"É preciso ser absolutamente moderno"?

Na clave do moderno (algumas considerações sobre música e cultura)

Júlio Diniz
PUC-Rio

À Heidrun Krieger Olinto

1. Modulações

Nossa proposta de leitura da música no contexto dos estudos de cultura contemporâneos pressupõe o manuseio de diferentes molduras. Corpos teóricos oriundos de várias disciplinas instrumentalizam o olhar crítico que busca, no seu entrecruzamento, oferecer, às vezes com muito mais dúvidas do que certezas, respostas a questões que se posicionam de maneira irrefutável diante da investigação e do debate de idéias.

Instaurando a primeira notação: pode-se ainda falar de música como objeto de reflexão, disciplina independente, linguagem específica ou discurso pragmático na clave dos paradoxos e dissensões contemporâneas? Existe música numa acepção tout court absolutamente moderna e identificada como brasileira?

Pressupõe-se que a musicologia seja por definição a disciplina-mãe de análise do objeto, mas a orfandade fenomenológica da música contradiz essa expectativa. O termo foi criado na década de 1910 para dar corpo às formulações estabelecidas ao longo do século XIX por diversos estudiosos, dentre os quais o alemão Hugo Riemann e o austríaco Guido Adler, que concebiam a musicologia como a pesquisa, o estabelecimento e o domínio dos elementos formais constitutivos da música. Estruturada sob concepção positivista, a Musikwissenschaft (ciência da música) surge como necessidade de abrangência e totalidade, cobrindo desde a descrição diacrônica e evolutiva de modelos e gêneros definidos como eruditos até a acústica e a harmonia, passando pelos métodos de ensino e pela formação dos cânones de funcionalidade estética. Seu objetivo principal, como nos revela o pesquisador Joseph Kerman, prende-se à necessidade de historiografar linearmente os signos definidores de uma “tradição de uma arte superior”. (Kerman, 1987) Compreende-se “arte superior” a música de formação erudita, paradigma do aristocrático universo dos modelos artísticos preconizados pelo gosto das elites culturais. A ciência da música (tendência de uma musicologia conservadora) surge limitando o seu corpus, definindo sua atuação, fazendo do som arquitetura totêmica das diferenças sócio-culturais, institucionalizando o clássico como referência axiológica absoluta.

No universo etnocêntrico de construção de uma fala fundadora, o discurso musicológico em seus primórdios exercia o poder regulador das fronteiras da composição e educador de uma audição enriquecida. O que transbordava de seu circunscrito espaço de interesse era taxonomicamente considerado como manifestação de uma cultura primitiva, de estatura modal ou pré-tonal, com técnicas elementares e de resultados insignificantes. Musicólogos tradicionais não concebiam a possível existência de diálogo entre a “arte superior” (com suas grandezas melódicas e exuberância harmônica), erudita e européia, e a “bárbara” música de ritmos pulsantes e melodias repetitivas, som-ferramenta a movimentar a engrenagem simbólica dos rituais de povos africanos, orientais e americanos. No máximo, a chamada música clássica seria o veículo de uma pedagogia do gosto, transpondo a tonalidade do “ruído e barulho da alteridade” para o espaço hegemônico de seus acordes.

Recorremos ao pensamento de Mário de Andrade, talvez o primeiro a pensar a interface música/cultura/sociedade no Brasil, acerca da “música dos primitivos”:

Fisiologicamente, ela se caracteriza por ser uma expansão impulsiva e instintiva do movimento sonoro, despreocupada de se organizar em constâncias fisiológicas, quer de emissão do som, quer até mesmo das batidas do ritmo. (...) Da mesma forma o próprio ritmo é pura expansão impulsiva dos acidentes verbais da dicção e suas exigências fisiológicas da respiração, da movimentação coreográfica do corpo, e do princípio arsis e thesis, movimento e repouso, não acentuação e acentuação. E, pois, essa expansividade impulsiva e instintiva do movimento sonoro, tanto melódico como rítmico e mesmo harmônico, é de determinação intrinsicamente inconsciente, derivada apenas das exigências e de leis fisiológicas, modificada apenas pela variabilidade antropogeográfica das raças, e condicionada apenas pelos ciclos culturais das tribos. É o corpo que se bota a cantar e se expande em voz. Numa voz qualquer, puro movimento vital. Mas como qualquer movimento vital se diferencia entre um inglês e um turco, entre um tuberculoso e um homem são, entre um sacerdote e um pedreiro, entre uma criança e um adulto: são também as diferenciações físico-raciais-sociais-culturais, que diferenciam esses cantos primitivos. Genericamente: a sua expansividade impulsiva se manifesta por livre emissão sonora, com maiores valores dinâmicos no início do canto, e tendência para uma queda do agudo para o grave, determinada pelo cansaço físico. Se pode bem inferir daí que todas as nossas traduções em notação musical européia, dessas músicas primitivas, não são apenas um abuso sempre abortado, mas uma deformação absurda, a mais deturpadora das convenções. (1972: 20-1)

Algumas dessas questões merecem uma observação mais detalhada. Primeiramente, a musicologia como discurso omnicompreensivo do objeto música surgiu, como afirmamos, no contexto de crescimento do cientificismo evolucionista da 2a metade do século XIX. Seu método descritivo pressupõe modelos, comportamentos e interdições. Ou seja, há explicitamente a valoração de algo de qualidade inquestionável e absoluta e a desqualificação do que habita os subúrbios da sonoridade — a música folclórica e popular das sociedades periféricas. Em segundo lugar, esse princípio seletivo reflete a exata visão que inúmeros pensadores europeus tinham de culturas ex-óticas, insuladas do centro civilizado e civilizador do mundo. Ideologicamente, o surgimento da musicologia explica-se como o de tantas outras concepções científicas que brotaram espontaneamente nos porões de um saber que exclui a diferença, fecha os ouvidos para a voz da alteridade e enfatiza a tensão entre progresso e atraso, cosmopolitismo e arcaísmo, civilizado e bárbaro, buscando neutralizar o confronto dominador/dominado e impondo ao colonizado a high music de sua tradição histórica.

