Gerd Bornheim
UERJ
A democracia trata de um advento maior, que soube trazer consigo a transformação do próprio sentido da totalidade dos cometimentos culturais. Seu pressuposto fundamental está na presença singular e novidadeira do indivíduo, mas na medida em que ele se deixa inserir em um todo social abrangente. São conceitos, estes, novos: indivíduo e povo são coisas que só souberam instituir-se no curso dos tempos modernos.
Costuma-se atribuir a Aristóteles duas definições do homem, a de animal racional e a de animal político. Em verdade, o que ele diz, no início de seu tratado sobre a Política, é que o homem é um animal que fala. A fala grega elabora a racionalidade, já que defende teses, opiniões, interpretações, e a invenção da filosofia se faz no espaço público; o elemento racional e o político entrosam-se, no curto espaço da prática ateniense da democracia, enquanto totalidade por assim dizer exemplar: o homem que fala, dentro daquele contexto, é a tempo e a hora racional e político. Não sei em que momento subseqüente estabeleceram-se aquelas duas definições da realidade humana, que passaram a ser vistas de modo dissociado. E os caminhos se mostraram complicados. Assim é que o animal racional passa a sofrer todos os embates provenientes da hegemonia da fé, a teologia encobre mal as exigências da racionalidade. E, de outro lado, verifica-se essa extraordinária ausência do animal político; de fato, no passado e tudo bem considerado, inexiste esse animal político, o homem restringia-se à condição de súdito, e não entendia nem mesmo a guerra que estava fazendo: é que político era apenas o rei, ou o papa, e os seus asseclas. O curioso está em observar que aquela dupla definição do homem tributada a Aristóteles só veio a ter real vigência nos tempos modernos, e isso a exibir todo o potencial de suas contradições intrínsecas. Pois é então que surgem, em sua plenitude, as exigências da autonomia da razão, e também a elaboração da experiência e do conceito de cidadania. De resto, a prática da racionalidade e o exercício da cidadania oferecem-se agora como elementos, ainda que ponderados todos os conflitos, muito mais entrosados do que possa parecer à primeira vista.
Portanto, as peripécias do cogito e as discussões sobre o contrato social nascem como que dentro de um mesmo berço. Disso adviria o sucesso imbatível da ciência e, também, o estofo inovador dos movimentos revolucionários. São dois, repito, os personagens novos que tudo reinventam: o indivíduo e o elemento coletivo. Sabe-se o quanto, logo de saída, o indivíduo soube arvorar-se em mentor de inéditos destinos. Já o coletivo levou mais tempo para caracterizar-se, como que a controlar a violência que nele vinha embutida; entenda-se, por aí, a inovação dos textos dramatúrgicos de um Schiller, só para citar um exemplo. Numa primeira peça, Os Bandidos, o poeta apresenta um grupo de rapazes, herdeiros de Rousseau, que se rebelam contra a ordem da cidade estabelecida, e tentam organizar-se, baldadamente, fora dela — o fracasso da empresa nem importa: trata-se da invenção de uma nova raça que ainda hoje povoa as nossas ruas, os hippies de todas as espécies. Em outro texto do mesmo poeta, Fiesko, assiste-se à luta de auto-extermínio da tradição: são dois duques que se aniquilam na busca do poder; de permeio, a platéia consegue ouvir os gritos enraivecidos de protesto do povo, mas sem vê-lo: é que o povo apenas começa a nascer, situado ainda nos bastidores da cena. Schiller chegava a constranger-se com a violência que ele mesmo predizia; alguns meses depois da encenação de Os Bandidos, o dramaturgo escreve um prefácio ao texto para desdizer-se, condena o furor dos jovens e declara-os perigosos à ordem vigente. Tarde demais: os jovens já se instalavam na cena viva, e embrulhavam-se nas aventuras de uma política em tudo novidadeira, a começar pelos prenúncios da Revolução Francesa.
