Maria Etelvina Santos
Universidade Nova de Lisboa
“Gostaria de ser um entrançador de tabaco”
Herberto Helder, Photomaton & Vox
“as transmutações”
Herberto Helder é, talvez, na actual poesia portuguesa, o caso mais original no que se refere a uma prática muito singular do trabalho intertextual, quer adentro da sua própria obra, quer na incorporação que desde sempre faz de textos alheios. O seu modo de praticar essa intertextualidade situa-se à margem das habituais práticas mais ou menos livres da tradução de poesia, que encontramos noutros poetas contemporâneos, nomeadamente Jorge de Sena, David Mourão-Ferreira, Vasco Graça Moura. Também a sua poética própria se constrói «à margem» e não apenas por ser inovadora relativamente ao momento em que surge no panorama da literatura portuguesa – ainda nos anos 50 deste século.
De início, Herberto Helder confronta-se com movimentos literários como o Neo-realismo e o Surrealismo, mas seguirá um caminho distinto e que produzirá uma revitalização na poesia portuguesa a partir daquela década. Ainda hoje a poesia de Herberto Helder se orienta por um fazer poético que é sempre o da deambulação, da revisitação da própria obra, no sentido de uma busca constante cujo objectivo consiste em dar a ver o que existe de mais profundo e elementar em cada homem. A sua insatisfação permanente com o objecto poético, num desejo de chegar à perfeição que é, afinal, inacessível, faz com que Herberto Helder escolha caminhar paralelamente ao leito do rio, observando atentamente o que cresce e se mantém oculto nas suas margens, em vez de olhar o próprio curso do rio e apenas registar o seu movimento. Entenda-se esta imagem do rio como a da própria vida, onde todos os reinos – mineral, vegetal e animal – estão presentes, como uma água primordial, cadinho originário donde tudo emergiu.
Não é por acaso que me refiro metaforicamente à poética de Herberto Helder, dizendo-a «à margem» de qualquer corrente. A intenção é começar a desocultar alguns leitmotive que são uma constante em toda a sua obra. É essa referida ideia de interligação entre todas as coisas – animais, homens, minerais e linguagem – que faz nascer a sua poética e é o modo como Herberto Helder a realiza que a mantém, ainda hoje, inovadora, actual e ímpar relativamente à moderna poesia portuguesa. Poesia de deambulação e também de transfiguração ou transmutação, como ele próprio diz quando se refere ao mundo:
A transmutação é o fundamento geral e universal do mundo. Alcança as coisas, os animais e o homem como o seu corpo e a sua linguagem. Trabalhar na transmutação, na transformação, na metamorfose, é obra própria nossa. (...) o poema é o corpo da transmutação, a árvore do ouro, vida transformada: a obra.
(O Corpo O Luxo A Obra, 1977: 21)
Ou ainda,
Em recessos, com picareta e pá, sem máscara, trabalha
na especificidade
do ouro:
(...)
— obreiro e obra são uma só forma instantânea
do verbo ouro nativo.
(Do Mundo [1994], Poesia Toda: 602)
Comecei por referir a ideia condutora sob a qual se constrói toda a poética de Herberto Helder – essa constante e obsessiva necessidade de deambulação e de metamorfose. Sendo essa a característica fundamental de toda a sua obra, não será difícil perceber a relação que estabelece entre a sua obra própria e a de outros poetas e, ainda, a relação com a sua poética da tradução, neste caso tão íntima que poderemos falar de indiferenciação.
“ramificações autobiográficas”/ “a paisagem é
um ponto de vista”
Nascido em 1930 na Ilha da Madeira, Herberto Helder viajou para Lisboa com 17 anos, tendo frequentado a Faculdade de Letras de Coimbra. Da sua vida pode dizer-se que sempre foi atribulada e instável. Viveu em vários países da Europa, nos Estados Unidos e também em África. Publica o seu primeiro poema em 1954 (“Fonte”) e o primeiro livro em 1958 (O Amor em Visita); em 1961 publica A Colher na Boca e Poemacto, marcos importantes da sua escrita. Colabora em revistas como, por exemplo, Graal, Cadernos do Meio-Dia, Pirâmide, Poesia Experimental 1 e 2 (sendo um dos organizadores), Hidra e Nova. A sua escrita percorre não só os caminhos da poesia, mas também os do poema em prosa e da “ficção”.
Tentarei sintetizar os momentos mais importantes dessa poética da totalidade:
1º - Uma simbiose absoluta entre todos os seres – homens, animais e linguagem, micro e macrocosmos – sendo o corpo o elemento unificador e o lugar onde tudo o que está disperso pode vir a unir-se.
