizade pessoal (Cavalcanti, s.d.).
Desde meados de 1870 até, pelo menos, o final da Primeira Guerra Mundial a influência de Eça faz-se sentir de forma marcante no nosso meio político cultural (Broca,1956). Nas rodas boêmias dos fins do século no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Recife, os intelectuais vão adotá-lo como “padrão literário” (Cavalcanti, s.d.). Esses dados já são suficientes para presentificar a influência de uma vertente cultural ibérica num contexto onde já se faziam presentes os “sinais de modernidade”.
Mas antes de entrarmos propriamente nessa questão, é importante uma breve contextualização de época, na perspectiva de mostrar quais as representações construídas sobre Portugal e os portugueses no Rio de Janeiro do início do século. A idéia é a de ir mostrando como o grupo da revista D.Quixote se relaciona com a figura de Eça de Queirós e de que maneira vai incorporando e reelaborando algumas de suas idéias.
3. Portugal: o avesso da modernidade ou uma possível porta de entrada?
No Rio de Janeiro do ínicio do século XX, sob o governo Rodrigues Alves (1902-1906), ocorre a implantação do projeto modernizador que previa a remodelação, higienização e saneamento da cidade, assim também como a abertura de novas avenidas, praças e obras do cais do porto. O prefeito Pereira Passos e o médico sanitarista Oswaldo Cruz tiveram carta branca do governo para implementar essa obra de dimensões monumentais para a época. O objetivo era sintonizar a cidade com os padrões da modernidade européia. Inspirado no projeto urbanístico de Haussman que fez de Paris uma cidade modelo, Pereira Passos visava fazer do Rio de Janeiro o cartão-postal da nacionalidade brasileira. Mas as mudanças despertaram reações as mais distintas. De um lado, a revolta popular contra a falta de moradias, a obrigatoriedade da vacina e a imposição de novos hábitos e valores urbanos. Mas é também inegável o fascínio da população por sentir-se integrada — não importa se efetivamente ou não — às conquistas do mundo moderno.
Paris corporificava a própria idéia de modernidade. A sua literatura, pintura, construções art-noveau, cafés-concertos, cabarés e ateliês de alta-costura, significavam, não só para o Brasil mas para o mundo, a possibilidade de atualização cultural. É a chamada fase da Belle Époque, que se estende até os fins da Primeira Guerra, momento em que a atualização cultural está em primeiro plano.
Nesta ânsia modernizadora, vivenciada pela maior parte da sociedade brasileira, Portugal acabou corporificando o avesso da modernidade. No final do século XIX e início do XX, o movimento jacobino e anti-lusitano assumiu força crescente na cidade do Rio de Janeiro. Tal movimento representava a demanda de quase todos os setores sociais que aspiravam a uma sociedade moderna, industrial e urbana. O movimento obteve expressiva popularidade ao apoiar a luta contra a carestia de vida e combater a atuação dos portugueses na vida pública. Aparecem vários jornais e revistas que se apresentam como porta-vozes desses ideais como é o caso das revistas Gil Blás e Brasiléia.
Dessa forma, surgia uma corrente de pensamento que associava a idéia de moderno à de anti-lusitanismo, identificando Portugal com o nosso atraso colonial (Oliveira, 1990). Nesse contexto, a idéia de matriz cultural remetia a um outro universo de valores: arcaísmo, provincianismo, violência, extorsão e usura. Essa imagem de Portugal e dos portugueses, encontrava-se amplamente difundida no Rio de Janeiro, principalmente entre os segmentos mais populares.
Nas revistas humorísticas ilustradas como a D.Quixote, a Revista da Semana, e a Careta são pródigas as caricaturas e piadas sobre os portugueses, conhecidos popularmente como os “pés de chumbo”. Freqüentemente nas caricaturas eles aparecem como tipos de vastos bigodes, trajando camisetas e calçando tamancos. O cenário predileto onde são enfocados é o balcão de venda dos secos e molhados. A sua expressão fisionômica, marcadamente grosseira, sugere sobretudo a idéia de usura, e desleixo. Nas piadas, o português aparece como tipo incapaz de lidar com os inventos modernos, preferindo seguir à risca a tradição dos antepassados.
