Manuel Gusmão
Universidade de Lisboa
Talvez possamos aceitar que não só no modernismo, mas ao longo da modernidade em cuja invenção Rimbaud participa, nos defrontamos com uma instabilização multiforme das figurações autorais, relacionável com a turbulência das formas poéticas (poema em prosa, verso livre...), das fronteiras e da noção de literatura[1], e com uma mais ou menos nítida ambivalência nas relações do poeta com a tradição (ou as diferentes tradições) e com a sua contemporaneidade.
Aquilo que vos proponho é uma reflexão limitada sobre dois modos de configurar uma crise e uma crítica dessas figurações autorais, quer na poesia, quer na teoria. Um desses modos é o que designarei por anonimato, seguindo sugestões de Mallarmé[2] e uma formulação de Foucault (1969), mas que tratarei sobretudo através da versão barthesiana da “morte do autor” (Barthes, 1968). O outro modo é o da alterização (que passa justamente por Rimbaud) e que me levará a reler o conhecido poema “Autopsicografia” de Pessoa.
1.
O ensaio de R. Barthes “La mort de l’auteur” não representa, é certo, nem o início nem o fim da crítica da relevância hermenêutica da noção de autor, que no nosso século passa pela obra de alguns importantes “poetas críticos” (Valéry, Proust, Eliot e Pessoa, entre outros) e se vai desenvolvendo com vários movimentos do pensamento formal sobre a literatura. Esse ensaio também não representa o fim da reflexão do seu autor sobre a questão, mas interessa-me aqui na sua singular figuralidade e pelos seus procedimentos na configuração mítica de uma espécie de “anonimato transcendental”[3] da relação literária.
Aquilo a que Barthes chama “a morte” ou o “afastamento do autor” aparece no seu texto com um perturbante estatuto duplo que, designadamente, Peggy Kamuf (1991) apontou. Por um lado aparece como a revelação de uma lei a-histórica da literatura ou da escrita (Kamuf chama-lhe “lei eidética”):
Sem dúvida que foi sempre assim: desde o momento em que um facto é contado, para fins intransitivos, e não para agir directamente sobre o real, quer dizer, finalmente fora de qualquer função que não seja o próprio exercício do símbolo, produz-se este desfasamento, a voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escrita começa.(ed., ut.: 49)
Por outro lado, nos dois parágrafos seguintes, o “afastamento do autor” aparece como um “facto histórico” e uma “condição do texto moderno”. Na passagem entre um e outro estatuto, no “interior do 2º parágrafo”, o autor aparecera por sua vez como “uma personagem moderna”, produzida pela história (a partir do fim da idade Média).
Este duplo estatuto constitui uma das dificuldades fulcrais do ensaio de Barthes: parece que a contemporaneidade barthesiana seria chamada a formular (ou a tomar consciência de) uma essência que a história anterior já transportava, mas escondia. Nos precisos termos do ensaio, compreende-se mal que mantendo-se o que sempre foi assim, esse mesmo inaugure entretanto uma nova era. O histórico parece servir apenas para suportar a verdade supra-histórica. Essa nova era de que a crítica se teria apercebido com atraso, ter-se-ia precipitado nos fins do séc. XIX, e teria mesmo um início marcado, com Mallarmé, a que se seguiriam como figuras simbólicas de um processo irregular e mais vasto, Valéry, Proust e o Surrealismo. Entretanto, esta série de autores são ainda apresentados como uma “pré-história da modernidade” — o que modifica forçosamente o âmbito de “modernidade”, que passa agora a coincidir com a contemporaneidade de Barthes.
Vejamos um pouco mais de perto em que consiste a “morte do autor”. Trata-se de indicar “aquele ponto em que só a linguagem actua”, de mostrar o nascimento da escrita como “destruição de toda a voz, de toda a origem” e de toda “a identidade”. Ou ainda, trata-se de destituir o autor dos papéis que lhe foram atribuídos e de pôr no seu lugar a linguagem: a potência “que fala”. Tal figuração ecoa o célebre aforismo de Mallarmé em “Crise de vers”: “A obra pura implica o desaparecimento elocutório do poeta, que cede a iniciativa às palavras”. O aforismo é entretanto apropriado por Barthes, que o conjuga com outros ecos. Um deles é o da transcendência da linguagem em relação ao sujeito, da língua que fala sem sujeito (em Heidegger); o outro é o da “morte de Deus”, anunciada em Nietzsche.
