Ermelinda Ferreira[1]
“A contradição leve-pesado é a mais ambígua de todas as contradições.”
Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser
“Podemos dizer que duas vocações opostas se confrontam no campo da literatura através dos séculos: uma tende a fazer da linguagem um elemento sem peso, flutuando sobre as coisas como uma nuvem; a outra tende a comunicar peso à linguagem, dar-lhe a espessura, a concreção das coisas, dos corpos, das sensações”.
Ítalo Calvino, “Leveza”, in:
Seis Propostas Para o Próximo Milênio
Considere-se o quadro de René Magritte, A Flecha de Zenão, de 1964. Vê-se um enorme rochedo suspenso sobre uma paisagem iluminada pela lua. A cena está dominada por contradições: o contraste entre a claridade do dia e a sugestão da noite, entre a ameaça iminente de uma catástrofe e a calma da paisagem, entre o peso da rocha e a leveza com que parece flutuar no céu azul. O peso da pedra não é visível como a pedra. Deduzimos o invisível do visível. Ralf Konersmann comenta o quadro: “La experiencia burlona de la roca suspendida, que parece negar su peso, debe tener un final. Pero ese llamado compromete al espectador con la lógica naïve del cuadro y transforma la ficción del objeto del cuadro — la roca y la suspensión — en un hecho”.[2]
Há, no entanto, um elemento com o qual o quadro não entra em choque: o título. Embora seja uma referência a um dos mais famosos paradoxos da história, cujo inventor foi Zenão de Eléia, discípulo de Parmênides, ele ilustra bem a imagem. Através de seus paradoxos, Zenão negava que algo pudesse acontecer no universo, pois não acreditava na existência do movimento. Na sua opinião, a cada momento do tempo a flecha disparada ocupa um determinado lugar no espaço. Ocupar um espaço quer dizer: estar em repouso. Seria possível, somando vários repousos, obter movimento, esse trânsito no espaço e no tempo? Para o filósofo, o movimento é uma ilusão. Conclui, assim, estar imóvel a flecha que voa. A considerar a sua conclusão, por que também não poderia estar suspensa a rocha que cai?...
O tema deste quadro oferece uma imagem da história desses participantes de Orpheu marcados pela contradição leve-pesado, seja na vida, seja na obra. Já se disse que o que aproximou Mário de Sá-Carneiro de Fernando Pessoa foi a atração entre pólos opostos.[3] Talvez por isso o que tenha separado Sá-Carneiro de Santa-Rita tenha sido, ao contrário, a repulsão entre pólos idênticos. Não obstante a difícil relação pessoal existente entre ambos, e apesar de Sá-Carneiro considerar Santa-Rita seu “inimigo íntimo”, alguém cujas “pequeninas janelas abertas na sua vida, nos seus pensamentos, fazem-me ver unicamente: hipocrisia, mentira, egoísmo e cálculo, cujo somatório é este: todos os meios são bons para chegar ao fim”[4], e de Santa-Rita também desprezar o poeta, como se percebe em declarações do tipo: “Vou-lhe dizer uma coisa desagradável. É que você não tem valor para fazer coisas tão belas como essas”, uma estreita sintonia parece ter-se estabelecido entre os dois, identificando seus propósitos estéticos de uma maneira mais real — ainda que menos evidente — do que a que se observou entre os demais componentes da chamada geração Orpheu.
Uma tal proximidade terá sido decisiva para a introdução do Modernismo na literatura portuguesa, a partir de uma melhor compreensão do Cubismo em arte por Sá-Carneiro, no que cabe ressaltar a notória influência de Santa-Rita Pintor. Como afirma Alfredo Margarido: “Nunca se dirá bastante da importância que um homem como Santa-Rita Pintor ocupa nesta modificação de parâmetros estéticos, uma vez que só ele dispunha da informação indispensável para forçar Sá-Carneiro a renunciar às gamas estéticas lisboetas e reconhecer e aceitar o que então aparecia em Paris como mais modernista”.[5]
No entanto, interessa-nos explorar aqui menos a consonância em torno das idéias cubistas que se vão construindo a partir da relação entre escritor e pintor do que os intrigantes desdobramentos de um elemento marcante de suas vidas e obras que parece torná-los representantes, já no início do século, de uma faceta da modernidade em arte seguramente muito mais avançada, dominante apenas depois dos anos 50, e que faria destes artistas surpreendentes precursores do pós-modernismo, pelo menos num aspecto: a supremacia do ego sobre a obra.
