João Barrento
Universidade Nova de Lisboa
Imagino que estes balanços impossíveis, estas tentativas de tomar o pulso à poesia num dado momento, como uma operação que pudesse ser feita de forma impessoal, sem nomes, por um potente computador em cuja memória fossem entrando os livros de poesia ao longo dos anos. E a máquina, cega para os nomes e previamente instruída nos parâmetros literários a considerar, faria o ponto da situação da poesia — da poesia, não dos poetas, que não conhece nem tem de conhecer. Por aí veríamos o que se vai extinguindo, o que se continua e o que é novo (se é que há verdadeiras novidades na poesia de hoje), as formas, os temas, as zonas de experiência dominantes, os processos de linguagem e retóricos, e por aí adiante. A ideia teria certamente agradado a poetas-críticos como T. S. Elliot ou Pessoa, paladinos modernos da impessoalidade, ou do apagamento do Eu na vertigem excessiva das suas máscaras. E não a rejeitaria também um crítico-poeta como Walter Benjamin, que conseguiu escrever quase sem recurso à palavra “ Eu” , e que sonhava com uma obra toda feita só de citações acumuladas. Imagino-os a todos maravilhados com o computador.
Mas para o propósito que hoje me anima, e para os tempos que correm, isto é uma utopia não desejável. A nossa época pós-moderna, glamorosa e hedonista — e que já tem os computadores! — quer ver caras e corações, quer nomes, rostos e as vozes humanas dos poetas, quer espectáculo e histórias (talvez por isso proliferem hoje, pelo menos na Europa, os Festivais e as leituras de poesia). E aquela máquina devoradora de livros fornecer-me-ia provavelmente apenas títulos, estatísticas, quando muito índices de frequência lexical, o que, sendo um indício, é manifestamente pouco: ela não capta os subtextos, não diz nada sobre a aura que nasce das relações de vizinhança das palavras, não se apercebe da música que nos envolve neste “ jogo de fazer versos”. Imagino essa super-máquina a bloquear a cada momento, talvez mesmo a implodir, perante a insuportável perplexidade que lhe causariam versos como os seguintes: “a felicidade na aura gelada / da gabardina”; “ a devida maneira de dizer as verdadeiras coisas falsas”; “ folheias a noite com os dedos”; “E já inverno fecha em ouro e sal / um tempo que foi lume das esferas”, etc..
O Cartucho e o fim dos programas
“É do silêncio de uma época que a poesia se alimenta”, escreveu Eduardo Lourenço, também num balanço da poesia portuguesa, dos últimos cem anos (in: Um século de Poesia: 1988, 202). De facto, a linguagem secreta e discreta da poesia tende a dizer (tem de dizer?) o que a ficção, ou o jornalismo, tantas vezes rejeitam. É um género low profile, que se alimenta do que é significativamente insignificante. E que significa isto? Significa, como também já viu o filósofo Theodor Adorno, que o poema é como um relógio de sol em cujo quadrante se podem ler as mais leves oscilações do tempo e dos tempos, as vibrações anímicas de um sujeito e as zonas de sombra e luz de uma filosofia da História. Também a mim a poesia portuguesa, nomeadamente a dos últimos vinte anos, me não interessa apenas como expressão de experiências privadas que se transformam em universos metafóricos mais ou menos pessoais, eventualmente sem consequências. Importa, para além disso, observar também — e aqui o computador falharia novamente — como, nos nossos poetas, os modos próprios da expressão pessoal se vão acastelando no nosso horizonte de leitura para configurar um tempo. Um tempo que, no que se refere à sua projecção no poema, tanto pode corresponder a um tempo histórico bem definido (nos cadernos das Notícias do Bloqueio de Egito Gonçalves, para o salazarismo português; ou no livro de Affonso Romano de Sant´Ana Que país é este?, para o Brasil da ditadura e para o mundo dos anos sessenta), como remeter para uma atmosfera epocal mais difusa ( o caso mais frequente da poesia), ou mesmo apenas para um “lusco-fusco da consciência”, como do seu tempo escreveu Fernando pessoa/Bernardo Soares no Livro do Desassossego.
A poesia portuguesa tem sido, ao longo deste século, esse relógio de sol de que fala Adorno. O poeta Nuno Júdice lembrava em Outubro de 1977, na Feira do Livro de Frankfurt, em que Portugal foi país-tema, que existe um movimento pendular recorrente, ao ritmo do qual a poesia portuguesa se vem renovando em cada nova década. Até à Revolução de 1974, ou pelo menos até ao aparecimento do movimento experimental em meados dos anos sessenta, esse movimento pendular é identificável com grupos programáticos, estéticos e ideológicos, ou ambas as coisas, quase sempre associados a uma ou mais revistas e publicações colectivas. Foi assim com os grupos da Orpheu (1915) e da presença (1927), para os Modernismos; com a Seara Nova (1921 segs.), o Novo Cancioneiro (1941-44) e o Cancioneiro Geral, para o neo-realismo dos anos quarenta; ou, na mesma década e na seguinte, com os Cadernos de Poesia (1940-42) e a Távola Redonda (1950-54), para o eclectismo pós-presencista, e com os Cadernos Surrealistas (1949-50) para o Surrealismo mais “ortodoxo”; foi assim com as Notícias do Bloqueio (1957-62), uma série representativa da poesia de resistência no fim dos anos cinquenta; finalmente, com os grupos aprecidos nos anos sessenta, a Poesia Experimental (primeira grande antologia em 1964) e a chamada “Poesia 61”, que, embora sem revista própria, e sendo uma invenção posterior da crítica, constituiu nas suas origens um grupo de poetas na casa dos vinte anos que, em Faro (Algarve) giravam na órbita do seu mentor poético, António Ramos Rosa, com uma prática poética afim, que só nas décadas seguintes se viria a diferenciar. Foi precisamente essa prática — de uma poesia altamente “vigiada”, consciente dos seus meios, rigorosa na linguagem, inovadora na sintaxe e no corte do verso, lapidada e algo fria — que veio a ser contestada e radicalmente posta em causa pela geração seguinte, aquela que começa a publicar com a Revolução (mas à margem dela), ou pouco antes.
