Camões e Eça de Queirós

A (i)legibilidade de Lisboa n'A Capital de Eça de Queirós

Izabel Margato
PUC-Rio


Quando nos aproximamos dos romances de Eça de Queirós, vamos como que acompanhados por alguns "itinerários de leitura" traçados pelo próprio Autor. Esses itinerários podem ser pressentidos nos subtítulos dos romances:

"Cenas da vida devota" - para O crime do Pe. Amaro;
"Episódio doméstico" - para O Primo Basílio;
"Episódios da vida romântica" - para Os Maias;
"Cenas da vida portuguesa" e "Começo de uma carreira" - para A capital.

A esses subtítulos acrescentam-se variadas notas ou comentários explicativos progressivamente elaborados pelo Autor. Se num âmbito restrito essas "orientações" podem funcionar como indicadores dos assuntos tratados nos romances, numa esfera mais ampla, o escritor sugere um certo tipo de leitura quando claramente define a sua proposta, ou melhor, o seu propósito de escritor sintonizado com os preceitos estéticos da nova corrente literária. É impossível esquecer o trecho com que Eça define os objetivos de sua ação enquanto escritor e intelectual português, representante de uma geração que coloca em causa a sociedade portuguesa, para "regenerá-la", para "ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada"[1].

A minha ambição seria pintar a sociedade portuguesa, tal qual a fez o Constitucionalismo desde 1830 - e mostrar-lhe como num espelho, que triste país eles formam, - eles e elas. É o meu fim na "Cenas da Vida Portuguesa". É necessário acutilar o mundo oficial, o mundo sentimental, o mundo literário, o mundo agrícola, o mundo supersticioso[2].

Com esta clara tomada de posição somos levados a identificar, ao longo dos textos, os representantes desta ou daquela camada social. Luiza salta aos nossos olhos como "a burguesinha da Baixa"; o Conselheiro Acácio é construído com as tintas fortes do político ridiculamente sentencioso, de tom convencional e vazio de sentido. Alencar será o tipo acabado do poeta romântico, agora sem emprego nesses novos tempos literários. E há outros, muitos outros que, como figuras recortadas, compõem a galeria dos personagens ecianos com funções e características definidas por Eça para espelhar a sua visão da sociedade portuguesa da época.

Não é diferente o processo de apresentação de A capital. Além do subtítulo ("Cenas da Vida Portuguesa" ou "Começo de uma Carreira"), temos a opinião do autor sobre o romance:

Estou bastante contente com A Capital - ainda que receio que se repitam as acusações de escândalo, desta vez mais sérias, porque não se trata de mulheres, nem de amores, mas são pinturas um pouco cruéis da vida literária em Lisboa (jornalistas, artistas, etc.) Deus queira que ninguém tenha a tolice de se julgar ferido.

Com essa nota sabemos de antemão que o propósito do autor foi, mais uma vez, o de fazer o retrato de um dos segmentos da sociedade portuguesa (jornalistas e artistas) - prática ditada pelos postulados da escola realista a que aderira.

Tendo em mente esse itinerário, procuramos definir também este recorte de leitura e escrita. Lisboa é o nosso objeto de análise. Os "escritores" e "artistas", destacados pelo Autor, também estão presentes em nossa leitura - não apenas como personagens mas como alegorias (no sentido benjaminiano do termo) da cidade, como signos particulares no "emaranhado das existências humanas"[3] que a movimentam.
O principal eixo deste roteiro é a demanda da legibilidade de Lisboa tal qual a fez o particular olhar desse "pintor" de cenas portuguesas da Lisboa oitocentista. Duas direções (ou indagações) demarcam o nosso ponto de partida. São elas:


"O que é ler uma cidade?" e "Como Eça de Queirós leu/escreveu Lisboa em A Capital?"
Com a primeira indagação, podemos dizer que ler uma cidade é partir do pressuposto de que lemos através de mediações discursivas, de outras leituras, pois a cidade não se apresenta como um mundo de coisas decifradas, mas como um mundo de signos escritos ou inscritos, uma rede, um tecido que se oferece à decifração.