O autor será assim destituído de duas representações que lhe foram longa e variamente atribuídas: a de pai e a de proprietário.
No primeiro caso, critica-se a noção de autor como anterioridade genética ou origem absoluta da obra. A imagem a este propósito produzida é retórica e conceptualmente significativa (como o notou também P. Kamuf).
O autor quando se acredita nele é sempre concebido como o passado do seu próprio livro: o livro e o autor colocam-se a si próprios numa mesma linha, distribuída como um antes e um depois (51).
Reparar-se-á na produtividade crítica da figura: a linha que se distribui como um antes e um depois representa o tempo contínuo, tempo linear e irreversível, e a filiação genética; sendo a mesma mostra-se o insustentável da noção dessa filiação, uma vez que autor e obra não são comensuráveis, não são entidades do mesmo plano de mundo. Barthes quer quebrar essa linha. O corte visa interromper a relação de filiação, no conhecido sintagma: “o homem e a obra”. Mas o modo como o faz consiste no privilegiar de uma outra figura do tempo: a da eternização do instante que rompe a linha, e que é uma de várias modalidades possíveis da descontinuização temporal. A opção determinante por esta figura arrisca-se a constituir uma denegação, mesmo que indirecta, da temporalidade (e da temporalidade histórica em particular), designadamente se a compararmos com a figuração do tempo descontínuo e da agoridade, por ex., em Walter Benjamin.
A segunda representação autoral que Barthes critica é a do Autor como proprietário, destinador e guardião de um sentido ao mesmo tempo pleno e escondido, e a decifrar. Dar um Autor a um texto, escreve Barthes, é dotá-lo de um significado último (52). Deve, é claro, compreender-se que ele é último na ordem da investigação do crítico, mas de acordo com o tratamento do problema da origem, ele é o sentido primeiro, original, único e fundador, de alguma forma pré-constituído na relação de filiação. Por isso, também se compreende que a escrita que nasce da e com “a morte do autor” (enquanto acontecimento histórico) exige um outro modo de lidar com ela: já não se trata de decifrar, mas de deslindar, de percorrer a rede ou a teia, o “espaço da escrita”.
O modo como Barthes desconstrói as duas representações autorais mostra amplamente que o que está em jogo não é apenas a crítica da noção de autor, ou do papel de uma intencionalidade autoral, mas uma concepção da semiose literária e, mais ou menos explicitamente, da linguagem.
a. Por um lado, o afastamento do autor visa a abertura à pluralidade do sentido. Separado do seu autor, por corte, o escrito já não é obra mas texto (que neste texto aparece como um equivalente, tendencialmente reificado, de escrita). No ensaio de 1971, “Da obra ao texto”, ao tratar do 4º traço dessa transformação teórico-metodológica, é-nos dito que “o texto é plural” e que isso não quer apenas dizer que tem vários sentidos, mas que realiza o próprio plural do sentido: um plural irredutível (e não apenas aceitável) (57-58). Perdida a origem, a causa tutelar, a intenção fundadora e o direito de propriedade simbólica, o texto, separado e autotélico, pratica o recuo infinito do significado (57).
b. Por outro lado, com o afastamento do mito do autor, Barthes procede, até na sua retórica libertadora e propiciatória, à constituição de um novo mito — o do leitor —, quem em alguns aspectos parece apenas inverter o outro. Valerá a pena recordar uma longa passagem do último parágrafo:
Assim se revela o ser total da escrita: um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar em que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exacto em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita; a unidade de um texto não está na sua origem, mas no seu destino, mas este destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; é apenas esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito. (53)
O afastamento do autor destinava-se a desocupar “um espaço” (indevidamente ocupado e obstructor); mas o que se torna problemático é que se sinta a necessidade de o reocupar. E o leitor é esse lugar (esse lugar ocupado).