Na primeira década do século XX, são freqüentes os conflitos populares entre brasileiros e portugueses para ocupar o espaço físico e cultural da cidade. Um exemplo característico dessa disputa é a Festa da Penha. Esta se transforma na principal festa popular carioca, só perdendo lugar para o Carnaval. Inicialmente a organização dos festejos cabia ao grupo português, mas com o passar do tempo o grupo dos baianos vai impondo as tradições afro-brasileiras. A festa, que antes tinha caráter marcadamente religioso, transforma-se em evento profano. Os desafios, capoeira, danças e barracas de quitutes são cada vez mais procurados pelos foliões que se deslocam em massa para o local.
As barracas de comidas funcionam como núcleo aglutinador de cultura, integrando sambistas, jornalistas, intelectuais e populares. O grupo da revista D.Quixote é assíduo freqüentador da barraca da “Tia Ciata”. Lá eles fazem os desenhos falados, trocam duelos verbais e improvisam palestras humorísticas (D.Quixote, 29 de outubro de 1924).
Por que razão ocorreu a predominância dos baianos em detrimento dos portugueses? Ocorre que aquele grupo começara a oferecer canais de integração social bem mais atraentes do que os tradicionais. Antes, a festa tinha caráter eminentemente religioso acontecendo sobretudo em torno da igreja. Com os baianos ela adquire aspecto mais lúdico, atraindo a classe média emergente para novas possibilidades de intercâmbio cultural. A historiografia sobre a época tem explorado com certa constância essa temática do conflito cultural entre portugueses e brasileiros.[4]
Nessa desqualificação que se opera em relacão à figura do português, há ainda outros aspectos dignos de nota: a tristeza e o saudosismo. Essas idéias aparecem constantemente nas páginas da revista D.Quixote, que critica o saudosismo como “patrimônio de Portugal” (D.Quixote, 7 de outubro de 1925). O fado, a nostalgia e o sentimentalismo piegas são descartados como herança cultural. É expressivo que um dos lemas adotados pela revista D.Quixote seja: “Muito riso, muito siso”. Associam-se, desta maneira, humor e reflexão. O riso e a irreverência são resgatados pelo grupo como expressão da modernidade e de uma identidade cultural que se deseja forjar.
Aqui temos um ponto importante para discussão: ao defender tais idéias a revista D.Quixote, se contrapõe a uma das vertentes tradicionais do nosso pensamento político. Segundo esta, o caráter nacional se explicaria pela etnia, sendo o Brasil fruto de três raças tristes: o português, o índio e o africano. Essas idéias foram sistematizadas na obra do escritor Paulo Prado, Retrato do Brasil (1928). A D.Quixote busca construir um outro retrato do Brasil. Para isso propõe elaborar uma outra memória literária e histórica, inspirando-se no humor e na caricatura.
Logo nas suas primeiras páginas, a revista publica o perfil de literatos e políticos, como Olavo Bilac, Osório Duque Estrada e Rui Barbosa, satirizando-os em prosa e verso. Ao tomar o humor como bandeira, esses intelectuais estão se opondo claramente às teorias do pessimismo e da tristeza nacional tão em voga na época. Passam, então, a valorizar autores clássicos como Eça de Queirós e Miguel de Cervantes, elegendo-os como uma espécie de porta-voz de suas idéias (D.Quixote, 11 de março de 1925).
Chegamos a um ponto sensível da questão: se há determinada tendência em se rejeitar o patrimônio cultural português, essa rejeição evidentemente não se dá em bloco. Há uma seleção clara das influências a serem descartadas ou integradas. Se a tristeza, o saudosismo, a usura e o atraso atribuídos ao português entram para o rol do indesejável, o humor é resgatado como uma das expressões da modernidade e da identidade. É aqui que entra a figura de Eça de Queirós, considerado pelos intelectuais humoristas como um dos seus mestres inspiradores. Paula Ney e Emílio de Menezes, figuras de ponta da geração do grupo boêmio, estão entre os que denotam filiação direta como Eça de Queirós.