Com a apresentação — de “publicação” dificilmente se poderá falar neste caso — do Cartucho (1976), uma colecção de poemas soltos de quatro poetas (Joaquim Manuel Magalhães, João Miguel Fernandes Jorge, António Franco Alexandre e Helder Moura Pereira) empacotados num cartucho de mercearia e assim vendidos, estamos perante um gesto provocatório e dum desafio — no espírito da “Pop” americana ou da chamada “poesia de consumo” —, e assistimos ao fim da tradição de grupos e das profissões de fé programáticas. Os anos sessenta tinham estado ainda totalmente subordinados ao espírito dos Modernismos e das vanguardas históricas. Com este gesto radical (que, na sua espectacularidade neo-dadaísta, é ainda um programa, talvez o último, depois formulado com ira e nostalgia, agora entre as capas de um livro, por Joaquim M. Magalhães no poema de abertura de Os Dias Pequenos Charcos, em 1981), com esse gesto abre-se, em meados da década de setenta, uma nova fase que já se poderia considerar pós-moderna, pelo seu lado lúdico, provocatório e descomplexado (lembremos que o pós-moderno já vem sendo teorizado no Estados Unidos por Leslie Fiedler desde finais da década anterior, e que precisamente esta “geração do Cartucho” tem uma forte ligação ao mundo e à poesia anglo-americanos, nomeadamente à cena Pop). Num certo sentido, os quatro autores do Cartucho já eram então quatro vozes difenciadas, já tinham publicado separadamente e enveredaram depois por caminhos que não se podem dizer coincidentes. Esta nova orientação da poesia portuguesa, que se anuncia em simultâneo com a Revolução (“uma pirueta sobre o real demoníaco”, na visão de Vasco Graça Moura em 1976), mas sem com ela ter a ver directamente, é visível também na obra de outros autores que por esses anos ganham maior projecção, com destaque para Nuno Júdice e Vasco Graça Moura. Trata-se de dois poetas cuja obra ficcionaliza progressivamente o espaço lírico, rompe (tal como os poetas do Cartucho) com os registos emocionais e ideológicos e com o pathos lírico anteriores, cultiva uma abertura consciente a novas dicções poéticas e uma ironia por vezes dissolvente em relação a formas e discursos antes sacralizados, com o(s) do próprio Fernando Pessoa, para Vasco Graça Moura, ou, para Nuno Júdice, nas muitas “Poéticas” que enchem os seus livros, a linguagem hierática de sessenta, que um poeta sem escola, mas muito influente, como Ruy Belo, ainda definia nos seguintes termos: “poesia é complicação, é doença da linguagem, é desvio da sua principal função, que será comunicar. Só o poeta fica na linguagem, os outros passam por ela, servem-se dela...” (“Da espontaneidade em poesia”). Com os novos poetas inventa-se um novo discursivismo e uma nova retórica que levam, ou à encenação fictícia, no poema, das experiências mais pessoais e mais quotidianas (em Nuno Júdice, Diogo Pires Aurélio), ou ainda, com recurso a um largo espectro de linguagem das formas e de formas de linguagem, ao cruzamento dos grandes temas da tradição ocidental (o tempo e a morte, o amor e a arte) com o registo, em parlando, da circunstancialidade mais comezinha e dos interstícios de uma realidade “demoníaca” intensamente vivida, no caso de Vasco Graça Moura (com David Mourão-Ferreira, ele será o grande poeta doctus de uma época e de uma poesia que, com excepção de João Miguel Fernandes Jorge, irá cada vez mais perdendo as ligações à tradição cultural, para as recuperar hoje), um poeta de grande virtuosismo que assimila heranças que vão de Camões e Cesário Verde a Jorge de Sena, Vitorino Nemésio e Alexandre O’Neill.
Ostinato rigore
Paralelamente a estes filões, mais eruditos mais auto-reflexivos ou também mais deliberadamente despoetizados, de uma poesia discursiva, irónica e dramatizada, deparamos com um núcleo de poeta — Casimiro de Brito, que vem da “Poesia 61”; António Osório, que se inicia tardiamente em 1972; Yvette Centeno, cuja poesia depurada e aforística revela até hoje uma grande constância de processos; e, antes de todos estes, já Eugénio de Andrade — que contrapõem à discursividade e à estética do quotidiano uma poética do essencial e do laconismo, também ela uma poética do “real”, mas sem realismo, remetendo para uma realidade do coração, com uma carga mítica e afectiva, expressão de uma “ingenuidade de segundo grau”, como da poesia de António Osório escreveu um dia Eduardo Lourenço. Há nestes poetas uma persistência, à margem das modas, no uso de uma linguagem clara e antidiscursiva, com um pendor aforístico de inspiração oriental e mística, e uma vontade de regresso ao sentido humano das coisas, da natureza e dos momentos essenciais da vida. De quase epigramas, que se lêem como oferendas, se faz a poesia de Casimiro de Brito nos seus últimos livros, Intensidades (1995) e Opus Affettuoso (1997). O programa deste poeta vem sendo cada vez mais o de uma rarefacção da linguagem que, levada às últimas consequências, desembocaria no silêncio. É uma poesia pontuada de intensidades, fulgurações, experiências dos sentidos, do amor e da morte, em que o branco alastra, à espera da sua apoteose, sob a ameaça sempre latente da palavra supérflua (“O melhor que escrevo / é quando apago” 1995, 69). Também Yvette Centeno, no seu último livro (Entre silêncios, 1997), busca dizer as coisas sem comentário nem reflexão, para que elas existam (este seria o caminho órfico): mas, numa linha céptica já antiga (e mais hermética que órfica), vê-se levada a constatar que o nome não faz saber a coisa. E assim se abre a via de uma poesia arquetípica, elemental, da busca do fundo (ou do Sem-Fundo) de todas as coisas essenciais. Com grande economia de meios, através de uma “poesia de poeta que já não escreve”. Em António Osório, um poeta que procura conciliar o infinitamente grande com o inimaginalvemente pequeno, esta linha poética assenta em alguns princípios (“somos todos vítimas da decadência do analfabetismo”) e várias “astúcias” do poeta (a expressão vem de Borges): “limpar as palavras da sujidade”, “simplificar sempre, usar poucos adjectivos”, “dizer o inominável de uma forma brutal”, “o máximo de violência num mínimo de retórica”, “vulcânica orquestração de pianíssimos” (“Entrevista apócrifa”, in: Décima Aurora, 1982). E em Rosa Alice Branco (O Único Traço do Pincel) a filosofia e a caligrafia orientais inspiram ainda uma poética da simplicidade que baliza um horizonte utópico: escrever o poema como o calígrafo ou o pintor desenham um caracter ou uma imagem — com um único traço do pincel, para dizer “a suprema simplicidade das coisas”.