Agora, a unidade que se retirara ao autor é atribuída ao lugar de destino. O leitor tende então a surgir como uma maneira ainda de figurar o texto: destino sem destinador e no fundo sem destinatário; reunião das várias culturas que o texto é; espaço como o texto, em que se inscrevem sem perda todas as citações; — leitor e texto parecem estar em situação de transporte de significação, ou seja, de figura.
É certo que este leitor é uma personagem conceptual e figural, não refere qualquer leitor concreto; não está inscrito no texto, não é um leitor ideal ou modelo; é mais parecido com a leitura, de que seria apenas uma metonímia. Mas enquanto personagem é ainda interessante verificar que ele recebe justamente atributos do scriptor: também este, como Barthes diz do leitor, “não tem história, nem biografia, nem psicologia”. Leitor e scriptor dobram-se como o Crítico dobrava o Autor (ambos providos de maiúscula inicial). E como o scriptor é a personagem figural do texto e o leitor o é da leitura, talvez eles representem no texto de Barthes a dobra de escrita e leitura.
Esta é uma maneira possível de compreender a lógica e o ethos figurais do fim apocalíptico (catástrofe e revelação) do ensaio de Barthes: “sabemos que para devolver à escrita o seu devir, é preciso inverter o seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do autor”(53). Talvez ao fim e ao cabo, este doce apocalipse seja irónico.
Mas há um problema que persiste: é que esta figura do leitor reduz em excesso a complexidade irredutível da historicidade, estrutural e contingente, da leitura. Nenhum leitor lê sem recolher, lembrando e esquecendo, transfigurando a sua variável experiência de leitura, da vida e do mundo (como aliás o próprio Barthes, em outros textos seus, nos ajuda a compreender). Para além de que em momento nenhum do tempo, um leitor ou os leitores podem esgotar o sentido, reunir todas as citações, até porque não podem esgotar o tempo a vir, as leituras futuras.
Esta figura do leitor representa pois mais uma subtil mas nítida redução da temporalidade histórica. E, contudo, na Lição (de 1977) Barthes irá de forma admirável mostrar-nos a contingência biográfica que o leva a descobrir que o seu próprio corpo é histórico ao reler a Montanha mágica.
Chegados aqui, julgo ser possível fazer duas observações. A primeira é que a crítica por Barthes das representações do Autor como Pai e Proprietário é ainda hoje incontornável. Entretanto, e é a segunda observação: o acontecimento-lei da “morte do autor” e a consequente instituição do “anonimato transcendental” dissolve sem os resolver demasiados problemas. Ela é talvez uma rigidificação da poética de Mallarmé, lida também por via de Valéry. Na carta a Paul Verlaine, de 16/11/1885, conhecida como a sua “Autobiografia”, Mallarmé diz precisamente que o seu “trabalho pessoal” será “anónimo, o Texto aí falando por si mesmo e sem voz de autor”. Ora, é necessário não apagar o pelo menos aparente paradoxo que implica mutuamente ou mantém juntos a singularidade “pessoal” e o anonimato.
Mas voltemos à narrativa em que Barthes produz sobre a história daquela “morte”. Essa narrativa limita-se expressamente à literatura francesa da modernidade ou à sua “pré-história”. Este limite tem consequências, como se verá. Mas mesmo nesse quadro, a narrativa oculta desde logo Rimbaud. Ora basta recuar a Rimbaud (ou a Lautréamont - Ducasse) — e poderá ir-se mais atrás, para complexificar a questão e desde logo relativizar fortemente o início atribuído a Mallarmé. Terei de ficar por algumas breves notas sobre Rimbaud. As suas célebres frases de Maio de 1871
C’est faux de dire: je pense: on devrait dire: on me pense.– Pardon du jeu de mots.
JE est un autre.