Outra dificuldade prende-se à noção do clássico como sinônimo de erudito e de arte superior. Neste aspecto, não só o africano ou o asiático são outsiders da história oficial da música como também o são os próprios europeus provenientes de segmentos sociais marginalizados (camponeses, o emergente proletariado urbano), que só trazem como acervo a música folclórica e popular. A equivocada concepção do grupo de força clássico = erudito, erudito = clássico problematiza a relação da música de acepção técnica refinada com o refinamento outro encontrado nas composições populares. Estigmatiza-se o ingênuo e preconceituoso dualismo entre obras clássicas e obras populares, como se não houvesse a possibilidade da composição popular se transformar em um clássico, segundo critérios próprios de definição de originalidade e referencialidade. Na contramão do equívoco, podemos também destacar que uma música erudita pode ou não ser fixada na acrópole do objeto classicizado pela tradição cultural européia.

Um terceiro ponto deixa vazar o paradoxo emergente entre a sistematização prescritiva defendida pela musicologia conservadora e o surgimento no mesmo momento histórico de peças que iam de encontro a essas práticas, abalando as verdades da Musikwissenschaft. Instaura-se um certo desconforto entre os defensores do controle sobre as instâncias criadoras e do purismo arcaizante da erudição quando a perspectiva de leitura do mundo tonal pleno é abalada pela força das imagens impressionistas de Debussy em Prélude à l’aprés-midi d’un faune, a instalação da música do futuro, do sonho wagneriano, com o abandono de uma tonalidade previsível ao lado de elementos tradicionais que buscam figurativamente o vago e o etéreo timbre da sugestão; pela ironia surreal das estruturas melódicas e harmônicas clássicas usadas como reconhecimento de sua própria deformação caricatural em Le Sacre du Printemps, de Stravinski; pelo paroxismo de Schoenberg no uso da dissonância como índice de tensão, ruptura e dilaceramento no Pierrot Lunaire. Observamos o que nos diz o professor de semiologia da música da Universidade de Bolonha, Gino Stefani:

Portanto, o moderno toma emprestada a máscara ou a figura do primitivo e do bárbaro. Nesta interpretação entram diversos fatores: a temática do balé, obviamente; o destaque que o ritmo assume na música, o que leva, nós ocidentais, a pensar logo nas culturas africanas, consideradas culturas primitivas (por isso se falou de terror negro a respeito da Sagração); o uso obsessivo da repetição, que substitui as técnicas mais elaboradas da variação e do desenvolvimento; a ênfase insistente e primordial no som em si.
Para a cultura erudita dizer primitivo e bárbaro implicava algo de negativo: perda de uma densidade de elaboração cultural sem uma visível compensação no mesmo plano. (1987: 99-100)

Stefani aponta para o choque que o surgimento de Le Sacre du Printemps desperta no refinado ouvido da música erudita convencional. Stravinski busca a libertação da simetria tradicional, intensificando as divisões rítmicas, produzindo efeitos que aproximam o conjunto do som e do movimento coreográfico do balé aos dos povos de “culturas primitivas”. Apesar do pensamento de Stefani desconfiar dessa interpretação e de seus claros desdobramentos, constatamos que suas considerações sobre a música chamada moderna são, em parte, apoiadas no radicalismo crítico de Adorno. O “terror negro” (e o emprego do adjetivo não é gratuito) é o índice máximo de uma atitude eurocêntrica preservacionista e neocolonialista diante de uma obra que coloca em questão a sua própria formação cultural (“perda de uma densidade de elaboração cultural”), os seus cânones (“substitui as técnicas mais elaboradas da variação e do desenvolvimento”) e suas amarras (“a ênfase insistente e primordial no som em si”). O horizonte de expectativa de uma audição paradigmática clássica é abalada pela implosão dos valores que a sustentavam em parte. O aspecto escandaloso e iconoclasta da peça de Stravinski abre em feridas o mundo tonal, fratura o corpo que antes só fruía a essência da música em cabeças, pernas, braços dançando no espaço harmonicamente fragmentado em constelações plurirrítmicas. O som bárbaro na epiderme plástica de Nijinski.

Se para Adorno, Stravinski representa a regressão, a restauração de formas reificadas que buscam o som pelo som, a música como instância autônoma, destruindo a aparência social, dando voz à barbárie e se distanciando da ratio civilizatória e da verdade, Schoenberg é apresentado como o verdadeiro construtor da música radical, aquele que representa historicamente o papel do destruidor da linguagem musical coisificada pelo capitalismo e que anuncia a inviabilidade do sujeito diante da massificação e da utilização econômica das formas culturais (Adorno, 1974). A leitura dialética do que o pensador alemão chama de A filosofia da nova música nos instrumentaliza criticamente na discussão que ora se delineia.
Stefani em sua observação sobre A sagração aponta para as diversas incorporações que a música moderna faz do universo modal, particularmente, a utilização do ritmo que sugestivamente lembrava a “máscara”, a “figura”do “primitivo”, do “bárbaro”, da “perda de densidade de elaboração cultural”. O “terror negro” era, como já observamos, a representação da “regressão”, segundo Adorno, a ausência de um gesto de tonicidade musical plenamente concebida, restauração de formas reificadas. Tensionamos a leitura da experiência da modernidade com o seguinte trecho de Mário de Andrade retirado do livro Pequena história da música:

Ora na fabricação de ídolos, de máscaras, na ideação lírica dos mitos e lendas, na gesticulação das danças imitativas, por mais feios que fossem os demônios, os objetos e coreografias inventados, si tecnicamente mais bem feitos, eles se tornavam, sem querer, mais estéticos — o valor da beleza artística independendo enormemente (embora não completamente) da feiura do assunto. Ao passo que na música vocal ou instrumental, a procura do feio, do som assustador, sibilante, estrondante, da procura do mistério desumano e antinatural, impedia o nociamento do valor sonoro estético. Quanto mais horrível o som, mais ele se tornava útil, capaz de afastar ou de abrandar, por identidade, os demônios. (1972:12)

Stravinski exorciza demônios e fantasmas com a vitalidade de seus sons arquetípicos pré-musicais, estabelecendo a possibilidade de correlações entre campos rítmicos e timbrísticos, aprofundando os aspectos dinamogênicos que ligavam espaços sensoriais, físicos e intelectuais distintos. A crise do mundo tonal estabelece-se no resgate dos elementos modais que abrem caminho para o seu questionamento. O som que se apresentava “horrível” diante da recepção auditiva articula o corpo da música do futuro do presente.