O regresso ao real e às histórias
Não voltarei a estes poetas, porque a partir de agora terei de abarcar, com referência a três orientações maiores, vinte e cinco anos de poesia portuguesa. Qualquer delas corresponde a uma rotura e a uma recusa de padrões antes dominantes, com acentos diversos:
1. Uma rotura mais espectacular, protagonizada pela referida geração do Cartucho, que introduz a viragem para uma poesia da experiência quotidiana e para um novo realismo (hiper-realismo), céptico na atitude — porque nega a euforia da poesia dos anos 50/60, em relação a sim própria ou à sua “missão”, e porque virá a proclamar que “menos poesia é mais poesia” — e urbano (ao mesmo tempo cru e culto) nas suas temáticas preferenciais.
2. Uma viragem anunciada nos anos 70 e continuada na década de 80, no sentido do regresso às histórias, ao poema longo e narrativo, e na recusa do purismo ou fundamentalismo poético da “Poesia 61” — com a consequente transformação do poema numa cena aberta, prolixa e quase promíscua, onde se encenam, numa linguagem discursiva e com a retórica à vista, todos os graus da experiência, desde a circunstancialidade do fait divers até à vaga rememoração quase proustiana de tempos perdidos e recuperados e a toda uma panóplia de remissões, envios e cruzamentos intertextuais e interculturais (em Nuno Júdice, Graça Moura, João Miguel Fernandes Jorge ou Helder Moura Pereira);
3. Uma dupla inflexão sem espectacularidade, bem mais subtil, e cujas duas frentes — o “tom menor”, elegíaco e desencantado, e o regresso à tradição — afinal se encontram: estamos no campo ecléctico dos anos 90, que, sem prescindir da linguagem coloquial e da narratividade, colhe (quase) “ todo o oiro do dia / na haste mais alta da melancolia” (Eugénio de Andrade: “Despedida” em Ostinato Rigore, 1964), e ganha uma mais forte consciência da tradição poética: neo-barroca (em Pedro Tamen, Fernando Echevarría ou Diogo Alcoforado), neo-maneirista (desde sempre em Vasco Graça Moura, e hoje também no gosto renovado pelo Bildgedicht, o poema sobre o quadro ou outra obra de arte, e no processo correspondente da ecfrase), neo-classicista e neo-simbolista (nos versos de grande luminosidade e recorte claro, e de harmonias prespassadas pelo frémito do desassossego, de Luís Filipe Castro Mendes).
Procurarei ensaiar uma breve viagem por cada um destes três territórios inovadores, territórios e inovações que, aliás, me parecem estar todos anunciados naquele poema seminal e de título programático (“Princípio”) que abre, na passagem da década de 70 para os anos 80, o livro de Joaquim Magalhães Os Dias Pequenos Charcos (1981):
Princípio
No meio de frases destruídas.
de cortes de sentido e de falsas
imagens do mundo organizadas
por agressão ou por delírio
como vou saber se a diferença
não há-de ser um pacto novo,
um regresso às histórias e às
árduas gramáticas da preservação.
Depois dos efeitos de recusa
se dissermos não, a que diremos
não?
Que cânones são hoje dominantes
contra que tem de refazer-se
a triunfante inovação?
Voltar junto dos outros, voltar
ao coração, voltar à ordem
das mágoas por uma linguagem
limpa, um equilíbrio do que se diz
ao que se sente, um ímpeto
ao ritmo da língua e dizer
a catástrofe pela articulada
afirmação das palavras comuns,
o abismo pela sujeição às formas
directas do murmúrio, o terror
pela construída sintaxe sem compêndios.
Voltar ao real, a esse desencanto
que deixou de cantar, vê-lo
na figura sem espelho, na perspectiva
quase de ninguém, de um corpo
pronto a dizer até às manchas
a exacta superfície por que vai
onde se perde. Em perigo.
Este poema tematiza, de facto, todas as roturas ou viragens de que falei: o novo realismo (“voltar ao real”, “pela articulada afirmação das palavras comuns”), a narrativa de experiências privadas (o “regresso às histórias”), a melancolia desencantada (“este desencanto que deixou de cantar”), a consciência da tradição (“que cânones são hoje dominantes?”)