Cabe notar a figura de outro português que exerceu influência incontestável entre os boêmios: o caricaturista Julião Machado. Chegando ao Brasil em 1894, Julião trabalhou nos grandes jornais como o Jornal do Brasil e a Gazeta de Notícias. Foi ele quem inaugurou a era da caricatura a traço na imprensa brasileira e é sob a sua influência que estréiam os três grandes caricaturistas do século: J. Carlos, Raul Pederneiras e Kalixto.
A influência de Eça de Queirós sobre o meio cultural brasileiro é incontestável. Na virada do século XIX, foi reconhecido como um dos jornalistas mais populares da imprensa brasileira. Pelo seu estilo combativo, gosto pela polêmica, profundo senso de humor e de ironia, Eça de Queirós cria um círculo de leitores, que ficou conhecido como os “basílicos” (Broca, 1956) (Lyra, s.d.). De julho de 1880 até setembro de 1897, ele colabora semanalmente para o jornal Gazeta de Notícias, cujo diretor é Ferreira de Araújo. São aproximadamente 20 anos de contato ininterrupto.
Esse jornal era um dos mais populares do país, tendo ampla divulgação. Ele foi um dos primeiros periódicos a ser vendido pelas ruas da cidade. Na coluna da Gazeta Eça escrevia crônicas, folhetins, cartas e capítulos inéditos dos seus romances. Esses escritos eram lidos com entusiasmo, principalmente pelo grupo dos intelectuais boêmios. Olavo Bilac chegou a fazer parceria com Eça no drama Inês de Castro. Este foi ilustrado com desenhos e caricaturas do próprio Eça de Queirós. A pilhéria, a ironia e o chicote compunham o estilo de Eça (Lyra, s.d.).
É esse estilo e linguagem que atrai os intelectuais brasileiros. Eles vão se identificar não só com a visão satírico-humorística de Eça, mas também com a sua própria percepção da realidade cotidiana e a maneira irreverente de vivenciá-la. Como os integrantes da D.Quixote, Eça de Queirós quando jovem, fora um jornalista boêmio tendo participado em Lisboa das rodas literárias dos cafés do Chiado e do Rossio. (Lyra, s.d.).
É sintomático o fato desses intelectuais adotarem como pseudônimo alguns nomes dos personagens de Eça. Assim, Bastos Tigre apresenta-se como Jacinto e Fradique. Vale observar que a figura de Jacinto fora inspirada no estilo de vida modernoso de Eduardo Prado, intelectual brasileiro com quem Eça mantinha relações pessoais em Paris. Madeira de Freitas, que também colaborava na revista D.Quixote, adota o pseudônimo de Mendes Fradique, inversão do nome do personagem sofisticado e boêmio criado por Eça (Lustosa,1993).
Na revista D.Quixote aparecem vários artigos assinados por personagens que remetem ao universo de Eça de Queirós: primo Basílio, João da Ega, Acácio. O fato deixa entrever os vínculos que estão articulando humor e modernidade, referenciados agora pela matriz portuguesa.
Mas cabe indagar até que ponto Eça de Queirós não significava uma ponte entre o Brasil e as metrópoles modernas, notadamente Paris. Pelo seu contato cotidiano com esse universo cultural, o escritor português parece representar para o Brasil a possibilidade constante de atualização. Mais do que intermediário cultural, ele funcionaria aos olhos dos nossos intelectuais como uma espécie de “decodificador”, tradutor de experiências. É alguém “meio brasileiro” porque capaz de transitar entre os dois universos culturais. Mas vamos tentar clarificar um pouco mais essas idéias. Para isso é necessário comentar alguns dados sobre a trajetória política e intelectual do escritor português.
4. Ecos de Paris
No início de sua carreira diplomática, Eça é nomeado para exercer o papel de cônsul em Cuba (1872-73), depois exerce essa função em Londres; em seguida é transferido para Paris (1888) onde fica até o final de sua vida. É interessante observar que, durante todo esse tempo, uma das questões que mais preocupou o autor foi a da atualização cultural, não só em relação a Portugal mas em relação ao próprio Brasil.