A nossa opção não é a de estabelecer um quadro descritivo-musicológico e teórico-ideológico sobre as semelhanças e diferenças entre Debussy, Stravinski, Schoenberg ou Bartók, dentre outros, no contexto da chamada música erudita moderna. O interesse prende-se ao fato de que a emergente musicologia e sua concepção conservadora da essência da música surgem num momento histórico em que vários de seus postulados são questionados e outros rompidos diante do advento das experiências de vanguarda, da opção pela atonalidade sistêmica e da constituição do dodecafonismo.

A crise instaurada pelo primeiro momento do modernismo musical (o de antes da I Grande Guerra) coloca em xeque um mundo sonoro falsamente organizado. Se o clássico equivalia ao erudito, o que dizer do moderno em tensão com o clássico? Bach, Beethoven e Mozart seriam clássicos, reconhecidos e canonizados, inscritos em definitivo na história da cultura, em contraposição a Debussy, Stravinski e Schoenberg, na sua busca do novo (que rapidamente envelheceu), do abalo radical (que aceleradamente se institucionalizou), do futuro (que imediatamente se transformou em pretérito)? Que sentimento nos alavanca para a idéia de que é preciso ser absolutamente moderno? A partir de uma discussão instaurada por Walter Benjamin sobre o redesenho provocado pelo choque da modernidade, e a problematização do termo moderno levantada por Hans Robert Jauss, Jürgen Habermas recoloca a questão:

O traço distintivo das obras que passam por modernas é, desde então, o novo. A característica de tais obras é o novo que se há de ultrapassar e tornar-se obsoleto pela novidade do próximo estilo. Contudo, enquanto o que é meramente stylish logo vem a sair de moda, aquilo que é moderno preserva elos velados com o clássico. Claro está que tudo que sobrevive ao tempo sempre foi considerado um clássico. O testemunho genuinamente moderno, porém, não mais empresta este estatuto de clássico à autoridade de uma época passada; recebe-o, ao invés disso, por ter configurado um momento autenticamente moderno. Este sentido de modernidade cria seus próprios e auto-referidos cânones do que considera clássico. Fala-se nesta acepção, por exemplo, em vista da história da arte moderna, de modernidade clássica. A relação entre moderno e clássico perdeu definitivamente qualquer referência histórica fixa. (1983:86)

O pensamento de Habermas colabora sensivelmente para a destituição semântica de clássico como antagônico a moderno. A história da música em sua tensão sincronia/diacronia assegura a Debussy, Stravinski e Schoenberg o reconhecimento da importância de suas obras, colocando-as na estante canônica dos clássicos. Clássicos modernos ao lado de Bach, Vivaldi e Haendel, clássicos barrocos, ou Schubert, Schumann e Tchaikovsky, clássicos românticos. A questão primordial não se prende ao peso específico da tradição de cada um deles, e sim à disposição por todos ocupada nas prateleiras dessa problemática estante.

A musicologia em sua primeira configuração se via ferida de morte. Como defender um “estudo da história da música ocidental na tradição de uma arte superior”(Kerman, 1987:2) se a idéia de música, de tradição e de superioridade estão sob bombardeio cerrado das vanguardas daquele instante? Como falar de procedimentos harmônicos tradicionais diante da fúria e da pulsação repetitiva de Le Sacre du Printemps? Ou mesmo, como discutir consistência de mecanismos racionalizados de cadências sonoras ou densidade de tratamento temático ou construção de modelos teóricos harmônicos polimodais se o processo de desconstrução e fragmentação do objeto música concebido como melodia + ritmo + harmonia, como rasura entre ruído e silêncio, acelera-se no espaçamento destessiturizado de Schoenberg ? Sob ruínas, a nova música anuncia a morfologia serial da inconcretização sonora absoluta.

A musicologia, abalada pelo rumor do som transgressor, recorre à teoria musical imobilizante como um verdadeiro manual prescritivo de composição, e à análise musical como instância crítica que verifica se os limites de coerência combinatória foram mantidos, se a técnica foi bem aplicada, se determinada passagem significa isso ou aquilo ou se dada linha melódica traduz certo estado de espírito. Uma outra vertente surge como tentativa de ampliar o campo de visão analítica pretendida: a etnomusicologia.

Joseph Kerman define a sua área de atuação:

A etnomusicologia é popularmente entendida como o estudo da música não-ocidental — ou músicas, como os próprios etnomusicólogos preferem dizer. Com efeito, eles possuem sua própria definição abrangente de etnomusicologia, a famosa frase de Alan P. Merriam: O estudo da música na cultura. Consideram seu domínio todo o universo da música — a música erudita ocidental, a música folclórica e popular ocidental, as músicas não-ocidentais simples e complexas; não foi por acaso que Seeger, o musicólogo sistemático, também foi o pai da etnomusicologia moderna. No entanto, o que de fato ocupou de modo mais intenso os etnomusicólogos, foram as músicas altamente desenvolvidas da Indonésia, Japão e Índia, e as músicas menos desenvolvidas dos ameríndios e africanos subsaarianos. Elas são estudadas a fim de produzirem acuradas descrições técnicas, por um lado, e informação sobre o papel desempenhado pela música em suas respectivas sociedades, por outro. (1987: 4,5)

Os estudos de Adler e Riemann já indicavam a presença de uma musicologia comparada, voltada ao estudo, como afirma Kerman, da música como linguagem nas relações comunicativas e de seu valor simbólico nas sociedades. Essa musicologia comparada incorpora contribuições de diferentes áreas, como a antropologia, a sociologia e a etnografia, transformando-a numa disciplina academicamente reconhecida como etnomusicologia.