(à Georges Izambard, [13] mai 1871)
Car Je est un autre. Si le cuivre s’éveille clairon, il n’y a rien de sa faute. Cela m’est évident: j’assiste à l’éclosion de ma pensée: je la regarde, je l’écoute: je lance un coup d’archet: la symphonie fait son remuement dans les profondeurs, ou vient d’un bond sur la scène.
(à Paul Demeny, 15 mai 1971)
no seu contexto próximo, e lidas através da sua poesia, na relação com a sua reclamação do direito a viver várias vidas (numa só vida mortal), em Une Saison en enfer, ou com a fragmentação e obscurecimento do sujeito nas Illuminations, levantam questões que os aforismos de Mallarmé não recobrem, designadamente porque não são resolúveis pela consideração de uma entrega de iniciativa à língua.
Por um lado, em Rimbaud deixa-se ler de forma admirável uma crise determinada: a do sujeito cartesiano, entendido quer como um sujeito psicológico, quer como um Ego transcendental, garantido ontologicamente pela propriedade do seu pensamento, sujeito idêntico a si mesmo, fonte do saber. Mas a fórmula “EU é um outro”, se valorizarmos a composição em versaletes de JE, ou se colocarmos o pronome entre aspas, ou ainda se simplesmente o lermos como menção de pronome e não uso dele, diz também a tensão da enunciação singular com a generalidade da língua ou da linguagem. Por outro lado, não é o desaparecimento do sujeito autoral que aqui se figura, mas antes um processo de estranhamento e alterização. Este processo, nos modos da sua figuração não se deixa reduzir a um funcionamento psicológico, mesmo se pode ter uma rendibilidade metapsicológica. Ele permite, sim, figurar um acontecimento de linguagem, um acontecer da escrita ou da poesia: difere a fonte da voz, mas evita o anonimato transcendental.
Neste e noutros sentidos, a ocultação de Rimbaud, no processo de constituição de uma arqueologia da modernidade, é entre outras coisas, fruto de uma resistência à magnífica impureza da (sua) poesia, e desde logo da resistência a uma impureza histórica, — é que Rimbaud debate-se ainda com a posteridade do iluminismo, acolhe ainda o ressoar do romantismo e procede a uma marcada apropriação crítica de Baudelaire; ao mesmo tempo que atravessa longamente, e até nós, a modernidade de antes e de após o modernismo.
Uma poética da alterização, tal como ela se figura e pratica em Rimbaud, reclama também ela uma outra concepção da linguagem, onde designadamente nos espera M. Bakhtine; mas no contexto próximo do nosso problema, ela pode produtivamente levar-nos a reler Baudelaire e o próprio Victor Hugo, assim como pode ajudar-nos a relativizar a centralidade da figura do desaparecimento elocutório em Mallarmé.
Por outro lado, as noções de alteridade e de alterização permitem-nos fazer a passagem para fora do quadro da literatura francesa (no qual Barthes se encerra), indo ao encontro de outras figuras da instabilização autoral (ou das representações autorais), que ligam, mesmo se contraditoriamente, romantismo e modernidade, desde o “poeta-camaleão”, dotado de uma “capacidade negativa”, em Keats, aos monólogos dramáticos de Brown, às figuras da impessoalização ou da “extinção contínua da personalidade” em Eliot, ou do fingimento em Pessoa.
Julgo que isto pode então mostrar que o suposto acontecimento da morte do autor explode numa multiplicidade das experiências e das figuras da alterização, bem como abre a possibilidade de ler a disseminação na escrita de diferentes “posições-de-sujeito” (para usar vocabulário de Michel Foucault, 1969). Essa multiplicidade é justamente também uma forma da questão da historicidade da poesia e da poética.
2.
A partir das características da função autor em Foucault, talvez possamos construir novas figuras de autor e dar resposta à figura barthesiana de “uma mesma linha, distribuída como um antes e um depois”, assim como à solução proposta, que consiste em simplesmente cortar tal linha.
Foucault escreve que “a função autor não é, com efeito, uma pura e simples reconstrução que se faz, em segunda mão, a partir de um texto tido como material inerte” (ed. ut.: 34). E escreve ainda “seria tão falso procurar o autor no escritor como no locutor fictício; a função autor efectua-se na própria cisão e nessa distância”.
