Gilda Santos
UFRJ/CNPq
Da pergunta-mote deste seminário — É preciso ser absolutamente moderno? — deixo as discussões teóricas a colegas mais autorizados. De minha parte, recorro ao nosso sempre moderno Carlos Drummond de Andrade para escolher um veio de resposta. Como que compelida pela força das palavras, começo por recordar os primeiros versos do seu poema “Eterno”[1]:
E como ficou chato ser moderno.
Agora serei eterno.
Eterno! Eterno!
o Padre Eterno,
a vida eterna,
o fogo eterno.
(Le silence éternel de ces espaces infinis m’effraie.)
— O que é eterno, Yayá Lindinha?
— Ingrato! É o amor que te tenho.
Eternalidade eternite eternaltivamente
Eternuávamos
Eternissíssimo
A cada instante se criam novas categorias de eterno.
Observando o processo de mosaico de citações com que se constrói este trecho, recuo a outro passo drummondiano, agora do famoso “Consideração do Poema”[2]:
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporaram
ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizar de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.
Estes poemas são meus.
Na explicitada cadeia de interlocução travada entre o poeta e outros poetas, inscreve-se um caminho caro à modernidade: da tarefa de reler/repensar/recriar outros textos surgem os traços distintivos do buscado novo, que só existem se contrastados com a anterioridade. Do previsível confronto de tempos/espaços que os textos propõem, decorre uma abertura para esse mesmo eterno sobre o qual, em múltiplos tons, fala Drummond. É certo que os conceitos mais difundidos sobre a arte moderna, desde Baudelaire, propõem o movimento, a mudança, o efêmero, a consciência de finitude como suas marcas definidoras. Uma arte “marcada pelo signo da morte”, como diria Octavio Paz. Porém, dialeticamente, nos jogos com a temporalidade, na prática do atualizar textos outros, do recriar de versos anteriores, não deixam de estar contidos princípios trans-históricos de perenidade, pois, sem dúvida, inscrever um texto num continuum estético, é habilitá-lo ao eterno, de que, relembrando a voz irônica de Drummond, a cada instante, se criam novas categorias.
Da evocação de poetas que falam de poetas, de poemas que evocam poemas, de palavras que chamam palavras, fazem-se as considerações a seguir, um pouco calcadas na gratuidade de gestos que o moderno propalou e que nada mais pretendem do que sugerir vias de leitura dentre as muitas possíveis.
O encontro de Sena com Rimbaud
L’eternité: machine aimée des qualités fatales.
Rimbaud
Se pertence a Rimbaud a frase-tema deste seminário que nos congrega e se pertence a Jorge de Sena o foco central das pesquisas que venho desenvolvendo nos últimos anos, por que não aproximar os dois poetas?
Por acaso, “Rimbaud ou o Dogma da Trindade Poética”[3] foi o título dado por Jorge de Sena à primeira conferência de sua longa trajetória de conferencista, proferida no Porto em 20 de dezembro de 1941, para rememorar o poeta das Illuminations, no cinqüentenário de sua morte.
Em tom apaixonado, inflamado, como será sua inconfundível marca, delineia Jorge de Sena um retrato literário-biográfico do poeta francês que, como ele, começara a escrever aos 16 anos, e, apesar da meteórica vida literária, ensinara ao discurso poético do século XX não poucas daquelas ousadias com que a modernidade se firmou. Em meio a distendidas reflexões, a que talvez se tenha de dar alguns descontos — quer pela idade do conferencista (22 anos), quer pelo modo de ler certamente preso a condicionalismos de época —, acentuava já Jorge de Sena no jovem poeta-voyant e voyou a marca da genialidade que o faria não só transpor sua época mas todas as rotulações com que o quisessem espartilhar: “somos levados a defini-lo e é pela mesma razão que, depois de definido, ele será, sempre, tudo o que se tiver dito e, também, exatamente o contrário”.