Percebemos que as considerações de Kerman refletem de um certo modo alguns impasses e equívocos que musicólogos e etnomusicólogos funcionalistas alimentaram sobre as suas respectivas atribuições e sobre os seus espaços de atuação. Definir etnomusicologia como o “estudo da música na cultura”, como o faz Merriam, citado por Kerman, parece-nos por demais genérico e, ao mesmo tempo, ambíguo. Trata-se de reafirmar o esteriótipo da pesquisa de campo como instrumento de observação por contraste das variantes culturais. Conceitos como “o pai da etnomusicologia” (referindo-se a Seeger), “músicas altamente desenvolvidas”e “menos desenvolvidas” constroem um quadro de valores sedimentados na busca das origens, na configuração de uma investigação de caráter substancialista e no estabelecimento de estruturas representativas hierarquizadas.

Apesar da constatação de dificuldades teóricas específicas, o advento da etnomusicologia contribuiu decisivamente para a democratização e alargamento dos estudos musicológicos. Os escritos do americano Charles Seeger tornam-se referência obrigatória, suscitando polêmicas e iluminando algumas áreas nebulosas da formação crítica musicológica.

A etnomusicologia, em interface com outras disciplinas, contrapõe-se ao exercício musicológico conservador, articulando uma primeira tentativa interdiscipinar de compreensão da música. A historiografia voltada para a periodização diacrônica e para a apreciação biográfica dos compositores, acrescida da teoria musical e da pedagogia da composição, não representavam mais o único procedimento investigativo autorizado e reconhecido. A análise musical, centrada na compreensão exclusiva do significado da obra a partir de seus componentes intrínsecos, mostrava-se de igual maneira insuficiente. O Conservatório de Música, em seu modelo francês, o templo intransponível da educação sentimental, parecia se esgotar como local autorizado de conservação da mecânica repetitiva de execução dos grandes clássicos. Conservar e executar, guardar e matar a memória simultaneamente. Ou em outros termos, guardar a memória musical no arquivo morto da monumentalidade intransitiva de uma cultura aristocrática e autoritária.

A musicologia do século XIX, como vimos, mostra-se insuficiente como força produtora de interpretação, escapa-lhe a perspectiva historicizante. A etnomusicologia, apesar de avançar sobre a relação música e sociedade, sente-se desaparelhada criticamente diante do surgimento da reprodução técnica do som e das questões que a circulam, que a partir desse instante pode lançar a música da Ópera de Paris, do Festpielhaus de Bayreuth, da quadra da Mangueira para a vitrola da casa operária de Créteil ou para o rádio de válvulas do escriturário berlinense e da costureira de Ramos. Uma terceira corrente teórica apresenta-se, a da Teoria crítica alemã, representada pelos pensadores da Escola de Frankfurt, em especial, Benjamin e Adorno.

Sabemos que o conhecimento musical foi decisivo na formação intelectual de Adorno. Estudou composição em Viena com Alban Berg, amigo íntimo de Webern e discípulo de Schoenberg, que o introduziu às novas concepções e tendências contemporâneas, em especial ao universo dodecafônico. A sua análise estabelece uma forte oposição conceitual entre “música séria” e “música ligeira”. “Séria”, para ele, alinha-se sempre no eixo paradigmático de clássica, erudita, de forte tradição cultural, educadora e enriquecedora do gosto. Sem dúvida alguma, Adorno considera a música européia, em particular a de países de origem teutônica, o modelo mais bem acabado de seriedade musical. Sua moldura analítica, centrada na profissão de fé do intelectual humanista, do pensador que sinceramente acredita na cruzada da razão iluminista contra o conformismo e a alienação, tende a identificar no universo tonal do velhíssimo continente a força estética civilizatória da composição e da audição conscientes. Nota-se que o uso do conceito “séria” para adjetivar tal música auto-representa a sua investida representação.

“Música ligeira”, de acordo com a sua argumentação, corresponde a um produto mercadológico, de consumo massificado, objeto a-histórico sem nenhum laço com a tradição, concebido como mercadoria pelo capitalismo. Seu poder de sedução e sua apresentação como fetiche de todos os desejos, anulariam o ouvinte enquanto sujeito fruidor, transformando-o em passivo receptor de conteúdos coisificados, mero consumidor de trilha sonora para vender sabão em pó, como vociferava Adorno. Trata-se de uma leitura do papel da música como objeto manipulado e absorvido pela indústria cultural.

Em seu clássico estudo, O fetichismo na música e a regressão da audição, Adorno afirma que a fixação do modelo “música ligeira” corresponde à incapacidade de falar, de produzir um discurso crítico próprio, do homem contemporâneo. O emudecimento de seus “verdadeiros desejos e valores” provoca conseqüentemente uma acelerada incapacidade de ouvir, tornando-o forma modulável para novos e “perigosos” conteúdos. O homem contemporâneo, segundo sua argumentação, perde os verdadeiros parâmetros da evolução das manifestações musicais consistentes (“sérias”), definidas pela tradição histórica, adquirindo e desenvolvendo um determinado fetichismo pela música de entretenimento (“ligeira”). A decadência do gosto produz analogamente, como afirma o crítico frankfurtiano, a regressão da audição, entendida como a progressiva perda da ação instrumentalizada e consciente, como podemos perceber em seu próprio texto:

Ao invés de entreter, parece que tal música contribui ainda mais para o emudecimento dos homens, para a morte da linguagem como expressão, para a incapacidade de comunicação. A música de entretenimento preenche os vazios do silêncio que se instalam entre as pessoas deformadas pelo medo, pelo cansaço e pela docilidade de escravos sem exigências.(...) A música de entretenimento serve ainda — e apenas — como fundo. Se ninguém mais é capaz de falar realmente, é óbvio também que já ninguém é capaz de ouvir. (1980: 166)

Em um outro artigo, Idéias para a sociologia da música, Adorno considera o aparato sociológico como instrumento eficaz de leitura da crise de valores da música no momento de transformação de seu uso. Ele pensa a investigação sociológica como disciplina umbilicalmente identificada aos elementos constitutivos da música, dominando todas as instâncias de seu saber específico. Sua defesa da sociologia como um processo de racionalização seguro diante de questões ideológicas que definem socialmente a produção artística, representa a busca de um corte analítico potente que possa estabelecer parâmetros e limites quanto à relação arte e sociedade, produção e recepção.