É verdade que este aspecto já estaria implícito nos princípios do Futurismo que lhes é contemporâneo. No entanto, não consta que, apesar de sua violência panfletária, de seu culto à revolta e à destruição, Marinetti tenha jamais queimado um museu ou uma biblioteca. O Futurismo viveu da propaganda, de um entusiamo deslumbrado com o progresso, de manifestos programáticos, de idéias. Idéias herdadas de um passado distante, idéias que deixaram herança para o futuro. Santa-Rita e Sá-Carneiro estariam mais próximos de uma interpretação pós-moderna do Futurismo herostrático porque viveram em permanente contradição, num universo virtual situado entre a realidade e o desejo: participaram solitariamente, à distância, da atmosfera modernista, mas estiveram excluídos de seus quadros programáticos — atrasados demais em Paris e avançados demais em Portugal —, abortaram projetos e queimaram obras, não as da tradição, como recomendava o credo da escola, mas as suas próprias obras, e Mário cometeu suicídio. Suas ações não revelam nenhuma fé, esperança ou entusiasmo no porvir, ao contrário. Não foram futuristas, pois, talvez fossem pós-modernos.
É intrigante pensar, seguindo a linha da interrogação baudelairiana, posta no último verso do poema Les Aveugles — “Que cherchent-ils au ciel, tous ces aveugles?” —, o que buscavam “no céu” esses dois “cegos”, se é que podemos considerá-los assim, apesar de todas as expectativas em contrário. Afinal, eram artistas marcados pelo visual, um deles pintor, o outro autor de textos essencialmente plásticos, nos quais a linguagem fartamente adjetivada girava em torno de uma retórica da cor.
Que “fitavam o céu” é muito provável: tome-se como prova, no caso do autor de Céu em Fogo, a arguta caricatura feita por Almada Negreiros, mais famosa como “retrato” do poeta do que os próprios retratos que dele existem. O desenho representa-o com a cabeça tombada para trás, os olhos estranhamente vazios, o ar perdido, divagante. Destacam-se as mãos longas, quiçá grandes demais, mesmo para a corpulência da figura. Sobre a mesa, uma folha com o título do poema “Quasi”, cuja temática ilustra a atitude contemplativa — uma contemplação do sol e do céu, um desejo frustrado mas nunca abandonado de ascensão: “Um pouco mais de sol — eu era brasa,/Um pouco mais de azul — eu era além./Para atingir, faltou-me um golpe de asa.../Se ao menos eu permanecesse aquém...”.
No caso de Santa-Rita, considere-se o depoimento do próprio Sá-Carneiro:
E como eu me revolto quando aventando o ar, de narinas abertas, olhar olhando ao alto, e por altissonante o eterno Santa-Rita me leciona: “Creia, meu querido Sá-Carneiro, em arte o entusiasmo é tudo! Como eu amo as pessoas que são todas entusiasmo! Que se curvam em face d’alguém, dalguma idéia, sem refletir, sem admitir meios termos nem raciocínios.[6]
Quanto à “cegueira”, também não é impossível admitir que o “poeta cujo senso da cor é um dos mais intensos entre os homens de letras”, no dizer de Fernando Pessoa, e o artista tão ligado às artes visuais que até incorporou o título “Pintor” ao seu nome próprio (Guilherme Augusto Cau da Costa de Santa-Rita), ficando por esta alcunha conhecido, estivessem ambos mais próximos em sua criação da experiência de não-ver, no sentido fisiológico do termo, do que o contrário.
É bem verdade que a estética modernista foi tradicionalmente construída sobre o triunfo da pura visualidade, e que foi como modernistas que ambos procuraram definir-se, o que naquela época, em Paris, significava ser cubista ou ligado ao Cubismo.[7] Embora, de início, os cubistas possam ter pensado em introduzir na pintura outras qualidades sensoriais, ao fim e ao cabo o Cubismo resultou num dos movimentos mais radicais de negação de qualquer experiência não literalmente acessível ao olho. Como afirma Martin Jay, no Cubismo:
the world was stripped of its surface, of its skin, and the skin was spread flat on the flatness of the picture plane. Pictorial art reduced itself entirely to what was visually verifiable, and Western painting fad finally to give up its five hundred years’ effort to rival sculpture in the evocation of tactile.