Treze anos depois, no ensaio “Rimbaud revisitado”[4], publicado no Caderno “Cultura e Arte” d’O Comércio do Porto (23 de novembro de 1954), agora para celebrar o centenário de nascimento do mesmo poeta, Jorge de Sena volta a sublinhar os contrários que o tornam imune a simples definições: “Foi furiosamente um homem pérfido e um maravilhoso poeta, um ser que traiu na vida e na poesia todo o ilimitado”. É neste texto que Sena também confessa ver no poeta, que diz “sur mon masque, on me jugera d’une race forte”, “uma figura e uma obra que exerceram em mim [nele] uma fascinação talvez perniciosa mas decisiva”.
Essa fascinação comprova-se, por exemplo, ao vermos nada menos que seis poemas de Rimbaud incluídos na mega-antologia Poesia de 26 séculos, toda constituída de traduções feitas por Sena. Aí também, na nota biobibliográfica sobre o autor, lê-se o seguinte[5]:
A lenda angelical de santidade de Rimbaud, criada primeiro por parentes seus, e depois por críticos e poetas católicos, está hoje desfeita. Foi um aventureiro sem escrúpulos e um adolescente demoniacamente perverso e crapuloso, como o haviam julgado alguns dos seus primeiros críticos. Mas a força das suas visões, a intensidade da sua expressão, a violência trágica ou irônica do seu anseio de absoluto, a juvenilidade feita maturidade paradoxal, que são da sua poesia, classificam-no como um grande poeta e um dos que mais poderosamente influiu em toda a poesia ulterior.
Repare-se que esta caracterização do autor-personagem parece exemplificar o que já muito se disse de uma postura moderna diante do estar no mundo e do construir o texto, potencializando sua trans-historicidade.
Deste trecho, destaquemos ainda a palavra demoniacamente.
São, certamente, demoníacos, aos olhos de larga tradição, os versos que compõem a Oraison du Soir — poema acerbo-irônico não só incluído na antologia mencionada, como fornecedor de uma das epígrafes da única novela de Jorge de Sena, O Físico Prodigioso[6], escrita no Brasil, mais precisamente em Araraquara, num conotadíssimo maio de 1964. Essa epígrafe ainda mais “demoníaca” se revela por localizar-se ao lado de outra, retirada de “piedosa” e “contemplativa” obra do Pe. Manuel Bernardes.
Je pisse vers les cieux bruns très haut et très loin / — Avec l’assentiment des grands héliotropes, que Jorge de Sena traduziu como “Aponto ao pardo céu meu mijo de alto arqueado / — e acenam-me que sim os grãos heliotrópios”, prenuncia o “regou de urina a roseira, apenas vendo o fervilhar de onde acertava com o jacto”, praticado pelo novo físico, que, ao final da novela, reduplica o protagonista a que se refere o título da novela. Este, ao mesmo tempo em que é figura solar, crística, agente do Amor e da Liberdade (certamente possuidor de um coração maior que o mundo), é também literalmente amado pelo demônio, e, embora sacrificado pela burra e dogmática Inquisição dos “Padres Manuéis Bernardes”, renascerá sempre.
Assim, contrapõe-se à canônica forma de oração a anti-oração. Oração herética que substitui a “elevação espiritual” pela altura do mijo apontado na direção dos céus. Pardos céus (du soir) e não céus misticamente luminosos das religiões. Oração física, fisiológica, recebida não por imaterial divindade mas por aquiescentes heliotrópios, que, como se sabe, seguem o mover do sol. Oração de alguém que dispensa qualquer iniciação, pois, mesmo sob os pardos céus da noite, se acha em perfeito diálogo com os elementos solares da natureza. Cultural/natural, canônico/não-canônico, sagrado/dessacralizador — aí estão os indivisos contrários tanto do je que est un autre de Rimbaud, quanto do prodigioso Físico que Sena diz ser seu alter-ego, seu bem-amado filho...