Ler a cidade é tentar entender essa rede intrincada rastreando idéias, metáforas, símbolos para, a partir deles, construir uma espécie de mapeamento, um outro tecido - uma outra representação. Ler a cidade é ainda perceber que o intrincado da rede é, ele mesmo, o resultado de uma concentração de linguagens.
Decifrar linguagens é pois a tarefa do leitor de cidades que em sua particular leitura promove uma espécie de atualização de traços formadores dessa tecedura de signos que a cidade contém mas onde também está contida.

Ao promover a atualização, o leitor constrói, na representação, a sua cidade, pois também está claro que "qualquer cidade é um pouco construída, feita por nós"[4].
Por outro lado, cada leitor lê a cidade num processo que também atualiza os seus códigos de decifração. É com eles que lê os recortes e fragmentos do que conseguiu perceber na cidade, já que também só "nos apercebemos das coisas pela importância vital que elas assumem para nós"[5]. A partir daí, cada leitor vai construir/escrever uma espécie de mapa particular, a sua representação da cidade na cidade.

O desejo de quem olha é o que dá forma à cidade

No texto A Capital a visibilidade de Lisboa vai ganhar corpo na encenação do desejo de Artur. A partir de seus sonhos, fantasias e fantasmagorias, personagem e cidade se revelam, numa estranha mistura de imagens contraditórias.

Num primeiro momento, Lisboa é o que o jovem provinciano de educação romântica consegue imaginar:

Lisboa! - Concebia a vida que a enchia, violenta e grandiosa, como um mundo da Comédia Humana de Balzac: era de resto, pelos romances franceses, que reconstruía a sociedade de Lisboa: e não tinha uma idéia menos desproporcionada da sua edificação - imaginando-a de ruas enormes, sonora de trens e flamejante de gás, assentando a sua pompa movimentada sobre a larga baía azul, onde esquadras manobram e salvam as torres de outros séculos! Mas era a existência noturna de Lisboa que o fascinava: imaginava sentir nos cafés entre o ouro dos espelhos balançar-se a sussurração das conversas literárias; via à porta dos teatros apinhar-se uma multidão sôfrega de arte nas praças em redor todas alumiadas, grupos discutirem com sutileza a estética dos poetas e a política dos oradores. Depois parecia-lhe avistar janelas embaciadas de restaurantes, onde artistas e cortesãs celebravam orgias poéticas como galas; e mais longe, os balcões dos salões aristocráticos, de onde saía uma claridade discreta tamizada pelas sedas das bambinelas: aí, imaginava a vida de um mundo superior, em que as faces são pálidas da emoção contínua dos sentimentos romanescos; aí diplomatas, cujos sorrisos têm a frieza da razão de Estado [...]; aí, sentadas em móveis de veludo e cetim, ideais figuras de beleza patrícia respiram ramos de violetas, com olhares onde brilha sob um fluido o ardor dos adultérios: e aí, vivia Clara... E em redor no mistério da vasta cidade, imaginava a existência das personalidades atormentadas do romance ou do teatro. [...] Mas nesta fantasmagoria, entusiasmavam sobretudo o mundo dos jornalistas: era um ruído incessante de máquinas de impressão, salas de redações resplandecentes de penas que correm sobre o papel derrubando ministérios ou edificando glórias e ditos de folhetinistas que têm a profundidade de uma filosofia, na precisão de um aforismo!... E via-se lá, revendo provas, lendo o seu nome em cada jornal, fazendo civilização![6]

Não faltam fantasmagorias a esta descrição idealizada de Lisboa. No seu desmedido desejo pela Capital, o romântico sonhador - habitante da periferia - não pode adivinhar que existem diferenças entre Paris e Lisboa. Para ele Lisboa deve ser como Paris, i. é, uma referência maior, um ponto de convergência que acolhe todo o seu ideal de cidade.