A questão da pureza da experiência visual nos movimentos artísticos modernos, contudo, tem sido reaberta pelos críticos, os quais, conforme Martin Jay, parecem chegar a outras conclusões a respeito:
By stressing the importance of a hitherto countertendency, they have revealed the origins whithin the modernist project of an explicitly antivisual impulse that ultimately prepared the way for what has become known as postmodernism.[8]
É sugestiva a idéia da existência desta tendência contraditória latente no próprio momento de deflagração do movimento modernista, quando se consideram artistas como Sá-Carneiro e Santa-Rita. Do contrário, seria o caso de se interrogar a sério que tipo de “visualidade” cultivaria o autor de declarações como: “Se, de súbito, nos arrancassem os olhos, nem por isso deixaríamos de ver”, ou “Essa luz, nós sentíamo-la mais que a víamos. E não receio avançar muito afirmando que ela não impressionava a nossa vista, mas o nosso tato”, como são as de Mário n’A Confissão de Lúcio, traduzindo, porém, um tipo de percepção, de relação com a luz que se torna reincidente em suas obras a ponto de podermos considerá-la um verdadeiro leitmotiv.
E o que pensar de Santa-Rita, o estranho pintor das colagens cubistas que povoaram a revista Portugal Futurista e o número 2 da revista Orpheu em reproduções pouco nítidas, mas sobretudo ancoradas a longos e elaborados títulos, provavelmente mais complexos que as próprias obras, na verdade de grande simplicidade gráfica, quase esquemática?[9] Isto para não falar da excentricidade de ser ele o autor de uma obra futurista realmente avant la lettre, ou seja, uma obra inexistente, invisível, reduzida a cinzas (admitindo-se que tenha realmente existido algum dia e, como narra a lenda, ter sido marinettianamente queimada pelos parentes do artista, a seu pedido, após a sua morte).[10]
Uma obra da qual só restou, além das referidas reproduções e de alguns poucos trabalhos da época de estudante — como, por exemplo, a Camponesa, de 1907 (figura que, sem sombra de dúvida, mira o alto) — e uma surpreendente cabeça cubista — considerada um retrato, não se sabe se do irmão do pintor, Augusto de Santa-Rita, ou do próprio pintor, mas que hoje já se tornou um verdadeiro símbolo do modernismo português —, o mais intrigante: a menção, e em alguns casos, o relato de quadros nunca vistos ou de projetos de quadros talvez nunca realizados, encontrados na correspondência de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, supostamente feitos a partir de descrições de Santa-Rita, e constituindo curiosos exemplos do que poderíamos sem erro classificar como fantásticas “ekphrasis do invisível”.[11] Tal é o caso de “W.C.” (“a melhor de suas obras”), “Ruído num quarto sem móveis” (confundido com o quadro “Silêncio num quarto sem móveis”, de Francis Picabia, pelos críticos da revista Teatro, que acusaram o pintor de fraude), “Portugal”[12], e as ilustrações para o poema “Bailado”.