Ia bicicleta com o seu poeta que punha a mão
no poema da bicicleta.
E iam todos – poema, bicicleta, poeta e mão –
por sobre o coração da terra e a ressurreição
da primavera. (...)
(“Narração de um homem em maio”,
A Colher na Boca [1960], Poesia Toda: 89-90)
Outro exemplo:
Estás profundamente na pedra e a pedra em mim,
(...)
Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
(...)
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.
(...)
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.
(...)
Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho,
no mosto aberto
— no amor mais terrível do que a vida.
(“O amor em visita”, A Colher na Boca [1960],
Poesia Toda: 18-25)
O poema é uma espécie de cosmogonia em busca da unidade perdida e de uma solidariedade cósmica da vida; nele reencontra-se toda a natureza unificada nos seus contrários. Tal como acontece na alquimia, ou também na poética romântica, o poeta procura os vestígios de uma arquitectura oculta do universo, e a sua função é desocultá-la. Daí, o lugar central ocupado pela ideia de transformação.
Podemos ler num dos seus últimos livros:
Trabalha naquilo antigo enquanto o mundo se move
para o centro de si mesmo,
como se todos os pontos em que trabalhas fossem o centro do mundo.
(Do Mundo [1994] Poesia Toda: 614)
Se o poema é uma espécie de cosmogonia em busca da unidade perdida, enquanto objecto poético ou corpo, e sendo ele o lugar onde toda e qualquer transformação se opera, o poema é também algo que está sempre em movimento, obedecendo apenas a uma lei — a da metamorfose. Já nos anos 60, num texto de Retrato em Movimento [1968], mais tarde integrado em Os Passos em Volta, com o título “Teoria das cores”, Herberto Helder ficcionaliza (metaforiza) o discurso sobre a representação através dessa lei que preside a toda a criação artística:
Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro (...). O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. (...) Ao meditar sobre as razões da mudança exactamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose. (...).
(“Teoria das cores”, Os Passos em Volta, 7ªed., 1997: 23-24)
É esse, como se disse atrás, “o fundamento geral e universal do mundo” e o objectivo do poeta será “trabalhar na transmutação, na transformação, na metamorfose”.
O topos de uma interligação absoluta entre todas as coisas e tudo o que é humano, incluindo a linguagem, é, assim, duplamente importante em Herberto Helder: porque nos faz tomar consciência de que o diálogo intertextual está presente em toda a criação literária (também, obviamente, na tradução) através de necessárias e sucessivas transformações e porque a sua própria obra representa um todo coerente, uma rede de motivos que se repetem e são transportados para novos contextos.
2º - Uma segunda coordenada que orienta a escrita de Herberto Helder e que, inevitavelmente, se interliga com a primeira, é a que pretende evidenciar a relação intrínseca existente entre a palavra/nome e a coisa/objecto a que se refere, desenhando através da linguagem – ou melhor, na linguagem – o caminho em direcção a essa unidade mítica, lugar ideal onde todos os componentes do universo são um.
Até cada coisa mergulhar no seu baptismo.
Até que essa palavra se transmude em nome
(Última Ciência [1987], Poesia Toda: 535)
Ou ainda,
(...) como um corpo entregue ao sono,
(...)
e não se diz em que idioma
dorme ou acorda, diz-se que a sua palavra se entrança
com a nossa, vasos com vasos cingindo o sangue
poderoso.
(Do Mundo [1994], Poesia Toda: 597)
É preciso que cada coisa encontre o seu próprio nome. Só assim será possível atingir – num determinado lugar, o corpo – essa unidade indiferenciada e chegar, como se diz, à “matéria secreta de que é feito o poema” (Poesia Toda: 40). Mas essa linguagem onde cada coisa encontra o seu próprio nome é, em última instância, uma linguagem não articulada, é uma outra fala – a do sangue (daí que o lugar onde se opera a transmutação seja o corpo, o corpo do poema ou o poema enquanto corpo: “o poema é o corpo da transmutação”, escreve Herberto Helder). Diz, por exemplo, em relação a essa palavra que se procura:
Penso que deve existir para cada um
uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse
virgem de sentido e que,
vinda de um ponto fogoso da treva, batesse
como um raio
nos telhados de uma vida, e o céu
com águas e astros
caísse sobre esse rosto dormente, essa fechada
exaltação.
Que palavra seria, ignoro. O nome talvez
de um instrumento antigo, um nome ligado
à morte – veneno, punhal, rio
bárbaro onde
os afogados aparecem cegamente abraçados a enormes
luas impassíveis.
Um abstracto nome de mulher ou pássaro.
Quem sabe? – Espelho, Cotovia, ou a desconhecida
palavra Amor.