A “grande recusa” e o regresso ao real
À primeira dessas roturas chamei um dia “a grande recusa” (um termo que vem da filosofia de Herbert Marcuse nos anos sessenta). De facto, a geração que ficou conhecida pelo gesto radical do Cartucho traz consigo uma dessacralização da poesia que também ocorreu noutras latitudes — na poesia americana e inglesa ou na alemã dos anos 70 — e que, por seu lado, levou à poetização de todos os domínios da vida e a uma banalização deliberada dos padrões da “poeticidade” (ou “literariedade”). No poema tem agora lugar muita realidade que antes era tabuizada, o refugo das sociedades neocapitalistas, a experiência crua do subúrbio e da nova “democracia semi-social” que Joaquim Manuel Magalhães, como uma ironia cortante e uma melancolia amarga, traz para os seus poemas, poemas que vivem quase exclusivamente de uma realidade suburbana e cinzenta de “ruínas, entulho, devastação”, no “abandono ordenado da periferia” (1993,74).
Esta dessacralização, expressão de um hiper-realismo já pós-moderno (o último “movimento” moderno na nossa poesia foi a Poesia Experimental), indicia uma mudança de rumo, a vários níveis: abandonam-se as obsessões metapoéticas ou ideológicas a favor de um novo olhar sobre o real, passa-se da experimentação para a experiência, do poema sem sujeito para formas de uma “nova subjectividade” (como também se lhe chamou nos anos 70 alemães), da fórmula retórica artificial (ou da grande metáfora) para o enunciado coloquial e directo; o paradigma estrutural, espacial e sintáctico da poesia dos anos sessenta dá lugar à busca sensível, imagética, de campos de sentido enraizados na vivência mais pessoal e também ao paradigma temporal da narratividade e da durée. Ou seja: temos a comunicação em vez do monólogo, a vivência em vez da ideia, as palavras em vez da palavra, a linguagem corrente em vez da metáfora. João Miguel Fernandes Jorge, um dos mais importantes, e mais polifacetados, desta viragem, escreve num dos seus livros (O Roubador de Água, 1981), à guisa de prefácio: “Se quisermos aprender um pouco acerca das coisas poéticas, torna-se necessário saber dos processos físicos (...) As coisas da poesia não são metafísica, por isso tenho de ater-me, por pouco que saiba, ao sítio do mundo que me foi dado”. (sublinhados meus). Tudo isso é audível na poesia dos autores que vêm do “Cartucho”, em registos diversos — mais coloquial, mais satírico e cortante, mais contido —, e dirige-se a uma sociedade e a leitores que, no decorrer dos anos 60, tinham perdido em parte a capacidade de ver e ouvir, e que, depois das “revoluções” — a de 1968 e a de 1974 — caíram no desencanto e na melancolia, para agora “regressarem ao real”.
É claro que há diferenças entre os nomes referidos, agentes maiores desta “grande recusa” poética. Se a poesia de Joaquim Manuel Magalhães corresponde em larga medida às características apontadas, já a de João Miguel Fernandes Jorge revela outras dimensões: a de um gosto da descrição que o faz deambular por lugares (do espaço e do tempo), obras de arte (da pintura, da fotografia, da música), ideias filosóficas; a aproximação do discurso da polis, para afrontar os ídolos com pés de barro dessa mesma polis, os seus fetiches e as suas ideologias (por exemplo em Não É Certo Este Dizer, 1997); o registo linear de breves histórias (“a pequena tentativa”), com um travo irónico, cada vez mais acre, cuspido sobre o mundo.
Já em António Franco Alexandre os caminhos são diversos. O grande volume da sua Poesia reunida, saído em 1996, dá-nos agora a dimensão total de uma poesia que, partindo ela também da circunstancialidade da experiência e da vivência urbana, a transfigura por meio de filtros mentais que fazem dela um universo caótico, de infernos (!) artificiais. E como? A poesia de António Franco Alexandre (como a de Manuel Gusmão ainda muito mais presa à disciplina de linguagem da Poesia 61, uma poesia “só feita do mover / que de si próprio traça o pensamento”, da qual escorre “uma branca melodia / por dentro de paisagens de ninguém”, na perspicaz leitura de Luís Filipe Castro Mendes: 1994, 23), toda a poesia de A. Franco Alexandre se escreve a partir de um ponto de vista que é o de uma lúcida fenomenologia do impreciso, que, estranhamente, sustenta um jogo com a qualidade quase matérica da experiência, das coisas, das palavras (“Vou dizer o que sei como quem mente”). Tudo se constrói a partir do que se conhece, mas sem a mínima das certezas; o poema é um campo de energia omnifágica que incorpora tudo — experiências, coisas de rua, tradições poéticas —, um caos que ao leitor cabe ordenar, a uma escala de “pequeno formato”, porque só o pormenor é poeticamente habitável. Por outro lado, esta poesia escreve-se a partir de um lugar de sentido relativista, de uma atitude de “como se” (o mundo fosse o que é). Atitude que se estende ao próprio “Eu”, uma construção hipotética, uma possibilidade instável, contra todas as tradições da “autenticidade” em poesia. Neste anti-romantismo radical, as coisas são, na sua opacidade material dessimbolizada, a mais gritante e inquietante manifestação do vazio que nasce do excesso caótico da sua presença: “O cenário do mundo é só um infinito espaço / cheio de coisa nenhuma” (Franco Alexandre: 1996,265). Esta poesia torna-se então, como afirmou um crítico (Américo Lindeza Diogo), “largamente ilegível”, porque dá ordem de despejo ao mundo, porque a sua estranha gramática opera o luto da mimese. O poeta, porém, responde que não é bem assim: o que acontece é que, para ele, a poesia está ainda em devir (“Julgavas então que a poesia era um discurso / de palavras em sentido?...”), ela é um “cálculo de rotas inexactas”.