Aliás, é no projeto destas ilustrações, jamais concretizadas, que Santa-Rita — ou o próprio Mário? — chega a denunciar, talvez inadvertidamente, a consciência de um certo sentimento de identificação, indiscutivelmente incômodo para ambos, mas ao mesmo tempo inegável no contexto da citação:
Depois o Santa-Rita, sempre entusiasmado, pediu-me uma cópia do escrito, pois queria ilustrá-lo. E fantasiou logo uma publicação em plaquette “que marcasse bem Paris”, e que como ilustrações contendo, além das águas fortes que sobre o “Bailado” ele comporia, o nosso retrato — mas o nosso retrato confundido num só retrato[...]que aliás ninguém perceberia que era um retrato.[13]
Essa inconfessavelmente desejada superposição de imagens, esse nunca admitido “duplo” entre o escritor e o artista, parece falar da oculta admiração de Santa-Rita por Mário, não sendo a recíproca inverossímil. Sabe-se, por exemplo, do verdadeiro fascínio do poeta pela aparência física do pintor, que chega a homenageá-la francamente numa caricatura literária — o personagem Gervásio Vila-Nova, de A Confissão de Lúcio —, e, talvez, no belo e misterioso homem “de rosto esguio e macerado, e cabelos longos aos anéis”, sobre o qual confessa Mário no conto “Eu Próprio o Outro”: “Aquele sim, aquele é que me saberia ser”; mas também por suas idéias estéticas — o que se pode intuir pela dedicação a Santa-Rita do conto “O Fixador de Instantes”, e, no segundo número de Orpheu, dos “Poemas sem suporte a Santa-Rita Pintor”: “Elegia”, “Manucure” e “Apoteose”. Embora disfarçada por afirmações contraditórias, parece haver em Sá-Carneiro um certo e paradoxal impulso de “não realização”, efetivamente levado a cabo pelo pintor na sua, por assim dizer, “não-obra”.[14]
Pesam contra esta suposição, à parte a evidência da obra realizada, obviamente, os freqüentes testemunhos de Sá-Carneiro perante o amigo Pessoa — no qual sempre buscou desesperada e infrutiferamente mais do que uma referência, um mestre — responsáveis por observações tão contraditórias como: “Eu que sou só cérebro ...”; “Para mim, que só dou valor à obra”, e “Vê você que em face de suas poesias eu me limito a distinguir o que acho mais belo. É que o meu espírito não é como o de você, um espírito crítico”[15]; “Eu verifico, perante você, a minha inferioridade. Sim, meu querido amigo, é você a Nação, a Civilização, e eu serei a Grande Sala Real, atapetada e multicolor, a cetins e esmeraldas, em douraduras e marchetações”.[16]
Também é curioso como nas cartas a Pessoa Sá-Carneiro parece não só submisso e humilde, mas muitas vezes insincero, numa evidente ânsia de satisfazer as pressentidas expectativas do outro, isto implicando ora em enfatizar a sua suposta diferença para com Santa-Rita, ora em corroborar opiniões gratuitas e mesmo agressivas, como ocorre com a passagem sobre Amadeo de Souza-Cardoso:
É que, segundo o Santa-Rita confessa, para ele vale muito mais o Artista do que as suas obras, isto é: o aspecto exterior do artista, os seus cabelos, os seus fatos, as suas conversas, as suas blagues — o seu eu, em suma, como coisa primordial — a sua obra, como coisa secundária. Isto é espantoso, mas é assim. De forma que a minha obra cubista não era digna de mim... É claro que lhe agradeci a frase, pois ela (para mim, que só dou importância à obra) era um simples elogio.[17]
Desse Amadeo Cardoso tenho ouvido falar muito elogiosamente ao Santa-Rita e vi uns quadros dele, sem importância e disparatados no Salão de Outono. Tratava-se de uma turbamulta de bonecos — era um inferno, um purgatório, ou qualquer coisa assim. Sei que é um tipo blagueur, snob, vaidoso, intolerável, etc. Parece que não se pode ser cubista sem se ser impertinente e blagueur...[18]
Por outro lado, pesa em favor desta hipótese o projeto literário ansiado e discutido em seus textos de cunho metaficcional, como, por exemplo, o conto “Asas”, do livro Céu em Fogo. Nele, Sá-Carneiro discute detalhadamente os processos de criação e os objetivos estéticos do admirável poeta Petrus Ivanowitch Zagoriansky que, como se verá mais tarde e às vésperas de sua morte, será disfarçadamente duplicado num certo Estanislau Belcowsky — personagem de uma “Novela Romântica” nunca efetivamente escrita, senão apenas esboçada em atropelados projetos relatados a Fernando Pessoa — e sobre o qual revelará, literalmente: “Estanislau Belcowski sou eu”. Sobre Zagoriansky, porém, diria Sá-Carneiro:
Nunca pudera, com efeito, esquecer mais a inexplicável criatura esguia, de longos cabelos mordoirados, rosto litúrgico, olhos de inquietação — que, alta madrugada, eu vira a primeira vez, perto de Notre-Dame, solitária e estática. Mas não, como seria admissível, contemplando a Catedral na bruma violeta da antemanhã de Outono — estramboticamente, ao contrário, de costas para ela, a olhar o céu, abismado, num enlevo profundo [...] como se na verdade presenciasse, no espaço, qualquer cena emocionante! [19]
O grande objetivo da obra desse estranho Zagoriansky concentrava-se na realização de uma “arte fluida, uma arte gasosa ... uma arte sobre a qual a gravidade não tenha ação”. A reação do narrador-ouvinte à leitura de uma das peças semi-acabadas do poeta não é menos estranha:
Tive que cerrar os olhos desde os primeiros sons. Não pude sustentar — foi certo! — o brilho coruscante, as cintilações magnéticas induzidas nas palavras misteriosas que os meus ouvidos escutavam. Não divago. Alcanço bem o que afirmo. Mera sugestão, talvez. Mas foi assim: os meus olhos não resistiram abertos. E desafiaria aquele que lograsse ouvir o Milagre sem os fechar.[20]
Esta passagem revela como Sá-Carneiro dispendia enormes esforços para adentrar-se na escuridão, fosse porque desejava transformar em impressões visuais tudo o que atingisse a sua sensibilidade, fosse, como sugere o trecho acima, em busca de uma luminosidade outra, capaz de sensibilizar antes o tato e a audição, negando assim o peso da evidência do visível. O certo, porém, é que a obra de Zagoriansky atinge o alvo almejado, desaparecendo: “Todos os meus versos, libertos enfim, tinham resvalado do meu caderno — por vôos mágicos!”... Sobrava-lhe o caderno, intacto, com as folhas brancas, e no frontispício — detalhe imprescindível — “o nome do Poeta”.
Estava concluída, em tese, uma obra de inspiração santa-ritina, nem exatamente cubista nem futurista, mas francamente, absurdamente, pós-moderna. Um exemplo como tantos outros que hoje, freqüentemente, substituem o espaço da antiga Arte, flutuando na insustentável leveza de seus produtores, espelhando-os, promovendo-os, projetando-os numa já desgastada ânsia de novidade e de escândalo, onde a obra conta menos que o artista e onde a mensagem conta menos que a imagem. Estavam traçados os princípios de uma atitude que nem Santa-Rita nem Sá-Carneiro poderiam, à sua época, supor que se tornaria a marca de nossa contemporaneidade finissecular. Sem o saber, estavam ambos inteiramente perdidos, completamente seduzidos por aquilo que David Kuspitt, em seu livro The Cult of the Avant-Garde Artist, viria a identificar como “o carisma do cinismo” da arte pós-moderna.
Produtos supremos de uma das mais marcantes características postas em funcionamento pelos movimentos da modernidade, Sá-Carneiro e Santa-Rita expressaram em suas vidas performáticas uma ambição que transcendia seu próprio tempo, que transcendia mesmo a ambição autobiográfica — onde sobressai a busca da fama decorrente da afirmação do sujeito através de um estilo próprio, e que é propriamente “moderna” — convertendo-se na ambição do auto-retrato, da celebridade, que é tipicamente “pós-moderna”. Assim como David Kuspitt diferencia a fama da celebridade, Philippe Lejeune e Michel Beaujour diferenciam, respectivamente, a autobiografia do auto-retrato. Para Kuspit:
One becomes famous for finding, exploring and understanding what was a hitherto hidden reality — an unknown depth — while one becomes celebrated for elaborating the surface of one’s self in a way that makes it narcissistically satisfying for others as well as for oneself. [...] Modern society, in encouraging people to pursue fame, implies that risk is the essence of life. The rediscovery of depth — in effect a return to origins — disturbs the status quo of society as well as that of the individual, without proposing a way to replace it. The consequences of the discovery are as unpredictable as the discovery is unantecipated. In contrast, Postmodern society, in encouraging people to become celebrities by theatricalizing themselves, shows its narcissistic determination to maintain the status quo.[21]
A ambição da fama estaria assim mais ligada aos propósitos que movem o autor de uma autobiografia, como se depreende da definição de Lejeune, na medida em que, neste estilo de escritura, a identidade de nome entre autor, narrador e personagem assenta num pacto entre o autor e o leitor — “Le pacte autobiographique, c’est l’affirmation dans le texte de cette identité, renvoyant en dernier ressort au nom de l’auteur sur la couverture.”[22]—, o que pressupõe um compromisso entre a individualidade que se expressa e aquela a quem se dirige, semelhante ao que busca o artista moderno imbuído de responsabilidades transformadoras da sociedade.