É importante notar que nessa perspectiva ingênua com que Artur imagina Lisboa estão presentes diferentes alegorias da cidade moderna de que Paris é o modelo: o bulício das grandes avenidas flamejantes de gás; a pompa e o brilho dos cafés; os teatros; a multidão; o ardor e a elegância das mulheres requintadas, sensíveis; a poderosa vida dos políticos e o ruidoso mundo dos jornalistas - enfim, a civilização.

Com essas alegorias - que Eça lhe põe diante dos olhos pela via dos romances franceses -, Artur constrói a sua fantasmagórica cartografia de uma Lisboa desconhecida. Com ela vai viver e esperar que a Boa Fortuna venha ao encontro das suas necessidades. Mas, na distância da província, Lisboa além de objeto do desejo, passa a ser, pouco a pouco, uma necessidade:

Por que não iria para Paris, ser operário, amar uma Mimi republicana do Faubourg St.-Antoine e conspirar contra o Império? Pensou em ir para Lisboa, fazer-se escudeiro numa casa fidalga, onde a sua figura e as suas réplicas profundas lhe dariam bem depressa o amor da senhora condessa ou da mulher do banqueiro... (p. 871).

Lisboa era agora a sua necessidade, o seu ideal, a sua mania (p. 880).

Tudo o que o cercava e o retinha, a casa e a farmácia, lhe parecia então mais odioso: tudo na vila lhe dava uma sensação de obscuridade que o abafava - as ruas que se lhe afiguravam estreitas como as idéias, as fachadas que eram inexpressivas como os rostos: quase detestava aqueles que nunca leriam seus versos, sobretudo aqueles que decerto o desprezavam (p. 881).

A província é um espaço propício para essas desmesuras do desejo por Lisboa. Mas qual Lisboa? A fantasmagórica cidade moderna fornecida pelos romances franceses? Esta ainda é a grande imagem com que Artur povoa a capital. Mas esta imagem vai agora ampliar-se, pois a esterilidade intelectual de Artur leva-o também a imaginar Lisboa como o único lugar propício à criação.

Acusava então desesperado a monotonia da vila triste que o esterilizava. Ah, se estivesse em Coimbra, em Lisboa sobretudo! Lá entre os jornalistas, a Ópera, os poetas, o seu cérebro que agora lhe parecia uma pedra que apesar de muito batida guarda obstinadamente a sua faísca, flamejaria então numa inspiração contínua! Mas não desistia, sustentado por uma ambição histérica de ver o seu nome em folhetins, de ser admirado pelas senhoras sensíveis - e as tias não compreendiam o que ele fazia, passeando até altas horas pelo quarto, consumindo regularmente uma vela de sebo, enquanto Albuquerquezinho, que era doido, esse, no quarto ao lado, ressonava sensatamente! (p. 874).

Essa imagem de Lisboa como paraíso de criação literária é reforçada pelas palavras (muito "Geração de 70") do republicano Damião, antigo colega de Artur no "Cenáculo" de Coimbra.

Tomei devida nota dos seus desesperos românticos. Acho-os patuscos - ainda que inteiramente adequados à tradição lamartiniana. Console-se fazendo um volumezinho de versos (já que as circunvoluções do seu cérebro o levam fatalmente ao verso) - não sobre as estrelas e os lírios (deve deixar essas parcelas de substância aos astrônomos e aos jardineiros) mas sobre o Homem, que é a verdadeira matéria poética moderna. E sobretudo venha para cá. A capital é, no fim de tudo, o único ponto vivo desta fétida lesma morta que se espapa à beira do velho Atlântico, sob o nome desacreditado de Portugal (p. 885).

A Lisboa de Damião ajuda a compor a rede de imagens com que Artur imagina Lisboa. A capital desejada passa a possuir mais esse fascínio: o único espaço propício capaz de inspirá-lo e desenvolver-lhe as faculdades tão necessárias para se conseguir a glória literária, os amores aristocráticos, e... a fortuna. Artur passa a odiar a província.

