Camões e Eça de Queirós

Os orientes de Eça de Queirós

Isabel Pires de Lima
Universidade do Porto

O Oriente será, na obra de Eça de Queirós, uma permanente referência mítica e real. A rápida viagem por ele empreendida ao Egipto, Palestina, Síria e Líbano, na companhia de seu amigo e futuro cunhado, Luís, conde de Resende, entre finais de 1869 e os primeiros dias de 1870, com o pretexto de assistir à inauguração do Canal de Suez, irá marcá-lo indelevelmente; isto quando ele era ainda um jovem literato que, na sequência de uma rica vivência universitária, fizera os primeiros tenteios literários, muito impregnados ainda de romantismo fantástico e de satanismo baudelairiano.

Doravante, porém, um sopro oriental perpassará do princípio ao fim da sua obra, alimentando-lhe a imaginação, fornecendo-lhe cenários, temas, imagens, quer de um modo explícito e fundamental em obras de índole tão diversa quanto O Egipto - Notas de Viagem, coligidas e publicadas por um dos seus filhos em 1926 ou o romance A Relíquia (1887) ou os contos A Morte de Jesus (1870), O Mandarim (1880), Santo Onofre (1893), quer de um modo mais pontual mas significativo n'A Correspondência de Fradique Mendes ou n'O Mistério da Estrada de Sintra. E isto se não se referirem textos de carácter jornalístico mais tarde recolhidos em Notas Contemporâneas, como por exemplo o artigo "De Port-Said a Suez", a propósito da inauguração do Canal de Suez, e em Cartas de Inglaterra, onde defende os nacionalistas egípcios que se opunham ao domínio inglês.

A jornada de Eça ao Próximo-Oriente, a par das suas passadas e futuras leituras orientalistas, confirmará e acentuará o seu interesse pelo Oriente e facultar-lhe-á outras viagens fabulosas, do Próximo ao Extremo-Oriente, seus contemporâneos e antigos. É pois legítimo falar de imaginário oriental na sua obra e não será desadequado fazer suas as palavras que pôs na boca de Teodorico, n'A Relíquia: "Esta jornada à terra do Egipto e à Palestina permanecerá sempre como a glória superior da minha carreira"[1].

Comecemos então por aí: à chegada ao Egipto, Eça de Queirós impressiona-se perante a perspectiva de pôr o pé naquele solo: "um solo venerável, quase mitológico, conhecido de Homero"[2], escreve ele. É, pois, o próprio que introduz a questão do mito, inevitável quando se fala de Oriente no século XIX.
Pode-se afirmar que, desde os primórdios da Europa, o Oriente foi sempre visto pelo Ocidente como algo mais para além daquilo que era empiricamente conhecido a seu respeito e apresentou-se-lhe sempre demarcado em relação a si. Isso já é visível em textos tão remotos como Os Persas, de Ésquilo ou As Bacantes, de Eurípedes. Ao mesmo tempo, o Oriente surge como um perigo insinuante: é de lá que vêm o cristianismo, temíveis conquistadores e sobretudo o Islã. É especialmente com ele e Maomé, visto como o disseminador de uma falsa revelação, uma espécie de falso Cristo, que o Oriente adquire, a partir da Idade Média, uma série de "representações" que se vão perpetuar no imaginário ocidental: dele emana a traição, a devassidão, a lascívia, a heresia etc.

Está, pois, criado o cenário que vai permitir ao Ocidente ver o Oriente como uma espécie de "palco teatral anexo à Europa"[3], onde o oriental, seja ele árabe, islâmico, indiano, chinês ou qualquer outra coisa, se torna narcisicamente uma encarnação repetitiva de algum valor original ocidental que ele supostamente está a imitar. Na sua profunda diferença, o oriental torna-se, assim, "parecido" com algum aspecto do Ocidente. Por esse palco, no qual todo o Leste está confinado, passa um repertório culturalmente muito rico: a Esfinge, Cleópatra, o Éden, Sodoma e Gomorra, Osíris e Íris, a Babilónia, Preste João, e muitos outros; cenários, nomes meio imaginários, meio conhecidos, monstros, heróis, prazeres, desejos, terrores que alimentarão durante séculos a imaginação europeia. O mito está criado, o Oriente inventado, "orientalizado" pelo Ocidente, na expressão de Edward Said[4].