O regresso às histórias no palimpsesto do tempo
Em 1987 é publicado um livro de Helder Moura Pereira com um título paradoxal e enganador. A estrutura e o corpo do poema quebram a expectativa habitual do leitor de poesia. Os verbos aparecem predominantemente no imperfeito, tempo iterativo, espaço de duração. Os sinais lexicais da narração insinuam-se nas malhas do texto: uma vez um dia..., depois, então, quando... O passado revisitado é o magma de onde emergem, subtis e precisas como antes, as pequenas ilhas da imagética das vivências do presente. As linhas da escrita, que antes confluíam mais facilmente num ponto, agora “perdem-se no tempo”. O poema, que não tinha memória, lembra-se agora de infâncias perdidas, espraia-se em espaços biográficos, traça os seus “mapas de retratos”. Falo de Romance, um longo poema que, na altura, me pareceu confirmar de forma extrema um sintoma cada vez mais óbvio da poesia dos anos 80 (e não só em Portugal), uma época que entre nós foi claramente marcada pelo grande surto do romance. Agora, o paradigma do narrativo instala-se mais claramente na poesia de vários autores — Helder Moura Pereira, Vasco Graça Moura, Nuno Júdice — e continua presente noutros (João Miguel Fernandes Jorge). A poesia, que antes quase não vivia do tempo, esgotando-se em incisões pontuais, agora começa a recuperá-lo. O passado flui para o presente por meandros que dificilmente escapam ao registo elegíaco, a narratividade vem reconstituir totalidades difusas, limar cantos e diluir limites de antigos blocos de versos isolados, entretecendo-os subrepticiamente uns nos outros para formar um único, e longo, poème-fleuve: “agora / isto é uma história” (Romance, 27).
Entre o fôlego ainda épico e o ético dos anos 60 (nos autores da Poesia 61 e nos da poesia de combate, como Manuel Alegre ou Fernando Assis Pacheco) e o sopro ténue, débil mas persistente, do minimalismo pós-moderno dos anos 80, os poetas da “geração de 70” vinham-nos inundando com os instantâneos de um quotidiano seu e com os reflexos da sua imagem no espelho do presente, numa tentativa, depois recusada, de “entender / o sentido súbito das coisas” (Ibid., 30). Na década de 80, grande parte da poesia portuguesa é animada, pelo contrário, por uma diferente relação com o tempo, que não é já presente, mas passado, com um halo narrativo, mas não é épico, em lances de escrita que indiciam também uma nova forma de relação com o real: ou através da memória (e de alguma nostalgia) em Helder M. Pereira (e também já em Paulo Teixeira, a cuja poesia ainda me referirei), ou por via de um prosaísmo que faz da circunstância e do reenvio pretextos para a narração de pequenas anedoctas e vivências, em Vasco Graça Moura e Nuno Júdice.
Deixando para trás de si aquelas formas mais pregnantes e angulosas de cristalização das vivências em gavetas poéticas, o caminho orienta-se agora para o campo aberto de uma poesia da recordação com um ritmo bem mais avassalador, sem ceder ao discurso raso do quotidiano. A natureza mais extensiva de universos espacio-temporais sustentados pelo fio do tempo oferece, porém, ainda lugar para cristalizações do olhar no poema, para o fulgor da metáfora, para o poema no poema, com as tensões do ritmo e do corte rigoroso do verso, a que nos habituara a melhor poesia desde 61. Tudo isto, porém, não tem agora finalidade em si, mas surge como que envolvido por um fluido temporal em que os preciosismos do poema curto se destacam aqui e ali, mas são engolidos pelos meandros da trama biográfica, nalguns casos novamente salpicada de História, ou então mostram um pendor mais reflexivo, também ele não estranho ao romance (fenómenos semelhantes se passam também noutras latitudes: lembro poetas e poemas longos como John Ashbery e A Wave / Uma Onda, 1985; o alemão Botho Strauss e Diese Erinnerung na einem, der nur einen Tag zu Gast war / Esta recordação de alguém que foi hóspede de um só dia, 1985; ou o austríaco Peter Handke e Gedicht and die Dauer / O Tempo Suspenso. Poema, 1986). Todos esses longuíssimos poemas parecem impregnados de um sentido bergsoniano da durée que atravessa certos lugares (sobretudo da infância e do amor) e se estrutura no poema em vários planos, como uma espécie de palimpesto do tempo, como um permanente devir de um passado num presente, de uma memória que cresce e se transforma em poema. Nesta poesia da “narratividade ciciada” (uma fórmula certeira de Eduardo Prado Coelho para Romance, de Helder Moura Pereira) resiste-se, pelo fio do tempo, a uma certa caoticidade eufórica do mundo, que ameaça de desintegração toda a experiência que se quer plena. Agora, a poesia lembra mais do que vive, e o poema longo envolve as vivências passadas num largo manto de névoa do tempo, que assim faz delas experiência interiorizada, eterno presente.
Mas o narrativo insinua-se também por outros caminhos na poesia destes anos 80, nomeadamente em Vasco Graça Moura e Nuno Júdice, criando padrões híbidos que não afectam o carácter lírico da linguagem, mas perturbam a forma tradicional de organização do poema, ou explicam a forte presença do poema em prosa nalguns autores (Nuno Júdice, mas também Fernando Guimarães e Eugénio de Andrade). Parece dar-se nesta década um cruzamento, ou uma troca, de paradigmas: o minimalismo descritivista instala-se no romance (português, americano, italiano), enquanto a narratividade se espraia pela poesia.
Vasco Graça Moura definirá a sua produção mais recente como “uma poesia que se desenvolve pela via dos conteúdos narrativos e descritivos”, “uma poesia que tende para a prosa e a recusa” (Graça Moura: 1996, 355; 472; 475), e a sua poética como uma “poética do ruído” e não do silêncio (Ibid., 473). A poesia de Graça Moura, embora atravessada desde o início por alguns grandes e graves temas da tradição ocidental (veja-se o grande poema “uma carta no inverno”, de 1997), faz da reabilitação da circunstância e da circunstancialidade o seu programa poetológico mais convincente. Ao acentuar o circunstancial pretendo dizer que esta poesia se situa entre a abstracção metafísica (ironizada) e o poema de ocasião (elevado a uma potência superior), sem ser, nem uma coisa, nem outra. Vive sempre mais daquilo que envolve o Eu, isto é, está á sua volta e o toca — um Tu, figuras várias, pequenas coisas, fait-divers, lugares, pinturas, músicas, livros —, para construir vários níveis de “reconhecibilidade do real” (Ibid., 472). E o poema é, a partir daí, o lugar “de breves / inteligências, reenvios, exílios” (“phantasiestück”, Ibid, 237).