Trilhando este caminho, e operando uma leve torção sobre o texto de Foucault, talvez se possa propor que o autor se ausenta do texto e, ao mesmo tempo, insiste entre o antes e o depois. Se o autor não é efectivamente o antes absoluto, também não está inteiro no depois, como puro efeito do texto incriado, ou reconstrução incondicionada do leitor. O que talvez possamos imaginar é que, por um lado, há um salto, que nunca poderemos filmar todo, entre o antes e o depois e, por outro lado, que o depois reage sobre o antes. Fernando Pessoa não é o mesmo autor antes e depois do texto Caeiro. O autor, diria, está antes e depois, fora e dentro, do texto; mas não é o mesmo antes e depois, fora e dentro; na passagem dessa fronteira (“espacio-temporal”) instável, alguma coisa está a acontecer, sobre a qual calculamos e construímos leituras, mas essa coisa está de facto em constante recuo e insistência. Num texto, o indivíduo autor não pode obviamente estar como tal — um indivíduo é incomensurável com um texto, um nome ou uma assinatura. O autor ausenta-se de facto — e essa é uma das condições para que o texto possa ser lido —, mas sobra, como rastro e como resto figurais, de um trabalho, de uma passagem. Para vermos uma pegada (ou outro tipo de marca — empreinte) é necessário que o pé que a imprimiu já lá não esteja (recorda Didi-Huberman). O afastamento e o desaparecimento de um autor não são um ponto no tempo, são tendencialmente gestos repetidos, como o figura na sua poesia, por ex. um poeta como Francis Ponge (que João Cabral de Melo Neto guarda na sua galeria de afinidades electivas), ao ponto de nos autorizar a dizer que um poeta fica no poema também pelo modo como dele se ausenta.
3.
Nas tentativas contemporâneas de reconstituir uma noção operativa de autoria, aquilo que fica excluído, por um lado, é a noção de autor como autoridade originária e, por outro, a idéia de que o autor é uma chave explicativa ou hermenêutica. A instância autoral é, antes, um indutor de problemas. Nem origem demiúrgica, nem intenção plena e presente ou limite absoluto do sentido, o autor é ainda um operador de inscrição histórica — não só na medida em que há uma historicidade das grandes representações autorais, mas no sentido em que ele é um dos factores que aponta para uma primeira enunciação de um texto. Esta primeira enunciação pressupõe também co-enunciadores reais e imaginários, e um contexto espácio-temporal irrepetível. Tal enunciação nunca é inteira ou totalmente reconstituível, nem aprisiona o sentido de um texto. O tempo das leituras posteriores, os vários presentes futuros do texto operam recontextualizações inescapáveis que contribuem para fazer variar as determinações de sentido. Uma compreensão activa, como escrevia Bakhtine, não esquece designadamente a sua exotopia, no espaço, no tempo e na cultura. E essa exotopia daquele que procura compreender responde de certa maneira ao processo de alterização pelo qual se constitui o autor. Ou ainda, dito de um modo grosseiro que roça a trivialidade, — um autor é o limite que me faz saber que não fui eu quem escreveu aquilo; o limite que me significa que também eu — leitor não sou um demiurgo. Mas a partir de aqui também eu me posso por a escrever (a minha leitura).
4.
É altura de convocar rapidamente Pessoa, neste guião.
É justamente se mantivermos a referência singular a este autor, que começa a fazer sentido ver nele um autor de autores, e nesse sentido, um autor multipolar. E se não reduzirmos apressadamente a autonomia relativa de cada heterónimo, a autoria em Fernando Pessoa exibe a forma de um diálogo múltiplo e descentrado, que cruza génese de escrita e construção retroactiva da imagem ou da figura autoral.