A questão certamente poderá aclarar-se se tentarmos abordá-la no âmbito de um conceito que muito tem a ver com a convivência entre noções como cultura e democracia. Penso aqui nessa corrente filosófica que surgiu sem poder dar-se conta da importância que viria a representar para o desenvolvimento dos tempos modernos — o nominalismo. Em sua aparente modéstia inicial — mera coisa de clérigos —, o nominalismo ostenta, na prematuridade de seus inícios, e mesmo minimalizando-se a noção de causa, uma das dimensões fundamentais de todo o complexo que está nas origens da grande revolução dos novos tempos. Permito-me, em brevíssimas linhas, traçar-lhe as motivações de base, a fim de que se vislumbre toda a amplidão que habita já os seus pontos de emergência. Pois o nominalismo pergunta singelamente apenas isto: o que há no nome? qual a população que se pode ver instalada no arcabouço interno de um conceito? E os tardios medievais dessa escola respondiam com uma palavra que recusa ao conceito toda e qualquer pompa, toda majestade, e que se resume a dizer que o nome nada é, ou antes, é apenas o próprio nome, essa fraca voz que a tudo se refere mas que em si mesma nada é. O asserto põe em questão simplesmente as próprias bases de toda a cientificidade pretérita, e o que começa a instalar-se está no que hoje, de modos até mesmo confortáveis, vem sendo alcunhado de crise da metafísica. Pois o nominalismo inventou a metafísica enquanto realidade pretérita.
O que há no nome? A resposta metafísica a esta questão conheceu os seus maiores lances a partir das investidas do pensamento grego, claramente inauguradas por Platão e Aristóteles: eles poderiam ter dito uma frase cuja inversão hoje se fez evidência óbvia: a essência precede a existência. A essência, quer dizer: a estabilidade absoluta, a realidade maior, a vigência da Idéia absoluta de um Platão. Que segurança poderia oferecer a ciência, não ostentasse ela o aval do Absoluto, o sentido da própria realidade divina? Pois o nome era o abrigo preciso dessa fundamentação absoluta. E é nesse exato ponto que reside a saudável insídia do nominalismo: e se os pilares absolutos das bases do conceito desfalecessem? Foi justamente esse desfalecimento que instituiu — ainda que em nome da fé — o esvaziamento teológico do conceito: o nome é apenas o nome, mero signo, símbolo, o referencial mínimo a indicar uma realidade maior, e a maioridade agora pertence ao indivíduo concreto.
Pois, de muitos modos, os tempos modernos, despidos já do pudor daqueles monges e da espúria linguagem dos milagres, nasce por inteiro daquele esvaziamento do conceito. O que é esvaziado? É, por exemplo, a figura do Cristo, que deixa de ser norma do bem e da beleza, dos caminhos da vida e da verdade; desfalece o mundo das essências divinas a garantir a estabilidade do saber, desmorona a soberania da presença do rei, garantida que era pela própria divindade. O esvaziamento atinge tudo aquilo que determinava a natureza do que pode ser denominado de universais concretos: esses universais que preconizavam um sentido paradigmático, de modelo — modelo da própria instauração do saber, da santidade, da epopéia dos heróis, do bem, do belo e da verdade e, last but not least, do poder, da monarquia, do poder dos reis e dos papas. Pois não é que todo esse mundo de sombras divinas começa a dessorar-se?
O verso famoso de Gertrude Stein poderia aqui ser parafraseado: um nome é um nome é um nome é um nome é um nome — e nada mais do que um nome; assim como uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa, e uma rosa é apenas isso — um pleno indivíduo. Assim também, e sempre aduzindo a sabedoria da poeta, escrever é escrever é escrever é escrever é escrever — e apenas isso, os modos de dizer aquela plenitude do indivíduo, da rosa, dessa rosa que dura apenas o espaço de uma manhã; ou da multidão de tudo o que existe, da unha do pé à ponta do cabelo. O que importa já não é a espécie e sim o número, a profusão das personagens de um Balzac, ou de um Machado, ou dos avessos escrutinados por Guimarães Rosa, ou por um Dostoievski, ou por um Rimbaud qualquer. Ou, no preciso plano da linguagem, por um Carlos Drummond de Andrade.