Vivendo em outros países, tendo acesso direto aos últimos acontecimentos e informações, Eça se preocupava em divulgá-las. Freqüentemente fazia planos de criar novas revistas, percebendo-as como veículos capazes de difundir o que entendia ser o espírito da modernidade. Tentando convencer um amigo a com ele fazer parceria editorial numa revista, argumentava que essa seria para Portugal e para o Brasil a história do que acontecia nos “países civilizados”. E acrescentava “uma espécie de Farpas no estrangeiro” (Vianna Filho, 1984).
A idéia não se concretizou tal como fora proposta, mas certamente através de suas crônicas na Gazeta de Notícias, Eça acabaria exercendo essa função de atualizador cultural frente ao público leitor brasileiro. É a partir do momento em que o escritor se estabelece em Paris que se estreitam as suas relações com o círculo de brasileiros, do qual faziam parte figuras como Eduardo Prado e o Barão do Rio Branco. Através das páginas da Gazeta de Notícias, Eça traz aos olhos dos nossos leitores não só personagens e paisagens do seu país, mas sobretudo os coloca a par do cotidiano das grandes metrópoles européias. Os títulos de suas crônicas semanais mostram nitidamente o cenário que o inspira: Cartas de Paris e Londres, Cartas de Inglaterra, Ecos de Paris, Bilhetes de Paris. Parte dessas crônicas seriam reunidas e publicadas em livro no Brasil, caso por exemplo de Ecos de Paris, editado na cidade do Porto em 1912.
Os assuntos aqui tratados são os mais variados possíveis: vão da moda à política, passando pela arte, literatura e imprensa. Comentando a liberdade dos trajes do verão parisiense, Eça fala dos chapéus de palha, das roupas claras e botas brancas. Em contraposição, satiriza a austeridade e o decoro do brasileiro ao tempo do Império, quando “(...) a sobrecasaca preta do imperador dominava nas instituições e determinava os costumes”. Com a chegada da República tal moda não faria mais sentido e argumentava:
Um povo que aos 40 graus de calor anda entalado em casemiras sombrias e sobrecarregado com um chapéu alto de cerimónia é necessariamente um povo constrangido, cheio de mal-estar, propenso à melancolia e ao descontentamento político. Que a esse povo seja permitido pôr na cabeça um fresco chapéu de palha (...) e ele respirará aliviado consolado e tudo desde logo lhe parecerá aprazível na vida e no Estado. (Queirós, 1912 p.61)
Com seu estilo marcadamente irônico e vivaz, Eça vai relacionando a moda à cultura política de um povo. Escrito por volta de 1880, o texto vislumbra algumas modificações nos costumes que ocorreriam apenas na década de 1920 quando os trajes e a cultura corporal assumem feições mais de acordo com o clima tropical. Também as festas cívicas como a da “Queda da Bastilha” são assunto de suas crônicas. Comentando a falta de entusiasmo popular na ocasião desses festejos, o autor argumenta que festas “decretadas por lei” inevitavelmente são fictícias (Queirós, 1912).
Eça apresenta-se como observador arguto das transformações que estão ocorrendo na cultura da modernidade. O cotidiano é a matéria-prima através da qual constrói as suas crônicas, seja falando da moda, das ruas, dos festejos, dos salões de arte, ou da literatura. Freqüentemente comenta as palavras que estão surgindo no léxico moderno. Caso, por exemplo, do seu estranhamento em relação ao termo interview. Observa que esse soa deselegante; sendo bem típico do espírito ianque. Só um parêntesis: Eça era crítico ferrenho da cultura norte-americana, criticando o industrialismo e o utilitarismo. Costumava dizer que havia “mais civilização num beco de Paris do que em toda a poderosa república norte-americana”. Por isso prefere usar o termo entrevista. Explica que, de acordo com a cultura semântica portuguesa, entrevista é um termo técnico do alfaiate. No entender de Eça esse termo traduziria com exatidão o significado real das entrevistas no mundo moderno. Vale a transcrição:
[A entrevista] significa aquele bocado de estofo mais vistoso ordinariamente escarlate ou amarelo que surgia por entre os abertos nos velhos gibões do século XVI ou XVII. Termo excelente, portanto, para designar um ato em que as opiniões tufam, rebentam para fora em cores efusivas e berrantes... (Queirós, 1912, p. 204)
O texto é expressivo revelando o impacto das entrevistas na época. Nascia um novo jornalismo em que as grandes reportagens se deslocavam em busca de assuntos e opiniões. Entre 1830 e 1914 a cidade de Paris vivia a “idade de ouro” dos jornais, com o surgimento da grande imprensa mobilizando paixões no público e levando-o a tomar posições nos assuntos os mais variados (Wolgensiver, s.d.).