(“Poema”, III, A Colher na Boca [1960], Poesia Toda: 30- 32)
Considerado por alguns como um poeta difícil, a sua poesia não é, no entanto, uma poesia obscura e opaca, no sentido do hermetismo e do experimentalismo. Como afirma o poeta António Ramos Rosa, referindo-se a Herberto Helder, “A sua efectiva obscuridade é luminosa e, não raro, incandescente. A sua luz, aliás enigmática, é a luz de um poeta que não cessa de acorrer ao enigma da criação poética e da matéria a que ela se liga, realizando assim uma fulgurante osmose verbal com o que é vertiginosamente incompreensível.” (Ramos Rosa,1991: 70).
O que há de mais importante neste alquimista órfico será a sua ars combinatoria – os princípios segundo os quais tece uma vasta rede de motivos principais e secundários para permanentemente os transformar. A ser difícil, esta poesia sê-lo-ia no sentido de que a sua leitura é uma leitura infinita. Como afirma o poeta e ensaísta Joaquim Manuel Magalhães, “Herberto Helder é difícil para o próprio Herberto Helder”, talvez porque “A sua linguagem está onde não chegou ainda a linguagem de todos, que é também a sua.” (Magalhães, 1981: 135).
“movimentação errática”
Um poeta que considera o texto como um corpo vivo de palavras e de carne e que continuamente persegue a utopia do instante pré-babélico, através da transmutação da linguagem desse corpo (numa espécie de alquimia do verbo que o conduzirá ao momento da génese), é um poeta que a si próprio se traduz ao «revisitar» a sua própria obra, alterando, mudando, reutilizando frases e vocábulos. Trabalha os textos sobre os textos na sua obra própria, num processo que poderemos chamar de auto-intertextualidade e que Herberto Helder continua a utilizar até ao seu último livro de poesia publicado, onde surgem reescritos certos textos e fragmentos de livros mais antigos.
Relate-se, como exemplo, o que aconteceu aquando da publicação de Cobra [1977]. Os exemplares oferecidos pelo autor aos críticos e amigos continham diferentes correcções manuscritas, o que nos permite falar das diferentes versões de Cobra. Vários críticos se ocuparam de alguns aspectos teóricos inerentes a esta questão como, por exemplo, a dúvida em relação ao que era citável num texto com tantas variantes. O próprio Herberto Helder encaminhou as respostas, ao afirmar (numa carta a Eduardo do Prado Coelho, datada de Outubro de 1977 e publicada na revista Abril nº1) :
As versões têm variado de destinatário para destinatário, não atendendo a qualquer conjunto de peculiaridades dos destinatários, mas porque o livro, em si mesmo, digamos, flutua. É um livro em suspensão, talvez só essa suspensão seja citável. Não é excitante que um livro não se cristalize, não seja «definitivo»? (...) Gostei da sua pergunta sobre o que seria citável. Sim, o que é citável de um livro, de um autor? Decerto, a sua morte pode ser citável. E, sobretudo, o seu silêncio.
(in, Diogo, 1990: 63)
Duas questões me parecem aqui fundamentais para o estudo de Herberto Helder enquanto poeta que, por um lado, continuamente se reescreve (podemos dizer que ele se cita, alterando o seu próprio texto) e, por outro, incorpora, através de citações não explícitas, a escrita de outros poetas e de outras tradições poéticas:
1º - Um livro não pode considerar-se definitivo – o que explica a opção de Herberto Helder, de continuamente reescrever os seus livros (nenhuma versão é igual à publicada anteriomente);
2º - Um livro é algo em suspensão e só essa suspensão é citável – o que remete para a afirmação de que, num livro, só o seu silêncio ou a sua morte é citável: só o que não é dito, o que não é captável no plano da significação, pode ser dado ou transmitido através da citação, como desejo de não fixação do sentido.
Pretende Herberto Helder que não o citem porque os seus textos, ao estarem em constante mutação, são matéria volátil, logo, não são citáveis? Ou será que todas as versões são citáveis, uma vez que todas têm a assinatura do autor, e, nesse caso toda e qualquer citação é legítima? Ele furta-se à citação ou faz a sua apologia? Sabemos que, na sua própria obra, ele incorpora as palavras de outros poetas, “traduzindo-os”, como diz, “para mim”, sendo este «mim» uma espécie de idioma (cfr. texto introdutório a “Carta para Ruggero Jacobbi (Emilio Villa)”, in Ouolof: 77).