O reevio parece-me ser também, a vários níveis, o processo estruturante fundamental da poesia de Nuno Júdice, particularmente nos seus últimos livros, O Movimento do Mundo (1996) e A Fonte da Vida (1997). O reenvio é, de facto, um dos mecanismos que servem de base a uma poética romântica aberta, do devir, da diluição de fronteiras e da eterna transformação do real em matéria mais ou menos volátil. As várias formas de reenvio — nas temáticas, entre as muitas “artes poéticas” que se tecem e destecem mutuamente, na construção do poema, que frequentemente nos manda de volta ao seu início, na rede das vivências amorosas ou dos pequenos mundos quotidianos —, são variantes de um processo que é também muito mais característico da construção romanesca do que da lírica. Cada livro deste poeta que parece estar sempre, em permanência, a responder aos apelos da vida, transformando tudo em poema, é uma narrativa (e uma poética) — talvez sempre a mesma. Há na sua poesia uma vontade transbordante de dizer o mundo, uma “ânsia que contamina o verso” (Júdice: 1996, 23) e que se traduz, nos últimos livros, numa encenação de experiências/cenas que se vêem tornando cada vez mais comuns; a poesia, narrativa, efabulatória, nasce cada vez mais de situações concretas, ma non troppo, em que a relação a um Tu é dominante, e em que o olhar transfigura as coisas do tempo, dando-lhes uma aura de não-tempo (é um programa romântico, em parte ainda órfico, temperado por uma auto-ironia que se vem acentuando de livro para livro).
Sob o signo de Saturno, do ecletismo e da tradição
O neo-romantismo de cariz órfico, ainda presente em Nuno Júdice, marca também a poesia recente de outros poetas que, nos anos 90, renovaram a sua própria poesia (Fiama Hasse Pais Brandão ou Gastão Cruz) ou publicam pela primeira vez (José Tolentino Mendonça). Trata-se de uma entre as muitas manifestações de um ecletismo de estilos e tendências que é apanágio da nossa pós-modernidade.
O orfismo jubilatório, em que o poeta emerge como sacerdote de uma religião poética capaz de dar voz (verdadeira) às coisas, apresenta-se em diversos matizes e tons, dos mais luminosos aos mais negros, uns mais dados à contenção de meios (Gastão Cruz), outros mais voltados para os rituais incantatórios da palavra (Fiama), todos, de uma forma ou de outra, elegíacos.
Mais do que elegíaca, porque por ela não passa a ilusão de qualquer idílio, é a mais recente poesia de Gastão Cruz, em As Pedras Negras (1995): a sua luz é a do Sol negro que desceu sobre o mundo. É esta imagética do paradoxo e da antítese, de uma luminosidade negra, que constitui a cadeia semântica (isotópica) dominante do livro. Se algum lugar se salva nesta “triste / madrugada do mundo”, ele será o lugar — de exílio, que não de idílio — do próprio poema e da sua palavra (velha crença romântico-simbolista-moderna). Uma palavra aqui atentamente vigiada, na sua temperatura, na sua consistência marmórea, na sua tensão ambígua, nos limites em que, esvaziada, possuída de negra consciência, investe contra o mundo, retém o que nele é essencial e o “salva”: “Que a palavra esvaziada // Seja o abismo / o espelho que mente / a corrente e a corda da água que nos/ salva” (Gastão Cruz: 1995, 45).
O princípio que rege As Pedras Negras, de Gastão Cruz, é o de uma concentração metonímica (cada poema é em certa medida o livro inteiro); a lei presente na última poesia de Fiama H. P. Brandão (Cantos do Canto, 1995; e Epístolas e Memorandos, 1996) é antes a da contaminação, do derrame de um sopro que informa e rege também o próprio poema, os corpos vivos, as coisas mudas e os ritmos eternos do cosmos. É a lei de um monismo essencial que, na obra de Fiama, tem vindo a substituir-se a uma analítica mais fria, que era própria da sua poesia anterior. Esse trabalho poético anterior, sobre a palavras, a sintaxe e a tradição, reaparece agora informado pelo sopro unificador da “imutável mudança dos ritmos da Terra” (como escrevia o poeta António Ramos Rosa, já em 1969), em pequenos e perfeitos rituais celebratórios que se inscrevem numa genealogia órfica: a do poeta que se dispõe a ouvir e ver para dar voz. Os “cantos” de Fiama traçam a ponte que une começo e fim, as “coisas parcas, poucas, singulares” e os “ecos cósmicos” da Criação, em poemas onde “todos os contrários são unidos”. (Fiama Brandão: 1995, 14, 45).
O mesmo se passa com Epístolas e Memorandos, cuja escrita acompanhou a de Cantos do Canto “nos intervalos da sua respiração”. As epístolas e os memorandos, registos do olhar dirigidos ao Ser e à memória das suas origens, são quase sempre poemas do ocaso do dia, e últimos cantos, cantos do fim — porque são cantos de quem sabe ou busca as coisas últimas do mundo, a escrita de cada coisa ou ser que nele está e existe, à espera do oficiante que lhes confere existência real: o bandolim em cima da mesa, sem o canto que o anima, não sabe onde tem a alma (Fiama Brandrão: 1996, 19). Como no Rilke das Elegias, atravessa as epístolas e os memorandos o impulso da nomeação (“porque aqui”, diz já Rilke, “é o tempo do dizível”). E, ainda como num outro Rilke, há nestes quadros vivos das criaturas sem voz um certo franciscanismo poético, na humildade com que se celebra cada uma delas (em si mesma humilde) para a elevar a um sentido que a transcende, de acordo com um princípio (ainda e sempre romântico e órfico) de “analogia universal” (vd. Ibid., 27).