No século XIX, o Oriente tornar-se-á um mito moderno, positivo e romântico e dará origem ao aparecimento de uma disciplina de fronteiras fluidas, o orientalismo. Em articulação com os interesses das grandes potências pelo Oriente, designadamente pelas riquezas da Índia, pela posse das quais franceses e ingleses se haviam batido no século XVIII[5], uma série de pesquisas eruditas sobre o Oriente começaram a empreender-se por finais desse século[6]. Sob o impulso dos estudos comparativos, sobretudo no domínio filológico e lexicográfico, descobriram-se as antigas línguas da Ásia, o zende, o sânscrito, os hieroglifos egípcios. A expedição de Napoleão ao Egipto, em 1798, revelou-se da maior importância para o avanço do orientalismo, dado que ele se fez acompanhar por um exército de sábios que, sob a égide do Institut d'Egypte, criado pelo próprio Napoleão, deram corpo àquela "grande apropriação colectiva de um país por outro"[7], que constituiu a Description de l'Egypte, publicada em 23 enormes volumes entre 1809 e 1828.

Tais descobertas tiveram forte repercussão nos meios intelectuais europeus. O gosto romântico pelo exótico e pelo pitoresco, a par da expansão do fenómeno da tradução - as Mil e uma noites traduzidas por Galland para o francês nos inícios do séc. XVIII foram imitadas inúmeras vezes - desencadearam, a par daquelas descobertas, uma enorme curiosidade pelo Oriente.

O Orientalismo apresenta-se então aos olhos de muitos como um novo humanismo, uma nova Renascença: tal como na Renascença, a Europa cristã se transformara, entusiasmando-se com a Grécia e Roma antigas, aí identificando as suas origens, assistiríamos agora a uma transposição desse entusiasmo para o Oriente, primitivo berço das civilizações. Edgar Quinet canoniza esta ideia, em 1842, através da fórmula "Renaissance orientale". Novalis e Schlegel - este último conhecia o sânscrito e a antiguidade indiana, a ponto de ser conhecido nos salões parisienses pelo "baron Boudha" - instavam ao estudo da cultura e religião indianas para derrotar o materialismo da cultura ocidental, dando origem a uma Europa nova e revitalizada. No seu livro inacabado Bouvard et Pécuchet, espécie de manual irónico do lugar-comum, Flaubert imagina os seus heróis entusiasmados com mais esta panaceia romântica da regeneração da Europa pela Ásia: "L'Europe sera régénérée par l'Asie. La loi historique étant que la civilisation aille d'Orient en Occident, [...] les deux humanités enfin seront fondues."[8] Gera-se a voga das viagens ao Oriente e multiplicam-se obras de erudição e narrativas de viagens. N'A Relíquia, Eça põe a ridículo esta voga erudita, através da figura de Topsius, o companheiro de Teodorico na sua jornada ao Oriente, cuja erudição imensa nos é apresentada nos seguintes termos:

A sabedoria deste moço era dom hereditário. [...] seu tio, o decrépito Topsius, o memorável egiptólogo, aos setente e sete anos, ditou da poltrona, onde o prendia a gota, esse livro genial e fácil - a Síntese Monoteísta da Teogonia Egípcia, Considerada nas Relações do Deus Ftás e do Deus Imhotep com as Tríades dos Nomos.

O pai de Topsius, desgraçadamente, através desta alta ciência doméstica, permanecia figle numa charanga, em Munique: mas o meu camarada, reatando a tradição, logo aos vinte e dois anos tinha esclarecido, radiantemente, em dezanove artigos publicados no Boletim Hebdomadário de Escavações Históricas, a questão, vital para a Civilização, duma parede de tijolo erguida pelo rei Pi-Sibkmé, da vigésima primeira dinastia, em torno do templo de Ramsés II, na lendária cidade de Tânis. Em toda a Alemanha científica, hoje, a opinião de Topsius, acerca desta parede, brilha com a irrefutabilidade do Sol.[9]

O realismo descritivo ou redutoramente pitoresco dos primeiros orientalistas foi sendo ultrapassado e o Oriente, sem limites geográficos bem definidos, torna-se um topos, para a imaginação ocidental e um meio de criação artística. Proliferam na Europa pintura[10] e literatura orientalistas, a ponto de se poder falar de uma semiótica oriental. O orientalismo literário teve cultores famosos em Byron e Moore, em Goethe, em Hugo, Lamartine, Vigny, Chateaubriand, Gautier, Nerval, Flaubert, no nosso Eça de Queirós e em tantos, tantos outros.