Assim chegamos a isso: ao nome da rosa, como que a dispensar o conceito. Entretanto, sobre o nominalismo cabe dizer muito mais, e avançar que o feito maior dessa corrente — já estamos adiantados em suas conseqüências — delimita-se em dois pontos verdadeiramente cruciais, ou daquilo que os tempos modernos souberam fazer do indivíduo e da ciência. Simplifico: a segunda metade do século XIX dividiu as ciências em dois grandes setores: o das ciências da natureza e o das ciências culturais. Tudo por conta do nominalismo.
As primeiras, as da natureza, querem agora, com uma singeleza que disfarça mal o tamanho de suas pretensões, definir a própria água, emprestar-lhe seu nome preciso; não a água dos grandes dilúvios; esses ficam, por ora, por conta do próprio Deus criador, posto que a imensidão das águas continua, em larga medida, não dominável pelo homem. O homem quer agora, menos pretensiosamente, outra coisa: ele quer simplesmente denotar o nome da água. O nominalismo inventa essa ambigüidade radical: de um lado, a fórmula que agora expressa a água, em seu acabamento de proporção matemática, nem existe e nem pode existir e nem deve existir: ela é pura criação da inteligência humana. A ambigüidade surge de outro lado: justamente de dentro de sua condição abstrata, feita à medida do homem, estabelece-se a possibilidade de essa fórmula definitória da água poder ser manipulada. Digamos que seja impossível criar em laboratório uma água quimicamente absoluta, mas, pelo viés das aproximações, as portas foram abertas, e o que se inventa é nada menos do que a revolução tecnológica, a revolução industrial — e tudo por conta do próprio homem. O nome vazio dos velhos nominalistas revela-se, por aí, o poder maior finalmente à disposição das medidas do homem.
E, de outro lado, há ainda essa outra grande revolução, também ela em tudo nominalista: o instituto das ciências humanas. Agora, o que interessa está em mostrar o assassinato de César, acontecimento único, datado no tempo e localizado no espaço, fato definitivamente irrepetível em si mesmo e em suas implicações sociais e políticas — e fundamento de uma grande nova ciência: a história. Nesse cenário, às surdas, já repercute o mote que viria a fazer sucesso no século XX: a existência precede a essência, esta entendida agora como mero produto daquela. Ou seja: o que importa passa a concentrar-se em tudo no existir do indivíduo: o que importa está em Joseph K, em Riobaldo, na antidama das Camélias e no que foi feito de Teresinha de Jesus. De modo inteiro, e isso pela primeira vez, o indivíduo se despe ou se vê despido da velha teologia dos universais concretos; não que os universais concretos desapareçam ou se tornem inoperantes, mas eles metamorfoseiam os seus alicerces, que deixam de ser teológicos e se fazem sociais, históricos, psicológicos. Agora, a mulher não é mais a estátua dourada de Joana D’Arc, ela já não é nem santa nem heroína, mas apenas a mulher de trinta anos, mulher plena ou o avesso dela mesma, e que é inteira em sua individualidade sempre particularizada. A novidade desse imenso mundo do romance moderno, que alicerça em largos traços a sociologia, e, principalmente, a psicologia e a psicanálise, repousa inteiramente nos avanços do nominalismo. Hoje deve-se afirmar sem constrangimentos que todas as ciências, seja as da natureza, seja as da história, encontram os seus fundamentos últimos precisamente nas teses do nominalismo.