Não é só a arquitetura musical que se acha em crise, mas também a representação arquitetônica de sua corporificação diante de seus ouvintes. A música retira-se do espaço do não contaminado — o teatro, a sala de concertos, a igreja — e passa a transitar no rádio da sala de jantar e do automóvel, embala multidões em estádios, faz fundo falsamente terapêutico nos consultórios dentários, preside o silêncio constrangedor dos elevadores. A passagem do espaço da representação do não contaminado e aurático para a contaminação do espaço representado problematiza a recepção do objeto musical.

Concordamos com a sua tese de que as instâncias controladoras da produção utilizam o objeto estético e o transformam em mercadoria cultural; de que o fetichismo musical destrói o potencial de mudança da “verdadeira arte”, daquela que liberta o homem e o faz sujeito da história; de que a banalização e a coisificação do fruidor transformam-no em consumidor, proporcionando-lhe a sensação de identificação e interação com as novas formas, de que a audição passa por uma desestabilização de sua previsibilidade e de sua inteligibilidade, recalcada em sua riqueza perceptiva.

Mas não podemos deixar de perceber que a voz que fala é a de um europeu, de um intelectual alemão formado pelos cânones da música erudita (“séria”, “a grande música”, “íntegra”) e que parece não possuir ouvidos (ou os ignora) para perceber outras vozes, com suas ligeiras e sutis modulações. A crítica musical de Adorno funda-se no eurocentrismo. O radicalismo do filósofo traduz-se pela intransigência com que são tratadas algumas manifestações populares, particularmente as não-européias, e pelo superdimensionamento do papel social do intelectual, concebido como farol a iluminar caminhos, último sinal de resistência ao avanço do processo de contaminação das consciências. O intelectual adorniano, instrumentalizado pela razão crítica, observa apocalipticamente o fim de todas as utopias, a dramática desintegração da ordem da cultura.

Concebida como ruína (não no sentido benjaminiano do termo), a música não é só manifestação estética mas principalmente mercadoria. Concebida como ruína, a audição moderna não é mais escuta, torna-se distração — assim Adorno fecha circularmente a sua argumentação. O que nos interessa sobremaneira é ler exatamente as ruínas (já no sentido que Benjamin pensou o conceito) desse mundo musical arruinado, possibilidade de redesenho de uma nova desarquitetura do som, tão distante do modelo arquitetônico sonhado pela musicologia de fins do século XIX.

 

2. Transposições

O poder de manipulação da indústria cultural (talvez possa se falar hoje da indústria da informação mundializada, “The Global Bazaar”, como vislumbra Homi Bhabha) é inconteste, mas também o é a força de representação de algumas formas que não se oferecem passiva e docilmente ao seu domínio. Jogar criticamente com a indústria cultural, sabendo que jogar é a principal razão de permanência do próprio jogo, ou trazer o jogo para o espaço não-circunscrito de suas regras sem perder a referência de que continua jogo, abrem a perspectiva de uma nova atuação política diante dos problemas da produção estética de nosso tempo.

Na música popular brasileira urbana, por exemplo, verificamos que vários compositores e intérpretes conseguem ter a sua obra vinculada pelas instâncias produtoras da mercadoria cultural sem perder a consciência crítica diante da relação capital/trabalho, valor estético/valor comercial, valor de uso/valor de troca. Talvez por isso, um artista como Caetano Veloso seja tão ludicamente falso diante da indústria cultural e tão falsamente lúdico diante da seriedade de propósitos de seu projeto estético. Apocalíptico diante do estreitamento de sua voz como mercadoria de gravadoras e da mídia; integrado diante da possibilidade de utilização dos meios como força de propagação canora de sua força comunicativa. A malandragem e suas ambigüidades, para além de uma confortável dialética, aproveitam o espaço aberto pelo e para o jogo, construindo entre frestas (como constata o sociólogo Gilberto Vasconcellos) o discurso do aproveitamento sem adesão, da vinculação sem propriedade, do contrato fáustico palimpsestamente rasurado por um comportamento fora de ordem. “Ai! que preguiça!...”exclama Macunaíma; “ai! que preguiça!...”, devolve Caymmi.

Mário de Andrade nos parece testemunhar a possibilidade desse jogo de representações, apesar de suas idéias serem sempre marcadas pelas ambivalências e contradições. Identificamos um primeiro Mário, convencido da necessidade de preservação das formas “altas”, “nobres”, “bem-acabadas”, da técnica apurada e do respeito à tradição erudita; professor de piano do Conservatório de Música de São Paulo que ajudou a fundar, seduzido pela técnica dos grandes mestres; esteta apolíneo que sustenta o triunfo harmônico da tonalidade. Dissonante, polifônico, polirrítmico e atonal — o outro Mário é a busca incessante de ruptura, renovação formal, originalidade transgressora; que deseja a música como doce armamento de guerra, dioniso embriagado e engajado em polêmicas. Dois, vários Mários, esticando a corda que sustenta o arco, apontam a flecha e distendem a lira. No contexto da incorporação utilitária da arte pela indústria, nosso crítico acredita numa música popular que não seja meramente digestiva ou decorativa, que guarde elos visíveis com a tradição, que possa se tornar uma força de transformação da história. Daí o seu encanto com Villa-Lobos, Pixinguinha e os sambistas dos morros cariocas.