Se Herberto Helder cita outros poetas é porque considera que há uma forma produtiva de citação, e que me parece ser a utilizada por aqueles que, como ele, são capazes de entrar no tempo mítico do poema, o tempo da indiferenciação primordial, aceitando a androginia do poema ou vendo este como o oroboro mítico, serpente que morde a própria cauda e que encerra no seu movimento circular o espaço e o tempo onde a vida acontece: símbolo de morte e ressurreição, a serpente mantém o equilíbrio do cosmos.
“O poema é um animal”, diz Herberto Helder no início de Cobra. E continua: “nenhum poema se destina ao leitor” – a tónica é posta na produção e não na recepção. O poema é esse animal que se regenera permanentemente e não se dirige ao leitor, no sentido em que não indica uma leitura; o leitor elege a sua leitura dentro das inúmeras possibilidades que o texto oferece. Ao imitar a simbologia mítica do oroboro, o poema garante a coesão do cosmos através da produção de significações que são também produção de movimento – tal como os planetas em torno do seu eixo.
O texto Cobra pode ser entendido, pelas alusões sumariamente feitas, como paradigmático relativamente à poética de Herberto Helder, mostrando (através da imagem do oroboro) a permanente e necessária mutação que preside a todos os elementos do universo, incluindo a linguagem; e também o uso da reescrita do texto como sinal de depuração do mesmo, quer essa reescrita seja feita adentro da obra do autor quer pela assimilação das palavras vindas de outros. Cito Maria Estela Guedes que me parece captar numa curta frase a essência desta problemática: “Mude mil vezes de pele, é sempre a mesma cobra. Tenha mil versões, a Cobra é sempre a mesma obra.”(Guedes,1997: 187)
Vimos, através do exemplo de Cobra, como Herberto Helder apresenta um dos modos de «revisitação» da sua própria obra.
Esta continuada reflexão metatextual, bem como o incorporar de textos alheios, será uma constante na sua poética e não põe em causa a originalidade do poeta. Ela deve ser entendida, no dizer de António Ramos Rosa, como uma “confluência de leituras”: “No que me diz respeito, esse receio não existe. Considero-me um poeta extremamente influenciável e até um pouco plagiador.”( Ramos Rosa, Jornal de Letras, 25 Agosto 1992).
Herberto Helder não assume a influência do mesmo modo, pelo menos não se assume como plagiador; mas ainda que sofresse a chamada «angústia da influência» de que fala Harold Bloom, Herberto Helder encontra um caminho muito particular relativamente à integração, na sua obra poética, das palavras de outros, resolvendo, assim, a possível legitimidade da citação. Cito o crítico norte-americano: “(...) a auto-apropriação implica as imensas angústias da dívida, visto que nenhum fazedor forte deseja a realização que não conseguiu por si criar.” ( Harold Bloom, A Angústia da Influência [1973], Lisboa: Cotovia, 1991: 17). No entanto, acrescenta: “Mas a influência poética não faz necessariamente poetas menos originais.” (ibid.: 19). E, mais adiante, na mesma obra: “Os poemas são escritos por homens e não por Esplendores anónimos (...)” (ibid.: 55).
Originalidade e influência (ou, como lhe chama Bloom, «encobrimento poético») não constituem uma dicotomia e não são incompatíveis. O que Bloom pretende fazer no seu livro é uma história das relações intertextuais, mostrando como cada poeta, procurando o seu espaço próprio, é sempre devedor de muitos outros; em sua opinião, o poeta precursor é incorporado, mas ao mesmo tempo recalcado pelo novo poeta. A história das influências terá, assim, como modelo o complexo edipiano em que cada filho tenta conquistar o lugar do pai.
E volto a transcrever uma afirmação de António Ramos Rosa que clarifica, em meu entender, este aspecto da poética de Herberto Helder: “(...) a originalidade não exclui a assimilação, (...) ela pode ser até o resultado de uma imitação profunda e pessoal.” (Ramos Rosa, 1962: 149)
Antes do século XVIII, os poetas não sofriam essa «angústia da influência»: sabiam usar a tradição sem angústias. E, posteriormente, alguns continuaram a olhar desse modo a tradição: para Nietzsche, por exemplo, influência era sinónimo de vitalização, e Goethe afirmava que “só apropriando-nos das riquezas dos outros podemos trazer à existência qualquer coisa de grande”.
Essa incorporação de outros poetas, mais do que de um desejo de os imitar, resulta de uma necessidade de os integrar numa poética própria; os poemas trans-mudados, ao entrar num novo contexto, como Ramos Rosa também diz, “ actualizam virtualidades implícitas no contexto original.”. Assim sendo, não existirá a angústia da influência, já que o novo texto, pela sua actual contextualização, é já outro – ainda que, no caso extremo da tradução, possa ser o mesmo. A tradução é, em Herberto Helder, mais um dos muitos processos de escrita que encara a transfiguração ou transmutação como regra e fundamento geral do mundo.