Na sua espera desesperada pela Capital, não se dá conta de que uma outra Lisboa lhe é apresentada. Uma outra leitura da cidade. São as Lisboas do Joãozinho Mendes, o Chouriço, e a de Rabecaz:

- Pois eu vou-me até à capital!... Desenferrujar!... Se quiser alguma coisa...
- Que se divirta!
- Fica por minha conta! Há de se encher este ventrezinho! E então que vamos ter um rico inverno em Lisboa! Sassi em S. Carlos, cancanistas francesas no Casino... Naturalmente, fornada nova de espanholas... Não lhe digo mais nada... (p. 844).

- O amigo nunca esteve em Lisboa?
- Não - disse Artur.
O Rabecaz deu uma palmada na coxa:
- Então, meu caro senhor, não sabe o que é gado! Não faz idéia do que é um pé catita!
O Rabecaz deu uma punhada na mesa. - Então não sabia o que era a pândega!
Falou imediatamente de si: tinha vivido em Lisboa, ele, com cavalos, com cadeira em S. Carlos, com carruagem!
No tempo em que Madame Ortza era uma beleza, e o Marrare era um céu! Que batidas para as Portas de Algés, que orgias com a Contadini!
- Comi tudo, mas regalei-me! - disse, dando um puxão aos bigodes. Fora um príncipe (p. 878).

Estas duas passagens, que recortam Lisboa a partir de uma nova perspectiva, se aproximam pelo significado de suas imagens mundanas e atualizam uma outra dimensão erótica da cidade. À Capital, refinada e romanticamente idealizada dos romances franceses, acrescenta-se agora uma Lisboa habitada por espanholas e cancanistas propícias a pândegas e a orgias variadas.
Artur amplia o seu mapa fantasmagórico da Capital e, com ele, parte para Lisboa.
Levado por Eça, de Oliveira de Azeméis a Lisboa, Artur tenta pertencer à Capital, esse mundo misterioso e fascinante, povoado de imagens contraditórias, cuja representação fabulosa do desconhecido pode ser sintetizada na expressão "a ilegibilidade da cidade".

Arguto leitor de cidades, o Autor de A Capital não desconhece este intrínseco atributo das cidades - a ilegibilidade. Sabe que Lisboa, como todas as cidades, é de difícil leitura, porque sabe também que toda a cidade, antes de tudo, é marcada pela multiplicidade. A cidade possui variados ritmos e o sujeito ao percorrê-la passa a confrontar-se com "a invasora angústia de que tudo pode acontecer". Espaço do "infinitamente perdido", a cidade resulta, assim, nessa "fantástica acumulação de todos os possíveis".
Os primeiros momentos de Artur em Lisboa revelam essa angústia:

Artur encolheu os ombros, furioso. De resto, observando os homens na rua, já pensara que o seu fato de Oliveira era mal talhado e provinciano: por isso só saiu à noite, depois de aceso o gás.

Com que deleite pisou enfim as lajes ainda úmidas dos passeios, respirou a friagem de inverno, o ar de Lisboa, que, depois do pesadume das ruazitas de Oliveira, lhe parecia ter a vitalidade oxigenada onde se dilatam as faculdades! Embasbacava para as vitrinas alumiadas das lojas; estacava, pasmando para os rostinhos pálidos das mulheres que passavam; voltava-se com admiração para seguir as carruagens de criados perfilados; e da claridade do gás, da vastidão das ruas, a multidão sussurrante, vinha-lhe como que uma sensação de atividades espalhadas, de paixões, de grandezas vagas que o perturbava: era como se a atmosfera estivesse saturada das emanações de uma vida rica, sábia, idealizadora e ardente! Mas sentia-se acanhado: apesar de apetecer prodigiosamente uma gravata azul que viu num mostrador, não ousou entrar na loja; o trotar das parelhas entontecia-o; o andar desenvolto dos homens, falando alto, dava-lhe um medo pueril de agressões; tinha vergonha do seu velho paletó, mais curto que as abas da sobrecasaca que trazia; sentiu-se mesmo agradecido a um sujeito que lhe pediu lume, cortesmente, como se recebesse dele um ato de benevolência. O homem, depois de acender o charuto, disse para outro que esperava, assobiando:


- Para o Martinho, hem?
E Artur foi-os seguindo timidamente, ansioso por ver o Martinho! Pareceu-lhe esplêndido, com a acumulação dos chapéus altos entre os espelhos dourados, sob uma névoa de fumo de tabaco, no bruaá contínuo das conversas. Não se atreveu a entrar. À porta um grupo palrava, e Artur contemplava-o de longe, com devoção, pensando que deviam ser poetas e estadistas... Subiu-lhe então de repente ao cérebro um vapor excitante de emanações intelectuais: teve pressa de entrar naquela existência - relacionar-se, regalar-se das discussões sobre Arte e Ideal, ser também de Lisboa! (p. 912).

Artur quer pertencer a Lisboa, entender a cidade e possuí-la:

Foi então descendo ao acaso o Moinho de Vento, e ao passar por S. Pedro de Alcântara, penetrou sob as árvores e foi encostar-se às grades. A cidade cavava-se em baixo, no vale escuro, picado dos pontos de luz das janelas iluminadas, e, na escuridão, os telhados, os edifícios, faziam um empastamento de sombras mais densas. Aquelas luzes, debaixo daqueles tetos, que fermentação de vida! Quantos amores, quantos mistérios, crimes talvez! Ali, jornalistas compunham artigos, oradores preparavam discursos, estadistas conferenciavam, mulheres aristocráticas, nas suas salas, falavam de amores, e, nos pianos ricos, gemiam as cavatinas apaixonadas. Que grande, Lisboa! (p. 913).

Mas como entender esse labirinto?

Uma cidade ajuda a ler a outra, o que é preciso é possuir um código que nos ajude a recortar e recolher imagens para engendrar a sua legibilidade. Um mapa pode ser um primeiro caminho, mas o mapa é mais uma representação simbólica da cidade, é um recorte de superfície, não coincide com ela. É apenas uma de suas linguagens. Eça não desconhece essa restrição porque sabe que para ler uma cidade é necessário trabalhar com a sua sintaxe, transitar em sua rede de sentidos.
Mas a Lisboa que vamos encontrar em A Capital não é uma cidade articulada apenas pela leitura do autor. O itinerário é mais complexo, já que construído por leituras em cruzamento. Existe a Lisboa lida e escrita por Eça e existe, em contraponto, a leitura que Artur faz da cidade. Elas não são coincidentes porque cada olhar demanda um certo tipo de legibilidade.

A Lisboa de Eça, de certo modo, está sintetizada na nota de apresentação: "Pinturas um pouco cruéis da vida literária em Lisboa". A passagem abaixo pode servir de amostragem:

Tinha-se servido o café e uma vozearia erguia-se no fumo alvadio dos charutos. Com os cotovelos na mesa, em atitudes pesadas de fartura, sujeitos falavam com intimidade; ao fundo da sala, numa altercação áspera, um indivíduo de lunetas gritava, perguntando se o tomavam por tolo; um homem de pele corada, enfartado, arrotava tranqüilamente; o Padilhão queimava conhaque no café, e o Melchior, excitado, discutia com o visconde, com palavras muito cruas, as pernas da Vizenti, a primeira dançarina de S. Carlos (p. 930).

Esta não é uma Lisboa muito refinada. A Lisboa de Artur é aquela que ele consegue perceber nessas pinturas "um pouco cruéis" de jornalistas e artistas que compõem uma espécie de recorte na sociedade letrada lisboeta.