Citemos três pequenos trechos de poemas de Mário de Andrade:

Cantabona! Cantabona!
Dlorom...
Sou um tupi tangendo um alaúde!
(1976b : 39)

Silêncio em tudo. Que a música
Rola em disco sem cessar.
Uns pensam, outros suspiram,
Um escuta.
(1976b : 340)

O passadista se enganou.
Não era desafinação
Era pluritonalidade moderníssima.
(1976b : 125)

O tupi (or not tupi) tangendo um alaúde descortina um mundo em silêncio. A crise do sistema tonal aparentemente construído sobre potentes pilotis leva ao radicalismo a experiência de produção e recepção da música, como tivemos a oportunidade de constatar. Atonalidade sistêmica, constelações polirrítmicas, destessiturização do espaçamento, novos modelos harmônicos polimodais, Debussy, Stravinski, Schoenberg, o dodecafonismo, o rádio, o disco e mais contemporaneamente o serialismo que desembocou no minimalismo, Cage, computador, videoclip, MTV, eletrificação e automação sonora — a arquitetura musical perdeu seus mestres-de-obra (Kappelmeister) substituídos pelo onipotente arquiteto-moderno, o maestro virtuose, sucumbindo sob a força desconstrutora de seus novos inquilinos. “Que a música / Rola em disco sem cessar”, observa entre destroços Mário de Andrade. O universo tonal era desmontado pela força dialética de suas próprias contradições. O serialismo caminha soberano pelas avenidas da modernidade.

“Silêncio em tudo” — constata Mário. Produtores, compositores, musicólogos, críticos, sociólogos, historiadores observam nostálgicos a ruína, o fim de um tempo. Mas na paisagem da ruína, o ouvinte refaz, em tensão com outros elementos constitutivos, o percurso histórico do som modulado pela “desafinação”, pela “pluritonalidade moderníssima”, construção fragmentada e descentrada da cidade polifônica, da cultura multitonal.

A ruína passa a se constituir por si o ponto de fuga da paisagem mais longínqua. Seu aparente quadro de destruição e dissolução representa não só a possibilidade da restauração, mas principalmente a desarquitetura como solução de desmonte e fixação de sentido de uma máquina desconstrutivista.

Os materiais, ferramentas e engrenagens que compoem uma desarquitetura musical deixam de transitar na estrita área da melodia, do ritmo e da harmonia respaldada na tradição histórica. Seu processo de reelaboração pressupõe fissuras, interferências estruturais específicas, rachaduras que desmoronam paredes e fazem das portas e janelas passagem para uma nova formatação conceitual. Não é mais o arquiteto o único a pensar a planta. Não é só o engenheiro o que traduz as marcas e as indicações. Não são apenas os trabalhadores os que levantam limites. Os futuros moradores passam também a definir os significados daquela construção. Sua concretude pode se dar em seus constantes processos de relação polimodal. Quem são os leitores críticos da música na contemporaneidade? Músicos, poetas, arranjadores, compositores, musicólogos, etnomusicólogos, críticos literários, lingüistas, físicos especializados em acústica, sociólogos, antropólogos, historiadores, semiólogos, profissionais na área de comunicação, psicanalistas... Que produto terminal essa comunidade de leitores irá ler finalmente? Música?

As ruínas da concepção tradicional da canção (música + letra) modulam a possibilidade de se reconstruir a obra sob uma nova (des)ordem harmônica, interativa, comunicacional, pragmática e dialógica. Os futuros moradores (os fruidores) apresentam-se como forças consonantes (se alienadas do processo de atuação no dinamismo de construção do objeto) ou forças dissonantes (se propuserem uma interferência, uma ampliação de possibilidades interpretativas). Desde já acusamos um remolduramento do conceito (ou conceitos) de lied na modernidade. Não são mais os elementos formadores tradicionais os únicos que definem os limites do objeto (que objeto?), mas também as instâncias receptoras que interpretam e reprocessam a obra (podemos falar ainda em obra como marca de unidade, sinal de autoria, referência de origem?). Enuncia-se: canção popular urbana — historização genealógica de procedimentos, modulação de formas, engrenagens e materiais de uma máquina discursiva. Dissonância no corpo da música e da letra, desejo e desenho arquitetônico possível do ato de compor e do ato de ouvir. Estamos diante de uma nova e delicada questão, a constituição, no espaço relacional dos agentes produtores e receptores da música na sociedade contemporânea, de uma nova audição, um provável act of listening.

Mário vislumbra: “uns pensam, outros suspiram, / um escuta”.

 

3. Estudo de caso

Mário de Andrade reconhece a importância da música folclórica e popular como um saber que se diferencia organicamente da concepção erudita, principalmente em países colonizados. Sua compreensão do que ele chama de evolução da música no Brasil passa pelo predomínio de três grandes campos temáticos: Deus (a religiosidade musical imposta pela tradição católica nos primeiros séculos); o Amor (a profanização, simbolizada pela modinha de salão e pelo melodrama romântico, a partir da Independência e durante todo o Império); e a Nacionalidade (embrionária na Primeira República e já consistente no período da I Guerra Mundial).

O que nos interessa mais de perto refere-se ao terceiro e último momento, que corresponde ao deslocamento da música de “inspiração internacionalista”, reduplicadora de formas e conteúdos da música européia, característica da emergente República, para o espaço da inquietação e valorização do “estado de consciência musical nacionalista” (1975:32), presente na década de 10, e que marcaria definitivamente a busca de um tom brasileiro como afirmação da nacionalidade. Destaca-se que Mário consegue confluir a sua compreensão do processo de transformação musical no Brasil para o mesmo solo de onde partiram as primeiras manifestações do modernismo. Em uma carta a Carlos Drummond de Andrade, ele afirma:

Nacionalismo quer simplesmente dizer: ser nacional. O que mais simplesmente ainda significa: Ser. Ninguém que seja verdadeiramente, isto é, viva, se relacione com o seu passado, com as suas necessidades imediatas práticas e espirituais, se relacione com o meio e com a terra, com a família etc., ninguém que seja verdadeiramente, deixará de ser nacional. O despaisamento provocado pela educação em livros estrangeiros, contaminação de costumes estrangeiros por causa da ingênita macaqueação que existe sempre nos seres primitivos, ainda, por causa da leitura demasiadamente pormenorizada não das obras-primas universais dum outro povo, mas das suas obras menores, particulares, nacionais, esse despaisamento é mais ou menos fatal, não há dúvida num país primitivo e de pequena tradição como o nosso. Pois é preciso desprimitivar o país, acentuar a tradição, prolongá-la, engrandecê-la.
...............................................................................................
De que maneira nós podemos concorrer pra grandeza da humanidade? É sendo franceses ou alemães? Não, porque isso já está na civilização. O nosso contingente tem de ser brasileiro. O dia em que nós formos inteiramente brasileiros e só brasileiros a humanidade estará rica de mais uma raça, rica duma nova combinação de qualidades humanas. As raças são acordes musicais. Um é elegante, discreto, cético. Outro é lírico, sentimental, místico e desordenado. Outro é áspero, sensual cheio de lambanças. Outro é tímido, humorista e hipócrita. Quando realizarmos o nosso acorde, então seremos usados na harmonia da civilização. (1982: 14-15)