Os heterónimos são formas de devir autor, enquanto modalidades de um particular devir outro, na formulação de José Gil. São também jogos de linguagem que dão a imaginar formas de vida, e que interagem uns com os outros, não apenas no quadro da ficção heteronímica, mas no quadro de uma enunciação polifónica. Por exemplo, não se pode fechar a leitura de Alberto Caeiro sem ver como ele dialoga com o Fausto e com os poemas herméticos, ou sem escutar o modo com ecoa no Livro do desassossego. Ou sem reparar como as maneiras como Reis e Campos se apropriam de Caeiro são solidárias do modo como eles se autonomizam (se singularizam). No testemunho ficcional, ou ficção testemunhal, que é a carta a Adolfo Casais Monteiro “sobre a génese dos heterónimos”, compreende-se que Pessoa afirme ter escrito o poema “Chuva oblíqua” como resposta à invenção de Caeiro. E mais ainda, pode compreender-se esse poema como um movimento de metamorfose do seu autor em heterónimo, ou de heteronimização (defensiva) do autor Pessoa.
Entretanto, o Livro do desassossego, as dificuldades de atribuição de certos poemas a este ou aquele heterónimo, as próprias hesitações de Pessoa a esse respeito, mostram o caracter hesitante e movediço da cena em que os heterónimos contracenam.
Venho então ao poema “Autopsicografia”.
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira a entreter a razão,
Êsse combóio de corda
Que se chama o coração
[datado de 1 de abril de 1931]
O título parece prometer uma 1ª pessoa gramatical, mas no poema encontramos desde o início apenas uma 3ª pessoa. Como lidar com esta não coincidência entre a promessa do título e aquilo que podemos descrever como uma transformação da 1ª pessoa em 3ª? Tal transformação torna “o poeta” numa personagem do poema, de uma ficção que não deixa por isso de ser uma “arte poética” de autor. Também esperamos encontrar um “eu” numa narrativa autobiográfica e entretanto aprendemos a ler narrativas na 3ª pessoa como autobiografias, marcadas pela ficção, ou como ficções animadas por uma compulsão autobiográfica ou produzindo esse efeito. Neste tipo de jogos de linguagem que as “artes poéticas” são, podemos quase sempre pressentir a oscilação entre a ostensão da singularidade de um poeta (que então tende a dizer “eu”), e uma pretensão à universalidade, que passa pela delegação numa 3ª pessoa do sujeito que, se retrai (por essa razão, ou por outras). “O poeta” pode significar “este poeta” [que eu sou…],– o determinante é então um demonstrativo; ou então “o poeta” designa a classe dos poetas, quanto mais não seja por dilatação do “eu” que ao mesmo tempo se esconde. Podemos aqui associar à leitura um outro poema de Pessoa, que é geralmente publicado imediatamente a seguir a este. Cinco meses depois da publicação de “Autopsicografia”, no nº 36 da Presença [Nov. de 1932], Pessoa publica no nº 38 da mesma revista [Abril de 1933], um poema intitulado “Isto”, que é de novo uma “arte poética”, mas onde agora se diz “eu”.
Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sôbre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
Podemos ler este novo poema como uma interpretação do anterior — como um fragmento de diálogo ou uma resposta a leitores imaginários ou reais que, tendo lido “Autopsicografia”, não tivessem compreendido o sentido extra-moral (cf. Nietzsche) do fingimento poético ou da fictividade da poesia. O que é de qualquer forma digno de nota é que neste movimento dialogal e defensivo, encontramos agora um “eu”, em coerência aliás com o demonstrativo em título, “Isto” — Eu, aqui e agora: isto. A estrofe citada parece vir denegar o fingimento, mas de facto é mais rigoroso dizer que se trata de uma recusa a identificar fingir e mentir: aqueles que dizem que eu finjo ou minto tudo aquilo que escrevo não têm razão, enganaram-se ao ler o verso “O poeta é um fingidor”, não perceberam que “fingir” é da ordem do artístico ou do estético, da ficção, e não da ordem do ético. “Fingir” é então definido como “sentir com a imaginação” “sem usar a imaginação” Mais à frente, o insofrimento aristocrático do poeta, reescreve esta definição, enfantizando o papel da imaginação e passando para o leitor (vulgar/plebeu) a tarefa de sentir.