O interesse de Herberto Helder pela tradução, no sentido mais amplo de recriação das palavras de outros, surge, desde sempre, interligado com a sua escrita poética própria. O seu primeiro livro de “versões” (assim denominado) é O Bebedor Nocturno, escrito entre 1961 e 1966. Curiosamente, durante esses anos escreve dois livros que, não tendo a ver com tradução, têm características muito particulares dentro da sua obra: A Máquina de Emaranhar Paisagens (1963) e Húmus (1966). Em ambos utiliza uma ars combinatoria – aparecem citações de vários autores que, juntamente com as suas próprias palavras, contribuem para que um só texto vá nascendo. As mesmas citações são utilizadas mais de uma vez e reordenadas no tecido do texto. Em Húmus, chega a referir previamente:
Material: palavras, frases, fragmentos, imagens, metáforas do Húmus de Raul Brandão.
Regra: liberdades, liberdade.
(Poesia Toda: 280)
A mesma arte combinatória continua a ser utilizada por Herberto Helder na sua obra própria; mais recentemente (passaram entretanto 20 anos), em Última Ciência (1987) o poeta refere que, embora não citando fielmente, se inspira em quadras populares retomando delas determinadas expressões que previamente indica. E fora também no ano anterior que iniciara mais um livro de “versões” – As Magias, publicado em 1988.
“verso inverso do verso”
Farei uma breve alusão às obras em que Herberto Helder reuniu até hoje as suas versões: O Bebedor Nocturno (anos 60), As Magias (anos 80) – repare-se que decorrem cerca de 20 anos entre os dois – e, mais recentemente – passaram 10 anos desde o último – três livros nos três últimos meses de 1997: Ouolof, Poemas Ameríndios e Doze Nós numa Corda.
Que textos, que autores, encontramos nestes livros? Porquê estes títulos? Ainda outra questão: primeiramente denominados como “versões”, as traduções de Herberto Helder surgem agora como “poemas mudados para português”. Não sendo possível enumerar, por ora, a diversidade de autores e, sobretudo, de textos, que surgem em cada um desses livros, tentarei fazer uma síntese através das motivações que penso terem orientado o poeta nas suas escolhas.
Desde os anos 60 que se torna evidente o interesse de Herberto Helder por textos oriundos de determinadas culturas que vieram a sofrer grandes mutações, ou de culturas locais, primitivas e anónimas, e que vieram a ser objecto de colonização. Textos, portanto, onde a tradição está sempre presente e é particularmente preservada, mas também ameaçada. São poemas do Antigo Egipto, da Grécia, poemas Zen, arábico-andaluzes, poesia mexicana do ciclo nauatle, poemas esquimós, indochineses, mas também todo um ciclo de textos sagrados como os Salmos do Velho Testamento ou o Cântico dos Cânticos. Os mais recentes livros mostram o mesmo critério, embora o alarguem substancialmente: os textos vêm-nos da Índia, da Austrália, de África e das Américas. A maioria são textos maias e astecas e textos da tradição oral dos diferentes índios da América do Norte, Central e do Sul, como os Navajos e Comanches ou, no Brasil, os Caxinauás e os Guaranis. (É imensa a lista que poderia ser dada, bastando apenas consultar o volume Poemas Ameríndios).
O interesse de Herberto Helder por estas tradições primitivas, não europeias, advém da maneira peculiar como também ele olha o mundo, nele se insere e convive com a linguagem. Nessas tradições, ele encontra a mesma linguagem ritualística, uma vontade de expressão simbólica semelhante e os mesmos valores humanos inseridos numa cosmogonia poética; também a unidade original de todos os elementos da natureza e a ideia de uma metamorfose contínua (nomeadamente por acção do fogo, através de todas as suas manifestações), assim como a imagem do poeta como mago, possuído por uma força animista da linguagem. Todos estes aspectos estão presentes tanto nos textos a traduzir como na poesia própria.
No segundo livro de versões – As Magias – Herberto Helder inclui não só textos anónimos, mas também textos de autores conhecidos na história das literaturas – alguns escolheram, como ele, sair da Europa, viveram em países como o Brasil ou o México, e a sua escrita revela também traços dessas tradições primitivas. É o caso de D.H.Lawrence e de Henri Michaux. No caso de Lawrence, o interesse de Herberto Helder poderá ter surgido através de determinados leitmotive presentes no escritor inglês – considerado como um outsider na sociedade conservadora em que vivia – e que se orientam sempre por uma afirmação e uma presença forte do instinto e da pulsão sexual. A sensualidade presente em toda a sua obra, nomeadamente num dos poemas – “Figs” – que Herberto Helder viria a “mudar” para Português, pode ter sido um aspecto importante, se pensarmos no significado que a libido, o sexo e o corpo assumem na obra de Herberto Helder.