Como afirmamos acima, Artur leva na bagagem o seu modelo de capital. Contrariamente ao que se espera, esse modelo não é alterado, é antes reforçado e muitas vezes confirmado pelos "roteiros" que Melchior e Meirinho lhe apresentam.

- Com franqueza, aconselho-lhe. Em Lisboa é necessário andar bem vestido. Que tal lhe parece isto? (p. 922).
Melchior falou longamente de Lisboa. O que havia de melhor, segundo ele, era a bela rapaziada! Porque lá isso de soirées, bailes, - histórias! No fim, para que se estava neste mundo? Para gozar, ter amigos alegres, um bom jantarzinho, uma pandegazinha, umas mulherzinhas de vez em quando. E para isso, não havia como Lisboa! (p. 923).
- Faça casaca, deve fazer casaca! Em Lisboa é essencial... E é a especialidade do Vitorino! - E apertando-lhe o braço, muito grave: - E sobrecasaca... É de rigor! (p. 924-5).

Quem precisa de olhos quando dispõe de dois guias?

Artur encontra em Melchior o jornalista que corresponde aos seus sonhos de celebridade e, em Meirinho, o "homem de sociedade que lhe permitirá "furar", i. é, fazer parte dessa sociedade de homens célebres e de mulheres fascinantes. Ambos o enganam, mas isso é o menos, pois o espaço que habitam coaduna com a necessidade de Artur de ser amado, conhecido e glorificado.
Artur é roubado por ambos que vêem nele uma presa fácil, principalmente porque Artur não sabe ver, julga que vê.

Tinha-se servido a sopa, quando entraram na sala do hotel. E no primeiro relance, o aspecto das mesas, com brilhos de vidros e de plaqués faiscando sob a luz crua dos lustres de gás, os ramos de flores fazendo centro à ordenação das sobremesas, as pessoas bem vestidas que julgava ilustres, as gravatas brancas dos criados, deram a Artur um vivo deslumbramento, imobilizaram-no junto da porta, um pouco embaraçado, passando com um gesto errante, os dedos pelo bigode (p. 926-7).

Aquele curto fragmento de diálogo também pareceu a Artur muito fino, muito da Capital, e recostou-se na cadeira, com uma satisfação comovida. Toda a sua vaidade se dilatava ao sentir-se ali, a uma mesa rica, entre indivíduos que supunha personagens eminentes da Política, das Letras ou da Finança; todos os detalhes lhe alegravam - a luz forte do gás, os molhos, a atenção dos criados, os sifões, - mas movia os braços com um cuidado acanhado, como se receasse quebrar alguma coisa, observando-se, impondo-se modos delicados (p. 827-8).

E todo aquele 'cavaco' ruidoso se desprendia para ele o indefinido conjunto da vida de Lisboa, complexa, intensa, fortemente dramática - onde, como sobre um fundo luminoso, se destacava a figura delicada da senhora do vestido de xadrez (p .930).

São inúmeras as passagens em que o autor pinta com um pouco de crueldade a sociedade lisboeta. Mas Artur não possui os códigos com que Eça lê essa sociedade. Julga que as pessoas bem vestidas que vê são as pessoas ilustres que imagina, pois o seu olhar está filtrado pelos "enredos" de Melchior e Meirinho que confirmam as suas referências fantasmagóricas e as descrições de Rabecaz.

Artur teve a sua espanhola e até conheceu uma artista francesa, mas a sua permanência em Lisboa é uma seqüência de enganos. Erra pelas ruas como erra na vida, ao sabor do acaso destituído de significação. Artur não sabe atribuir um sentido particular aos incidentes da cidade. Não percebe os equívocos, os acidentes do percurso que podem ser transformados em instrumentos de aprendizagem.
Artur não encontra a verdadeira dimensão erótica da cidade. O erotismo que conhece é aquele que confirma a Lisboa de Rabecaz e do Chouriço.