O primeiro verso de “Autopsicografia” diz pois, na modalidade da definição, máxima ou aforismo de poética, a poesia como fingimento ou fictividade, o poeta como fingidor, aquele que finge dor[4]. Os restantes versos desta quadra podem ser lidos como uma simples expansão ou intensificação retórica do primado do fingimento, e como um traço ludicamente paradoxal que caracteriza a inteligência ou o pensamento poéticos de Pessoa. Entretanto, e seguindo na esteira de outros leitores, julgo que estes versos podem, se é que não devem, ser lidos de maneira a restituir a complexidade do fingimento. Estes versos, pela sua própria sintaxe, sugerem que o máximo de fictividade se atinge na acção de fingir uma dor que deveras se sente, ou de fingir (como dor) uma dor efectivamente sentida. Dito de outra maneira, esses versos sugerem que a invenção poética de uma dor que não se sente é um fingimento menor, uma ficção menor, ou que fica aquém da fictividade maior, que é a de fingir a qualidade dor de uma dor de facto sentida. Sem contar com a dor “incluída” na palavra “fingidor”, reparemos desde já que a palavra “dor” surge duas vezes nesta estrofe.
Mas como compreender aquilo que nos é sugerido? É talvez que o fingir uma dor que deveras se sente exige a mais um trabalho de apagamento do efectivamente sentido; exige que se vença a resistência do vivido, ou seja, que se resista à compulsão confessional e sentimental. O fingimento máximo (“chega a fingir que”) joga-se no “trabalho” de transposição, de modelização que deverá diferir a dor sentida, diferenciando-a, e no limite, transformando-a noutra. Nesta transfiguração abre-se então a possibilidade de um testemunho oblíquo, de um testemunho que entretanto só se pode conseguir na fictividade, na invenção. Uma consequência interessante desta quadra seria a de ela nos aproximar da possibilidade paradoxal de tornar público “um segredo que permanecesse segredo”, para usar uma fórmula de Derrida jogando sobre Blanchot, e a propósito de uma curta e intensa (imensa, poder-se-ia também dizer) narrativa deste último, intitulada L’Instant de ma mort.
Na 2ª quadra, há uma contagem de dores: é-nos dito que o poeta teve duas (as duas corrências da palavra, a que acima nos referimos) — a sentida e aquela que sobre essa fingiu. O que nos obriga agora a pensar no que se deve entender por “ter uma dor”, se devemos aceitar que se pode “ter” uma dor fingida, sendo que tal dor não é apenas uma dor imaginária, fruto de uma particular hipocondria, uma vez que ela é escrita, é o trabalho do poeta enquanto tal, o trabalho de “uma arte consagrada às ficções”, como o escreveu Mallarmé[5].
Seguindo a própria maneira de “contar” do poema, esta segunda estrofe permite-nos contar outras duas dores. É que há “a dor lida”, a dor que os leitores “lêem”. É a terceira ocorrência da palavra “dor”, e é-nos dito que ela é diferente das “duas que o poeta teve”. Há assim, pelo menos três dores, como já foi observado por Américo Lindeza Diogo (Diogo, 1994: 54-60). Acontece contudo que o texto não pára e diz-nos que através dessa dor que lêem, ou reconstruem pela leitura, os leitores “sentem bem […] só a que eles não têm”. Agora, não aparece pela quarta vez a palavra “dor”, mas está lá o pronome que a substitui (até por razões métricas). Há pois quatro dores.