Eça retrata esse cenário em mudança, tentando nele inserir Portugal e o Brasil. Percebe no Brasil o esboço de um novo linguajar, distinto daquele falado em Portugal. Não são apenas novos tons, ritmos mas formas. É no seu jeito irônico que interpela os seus leitores:
“Vós aí no Brasil, amigos, possuís a arte sutil de cunhar vocábulos que por vezes são geniais. Fabricai um que subistitua o interview e sereis benditos!” (Queirós,1912. p. 204)
As crônicas de Eça significavam um up to date, um convite irrecusável para integrar-se à modernidade, participando ativamente do desenrolar dos seus acontecimentos. Se o cenário desta é Londres e depois Paris, o protagonista é sempre português. Esse dado é importante. Há um estilo implícito aí, um falar próprio, que muitas vezes se expressa através da caricatura, tanto verbal como visual. E o importante é que Eça de Queirós tem como destinatário o leitor brasileiro. Jamais o perde de vista, faz-se próximo a ele, procurando sensibilizá-lo e envolvê-lo a cada momento.
É pela boca de um dos seus personagens mais brilhantes e controversos — Fradique Mendes — que Eça de Queirós vai emitir algumas de suas opiniões sobre o Brasil. Tais opiniões vão se expressar através de cartas em que o personagem expõe, sem nenhuma autocensura, os seus pensamentos, valores e opiniões as mais inconfessas. Na realidade, é através de Fradique que Eça de Queirós expressa muitas de suas idéias e projetos irrealizados. Em correspondência aos amigos, freqüentemente queixava-se da falta de espaço na imprensa para debater idéias. Argumentava sobre a necessidade urgente de criar jornais “decentes onde decentemente se pudesse dizer o que se pensasse” (Vianna Filho, 1984). Fradique Mendes desempenha, de certa forma, esse papel. Não mede palavras, diz o que pensa, sem recorrer a subterfúgios.
É através da Gazeta de Notícias que Eça publica algumas das cartas de Fradique Mendes. Em carta endereçada a Eduardo Prado, esse assim manifesta a sua opinião sobre o Brasil:
O que eu queria — e o que constituiria uma força útil para o universo — era um Brasil natural, espontâneo, genuíno. Um Brasil nacional, brasileiro, e não esse Brasil que eu vi feito com pedaços de Europa, levados pelo paquete e arrumados à pressa, como panos de feira... (Queirós, 1952)
Através do seu personagem Eça de Queirós critica a cultura européia, dizendo-a infectada pela “banalidade e senso comum”. As idéias deveriam ser como as boas maneiras: adotadas em vez de serem criadas. Assim, seria necessário desfazer as idéias acumuladas pelo processo civilizatório tais como as de progresso, moral, religião, indústria, artes. Só assim poder-se-ia alcançar a originalidade, inspirando-se na natureza e no “primitivo” (Queirós, 1952). Nesses escritos, Eça de Queirós acaba reforçando uma vertente de pensamento que privilegiava a intuição e emoção como canais de apreensão da realidade. Tal vertente encontraria forte repercussão entre a intelectualidade brasileira através da obra de Graça Aranha, conforme assinalei anteriormente.