— Figos —
(D. H. Lawrence)
A maneira correcta de comer um figo à mesa
É parti-lo em quatro, pegando no pedúnculo,
E abri-lo para dele fazer uma flor de mel, brilhante, rósea, húmida,
desabrochada em quatro espessas pétalas.
Depois põe-se de lado a casca
Que é como um cálice quadrissépalo,
E colhe-se a flor com os lábios.
Mas a maneira vulgar
É pôr a boca na fenda, e de um sorvo só aspirar toda a carne.
(...)
Os italianos apelidam de figo os órgãos sexuais da fêmea:
A fenda, o yoni,
Magnífica via húmida que conduz ao centro.
(...)
(As Magias, Poesia Toda: 496)
Relativamente a Henri Michaux, o poeta mais traduzido por Herberto Helder, poderemos apontar constantes como a errância, numa busca permanente de algo que permanece oculto e que ele não encontra na civilização que habita. Michaux viaja pela América do Sul, pela China, pela Índia. Procura uma linguagem interior, sem palavras, chegando, por isso, a inventar um léxico próprio. O seu interesse pelas tradições primitivas e anónimas é muito semelhante ao de Herberto Helder.
Através de Henri Michaux, poderíamos passar para outra questão de alguma importância nas versões de Herberto Helder, e que diz respeito aos títulos que escolhe para esses livros. Refiro particularmente o caso de Ouolof (publicado em Outubro de 1997) que abre com a seguinte epígrafe de Michaux:
On parle à des décapités
les décapités répondent en «ouolof».
Que língua é esta que dá o título, tão misterioso, a este livro? A língua em que falam os decapitados? Uma língua pós-morte, um gemido gutural? Uma língua do sangue? O título pode sugerir tudo isso – algo de enigmático, simbólico, mágico. Como escreveu um crítico português, imediatamente após a publicação do livro, “Trata-se de uma palavra que não significa nada (...). Não é uma palavra, é um ressoar, uma alusão a uma música que não pertence à linguagem e à história dos homens.” (António Guerreiro, Jornal Expresso, 29 Novembro 1997). Talvez a epígrafe de Michaux aponte para isso, o que continua em sintonia com a poética simbólica de Herberto Helder. No entanto, essa língua existe: Ouolof é uma tribo e uma língua do Senegal (e, embora não sendo a língua oficial, é falada por cerca de metade da população). As implicações de leitura seriam outras se atendessemos a este facto concreto e não à poética e enigmática citação de Henri Michaux e ao próprio título, não explicado, de Herberto Helder. Mas a prática de escrita deste legitima ambas as leituras.
Mais evidentes são os títulos As Magias e Poemas Ameríndios, uma vez que os textos neles incluídos se ligam a rituais mágicos e são provenientes dos índios das Américas.
Aos textos que traduz chama hoje Herberto Helder, como se disse, “poemas mudados para português”. Que implicações poderemos observar nesta maneira de considerar a tradução? Como traduz Herberto Helder? O que significa para ele traduzir?
Apesar de não haver em Herberto Helder uma teoria sistemática da tradução, existem, no entanto, no conjunto da sua obra, bastantes momentos que nos permitem traçar as linhas fundamentais de uma poética da tradução. Podemos partir de três tipos de fontes:
1º - O texto introdutório a O Bebedor Nocturno, que é o primeiro testemunho desta problemática, e o texto que introduz o poema “A Criação da Lua”, in Ouolof.
2º - A própria poesia e prosa de Herberto Helder, onde surgem passagens que claramente dizem do ofício do poeta-tradutor.
3º - Textos de outros autores, que Herberto Helder escolhe traduzir e que definem metaforicamente o ofício do tradutor.
Na introdução a O Bebedor Nocturno, o autor apresenta-nos, em paralelo, duas figuras: a do poliglota – um desesperado caçador de equivalências – e a do poeta-tradutor que não sabe línguas e vê nisso a sua vantagem. Por isso, está numa posição de poder traduzir de forma livre e fiel, fiel porque livre, e de reconhecer no texto aquilo que verdadeiramente importa: o “clima geral do poema”, a “temperatura da imagem” a “velocidade do ritmo”.