Em 1960, na introdução a sua coletânea de ensaios O poeta é um fingidor[7], Sena distingue Rimbaud como uma das “revoluções espirituais” que configuraram a sua formação e, talvez por isso, a par dos textos críticos que já aqui mencionei, referências ao poeta francês podem ser achadas em vários passos de sua obra. O Rimbaud que Sena pintara na juvenil conferência como “novo Ashaverus” que, depois de abandonar a poesia, errara “de professor na Inglaterra e na Alemanha a saltimbanco na Escandinávia, pescador de despojos no Cabo Guardafui, capataz de pedreiras em Chipre, marinheiro em todos os mares, descarregador em tantos portos e explorador e traficante na Abissínia”, fora capaz de, a seus olhos, tornar-se “um homem na máxima acepção do termo”, “uma representação do mundo” e “o mais puro poeta que jamais existiu”. Encarnando o dogma da trindade poética — o coração, a alma e o espírito — que para si criara, provoca a mal-contida exclamação do conferencista estreante: “este respeito pelo homem total merece-o ele, como ninguém”.
“Homem-total”, se bem interpreto, não será tão somente o homem moderno — Rimbaud é inesgotável, mas, mais que inesgotável, é de hoje, é nosso — mas aquele que condensaria em si uma essencialidade atemporal do humano: “A grandeza do verdadeiro poeta [...] está menos em transfigurar a realidade ou criar desumanidade que em transportar para o sobrehumano uma humanidade intacta” E, na ótica de Sena, isto corresponde a algo que ultrapassa a própria temporalidade e avizinha-se do eterno. Um eterno também buscado pelo jovem Sena, que, cerca de três meses antes dessa conferência — a 22 de setembro de 1941 — escrevera o poema “Eternidade”[8] com que encerra seu primeiro livro de poesia — Perseguição — publicado em 1942:
Vens a mim
pequeno como um deus,
frágil como a terra,
morto como o amor,
falso como a luz,
e eu recebo-te
para a invenção da minha grandeza,
para rodeio da minha esperança
e pálpebras de astros nus.
Nasceste agora mesmo. Vem comigo.
Um eterno depois novamente evocado pelo maduro poeta de Metamorfoses em “A Morte, o Espaço, a Eternidade”[9], que, talvez recordando a rimbaldiana “máquina de qualidades fatais”, elege o Sputnik I como emblema visual a acompanhá-lo no livro:
podem os mundos acabar, que a Vida,
voando nos espaços, outros mundos,
há-de encontrar em que se continue.
E, quando o infinito não mais fosse,
e o encontro houvesse de um limite dele,
a Vida com seus punhos levá-lo-á na frente,
para que em Espaço caiba a Eternidade.
O encontro de Sena e Drummond
Eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo
mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o resgata.
Carlos Drummond de Andrade
Já muitas vezes foi sublinhada a circunstância de o Modernismo em Portugal, desencadeado em 1915 pela revista Orpheu, ter tido a participação brasileira. Participação esta consagrada por revistas portuguesas desde o fim do século XIX e mantida ainda por várias décadas do século XX. Lembre-se que tanto A Águia (1910— 1932) como a Atlântida (1915-1920), contemporâneas de Orpheu, nomeavam-se como revistas “luso-brasileiras”. Mas a colaboração brasileira de Ronald de Carvalho, que seria depois um dos participantes do movimento de vanguarda de 1922, e de Eduardo Guimarães não teria sido possível se não fosse um feliz e decisivo encontro entre Luís de Montalvor, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, assim relatado por este último[10]:
Em princípios de 1915 (se não me engano) regressou do Brasil Luís de Montalvor, e uma vez, em Fevereiro (creio), encontrando-se no Montanha comigo e com o Sá-Carneiro, lembrou a ideia de se fazer uma revista literária trimestral — ideia que tinha tido no Brasil, tanto assim que trazia para colaboração alguns poemas de poetas brasileiros jovens, e a ideia do próprio título da revista — Orpheu. Acolhemos a ideia com entusiasmo [...]. Sem perda de tempo se adoptaram o nome e a periodicidade, e se estabeleceu o número de páginas [...]. E ficou igualmente assente que figurariam como directores Luís de Montalvor e um dos poetas brasileiros seus amigos — Ronald de Carvalho.