A enganosa confirmação de suas fantasias não lhe permite entender que "o erotismo da cidade é o ensinamento que podemos tirar da natureza infinitamente metafórica do discurso urbano". Para Roland Barthes, a dimensão erótica da cidade não se confunde apenas com "o bairro reservado a esse gênero de prazeres", é antes, "o lugar do encontro com o Outro, o lugar da troca, o Centro, o ponto de reunião de toda a cidade".

Artur não consegue "furar" esta rede. Flutua na cidade sendo pilhado e pilheriado por todos - até por um espanhol.

Neste momento é impossível não citar Almada. Uma passagem de seu brilhante Nome de guerra: "Toda gente sabe que ninguém neste mundo é estúpido senão por não saber estar onde está."[7]

Diferente do Antunes, que soube fazer de Lisboa o seu livro de aprendizagem, Artur percorre Lisboa sem saber estar. O seu percurso, reafirmo, é de enganos. Mas a cidade não pode desenganá-lo porque Artur não habitou Lisboa, nem foi habitado por ela. Não houve transformação nem aprendizagem. Artur apenas deu continuidade a seu projeto.

"Tudo na sua vida era assim incompleto, esboçado, fragmentário; não encontrava nada de sólido em que se fixar, a que se dedicar" (p. 966).

Lisboa lida por Artur é, então, uma Lisboa destituída de mistério, não porque ele tenha descoberto a linguagem que transforma mistério em referente, mas porque viveu a cidade na confirmação de suas fantasias. Artur continuou sendo um projeto de poeta romântico, gasto, fora do tempo e do espaço.
Artur é a mentira encenada em A Capital.

Ironicamente, o narrador põe na boca de Melchior a questão que o livro encena: "Partiu ou chegou, menino? É que não é a mesma coisa!" (p. 919).

Para Artur é a mesma coisa. Depois de arruinado financeiramente, Artur volta a Oliveira de Azeméis sem que a Capital o tenha transformado.

Para acentuar ainda mais a ironia dessa "vida", no final do livro há uma alegorização da teoria de Lavoisier - "Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma": a tia Sabina, depois de morta, se transforma em "erva tenra" destinada aos coelhos.

No entanto, para Artur essa máxima não vale: ele se perde em Lisboa, mas não se transforma.
De volta a Oliveira, passa os dias a sonhar com a "Lisboa brilhante" que lhe chegara com a carta de Melchior. Como no passado, passa a esperar a ajuda da fortuna para voltar a Lisboa. A capital é mais uma vez o seu objetivo do desejo, a sua necessidade.

Considerou o seu destino: voltar para Lisboa sem recursos permanentes, sem amizades úteis, apenas com os seus pobres quinhentos mil réis que se evaporariam num verão, era impossível. Não havia que sofismar - era impossível. Que lhe restava então? [...] A tia Ricardina estava velha, afetada, à beira da morte; herdaria dela alguns contos de réis, cinco ou seis que fossem: poderia então, com um apoio mais sólido, recomeçar a vida, voltar a Lisboa (p. 1.087).

Esse trecho encena a retomada do antigo projeto. É o recomeço do círculo.
Resta, então, a pergunta: n'A Capital de Eça de Queirós, Artur consegue ir a Lisboa?

Notas

  • 1 QUENTAL, Antero. Prosas, II, p. 90.
  • 2 QUEIRÓS, Eça. "Carta a Teófilo Braga". Correspondência (1978), p. 50.
  • 3 Estes termos são retirados de CALVINO, Italo. "Exatidão". Seis propostas para o próximo milênio (1990), p. 85.
  • 4 BARTHES, Roland. "Semiologia e urbanismo". A aventura semiológica (1987), p. 189.
  • 5 LOPES, Óscar. Os sinais e os sentidos - literatura portuguesa do século XIX (1986), p. 263.
  • 6 QUEIRÓS, Eça. A Capital. In: ---. Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1978, p. 885-886. (As passagens apresentadas a seguir serão apenas a indicação das páginas.)
  • 7 NEGREIROS, Almada. Obras Completas.

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