A análise da música (e da literatura, como podemos observar em Aspectos da literatura brasileira) marchava lado a lado com a avant-garde da utopia modernista, amalgamando em um só discurso a análise e o sonho, a vontade de entendimento e o desejo de transformação, Villa-Lobos e Oswald. Mário conclui:

Se de primeiro foi universal, dissolvida em religião; se foi internacionalista um tempo com a descoberta da profanidade, o desenvolvimento da técnica e a riqueza agrícola; se está agora na fase nacionalista pela aquisição de uma consciência de si mesma: ela terá que se elevar ainda um dia à fase que chamarei de Cultural, livremente estética, e sempre se entendendo que não pode haver cultura que não reflita as realidades profundas da terra em que se realiza. E então a nossa música será, não mais nacionalista, mas simplesmente nacional, no sentido em que são nacionais um gigante como Monteverdi e um molusco como Leocavallo. (1975:34)

Villa-Lobos passa a ocupar o lugar de referência dessa música que possui fundação na técnica, no formalismo e na tradição erudita européia, mas que abre incisivamente seu campo auditivo e seu gesto político para as manifestações populares. Essa é uma das razões de algumas viagens que Mário e Villa-Lobos fizeram pelo interior do país, pesquisando festas, danças, literatura oral e concepções musicais e folclóricas.

Segundo Mário, a música folclórica, localizada a priori nas zonas rurais, apresenta-se como a forma autóctone mais criativa, respaldada na “tradição necessária”e pilar de construção da “verdadeira identidade nacional”. Percebe-se que em seu projeto nacionalista, a busca das origens, da singularidade e da pureza de princípios e expressão constituem a base principal. Congadas e maracatus são vistos como verdadeiras expressões da alma popular, símbolos, dentre outros, de uma cultura original e enraizada na tradição.

Se Mário de Andrade coloca a questão da nacionalidade como ápice na leitura do que ele próprio chama de evolução da música no Brasil, trocaremos agora o 78 rpm pelo cd, deslocando das três primeiras décadas do século para os anos 60, 70 e 80. Diríamos que o que preocupa em princípio Caetano Veloso e seu projeto estético é a potencialização da “linha evolutiva da música popular”, sua inserção na história, seu lugar na cultura contemporânea brasileira. A releitura de Caetano como um caso, camaleonicamente construído no solo das mitologias mais que modernas ou menos que modernas, pós-modernas e neo-românticas, como já destacou Santuza Naves Cambraia, estrutura-se a partir de um procedimento de representação: a estratégia do UNS.

Não se trata mais de construir uma representação de um personagem multifacetado, e sim o de representar a construção de uma entidade discursiva que oscila entre o silêncio da poesia e a tagarelice do som, encenando identidades, posturas e falas sob a lógica do suplemento. Multiplicar-se em personae, para Caetano, faz do sujeito um fingidor, dilui o eu em UNS. Mas, sob a força do paradoxo, esses outros, produtos da incorporação e da apropriação a partir da voz como assinatura escritural, reafirmam o poder de representação narcísea diante da capacidade de se reproduzir e de se redividir em constructos ficcionalizados. Os vários caetanos não obedecem à lógica de construção da heteronímia, como no caso de Fernando Pessoa, nem se ligam ao estabelecimento de um discurso esquizóide diante da paisagem contemporânea do simulacro como representação do sujeito cultural. Transformar-se em constante espetáculo, abolindo limites entre o espaço privado e o espaço público, levando a vida para o palco e o palco para a vida, afirmar-se contraditório e ambíguo (cf a música O Quereres), signo de indefinição, solar em sua força vital e erótica e lunar em sua contemplação umbilical, e nomear-se múltiplo como possibilidade interpretativa do sujeito diante da história — ser UNS é sempre em Caetano uma estratégia.

A leitura de parte do espetáculo caetano é tecida no corpo de discursos estilhaçados, tendo como referência a cosmogonia do “superastro”, categoria utilizada por Silviano Santiago no ensaio “Caetano Veloso enquanto superastro” sobre a sua postura de artista/acontecimento. Afirma o crítico:

O superastro é o mesmo na tela e na vida real, no palco e na sala de jantar, na TV e no bar da esquina, no disco e na praia, por que nunca é sincero, sempre representando, sempre deliciosa e naturalmente artificial, sempre espantosamente ator, sempre se escapando das leis de comportamento ditadas para os outros cidadãos (e obedecidas com receio). Porque ele é diferente dos outros é sempre o mesmo. (1978:141)

Ser caetanos contamina toda a sua produção, seja pela estratégia do UNS, seja pelo uso da voz como assinatura escritural. A voz que tensiona a falacanto, a voz que incorpora outras vozes e as transveste, a voz que rasura o silêncio com artefatos cênicos, corporais e busca dialogar com a tradição, ou como quer o próprio Caetano, com a “linha evolutiva da MPB”.

Caetano — superbacana, super-homem, superflit, superhist, superviva — como ele se auto-define em uma de suas canções, opera no espaço midiático a manipulação constante de sua imagem. O superastro administra o seu corpo, o seu texto e a sua voz como uma fonte de comentários sobre a paisagem cultural. Transformando-se em imagerie, sua assinatura vocal transita como um flâneur pelas avenidas congestionadas da produção contemporânea da Música Popular Brasileira. Mais do que simplesmente um músico ou um cantor ou um compositor ou um poeta, Caetano se apresenta como um maestro de vozes, kapellmeister pós-moderno em tensão polifônica e serial, no intervalo entre o silêncio e a tagarelice.