Retomo a frase de Eduardo Lourenço que citei no início: “É do silêncio de uma época que a poesia se alimenta”. E lembro aquilo que eu próprio aí afirmei: que, para além da beleza da imagem ou rigor do verso, me interessa num poema aquilo que nele pode reflectir um estado de coisas, um Zeitgeist (sem explicitamente o nomear). Acontece que, em grande parte da poesia portuguesa desta década, esse silêncio dos tempos fala através de figuras insistentes da perda e da ausência, vestindo-se das cores outonais do modo elegíaco para deixar ouvir, nesse “tom menor” (Óscar Lopes) que conhecemos bem desde os Cancioneiros medievais, diversos cambiantes da melancolia: difusa ou ferida, ciciada ou displiscente, desesperada ou preciosista, visceral ou alegórica. Uma melancolia que, como a “acédia” do monge, corresponde a uma vaga consciência do mal do mundo e se manifesta, no nosso caso, em muitos e díspares poetas: desde Eugénio de Andrade, Al Berto ou Nuno Júdice, a José Agostinho Baptista, Luís Miguel Nava ou Luís Filipe Castro Mendes, de Paulo Teixeira e Fernando Pinto do Amaral a Luís Quintais e Carlos Poças Falcão. E até mesmo nos cultores de uma poesia jubilatória de inspiração rilkeana (Ramos Rosa, Sofia, Fiama, Gastão Cruz ou José Tolentino Mendonça), em poetas do sarcasmo niilista como Armando Silva Carvalho ou da obsessão da morte e do pó, como Casimiro de Brito, esta forte presença de Saturno se torna evidente. Naturalmente, no meio de outras tendências de uma década marcada pelo eclectismo, como é esta que vai levando o milénio ao seu fim, uma época de novo fortemente crepuscular e saturnina, em que “vivemos e passamos sem notar, / na orla de um país, que em sua raia // de espuma se desfazem as quimeras / nas falésias desertas do real.” (Castro Mendes: 1993, 94). Subjacente ao vários modos pessoais desta melancolia — que só uma leitura em extensão da nossa poesia pode revelar — destaca-se, porém, uma consciência desperta do Tempo, deste nosso fim de época, alegre apocalipse atravessado por sinais de uma negatividade que na poesia se manifesta em figuras ambíguas da ausência, da ruína e da morte: “Falo-te do ruído de um tempo / que me confia o gosto que a morte / traz pela tarde à boca” (Paulo Teixeira: 1988, 84); “é muito tarde para qualquer gesto” (Paulo Teixeira: 1997, 12); “as palavras deixam-me neste tempo absurdo, preso / entre um fim e um princípio de nada” (Nuno Júdice: 1994, 94).
A poesia, tal como outras manifestações estéticas de uma época, foi sempre — para usar um dos primeiros títulos de Joaquim M. Magalhães — “consequência do lugar”; e também, acrescentaria eu, do tempo. O tempo português, e europeu, que vivemos é um tempo de passagem, de aparente tranquilidade e de muitos desassossegos, de grandes transformações e de crise (no duplo sentido do termo: fase de mudanças e de consciência aguda, “crítica”, dessas mudanças). É uma constelação recorrente e reconhecível na Idade Moderna europeia, desse o século XVI, em que alternam fases de crise e de euforia civilizacional. E a poesia reage, à sua maneira — através de mecanismos inconscientes a que já chamei de “melancolia reactiva” — a este estado de coisas em que o vazio criado pela morte de Deus e a perda dos valores, pela total dessolidarização das relações e a saturação (mediática) das existências pela banalidade, transforma todo o tecido social num grande “baldio dos afectos”, para usar ainda uma expressão feliz de Joaquim Magalhães. Neste contexto, torna-se mais compreensível o que Vasco Graça Moura quer dizer quando, num poema de Instrumentos para a Melancolia (1980), escreve: “A melancolia é uma estranha ameaça ocidental” (Graça Moura: 1996, 136). Grande parte da nossa poesia torna-se então, neste tempo em que a História parece ter-se esvaziado do sentido do tempo e da memória (cf. Eduardo Lourenço, A Europa Desencantada, 1994), no reverso da consciência — ou inconsciência — dominante: a poesia é uma “Arte da memória” (título de Paulo Teixeira, 1992), na poesia, “a memória alastra pelo papel como uma assinatura” (P. Teixeira, 1991, 12). E é dos pequenos impulsos da poesia — que, neste seu filão elegíaco, parece ser um dos poucos lugares onde se pode afirmar a presença de um Eu com memória e com histórias próprias — , é do trabalho de luto dos poetas sobre as nossas perdas que emerge então aquela tensão vivificante que desde os alvores dos tempos modernos tem ritmado a relação dialéctica entre cultura e civilização no Ocidente: a tensão entre afirmação e cepticismo, entre progresso e melancolia, entre a euforia do fazer material e uma imaginação que veio dando forma estética ao sentido subliminar da perda. E nos seus momentos mais altos, de Camões aos Românticos e de Rilke a Herberto Helder ou ao brasileiro Bruno Tolentino, a poesia (elegíaca) sempre soube transformar a perda numa mais valia.