Na expressão de Philippe Desan, "On re-écrit l'Orient selon sa fantaisie et l'Orient devient bien vite un immense fantasme: le fantasme de l'Occident qui se cherche des origines dans un monde moins rigide". ("Cada um reescreve o Oriente segundo a sua fantasia. E assim o Oriente torna-se rapidamente num imenso fantasma: o fantasma do Ocidente que procura as suas origens num mundo menos rígido")[11].

Essa uma razão por que o Oriente aparece como feminino, seminal, sensual, misterioso, primitivo. No fundo ele é o Outro, tudo o que está ausente e se deseja. O Oriente torna-se uma espécie de pátria subjectiva onde cada um encontra o que procura. Mas depressa, "Le discours orientaliste perd son individualité pour devenir un tout collectif; une conscience collective au sens durkheimien du terme. [...] L'Orientaliste fonde son autorité sur le discours - déjà autorité - d'un autre orientaliste". ("O discurso orientalista perde a sua individualidade, tornando-se um todo colectivo. [...] O Orientalista começa a fundamentar a sua autoridade sobre o discurso - entretanto tornado autoridade - de um outro orientalista.")[12]. Cada viagem torna-se uma confirmação de um material canônico e só as capacidades estéticas do artista fazem do seu relato uma obra de arte, capaz de reter a atenção do leitor. Lamartine não seguiu as peugadas de Chateaubriand, e Nerval as de Lamartine e Flaubert ou Eça de Queirós as de Nerval?

Foi enquanto herdeiro do orientalismo que Eça de Queirós põe com tanta emoção e solenidade o pé em terras do Egipto. Ele vai como um peregrino em busca de um novo Graal, duma terra prometida, ainda que ela se venha a revelar confinada ao mais recôndito espaço da sua alma ou aos livros já lidos. Eça tinha feito leituras preparatórias da viagem. Jean Girodon detectou em Maxime Du Camp, Nerval, Edmond About e Gautier, suas fontes mais importantes[13]. Por isso o Oriente terá por vezes, para ele, o aspecto de déjà vu.

Por isso também, às vezes, o tédio invade-o quando a realidade já não corresponde ao mito, como é o caso flagrante de Alexandria, n'O Egipto. Ao pôr o pé em Alexandria, exclama, como fazendo gala da sua erudição oriental e apelando para um Oriente morto:

Oh! Alexandria, velha cidade grega, velha cidade bizantina, onde estás tu? Onde estão os teus quatro mil banhos, os teus quatro mil circos, os teus quatro mil jardins? Onde estão os teus dez mil mercadores, e os doze mil judeus que pagavam tributo ao santo califa Omar? Onde estão as tuas bibliotecas, e os teus palácios egípcios, e o jardim maravilhoso de Ceres, oh! cidade de Cleópatra, a mais linda das Lágidas.[14]

A Alexandria real, imunda, mercantil, ocidentalizada e descuidada aborrece-o e, numa reacção de desapontamento bem típica do viajante oriental, exclama vingativo, ao deixá-la:

Aquela monótona cidade, cheia de boulevards e de casinos, no sítio onde o solo ainda está quente dos passos dos Ptolomeus e das sandálias de Cleópatra, pesara-nos como a página dum livro comercial intercalada no arabesco fantástico das Mil e uma noites![15]

Veja-se ainda estoutro passo ditado por uma certa consciência orientalista banhada, porém, por uma dose de ironia, no qual Eça de Queirós nos transmite o seu bocejo:

Fomos também ver, conscienciosamente, as Agulhas de Cleópatra. Encontrámo-las numa horta cercada de uma fileira de casas: uma está de pé, nítida, de granito rosado; as outras jazem, deitadas no chão: em redor, crescem legumes. Aproximei-me, e depois de as ver e de me compenetrar de que tinham pertencido ao templo de Heliópolis, e de que haviam sido trazidas para Alexandria para serem colocadas dentro dum templo dedicado a Ceres, voltei os olhos e bocejei...[16]

N'A Relíquia, Teodorico olha a Palestina e a Síria em função do mítico passado bíblico. Tudo lhe relembra o universo bíblico: "uma rapariga bela como a antiga Raquel" ou "um árabe pastoreando nu como um S. João". Mas a realidade nem sempre é conforme com esse passado bíblico[17]. Em Jerusalém, perante o Santo Sepulcro, o devasso Teodorico sofre o baque da desilusão do "peregrino" oriental e no tom de farsa, próprio do livro, transmite assim o seu desapontamento perante o desmoronamento da sua imagem mítica do Santo Sepulcro mal dele se aproxima:

- Ora aqui estão os cavalheiros diante do Santo Sepulcro... Fechei o meu guarda-chuva. Ao fundo de um adro, de lajes descoladas, erguia-se a fachada duma igreja, caduca, triste, abatida, com duas portas em arco: uma tapada já a pedregulho e cal, como supérflua; a outra timidamente, medrosamente, entreaberta. E aos flancos débeis deste templo soturno, manchado de tons de ruína, colavam-se duas construções desmanteladas, do rito latino e do rito grego - como filhas apavoradas que a Morte alcançou, e que se refugiam ao seio da mãe, meio morta também e já fria.
Calcei então as minhas luvas pretas. E imediatamente, um bando voraz de homens sórdidos envolveu-nos com alarido, oferecendo relíquias, rosários, cruzes, escapulários, bocadinhos de tábuas aplainadas por S. José, medalhas, bentinhos, frasquinhos de água do Jordão, círios, agnus-dei, litografias da Paixão, flores de papel feitas em Nazaré, pedras benzidas, caroços de azeitona do monte Olivete, e túnicas "como usava a Virgem Maria!"
E à porta do sepulcro de Cristo, onde a titi me recomendara que entrasse de rastos, gemendo e rezando a coroa - tive de esmurrar um malandrão de barbas de ermita, que se dependurara da minha rabona, faminto, rábido, ganindo que lhe comprássemos boquilhas feitas de um pedaço de arca de Noé!
- Irra, caramba, larga-me, animal!
E foi assim, praguejando, que me precipitei, com o guarda-chuva a pingar, dentro do santuário sublime onde a Cristandade guarda o túmulo do seu Cristo.[18]

N'O Mandarim, não se vislumbra uma reacção de desilusão por parte de Teodoro perante a "cidade fabulosa e singular"[19] que é Pequim. Contemplando-a da mítica muralha, na sua vastidão, depois de ter descrito os bairros chineses e a cidade tártara (as ruas, os meios de transporte, as lojas, as gentes), Teodoro comenta:

É como uma formidável cidade da Bíblia, Babel e Nínive, que o profeta Jonas levou três dias a atravessar. O grandioso muro quadrado limita os quatro pontos do horizonte, com as suas portas de torres monumentais, que o ar azulado, àquela distância, faz parecer transparentes. E na imensidão dos seus recintos aglomeram-se confusamente verduras de bosques, lagos artificiais, canais cintilantes como aço, pontes de mármore, terrenos alastrados de ruínas, telhados envernizados reluzindo ao Sol; por toda a parte são pagodes heráldicos, brancos terraços de templos, arcos triunfais, milhares de quiosques saindo de entre as folhagens dos jardins; depois espaços que parecem um montão de porcelanas, outros que se assemelham a monturos de lama; e sempre a intervalos regulares o olhar encontra algum dos bastiões, de um aspecto heróico e fabuloso...[20].

Com efeito, a China nunca surpreende verdadeiramente Teodoro, porque ela corresponde, a cada momento, à imagem relativamente estereotipada que dela se tinha no Ocidente. Nem de outro modo poderia ser, se pensarmos que o autor d'O Mandarim nunca viajara até à China, não tendo podido nunca comparar - como pudera fazer no Egipto e na Palestina - a imagem canónica e mítica que possuía do país com a imagem real com que o viajante deparava.

Em relação ao Egipto, a atitude de desapontamento é, porém, bem rara em Eça de Queirós. De um modo geral ele entusiasma-se em face do Egipto real, contemporâneo ou antigo. Maravilhoso, sublime, harmonioso são termos que acorrem talvez até excessivamente à sua pena, que se confessa ineficaz para captar tanta beleza:

Seria necessário que esta dura pena de ferro com que firo o papel, fosse talhada numa jóia árabe, molhada naquelas pálidas luzes das iluminações, e conduzida sobre a brancura da página pela mão delicada de um poeta persa, para fazer sentir, dum modo real e incisivo, toda a beleza daquele lugar luminoso.[21]

E até, numa óptica que, embora bebendo no campo ideológico da "renascença oriental", foge ao lugar comum do Oriente como espaço do mistério, - onde, todavia, também ele acabará por cair, - Eça de Queirós opina, retirando a si mesmo "autoridade orientalista"[22]:

Eu não sou um sábio, como se vê; não tenho a honra de distinguir Ramsés IV de Meneftá II, nem tenho intimidades com múmias, mas creio que o Egipto é um país simples, luminoso e claro como a Grécia. Pelo menos não tem nada de misterioso nem de lúgubre.[23]

Uma típica reacção orientalista é a de confundir o Oriente com pansexualismo. O Oriente sugere ao viajante ocidental fecundidade, promessa e ameaça sexual, sensualidade, desejo. É frequente a apreensão do Oriente como uma atmosfera natural de feminilidade, o que leva Lisa Lowe a falar na existência, durante o séc. XIX, de uma "projection of the oriental Other as female"[24] ("projecção do Outro oriental como fêmea").

A Eça de Queirós, a mulher oriental e as almeias, às quais de resto dedica dois capítulos dos 26 que compõem as notas de viagem, O Egipto, interessaram-no ao mesmo nível das outras realidades com que se confronta: a vida sub-humana dos felás (fellah), o conluio entre os chefes locais e o poder ocidental, a agitação das ruas e dos bazares do Cairo, a experiência do "narguilé" e dos banhos turcos. E, na descrição atenta e pormenorizada do Egipto contemporâneo, ele é sobretudo um discípulo de Taine, procurando explicações positivas para o que vai vendo, inclusivamente para a concepção da mulher no Oriente, sem contudo se alhear da captação exímia dos pormenores plásticos e sonoros, que não apenas a riqueza da paisagem e do passado antigo lhe facultam, a que o seu olhar de esteta refinado o obriga.
N'A Relíquia, Teodorico deixa-se entusiasmar pela sensualidade misteriosa da mulher oriental. É tremendo de emoção que o vemos penetrar nos "segredos deslumbradores dum serralho"; todavia, este tópico orientalista é caricaturado de seguida, subvertendo-se assim o comum ponto de vista orientalista a este respeito:

Então, uma portinha branca, sumida no muro caiado, rangeu a um canto, de leve: e uma figura entrou, velada, vaga, vaporosa. Amplos calções turcos de seda carmesim tufavam com languidez, desde a sua cintura ondeante, até aos tornozelos, onde franziam, fixos por uma liga de ouro; os seus pezinhos mal pousavam, alvos e alados, nos chinelos de marroquim amarelo; e através do véu de gaze que lhe enrodilhava a cabeça, o peito e os braços - brilhavam recamos de ouro, centelhas de jóias e as duas estrelas negras dos seus olhos. Espreguicei-me, túmido de desejo.
Por trás dela Fatmé, com a ponta dos dedos, ergueu-lhe o véu devagar, devagar - e de entre a nuvem de gaze surgiu um carão cor de gesso, escaveirado e narigudo, com um olho vesgo, e dentes podres que negrejavam no langor néscio do sorriso. [...] A circassiana, requebrando-se, com o seu sorriso pútrido, veio estender-nos a mão suja, a pedir "presentinhos" num tom rouco de aguardente. Repeli-a com nojo. Ela coçou um braço, depois a ilharga; apanhou tranquilamente o seu véu, e saiu arrastando as chinelas.[25]

Também n'O Mandarim, não falta, de acordo com o estereótipo, uma atmosfera oriental favorável à emergência da sensualidade. Trata-se do "Repouso Discreto", o quiosque da generala, onde Teodoro vive momentos deliciosos com Mimi.[26]

N'O Egipto, Eça entusiasma-se com a harmonia da paisagem, em especial a do Nilo, espécie de antecâmara do mundo antigo:

Tudo aquilo nos surpreende como se entrássemos num mundo antigo, histórico. Aquelas longas linhas, aquela transparência de cores, a serenidade daqueles horizontes, tudo faz pensar num mundo que se desprendeu das contradições da vida, e entrou, se fixou na imortalidade.[27]

Concebe, assim, na esteira do orientalismo canónico, um Egipto imutável, de uma "harmonia divina", onde impera a ordem e o equilíbrio, quando se trata do antigo Egipto faraónico[28] e de uma fantasmagoria e desordem poéticas, "um museu maravilhoso e romântico"[29], quando se trata do "negro Egipto, romântica terra de Califas"[30], o Egipto islâmico das Mil e uma noites que constantemente evoca. Também uma diferença abissal separa n'A Relíquia a Jerusalém do passado que um dia Teodorico vira em sonhos, da Jerusalém católica com que se confronta. Ele próprio, prestes a vislumbrá-la, reflecte:

Eu ia avistar Jerusalém! Mas - qual? Seria a mesma que vira um dia, resplandecendo sumptuosamente ao sol de Nizão, com as torres formidáveis, o Templo cor de ouro e cor de neve, Acra cheia de palácios, Bezetha regada pelas águas do Enrogel?...