Então, como se vê, a participação brasileira em Orpheu pode ser ainda mais importante do que se supunha, já que pode mesmo ser estendida até ao estágio da gestação...
De Orpheu até hoje muitos têm sido os encontros e desencontros, os amores e rancores, entre escritores portugueses e brasileiros nas páginas impressas de ambas as margens do Atlântico. Em 1973, em comunicação apresentada na Convenção Anual do MLA — Modern Language Association, em New York, intitulada “Sobre o Modernismo em Portugal e no Brasil: alguns problemas e clarificações”[11], lembrava Jorge de Sena:
Ainda estão por estudar em extensão e em profundidade as relações das vanguardas de Portugal e do Brasil, não só em 1915-22, mas até aos anos 40, quando durante os anos 30 e 40 os modernistas brasileiros colaboravam nas revistas modernistas portuguesas e eram nelas criticados com especial relevo. Não se trata ou não deverá tratar-se de meramente atribuir influências ou precedências, ou discutir ridiculamente quem primeiro fez seja o que for, mas de ter presente que duas literaturas na mesma língua, cujos contactos mútuos e íntimos vinham desde as origens do Brasil, necessariamente não se ignoraram durante essas décadas. Um isolacionismo narcisista, como tanto tem sido praticado nos últimos anos pela crítica brasileira, por certo que não é senão efeito de um absurdo sentimento de independência cultural, que as realizações da cultura brasileira tornam totalmente obsoleto.
A proposta de pesquisa contida neste parágrafo — talvez até por reiterada sugestão do próprio Sena — foi parcialmente levada a cabo por Arnaldo Saraiva em sua importante obra O Modernismo Brasileiro e o Modernismo Português — subsídios para o seu estudo e para a história das suas relações[12], publicada no Porto em 1986, depois de, salvo erro, ter sido sua tese de Doutoramento. Ao longo dos três volumes de que se constitui, é-nos fornecido precioso instrumental, inclusive com a divulgação de documentos dispersos e inéditos, que nos permitem aquilatar bem sobre o que se passa, no plano do diálogo cultural luso-brasileiro, nos primeiros tempos dos dois Modernismos.
Para que o trabalho se completasse, seguindo a sugestão seniana, haveria que dilatar o foco de interesse a momentos posteriores aos de Orpheu, ou à Semana de 22. Nesta ampliação da pesquisa, não poderiam faltar, por exemplo, considerações sobre a leva de escritores portugueses exilados no Brasil durante o período salazarista, que alcança nos anos 50/60 sua maior significação, dada não só a alta qualidade dos mesmos, como a sua atuante presença na vida cultural brasileira de então. Neste momento, são cimeiros os nomes de Adolfo Casais Monteiro e Jorge de Sena, e, deste último, não seria despiciendo lembrar que teve poemas seus publicados na Revista Invenção dos “Concretistas”.
Do lado português, seria o caso de investigar, também à guisa de exemplo, o ávido consumo do chamado “romance regionalista” brasileiro; ou ainda o fenômeno da apoteótica viagem de Érico Veríssimo a Portugal, em 1959, capaz de congregar milhares de pessoas nos maiores auditórios, superlotados para ouvi-lo, de Lisboa, Porto e Coimbra[13]. A propósito deste — digamos — intercâmbio, vale considerar testemunho recente de Eduardo Lourenço[14]:
E por incompreensível que seja, apenas meio século bastou para nos tornar pouco familiares os tempos, míticos para a minha geração, dos Jorge Amado, Graciliano, Érico Veríssimo ou Manuel Bandeira. A nossa relação com eles e o Brasil, que através deles nos era tão presente e se infiltrava no nosso imaginário, tornou-se memória.