As tendências elegíacas de alguma da novíssima poesia portuguesa nascem também desta situação de exílio no tempo, de desencontro entre o Eu e o mundo. Na obra de dois poetas da última geração — Paulo Teixeira e Fernando Pinto do Amaral — poderão seguir-se os vestígios da sombra do “astro baço” (Saturno, num poema de Pessoa sobre Gomes Leal) na poesia portuguesa de hoje. No primeiro, pela via de uma consciência obsidiante do tempo, numa dimensão explicitadamente histórica e cultural, que o leva a recorrer às máscaras e aos papéis de um Eu que se divide, e a fazer ecoar na sua poesia, como num vasto campo de ruínas e devastação, toda uma visão desencantada da cultura ocidental (como antes em Jorge de Sena ou Vasco Graça Moura). Em Fernando Pinto do Amaral, particularmente nos seus dois primeiros livros (Acédia, 1990, e A Escada de Jacob, 1993), a nostalgia informa experiências intensas da subjectividade, paisagens da alma, e o recurso à dialéctica compensatória própria da elegia permite transfigurar a experiência através da memória, negando (ou negativizando) o mundo dito “real”. No primeiro destes poetas, a Europa (“pequena e útil maravilha suicidária”) é figurante privilegiada de uma poesia que a olha de forma ambivalente, em elegias que da morte fazem uma epifania e uma redenção, porque não temos saída, e a poesia é a forma de resistência possível contra a “indústria da devastação e da perda” (Paulo Teixeira: 1993, 86). Em Pinto do Amaral, numa poesia mais feita de atmosferas indefinidas, que lembra Montaigne e a sua “rêverie bizarre de se peindre”, o que se nos oferece é uma visão subjectiva do nosso tempo e de lugares simbólicos do nosso mundo (esplanadas e cafés) que “deixam o olhar em ruínas” (Pinto do Amaral: 1990, 16). O que nestes, e noutros novos poetas, sobressai e é novo, são estes modos dinâmicos, indirectos, de expressão da subjectividade que, por meio de uma alquimia anímica, fazem da perda uma mais valia poética (insisto nesta ideia que me parece central). Como se pode ler em Paulo Teixeira, existe “um sentido ganho nas coisas que se perdem” (1991, 51), em “tudo o que nos deve o tempo e podia ter sido” (1992, 36).
Outra é, finalmente, a alquimia, agora novamente mais do verbo, nos poetas que voltam a fazer alianças com a tradição — a maneirista e barroca, a neoclássica e a romântica, a erudita e as populares —, não para dela fazerem o esteio de uma Weltanschauung desencantada do presente, mas para lhe retomarem (e modificarem) as formas e para mergulhar nas próprias raízes musicais e rítmicas da poesia. O melhor exemplo que encontro para documentar este caminho da actual poesia portuguesa é o da obra poética de Luís Filipe Castro Mendes. Poderia também mostrar como Vasco Graça Moura foi, e é, um neo-maneirista; como em Pedro Tamen revive o barroco; como o soneto é levado a extremos de virtuosismo e estranhamento em David Mourão-Ferreira, Graça Moura, Diogo Alcoforado ou João Luís Barreto Guimarães. Fico-me pela música da poesia e pelos seus modos em Luís Filipe Castro Mendes. Melhor será, neste caso, usar a fórmula, provavelmente anacrónica, mas mais pertinente, de “versos”, em vez de “poemas”. De versos se trata aqui, na verdade, de um “Jogo de fazer versos” (título de Castro Mendes, de 1994) que se joga entre dois pólos, dois “Modos de Música” (novo título, de 1996): o do amor ou da entrega (sempre à beira da perda) e do verso que os diz. Que os diz, ou tenta dizê-lo com a consciência do im-perfeito, do não acabado, que é o estigma e o estímulo dessa sempre incompleta harmonia entre som e sentido(s). Castro Mendes joga, arriscada mas conscientemente, em formas que, na sua parente harmonia, desestabilizam criativamente certezas e lugares comuns. Sendo ela também, como a música de que se faz, uma arte do tempo e da memória, nesta poesia tudo é instável e transitório, mas disso, dessas “escassas sílabas”, o poema “faz o que perdura” (Castro Mendes: 1998, 11). Fazendo-se ela da memória de formas, de códigos poéticos e musicais (envoi, romance, modo menor, finda, coda), de sonoridades e ritmos, como na grande poesia simbolista, de que o Autor se reclama, o que nesta poesia domina é a sua grande sensibilidade — formal e afectiva. É uma poesia que se lê como quem conversa, mas a conversa precisará de ser gravada: porque teremos de voltar a ouvi-la (cf. 1996, 31) para poder descobrir nela todas as ínfimas coisas que circulam entre os vislumbres de uma harmonia e os estremecimentos de um desassossego. Estas serão talvez as discretas marcas daquilo que me parece ser ainda e sempre, nestes versos, uma melancolia luminosa: “E nunca se ama ao certo quem se ama. / Procuramos apenas um brilho, / um brilho muito intenso no olhar, / um brilho que não vamos definir / e que algum dia iremos renegar.” (Ibid., 30). A resistência à escrita melancólica é textualmente dita (“Perdoa-me, Fernando, mas deixei / de poder escrever mais ‘melancolia’”: Ibid., 37), mas, apesar de tudo, resgata-se a melodia, e a canção, que é sempre, afinal, “o desenho do fim” (Ibid., 50, 53, 55). O que, em última análise, torna a poesia de Castro Mendes um jogo que é sempre mais que um mero jogo, poderá ser aquele seu culto do paradoxo amoroso (nisso ainda barroco?) que é o modo próprio da música dos seus versos, com a sua nunca acabada harmonia entre som e sentido: a marca mais original desta poesia será então aquele jogo em que o sentido anda permanentemente a fugir do som (da mera facilidade formal que lhe é inerente), e o som, sem esforço, vai atrás do sentido. E entre o pressentimento de uma verdade — quase sempre a do amor — e a incerteza (que a fluidez sabiamente controlada do enjambement espelha), joga-se a música dos versos, a primeira, mas não única, certeza que nos fica da leitura desta poesia toda feita de subtilezas e de pequenos exercícios: “O delicado desejo que te doura / (...) é no verso que vive e se demora.” (1996, 61).
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Notas