E é a tremer de emoção que se apronta a contemplá-la:

E logo a vi, lá em baixo, junto à ravina do Cédron, sombria, atulhada de conventos e agachada nas suas muralhas caducas - como uma pobre, coberta de piolhos, que para morrer se embrulha a um canto nos farrapos do seu mantéu.
Bem depressa, transpassada a Porta de Damasco, as patas dos nossos cavalos atroaram o lajedo da Rua Cristã: rente ao muro um frade, com o breviário e o guarda-sol de paninho entalados sob o braço, ia sorvendo uma pitada estrondosa. Apeámos no Hotel do Mediterrâneo: no esguio pátio, sob um anúncio das 'Pílulas Holloway', um inglês, com um quadrado de vidro colado ao olho claro, os sapatões atirados para cima do divã de chita, lia o Timea; por trás duma varanda aberta, onde secavam ceroulas brancas com nódoas de café, uma goela roufenha vozeava: C'est le beau Nicolas, holà!... ah! era esta, era esta, a Jerusalém católica!...[31
].

Nas suas Notas de Viagem, Eça de Queirós é ainda particularmente sensível ao Egipto seu contemporâneo, nos seus contrastes atraentes e aterradores, onde os expoentes da beleza convivem com a decadência, a miséria e a fome: "Isto é horrorosamente belo!", alguém exclama num dado momento da sua narrativa[32]. Uma atitude dupla de atracção e repulsa do mesmo tipo se nota quer n'A Relíquia, quer n'O Mandarim. Neste conto, se por um lado "A China tem encantos dum raro gosto", que estonteiam e atraem o visitante ocidental e o fazem sentir imperceptivelmente ideias, instintos chineses: o amor dos cerimoniais meticulosos, o respeito burocrático das fórmulas, uma ponta de cepticismo letrado; e também um abjecto terror do imperador, o ódio ao estrangeiro, o culto dos antepassados, o fanatismo da tradição, o gosto das coisas açucaradas...[33];

por outro lado, é um país "bárbaro" e "decrépito", por onde passa um rasto de fome, sangue e morte: "Ao passar junto ao Templo do Céu", em Pequim - conta Teodoro -

vejo apinhada num largo uma legião de mendigos: tinham por vestuário um tijolo preso à cinta num cordel; as mulheres, com os cabelos entremeados de velhas flores de papel, roíam ossos tranquilamente; e cadáveres de crianças apodreciam ao lado, sob o voo dos moscardos. Adiante topámos com uma jaula de traves, onde um condenado estendia, através das grades, as mãos descarnadas, à esmola... Depois Sá-Tó mostrou-me respeitosamente uma praça estreita: aí, sobre pilares de pedra, pousavam pequenas gaiolas contendo cabeças de decapitados: e gota a gota ia pingando delas um sangue espesso e negro...[34].

Nesta atitude de captação do sentido do Oriente realmente experimentado, Eça revela-se um espírito original no vasto campo do orientalismo oitocentista a crer no juízo peremptório e abalizado de Said que declara: "Procurar, no orientalismo, por um sentido vivido da realidade humana e até mesmo social do Oriente - como um habitante contemporâneo do mundo moderno - é procurar em vão"[35].

Cada um encontra no Oriente o que procura. Teodorico procura apenas uma boa relíquia para apaziguar o fanatismo da titi e conquistar o direito à sua herança. No Oriente ele só encontra o Outro com quem não se identifica. Perante a notícia da chegada do paquete que o vai trazer de regresso ele reage assim: "- Ainda bem! - gritei, atirando patadas de ladrilho. - Ainda bem, que estava farto do Oriente!...Irra! que não apanhei aqui senão soalheiras, traições, sonhos medonhos e botas pelos quadris! Estava farto!"[36]. Teodoro, por seu turno, procura a paz para a sua consciência culpada, através de uma reposição da fortuna do mandarim Ti-chin-Fu. Após as suas desventuras orientais, conclui quanto a sua ideia fora insensata e quanto se revela incapaz de entender o Outro:

Eu não compreendia a língua, nem os costumes, nem os ritos, nem as leis, nem os sábios daquela raça: que vinha pois fazer ali senão expor-me, pelo aparato da minha riqueza, aos assaltos dum povo que há quarenta e quatro séculos é pirata nos mares e traz as terras varridas de rapina?...[37].