As coisas vão tão longe que cabe falar até mesmo em invenção do indivíduo. E observe-se a ênfase: ao menos por enquanto, sem individualismo não há e nem pode haver o indivíduo. O feito principal dos novos tempos situa-se justamente nessa importância maior que passa a ser atributo do indivíduo. Mas atente-se bem para as implicações da evolução desses tempos finalmente outros. Pois ocorre que precisamente pela força emprestada ao indivíduo surge, como que por contraste necessário, uma nova problemática, toda centrada no social. Se o novo projeto burguês alicerça-se no individualismo, institui-se de modo até forçoso o tema das maneiras como esse novo homem, base de toda a progressão moderna, pode concertar-se com a vida em sociedade. Nem entro na inusitada amplidão do tema: é por aí que se inventa o imaginário das utopias, que se erguem os conflitos da viabilidade do contrato social, que a autonomia kantiana do indivíduo se vê contraposta a esse outro conceito, em tudo novo, de humanidade, ou ainda o brotar do nascimento, por vez primeira, da idéia de cidadania e desses seus corolários que são os protótipos de todas as formas de revolução social. Quer dizer: o individualismo, longe de afugentar o social, incentiva novos modos, muito originais, de invenção da atividade política. Em conseqüência, e por exemplo, o romance centrado no indivíduo reclama como que desde dentro de si o desmonte dos velhos cenários em negro e vermelho, e exige a contrapartida que sublima o elemento social.
O paradoxo reside exatamente neste ponto: é desde a intimidade do indivíduo que se ergue a necessidade das constituintes políticas. Tais constituintes giram em torno de ao menos dois pontos fundamentais. Por um lado, a já referida formação da cidadania, acontecimento de uma importância que sequer poderia ser exagerada — o homem começa por vez primeira, e realmente, a transformar-se em animal político. E, por outro lado, espraiam-se todas as resultantes da revolução industrial e tecnológica que constituem a sociedade de consumo. É justamente essa prioridade dada ao consumo que se revela altamente socializante. Marx foi o primeiro a analisar com justeza a necessidade “eterna” que se verifica entre a produção e o consumo. O trabalho, execrado numa longa tradição por ser visto como castigo decorrente do pecado, conhece, na revolução industrial, os seus dias de reabilitação, e sabe-se dos pesados percalços percorridos na educação do homem para as fainas da produção. O resultado pôde manifestar-se na crescente democratização do consumo, que passou a manifestar o seu caráter essencialmente socializante de muitas maneiras, a começar por aquela que é talvez a mais importante de todas: e é que passa-se a entender a pobreza simplesmente como falta de educação — falta de educação política, de educação social. No passado, nos medievos, chegou-se ao ponto de mascarar a pobreza fazendo dela uma espécie de virtude, como se fazia também com a castidade. Hoje todo o mundo vê: eram apenas formas de atrofia, de deseducação, e nada mais.
Claro que há os excessos: a compulsão ao consumo, por exemplo, pode levar ao desenvolvimento da neurose. Mas, em si mesmo, o consumo consegue suplantar as velhas anomalias geradas por falsas virtudes, e que produziram a agora já ressequida moral do ressentimento. A dose de verdade que possa existir nas invectivas contra o individualismo apenas fazem com que, além de escamotearem a importância maior da descoberta do indivíduo, incorram em procedimentos que atropelam o fato de que é exatamente através do nascimento do indivíduo que se coloca toda a problemática do mundo social de modo completamente novo. Digamos que, arremedando um pouco a tese da escola de Frankfurt, o nosso mundo vive de antinomias; os frankfurtenses insistiam na impossibilidade de harmonizar duas verdades maiores, a do marxismo e a da psicanálise, sociedade e indivíduo representariam hoje uma contradição aberta, necessária e insuperável. Por aí, percebe-se algo das enredações que o individualismo exige como contraponto imprescindível para o fomento dos processos de socialização, processos esses que, por usa vez, nada significariam se desprovidos do vigor da presença do indivíduo — esse indivíduo que conseguiu estabelecer-se, enfim, enquanto realidade anterior e depredadora do já inútil mundo das essências. A democracia fez-se em testemunho de tudo o que possa representar uma política visualizada nas dimensões da realidade social e humana.