Eça, através de Fradique, expressa o seu diagnóstico da cultura brasileira: velhos pedaços da Europa, panos de feira arrumados à pressa. Na sua última carta (1888), o personagem lamenta essa perda da originalidade brasileira que importara o positivismo, a ópera bufa, fazendo até os sabiás gorjearem Madame Angot (Queirós, 1952). É patente a crítica que o autor faz da cultura bacharelesca:
A Nação inteira se doutorou. Do norte ao sul do Brasil, não há senão doutores, com toda a sorte de insígnias, em toda a sorte de funções. Doutores com uma espada, comandando soldados; doutores com uma carteira, fundando Bancos [...] Doutores sem coisa alguma, governando o Estado! Todos doutores. Homens inteligentes, instruídos, polidos, afáveis — mas todos doutores! (Lyra, p.231)
A crítica ao chamado lado doutor da nossa cultura será temática obrigatória entre os modernistas brasileiros. Ela aparece nos escritos de Lima Barreto, notadamente no Triste Fim de Policarpo Quaresma (1916). Também Oswald de Andrade no seu Manifesto da Poesia Pau Brasil (1924) posiciona-se “contra o gabinetismo”, pedindo a “prática culta da vida”. Em Macunaíma, Mário de Andrade satiriza a distância entre a linguagem falada e a escrita que acarretaria o pedantismo intelectual. A recorrência ao tema é, portanto, significativa ao longo da nossa história.
A revista D.Quixote e outras congêneres mostram-se atentas para a questão, manifestando — através de uma série de caricaturas — a crítica ao bacharelismo e erudição. É visível o impacto que algumas idéias de Eça de Queirós exercem sobre o modernismo brasileiro, notadamente sobre o grupo dos intelectuais humoristas cariocas. Esses assumem claramente a sua filiação ao mestre. Glosando e parodiando o nome de personagens e obras de Eça, presentificando os seus textos na realidade brasileira, eles marcam a expressividade do autor português na construção dessa passagem tensa para a modernidade. Através dessa releitura de Eça de Queirós vemos esboçar uma vertente de pensamento que articula humor e ironia com reflexão. Não é por acaso que Fradique Mendes — um dos seus personagens que se caracterizava pelo cosmopolitismo, audácia de pensamento e gosto inveterado pela boemia apareça freqüentemente como pseudônimo dos intelectuais humoristas cariocas. É significativo que Mendes Fradique, um dos intelectuais criadores da “História confusa”, sessão da revista D.Quixote, venha adotar o nome de Fradique Mendes. O personagem de Eça vai ter papel expressivo no imaginário da cultura brasileira. Em 1915, Oswald de Andrade na revista Pirralho simula uma enquete de opiniões em que indaga aos artistas e intelectuais o significado da figura de Fradique Mendes (Broca, 1956). Não importam as respostas obtidas mas sobretudo a pergunta. Essa evidencia a carga simbólica de que se revestia o personagem, capaz de corporificar anseios, dúvidas e indagações muito próprias.
Tais idéias mostram que a modernidade brasileira se constrói a partir de múltiplos caminhos e influências. Por isso faz mais sentido pluralizar o termo, falando-se de modernismos. É possível, então, resgatar a presença de autores como Eça de Queirós.
Conclusões
Em conclusão, gostaria de reforçar a idéia do complexo imbricamento entre tradição e modernidade, como uma das bases da “cultura modernista”. Se o grupo da revista D.Quixote se diz em conflito com as tradições e disposto a construir as bases de um “pensar moderno”, é necessário perceber como ocorre esse processo. Já vimos que os intelectuais humoristas descartam um retrato “tradicional” do país: aquele que vincula tristeza e etnia. Isso porque elegem o humor como expressão da modernidade e da identidade cultural brasileira. Mas essa expressão também vai se sustentar a partir de uma tradição: a do humor.
As idéias expostas até agora denotam o impacto da obra de Eça de Queirós junto ao leitor brasileiro no que refere à constituição da própria idéia de modernidade. A sua contribuição na Gazeta de Notícias durante quase vinte anos fornece elementos de análise para se refletir sobre o processo da inserção do Brasil na cultura da modernidade. Através da figura de Fradique Mendes, Eça sugere um retrato do Brasil, expressando os impasses e dificuldades advindos da absorção não seletiva das idéias. Nos seus escritos, se parece considerar o cosmopolitismo como fator imprescindível no processo de atualização cultural, sugere que esse seja balizado pelo crivo da nacionalidade.
Na década de 1920, os modernistas paulistas deslocam-se para a Europa em busca de uma experiência considerada vital: a do multiculturalismo. Mas cabe indagar se os escritos de Eça de Queirós na Gazeta de Notícias já não estariam transportando os leitores brasileiros — desde finais do século XIX — para essa vivência cosmopolita mesmo que fosse através de uma “viagem por procuração”.
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Notas