Eça de Queirós, esse, quando viajou ao Oriente, encontrou o passado antigo, que estará indelevelmente presente em ficções futuras, mas encontrou também uma realidade sua contemporânea tão substancialmente diferente da que conhecera até então, que lhe aguçou para sempre a pena realista que ele procurava incansavelmente desde um dia em que havia lido como uma revelação Madame Bovary. Eça de Queirós partira para o Oriente um jovem impregnado de romantismo, regressa um entusiasta de um realismo "artiste"[38].

E este dado explicará como o imaginário oriental de algumas das suas ficções procurará opor e alternar quadros e personagens contemporâneas com quadros das civilizações passadas, obrigando ainda as suas personagens actuais a deslocarem-se no espaço e no tempo. Na excelente formulação de Castelo Branco Chaves, "o avanço no espaço e o retrocesso no tempo constituíam para o romancista a principal origem do pitoresco pela grande soma de diversidade obtida no jogo de contrastes de épocas diversas e de paixões díspares, vistas e sentidas pelo mesmo homem"[39]. E aqui também, creio bem, ele será bastante original no seio da literatura orientalista do século passado.

Como lembrei no início, Eça sucumbiu para sempre ao fascínio do Oriente repetidamente evocado nas suas ficções, um Oriente historicamente mítico e real. Por isso Eça de Queirós, referindo-se a Salammbô, o romance de Flaubert de minuciosa evocação histórico-orientalista, que ele admirou vivamente, fez suas as palavras do mestre: "Peut-être, après tout, n'y a-t-il pas un mot de vrai là-dedans![40]. Isto é, história, realidade e mito, tudo isso é ficção. Recordem-se as palavras de Eça dirigidas ao Conde de Ficalho em pleno trabalho de recolha para elaboração do romance A Relíquia: "Debalde [...] se consultam in-fólios, mármores de museus, estampas, e coisas em línguas mortas: a História será sempre uma grande Fantasia. [...] Reconstruir é sempre inventar"[41]. O Oriente e a sua história foram para Eça Ficção.