Posteriormente, num comentário sobre a tradução do longo poema Caxinauá “A Criação da Lua” (in Ouolof: 47-75), Herberto Helder retoma formulações afins e considera que a sua tarefa principal é ritmar a língua dos Caxinauás na língua de chegada, “sem afectar o movimento da linguagem”, “transgredindo em todas as frentes a norma da palavra portuguesa”, com o risco ou a vantagem de que “Este transtorno faz-se ele mesmo e imediatamente substância e acção poéticas”. Citamos deste comentário:
Do descentramento de estrutura entre as duas línguas – captado como legitimidade poética – advém por si só uma força expressiva instantânea em português, um português desarrumado, errado, libertado, regenerado, recriado. A fala anima-se com uma energia material jubilante. É novíssima.
(Ouolof: 44)
O resultado soa assim:
Do caxinauá seu nome seu feiticeiro é.
Caxinauás muitos pelejarem para suas gentes ajuntaram,
aqueles com pelejam.
Da vespa as gentes, muito corajosas muito,
ali do sol do rio à beira,
da vespa as gentes moram. Caxinauás de capivara rio
com moram, os
caxinauás do sol do rio ciosos
são.
Os binanauás noite dentro dormem todos, deitados
estavam, os caxinauás
escuro dentro cacete com espancaram-nos,
acabaram. Um só, sono com
acordou, o terçado tirou, de feiticeiro nauá,
lobonauá,
a cabeça degolou. Seu corpo caiu, está deitado,
a cabeça rolando, rolando vem
por todo o caminho.
(...)
(Ouolof: 47-48)
Das alusões metafóricas à tradução presentes na própria obra de Herberto Helder, darei alguns exemplos que aproximam essas duas poéticas:
Alguns nomes são filhos vivos(...)
(...)
Como passar-lhes tanta força, meter as mãos no idioma
torcer as tripas como soprar nos sacos quentes, transferir
o segredo? (...)
(Os Selos, Outros, Últimos [1990], Poesia Toda: 577)
(...)
Deus disse: um idioma que brilhe.
E eu trabalho para este espaço em que ponho a mão a peso
de sangue, o Dom
de exercer os instrumentos terrestres
(...)
(Do Mundo [1994], Poesia Toda: 602)
(...)
Leia-se agora tudo num idioma cada vez mais estrangeiro e, de súbito, nas palavras
Onde sempre se nasce – sempre
Esta ciência chama-se ver com o corpo o corpo iluminado.
(Retrato em Movimento [1961-1968],
in Poesia toda 2, Lisboa, Plátano Editora: 140)
E, por último, um pequeno poema de Herberto Helder, que me parece ser dos mais significativos no modo como se entende o confronto original/tradução:
Um espelho em frente de um espelho: imagem
que arranca da imagem, oh
maravilha do profundo de si, fonte fechada
na sua obra, luz que se faz
para se ver a luz.
(Do Mundo [1994], Poesia Toda: 614)
De entre os textos de autores que Herberto Helder escolhe traduzir, e onde se define metaforicamente o ofício do tradutor, poderiam referir-se dois poemas que abrem, programaticamente, os dois últimos livros de versões. O primeiro, com o título “Sobre tradução de poesia” é do poeta polaco Zbigniew Herbert e compara o trabalho do tradutor com o de um besouro que percorre o corpo da flor “e vai direito ao centro/ do aroma e da doçura/”, até penetrar na flor “e mostrar aos cépticos a cabeça/ coberta de ouro/ de pólen.” (Ouolof: 9-10). O outro poema é de Henri Michaux, intitula-se simplesmente “Tradução” e surge no início do volume Doze Nós numa Corda. Michaux recorre, de modo irónico, às figuras do marinheiro e da viagem marítima – uma metáfora que, referida ao próprio poeta, tem tradição pelo menos desde Coleridge e Rimbaud – para sugerir de forma imagética a «miséria e esplendor da tradução». É ainda Michaux quem, numa epígrafe deste mesmo livro (“Saisir: traduire. Et tout est traduction/ à tout niveau, en tout direction.”), melhor sugere aquele que será, provavelmente, o significado de traduzir para Herberto Helder. Nas suas próprias palavras, todas de sentido idêntico e de formas diversas, traduzir significa, a todos os níveis e em todas as direcções: trans-mudar, trans-ferir, trans-fundir, entrançar, trans-figurar, trans-mutar. Essa busca, como foi referido no início, tem sido também sempre a da sua obra poética – o desejo de “alcançar as coisas, os animais e os homens com o seu corpo e a sua linguagem. Trabalhar na transmutação, na transformação, na metamorfose (...)”.
“notícia breve e regresso”
No cerne da poética de Herberto Helder está, como se viu, um princípio de sintonia e de osmose entre a obra própria e os textos de outros autores, que ele utiliza, a que dá outra forma, que trans-forma, mudando-os, como diz, para português, textos de outras línguas que encontra na língua portuguesa (porque é um verdadeiro encontro que acontece), textos que in-corpora na sua obra poética própria, realizando essa simbiose onde texto alheio e texto próprio surgem indiferenciados, na mesma busca da unidade perdida e de uma solidariedade textual (da poesia) e cósmica (da vida). Creio que em Herberto Helder esta utopia é, paradoxalmente, alcançada.