Podemos ler este gesto do poema como um movimento de provocação ao leitor, que não é especificamente modernista, mas moderno — recordemo-nos do último verso do poema “Au lecteur” de Baudelaire, “– Hypocrite lecteur, — mon semblable, — mon frère!”, e mesmo de Diderot, em Jaques le fataliste et son maître. Mas para além disso não podemos travar o efeito de simetria invertida que o poema dispõe. O poeta constrói uma dor escrita sobre uma outra dor que deveras sentiu; e o leitor sente, na dor que pela leitura constrói, uma dor que não tinha. Teremos agora de compreender o que é “sentir” uma dor que não se tem. Dito de outro modo, se o poeta pode ter uma dor inventada, o leitor deve sentir uma dor que não tem. O texto alucina na leitura o leitor: a leitura de uma dor pode dar-nos a conhecer uma dor que nos era até então desconhecida. A leitura pode então aumentar o nosso reportório de dores, estender o nosso sentir (os nossos sentidos). E as coisas podem ainda complexificar-se, porque posso supor que, para sentir e reconhecer uma dor que não tinha, me é necessário distingui-la das que já experienciei. Quer dizer, eu, leitor, devo ler também com a minha experiência de vida, devo ser capaz de “ler” as minhas dores e de reservar o “espaço” para uma dor que me pode vir pela leitura. Assim o movimento de identificação projectiva é travado por uma distância diferenciadora. A diferença e o diferimento das dores, no processo de escrita-e-leitura exposto em “Autopsicografia”, podem então ser uma figura não só para a alterização autoral, mas também para a minha experiência da alteridade do texto em relação a mim e de mim em relação ao texto. E por aí, a alteridade é constitutiva da minha identidade, enquanto processo pelo qual me transformo naquilo que vou sendo (também pela leitura).
Falei da simetria invertida das dores, mas torna-se claro que a cena da escrita e da leitura figurada no poema é regida por uma assimetria iniludível, porque a dor lida não é nenhuma das que o poeta teve. Essa dissimetria diz o excesso e a determinação da escrita sobre a leitura. Podemos talvez ver na dor que diz o agente na palavra “fingidor” o número ímpar (1º ou 5º) que inscreve tal dissemetria.
Gostaria agora de sugerir que, na leitura, a escrita e a fictividade da poesia desencadeiam uma operação autobiográfica do leitor e por aí ele é a testemunha que subscreve a assinatura do outro, ou que acolhe, dá hospedagem à autobiografia indirecta do outro (a formulação vem de Peggy Kamuff, quando ao ler um poema de Baudelaire, evoca Jacques Derrida e Jean-Luc Nancy).
A configuração da relação de escrita e leitura, neste poema de Pessoa, pode então ser uma versão daquela experiência que muitos de nós fazemos e que traduzimos informalmente como a sensação de que há certos livros ou textos, ou filmes ou canções, ou frases musicais (etc.), com os quais aprendemos a viver, ou perturbantemente desaprendemos o que julgávamos saber. Um autor é também um nome para designar a possibilidade de tal experiência: o nome de um agente na linguagem que, já não está no texto que lemos, lá onde nós entretanto “vemos” uma impressão ou inscrição que nos marca.
O que se passa no encontro, que dizemos solitário, com um texto — de facto essa solidão é povoada de vozes — talvez possa ser tomado como a versão miniatural do que se passa na linguagem entre pelo menos dois (e são precisos pelo menos dois para que haja fala). Imaginem que alguém, fascinado por um texto, o lê a outrém — trata-se de um dos modos comuns de circulação da literatura. A certa altura esse alguém está a ler o seguinte:
Porque tudo fazia que ela semelhasse primeiro um ser vivo, muito vivo, muito perdido e humano; muito estranho: um louco: um louco, em concentração involuntária, uma estrige, uma velhinha velhíssima. Depois, um morto vivo, ou muito morto, um feto macerado, uma múmia, uma caveira — que emitisse frialdade. Era um problema terrífico. Era a morte. Boicininga estava eterna. Talvez, necessária.
O nome do autor [aqui — João Guimarães Rosa] é então, como o ajudou a compreender Derrida, uma assinatura dentro e fora do texto, uma assinatura sobre uma linguagem, que se partilha entre pelo menos dois; é a terceira margem de um rio que é um fragmento de conversa humana; e é aqui, também, uma homenagem e uma dedicatória.
Abril, 1998.
Referências
BAKHTINE, Mikhaïl. “Les études littéraires aujourd’hui” (1970), in Esthétique de la création verbale, Paris: Gallimard, 1984.
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Notas