Notas

  • 1 QUEIROZ, Eça de. A Relíquia, Obras de Eça de Queiroz. Porto: Lello & Irmãos Editores, s.d., vol. 1, p. 1.491.
  • 2 QUEIROZ, Eça de, O Egipto, Obras de Eça de Queiroz, ob. cit., vol. 3, p. 693.
  • 3 SAID, Edward W. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. S. Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 73.
  • 4 Ibidem, p. 77.
  • 5 A Inglaterra e a França lutaram uma contra a outra na Índia, entre 1744 e 1748 e, novamente, entre 1756 e 1763, acabando os britânicos por conseguirem o controle da situação em 1769. Um dos objectivos da invasão napoleónica do Egipto, em 1798, era exactamente atingir o império oriental britânico, começando por interceptar a sua passagem islâmica, o Egipto.
  • 6 Começando pela obra fundamental de Anquetil-Duperron e pela escola indianista inglesa com William Jones, passando pelos eruditos alemães, os irmãos Schlegel, Bopp e pelos sábios franceses Silvestre de Sacy, entre outros.
  • 7 SAID, Edward W., idem, p. 92.
  • 8 FLAUBERT. Bouvard et Pécuchet, Oeuvres Complètes. Préface de Jean Bruneau, présentation et notes de Bernard Masson. Paris: Ed. du Seuil, 1964, . tome 2, p. 301.
  • Claro que Flaubert ria-se desta panaceia, votada ao fracasso como todas as outras. Ele bem sabia que o que importava não era tanto a Ásia, quanto o uso que dela faria a Europa e sobretudo tinha consciência de que aquele visionarismo aliado à messiânica ciência europeia não eram inocentes: tinham implicado muitas guerras, revoluções abafadas, opressões e eram resistentes à realidade - quereria o Oriente regenerar a Europa? estaria a Europa prestes a fundir-se em pé de igualdade com o Oriente?
  • 9 QUEIROZ, Eça de, A Relíquia, ob. cit., p. 1.535.
  • 10 Veja-se logo no começo do século as obras de Gros (La Bataille d'Aboukir, La Bataille des Pyramides) e de Guérin (Les Révoltés du Caire) e mais tarde as de Marilhat (Vue de la Place de l'Esbekieh, Campagne de Rosette), e Delacroix (Femmes d'Alger).
  • 11 DESAN, Philippe. "L'Autorité Orientaliste de Flaubert", Nottingham French Studies, XXI, 1, May, 1983, p. 16.
  • 12 Ibidem, p. 18.
  • 13 GIRODON, Jean. "O Egypto" d'Eça de Queiroz, Livraria Bertrand, 1959, p. 11-58. Ver ainda a este respeito ARAÚJO, Luís Manuel de. Eça de Queirós e o Egipto Faraónico. Lisboa: Editorial Comunicação, 1987, p. 35-52.
  • 14 QUEIROZ, Eça de, O Egipto, ob.cit., p. 693.
  • 15 Ibidem, p. 703.
  • 16 Ibidem, p. 697-8.
  • 17 QUEIROZ, Eça de, A Relíquia, ob. cit., p. 1.561.
  • 18 Ibidem, p. 1.552.
  • 19 QUEIROZ, Eça de, O Mandarim, Obras de Eça de Queiroz, ob. cit., vol. 1, p. 1.465.
  • 20 Ibidem, p. 1.466. Ver ainda p. 1.467.
  • 21 QUEIROZ, Eça de,O Egipto, ob. cit., p. 810.
  • 22 Utilizamos aqui a expressão "autoridade orientalista", na acepção que lhe dá Desan no artigo já citado: "le dénominateur commun des Orientalistes [...] sera la recherche de l'autorité. L'autorité, au sens que nous lui donnos, c'est le pouvoir de posséder l'auteur par l'appropriation de son texte. Posséder le texte de l'Autre." (Idem, p. 17.)
  • 23 QUEIROZ, Eça de, O Egipto, ob. cit., p. 768.
  • 24 LOWE, Lisa. "The Orient as Woman in Flaubert's Salammbô and Voyage en Orient", Comparative Literature Studies, XXIII, Summer, 1986, p. 45.
  • 25 QUEIROZ, Eça de, A Relíquia, ob. cit., p. 1.557.
  • 26 QUEIROZ, Eça de, O Mandarim, ob. cit., p.1.469-70.
  • 27 QUEIROZ, Eça de, O Egipto, ob. cit., p. 705.
  • 28 Contemplando os baixo-relevos do templo de Serápis, Eça de Queirós comenta: "Tudo isto tem uma harmonia divina: sente-se o povo forte, trabalhador, casto, activo e educado, que criou pelas austeras virtudes uma civilização inesperada. Todo o antigo Egipto, com a sua alta civilização, está ali." (Ibidem, p. 803.)
  • 29 Ibidem, p. 812.
  • 30 Ibidem, p. 693.
  • 31 QUEIROZ, Eça de, A Relíquia, ob. cit., p. 1.635.
  • 32 QUEIROZ, Eça de, O Egipto, ob. cit., p. 807.
  • 33 QUEIROZ, Eça de, O Mandarim, ob. cit., p. 1.463.
  • 34 Ibidem, p. 1.466.
  • 35 SAID, Edward W., idem, p. 184.
  • 36 QUEIROZ, Eça de, A Relíquia, ob. cit., p. 1.643.
  • 37 QUEIROZ, Eça de, O Mandarim, ob. cit., p. 1.479. Ver ainda p. 1.467.
  • 38 Ainda no mesmo ano do regresso do Oriente, Eça de Queirós far-se-á o arauto de um realismo "sui generis", exemplificado com Madame de Bovary, na célebre Conferência do Casino Lisbonense, intitulada "A afirmação do Realismo como nova expressão de arte".
  • A propósito da sua "conversão" realista feita no Oriente, comenta Girodon: "Eça de Queiroz voluptueusement se dépersonnalise, et, assez paradoxalement, ce sont ces contacts exotiques qui, par une douce transition, le conduiront vers le réalisme plus sévère de sés grands romans." (Idem, p. 6.)
  • 39 CHAVES, Castelo Branco, "As evocações históricas na obra de Eça de Queirós", Estudos Críticos. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1932, p. 106.
  • 40 Citado por Eça de Queirós em Cartas Inéditas de Fradique Mendes, Obras de Eça de Queiroz, ob. cit., vol. 3, p. 857.
  • 41 QUEIROZ, Eça de. Correspondência. Leitura, coordenação, prefácio e notas de Guilherme de Castilho. Imprensa Nacional/Casa da Moeda, s.d., vol. 1, p. 265.