Neste trabalho com o texto próprio e o texto alheio sobrepõem-se e fundem-se em Herberto Helder, como no início se sugeriu, diferentes processos poéticos que surgem interligados, por vezes até indiferenciados, de que destacarei em particular dois: a auto-intertextualidade, presente devido ao facto de o poeta estar sempre a «revisitar» a sua própria obra e a reutilização e assimilação que o poeta faz dos textos de outros poetas, incorporando-os nos seus próprios textos (caso particular das suas versões, a que actualmente chama “poemas mudados para português”). *
Mas a própria obra deste poeta está cheia de momentos de grande luminosidade em que se revelam melhor os princípios que informam o seu trabalho poético. Por exemplo, neste excerto de Última Ciência:
Pratiquei a minha arte de roseira: a fria
inclinação das rosas contra os dedos
iluminava em baixo
as palavras.
Abri-as até dentro onde era negro o coração
nas cápsulas. Das rosas fundas, da fundura nas palavras.
Transfigurei-as.
Na oficina fechada talhei a chaga meridiana
do que ficou aberto.
Escrevi a imagem que era a cicatriz de outra imagem.
A mão experimental transtornava-se ao serviço
escrito
das vozes. O sangue rodeava o segredo. E na sessão das rosas
dedo a dedo, isto: a fresta da carne,
a morte pela boca.
— Uma frase, uma ferida, uma vida selada.
(Última Ciência [1985], Poesia Toda: 545-546)
Este trabalho poético consistirá, então, em abrir as palavras, transfigurá-las, trabalhar na oficina fechada, escrever a imagem que é cicatriz de outra imagem, ter a mão experimental que se transtorna ao serviço escrito das vozes.
Novembro 1998
Bibliografia
1. Obra (fontes dos textos referidos)
— Poesia Toda. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996
— Os Passos em Volta. [1963] Lisboa: Assírio & Alvim, 7ªed., 1997
— O Corpo O Luxo A Obra. Lisboa: & etc., 1978
— O Bebedor Nocturno [1968], in Poesia Toda I, Lisboa: Plátano Editora, 1973
— As Magias. Versões. Lisboa: Assírio & Alvim, 1988
— Ouolof. Poemas mudados para Português. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997
— Poemas Ameríndios. Poemas mudados para Português. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997
— Doze Nós Numa Corda. Poemas mudados para Português. Lisboa: Assírio & Alvim, 1998
2. Crítica
— Maria Lúcia Dal Farra, A Alquimia da Linguagem. Leitura da cosmogonia poética de Herberto Helder. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985
— Américo António Lindeza Diogo, Herberto Helder: Texto, Metáfora, Metáfora do Texto. Coimbra: Almedina, 1990
— Américo António Lindeza Diogo, “Biografia, readymade (Herberto Helder)”, in Modernismo, Readymade. Notícias das trincheiras. Braga/Pontevedra: Cadernos do Povo, 1997, pp. 51-89
— Américo António Lindeza Diogo, “Herberto Helder e a arte”, in Linguagens de Fazer, Afazeres sem Linguagem. Poesia Experimental, Nuno Júdice, Herberto Helder. Braga/Pontevedra: Cadernos do Povo, 1997
— Maria Estela Guedes, Herberto Helder, Poeta Obscuro. Lisboa: Moraes, 1979
— Maria Estela Guedes, “Cândidos animais transmutando-se. Releitura de Herberto Helder”, in O Escritor (Revista da Associação Portuguesa de Escritores), Nº9, Março de 1997, pp. 182-190
— Joaquim Manuel Magalhães, “Herberto Helder”, in Os Dois Crepúsculos. Sobre poesia portuguesa actual e outras crónicas. Lisboa: A Regra do Jogo, 1981, pp. 123-138
— Joaquim Manuel Magalhães, “Herberto Helder”, in Um Pouco da Morte. Lisboa: Editorial Presença, 1989, pp. 125-136
— Maria de Fátima Marinho, Herberto Helder. A Obra e o Homem. Lisboa: Arcádia, 1982
— António Ramos Rosa, “Herberto Helder – Poeta órfico”, in Poesia, Liberdade Livre. Lisboa: Moraes, 1962, pp. 149-157
— António Ramos Rosa, “Herberto Helder e a subversão das categorias do real”, in A Parede Azul. Lisboa: Caminho, 1991, pp. 63-70
Notas