Enfim, entre lusofilia e lusofobia, entre brasilofilia e brasilofobia, na falta de qualquer projeto de diálogo em termos institucionais, os contactos entre escritores portugueses e brasileiros no século XX logo se confinam a eventuais relações pessoais.
Inscreve-se neste caso, obviamente, o diálogo entre Jorge de Sena e Carlos Drummond de Andrade, que se estende por 32 anos (1946 a 1978 — data de falecimento do poeta português) e é alimentado, de ambos os lados, com cartas, dedicatórias em livros; artigos publicados e poemas.
Ainda em Portugal, antes de seu primeiro exílio, Jorge de Sena já mantinha contacto com os principais escritores brasileiros, que, na grande maioria conhecera aquando da passagem deles por Lisboa. No espólio do escritor, cartas e/ou dedicatórias em livros comprovam a interlocução com Graciliano Ramos, Jorge Amado, Cassiano Ricardo, Raul Bopp, Ribeiro Couto, Murilo Mendes, Érico Veríssimo, Manuel Bandeira, Cecília Meirelles (que, aliás, inclui Sena na pioneira Antologia Poetas Novos de Portugal, de 1944).
Em 25 de maio de 1946, Jorge de Sena publica na revista Mundo Literário, “Uma nota biográfica” de Drummond e um breve comentário do poema “Procura da Poesia” sob o título de “Uma arte poética”[15]. Na semana seguinte (01 de junho), com mais espaço disponível, faz uma leitura de A Rosa do Povo. Em certo passo, lê-se o seguinte[16]:
Há quem pergunte [...] se a poesia resistirá a certas imagens, que ferem, não já o gosto, mas aquela discreção mínima, filha da repugnância pela imundície, e que faz com que, nos milhares de obras que se têm escrito, haja milhares de situações e de sequências impossíveis e, no entanto, aceites, porque a humanidade gosta de perfumar-se e angelizar-se, esquecer a escravidão da sua existência física. Esta palavra “escravidão” é, aqui empregada, uma concessão a esse gosto comum. Resistirá, por exemplo, a poesia à aparição do piolho? E por que não? Não é “Les chercheuses de poux” uma das mais belas poesias de Rimbaud? Mas é simbolista.... e escrita em francês. Sejamos francos. Não anda pelo menos 70% da humanidade coberta deles? [...]. Sejamos coerentes: a poesia não pode nem deve ser capa de misérias, apregoam. Pois não o será de nenhuma. A não ser que o poeta, realmente, só veja das misérias aquelas que os tratados teóricos de economia lhe apontam como tal. Mas a miséria do homem é de toda parte e de todos os tempos, não é verdade? Pois toda a poesia a tem ignorado. Lá se vai o último refúgio!...[...]
A arte ou a poesia não são refúgio contra qualquer espécie de verdade. São elas próprias a verdade. Se não há outra, a culpa não lhes pertence.
Em 1949, como resposta à remessa de seu segundo livro de poemas — Coroa da Terra — recebe Sena a seguinte mensagem de Drummond[17]:
Meu caro poeta Jorge de Sena:
Venho agradecer-lhe a grande poesia de “Coroa da Terra”, de uma altura e de uma profundidade que me causam uma sensação de vertigem. Seria difícil extrair mais essência poética das coisas deste nosso mundo incoerente. Sua poesia é participação e superação da vida. Eu sinto nela uma sabedoria dramática, de raízes dolorosas, mas atingindo à mais pura e concentrada beleza.