Caetano trouxe para o palco da praça e para a praça do palco o próprio corpo, e deu o primeiro passo para ser o superastro por excelência das artes brasileiras. O corpo é tão importante quanto a voz; a roupa é tão importante quanto a letra; o movimento é tão importante quanto a música. O corpo está para a voz, assim como a roupa está para a letra e a dança para a música. Deixar que os seis elementos desta equação não trabalhem em harmonia (o que sucede muitas vezes com Roberto Carlos), mas que se contradigam em toda sua extensão, de tal modo que se cria um estranho clima lúdico, permutacional, como se o cantor no palco fosse um quebra-cabeça que só pudesse ser organizado na cabeça dos espectadores. Mudando e recriando a imagem de número para número, Caetano preenchia de maneira inesperada as seis categorias com que trabalha basicamente: corpo, voz, roupa, letra, dança e música. O artista se desdobra em criador e criatura. Deixando aquele na penumbra da enunciação, exibe-se a si mesmo, criatura, artifício, arte como enunciado. Ler a criatura é ler o artista. Ler é penetrar no espaço das intenções oferecidas e das proposições camufladas”. (1978: 150-1)

Podemos constatar a permanente estratégia de representação da construção de Caetano como lugar de discursos, portanto, de poder, através de dois exemplos recentes. O primeiro tem como produto final muito bem acabado o videoclip da música “O estrangeiro”, de 1989. Os videoclips ocupam nos dias atuais o espaço de uma nova linguagem constitutiva da arquitetura musical. Representam uma interferência específica na construção e recepção da obra e, a partir deles, a música passa a não se afirmar somente pela sua sonoridade, mas pelo registro em imagens do conteúdo sugerido pela letra e pela melodia. O intérprete transforma-se em ator, dramatizando não apenas com a sua voz, mas também com o seu corpo (revestido de roupas, adereços e movimentos coreográficos), a canção. Se a cultura contemporânea é definida pela imagem e pela velocidade de sua emissão, o videoclip assegura o papel de artefato prioritário, diluindo em fotogramas os acordes, fazendo da música fundo de um objeto que só existe enquanto superfície.

O segundo exemplo refere-se ao Caetano novíssimo historiador da cultura brasileira. Depois de citado pelo presidente Fernando Henrique em seu discurso de posse do primeiro mandato, idolatrado e incensado como símbolo de um intelectual ímpar entre pares, mitificado como “gênio da raça”, Doutor “Honoris Causa” pela Universidade Federal da Bahia, Caetano, lança no mercado cultural, em 1997, dois produtos distintos mas articulados — o CD “Livro” e o livro “Verdade tropical”. O livro, um longuíssimo relato sobre o Tropicalismo, a cultura brasileira nos últimos trinta anos, sua transformação de jovem rebelde contracultural em um caballero de fina estampa Giorgio Armani. Não pretende ser um dos inúmeros relatos em decorrência da comemoração dos 30 anos do movimento tropicalista. Pretende ser o relato, o grande relato, o mega-relato, a verdade tropical, resgate-exaltação da memória coletiva de um povo e da memória autobiográfica do sujeito-ator. Escreve Caetano:

Do fundo escuro do coração solar do hemisfério sul, de dentro da mistura de raças que não assegura nem degradação nem utopia genética, das entranhas imundas (e, no entanto, saneadoras) da internacionalizante indústria do entretenimento, da ilha Brasil pairando eternamente a meio milímetro do chão real da América, do centro do nevoeiro da língua portuguesa, saem estas palavras que, embora se saibam de fato despretensiosas, são de testemunho e interrogação sobre o sentido das relações entre grupos humanos, os indivíduos e as formas artísticas, e também das transações comerciais e das forças políticas, em suma, sobre o gosto da vida neste final de século. (1997 : 19)

Sobre essa necessidade contemporânea de registrar a memória social e cultural nos relatos autobiográficos e na literatura de depoimentos, citamos Le Goff :

Pesquisa, salvamentos, exaltação da memória coletiva não mais nos acontecimentos mas no tempo longo, busca dessa memória menos nos textos que nas palavras, nas imagens, nos gestos, nos rituais e nas festas; é a conversão partilhada pelo grande público, obcecado pelo medo de uma perda de memória, de uma amnésia coletiva, que se exprime desajeitadamente na moda retrô, explorada sem vergonha pelos mercadores de memória desde que a memória se tornou um dos objetos da sociedade de consumo que vendem bem.

Na dobra de um projeto estético balizado pela noção continuada de uma “linha de evolução” da música popular brasileira, Caetano monumentaliza a sua memória individual, encenando a fala do novíssimo historiador da vida cultural nos anos 50, 60 e parte dos 70 de um lado (o livro “Verdade tropical”), e na outra margem re-experimentando formatações e conceitos musicais típicos das vanguardas históricas em suas novas e extraordinárias composições (o CD “Livro”). Um livro que canoniza o Tropicalismo como última expressão de um projeto cultural coletivizado, mais de 500 páginas recheadas de citações de um mundo letrado, personagens, filmes, peças já dispostas na estante da alta cultura. Outro “Livro” que parte de Castro Alves para o pastiche dodecafônico de “Doideca”, presta tributo ao objeto livros, caindo nos braços de João Gilberto, o único melhor que o silêncio. Ambos exercícios da memória embelezada e imortal do velho homem sábio, griot de seu imemorial umbigo.

Em uma de suas mais expressivas canções, composta em 1984, e intitulada “O homem velho”, Caetano afirma: “O homem velho deixa vida e morte para trás / Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais / O grande espelho que é o mundo ousaria refletir os seus sinais / O homem velho é o rei dos animais (...) E a seu olhar tudo o que é cor muda de tom / Os filhos, filmes, livros, ditos como um vendaval / Espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal / Mas ele dói e brilha único, indivíduo, maravilha sem igual / Já tem coragem de saber que é imortal.” “É preciso ser absolutamente moderno?” Para Caetano a frase de Rimbaud perdeu substância e sentido. Ele, apropriando-se sob a clave do pastiche do verso de Drummond, talvez dissesse fingidamente ao leitor de seu livro-disco (“Verdade Tropical”) e ao ouvinte de seu disco-livro (“Livro”) que cansou de ser moderno. Como um homem velho, deseja agora ser eterno.

 

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