Toda admiração e fiel estima de / CDA
Vindo para o Brasil em 1959, logo procurou Jorge de Sena reatar laços com seus amigos, agora mais facilmente. Drummond entre eles. Encontram-se algumas vezes, trocam livros. Mas é já no exílio americano, para onde Sena parte em 1965, que surge uma nova e forte motivação para o diálogo. Em 1972, Jorge de Sena, como consultor do então Books Abroad, depois World Literature Today, escrevia longa carta a Drummond, pedindo-lhe autorização para indicar seu nome ao Neustadt International Prize for Literature, que, na edição anterior, premiara Ungaretti. Depois de forte argumentação por parte de Sena, onde o “premiar autor de língua portuguesa” veio a ser ponto decisivo, e de alguma relutância por parte de Drummond, enfim a indicação é feita, acompanhada da imprescindível apresentação encomiástica (em peça que permanece inédita). Esforço vão, o contemplado foi Gabriel García Marquez.... E Jorge de Sena, assumindo “as dores” alheias, e destilando seu famoso veneno, escreve o poema “A Drummond quando fizer setenta anos”, cujo hemistíquio-refrão a ti coisa nenhuma tudo revela[18]...
Mistral (Gabriela) Asturias (Miguel Ângelo)
e o Pablo de Neruda Chile — a ti coisa nenhuma.
Os Castros de Ferreira mais Amados Jorges
partilham prémios do Lácio de Paris — a ti coisa nenhuma.
E todos acabam acadêmicos e tu não vais pedir
Os votos acadêmicos — a ti coisa nenhuma.
Escreves em português e o Brasil é um só — as bananas
das repúblicas hispânicas são muitas, à
esquerda e à direita. Não és embaixador,
não foste nunca embaixador senão lá de Itabira.
Andrade isso és mas não és de São Paulo,
cubista ou folclorista. Pelo Rio
passaste sempre esguio entre as mulheres,
os literatos e os arranha-céus, silente e pisco.
O maior, todos concordam. Mas em crónica
como em poesia tens cultura a mais,
poesia, a mais, humanidade a mais,
e dignidade a mais — a ti coisa nenhuma.
Carlos (Magno) Drummond (of Hawthornden quiçá
filho bastardo do suspeito Shakespeare)
de (partícula que irrita os bibliotecários norte-americanos)
Andrade — aos setenta anos como sempre
fazendeiro do ar no brejo das almas,
fabricando claros enigmas de alguma poesia,
encomendando às amendoeiras que falem por ti
a rosa do povo, o sentimento do mundo
e a vida (a tua e a dos outros) passada a limpo
No mesmo livro, 40 Anos de Servidão, onde está publicado esse poema, lê-se a quadrinha despretensiosa: Drummond, fazendeiro/ do ar, mas que bem sentes/ que as dores da poesia/ são as evidentes[19].
E a última homenagem poética que Sena presta a seu amigo é a “Glosa de dois versos de C. D de Andrade, e mais um”, publicada em Sequências[20]:
Preso vou
minha branco
classe rua
algumas cinzenta
roupas agora
José
Segundo Frederick Williams, que farta e minuciosamente documenta todas aquelas tentativas de Sena em premiar seu amigo, o poeta português empenhar-se-á ainda junto ao Prêmio Etna Taormina, em favor de Drummond. Desta feita é Murilo Mendes o contemplado. Tentará ainda fazer com que o poeta mineiro aceite ser Membro Honorário do MLA — Modern Language Association. Debalde...
Sena falece em 4 de junho de 1978. Assim, no diálogo, a palavra final é de Drummond, que, em crônica de 08 de dezembro no Jornal do Brasil, compõe um necrológio que tem o seu quê dos “desiludidos do amor”[21]:
Havia muitos “eus” pensantes e sentintes em Jorge de Sena professor, poeta, contista, crítico literário e de artes plásticas, dramaturgo, historiógrafo, ensaísta... homem pulsante, inquieto, brigão, generoso, buscando conciliar pensamento e sensibilidade numa poesia que, ao beirar inicialmente o surrealismo, alcançou a criação verbal destituída de apoio etimológico e semântico, em proveito da livre sugestividade. Isto sem perder de vista as potencialidades de sarcasmo, sátira e revolta do verso. Há composições suas que parecem escritas em estado de fúria, em protesto contra a mediocridade, a burrice, a hipocrisia, a injustiça, mas ainda nelas observo menos um panfletário em verso do que um ser ferido pelos desregramentos do mundo, um ser que não se adapta e sofre com a falta de autenticidade das fórmulas e dos homens.
Faltou a Jorge de Sena uma pátria constante e receptiva, que agasalhasse o seu destino de intelectual e erudito a serviço exclusivo do espírito. Teve de procurar outra e mais outra, afirmando-se, porém, mas ao mesmo tempo mutilando-se na aventura de errar pelo mundo [...]
Não soubemos conservá-lo conosco, nem sequer chegarmos a conhecê-lo na plenitude de seu espírito. Foi um professor que passou pelo Brasil, de 1959 a 1965. Mas que sonhou em dar ao Brasil, através da língua portuguesa, uma situação de prestígio na literatura mundial. Se não o conseguiu, não foi por omissão. Merece a nossa lembrança, embora tardia.
O encontro de Sena e Drummond com Gonzaga
Parfois il parle [...] des travaux pénibles,
des départs qui déchirent les coeurs.
Rimbaud
São por demais conhecidos, do antológico “Poema de Sete Faces”[22], os versos de Carlos Drummond de Andrade, que quase se tornaram lema de uma geração: Mundo mundo vasto mundo,/ se eu me chamasse Raimundo/ seria uma rima, não seria uma solução./ Mundo mundo vasto mundo,/ mais vasto é meu coração. E não menos conhecida será a palinódia, contida no poema “Mundo Grande”[23], que escreverá anos mais tarde: Não, meu coração não é maior que o mundo/ É muito menor./ Nele não cabem nem as minhas dores. […] Sim, meu coração é muito pequeno./ Só agora vejo que nele não cabem os homens. Como se sabe, estes versos atualizam os de nosso árcade Tomás António Gonzaga: ‘Eu tenho um coração maior que o mundo,/ tu, formosa Marília, bem o sabes: / um coração, e basta, / onde tu mesma cabes” [24].
Ora, corações maiores ou menores que o mundo — pouco importa —, não caberá a eles gerar aquele eterno que, segundo o mesmo poema de Drummond que citei na abertura deste texto, ‘é tudo aquilo que vive uma fração de segundo / mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o resgata”? Petrificar o que é vivido intensamente implica o não-esquecer e seu conseqüente recordar, que, como aprendemos, deriva de cor, cordis. Recordar é atualizar o que foi retido na memória do coração — talvez a mais perfeita das memórias.
O mesmo verso do cantor de Marília, que em altíssimo nível prenuncia o exacerbado subjetivismo romântico, deu motivo a uma glosa de Jorge de Sena[25], “Homenagem a Tomás Antonio Gonzaga”, escrita já no exílio americano de Madison:
Gonzaga: podias não ter dito mais nada,
não ter escrito senão insuportáveis versos
de um árcade pedante, numa língua bífida
para o coloquial e o latim às avessas.
Mas uma vez disseste:
“eu tenho um coração maior que o mundo”.
Pouco importa em que circunstâncias o disseste:
Um coração maior que o mundo —
uma das mais raras coisas
que um poeta disse.
Talvez que a tenhas copiado
de algum velho clássico. Mas como
a tu disseste, Gonzaga! Por certo
que o teu coração era maior que o mundo:
nem pátrias nem Marílias te bastavam.
(Ainda que em Moçambique, como Rimbaud na Etiópia,
engordasses depois vendendo escravos).
Entre Poesia e vida/verdade/realidade, como é sabido, grande distância há. Com base nessa, por vezes dolorosa, dissociação, não deixa de aludir Jorge de Sena às atividades nada poéticas de que se ocupou o “inconfidente” depois de punido com o degredo — atividades que o irmanam ao aventureiro Rimbaud, a peregrinar por mundos e submundos nem um pouco metafóricos. Metafórica, sim, é a Peregrinatio ad loca infecta, onde Jorge de Sena situou o poema. Mas isso é já outra — e longa — história. Por agora, com algumas digressões, fica fechado um circuito que pretendeu dizer que talvez não seja mesmo necessário ser absolutamente moderno...
Notas