O mesmo não existe no discurso do auto-retrato, um discurso mais próximo ao isolamento e à incomunicabilidade narcisista da celebridade, indiferente ao mundo e sem anseios reformadores. De acordo com Michel Beaujour, o discurso do auto-retrato “ne s’adresse à un éventuel lecteur qu’en tant que celui-ci est placé en position de tiers exclu. L’autoportrait s’adresse à lui-même, faute de pouvoir apostropher Dieu”.[23] Enquanto a autobiografia pressupõe o relato temporal da aventura de uma vida, o auto-retrato prescinde deste relato em favor de um instantâneo no espaço: uma imagem.
No caso dos artistas considerados, é certo que o pendor para tornar-se uma celebridade é mais explícito em Santa-Rita. É quase unânime a opinião dos críticos sobre o seu egocentrismo, megalomania e narcisismo. Tais características teriam influenciado a substituição da obra pelo exibicionismo do sujeito nele verificado, levando-o a converter a sua curta vida num vertiginoso happening, numa calculada propaganda de si mesmo, voltada à construção de seu auto-retrato, não traçado com tintas e pincéis, mas com acontecimentos: um auto-retrato vivo, portanto, garantia de um nome e de uma imagem pessoal que pudesse preencher ou substituir a ausência de uma produção qualquer, à qual, de resto, não creditava um valor de permanência. A este respeito, diz Bernardo Pinto de Almeida:
Santa-Rita sabia, ou intuía, a força das imagens num mundo que brevemente haveria de ser dominado por elas. Para o manifestar, conseqüentemente, escolheu a que lhe terá parecido mais digna de constituir a mais radical e verdadeira ameaça, e que, ao mesmo tempo, lhe servia a febre megalómana: a sua própria imagem.[24]
Já o caso de Sá-Carneiro se afigura mais problemático pela própria existência de uma obra poética e narrativa bastante rica, sobretudo se considerarmos o breve período de tempo em que foi realizada. Mas se analisada de perto — e isto também costuma ser um ponto pacífico entre os críticos — trata-se de uma obra que espelha a vida, falho o distanciamento entre verdade e ficção no que se refere ao sujeito: a ficção refletindo a vida real ou idealizada, a vida real reproduzindo assustadoramente a ficção.[25] Talvez por isso a correspondência de Sá-Carneiro, em particular a dirigida a Fernando Pessoa, seja sua obra mais complexa e interessante, indispensável mesmo para se estabelecer o indiscutível liame entre a vida e a obra do artista.
Através de suas cartas, acompanha-se a gestação e o nascimento do poeta, praticamente em parceria com o mestre, bem como o desenvolvimento do prosador, mas sobretudo a inusitada criação deste auto-retrato romanesco em que se converteu a curta e intensa existência de Sá-Carneiro, documentada em sua narrativa epistolar, talvez a mais legítima obra que foi capaz de realizar à sombra de seu ressentimento contra Santa-Rita e, sobretudo, de sua esmagadora admiração por Pessoa.
Constantemente remetendo à sua obra, as cartas de Sá-Carneiro induzem o leitor a um inesgotável confronto entre o que é narrado e o que é vivido. Seus estados de ânimo confundem-se com os de seus personagens, os fatos de sua vida transformam-se em poemas, de tal forma que a literatura parece contribuir mais para inscrevê-lo na realidade do que para traduzir uma qualquer realidade. Através das cartas é possível acompanhar o longo preparo de um glorioso ápice existencial, cuidadosamente planejado no decorrer dos anos, e com desdobramentos tão misteriosos e intrigantes como os desfechos cultivados em sua ficção de tendência gótica, ou ainda mais. Mutuamente iluminadas, correspondência e obra denunciam, assim, o que poderia ser considerado a crônica de um suicídio anunciado, debatido, estudado, sonhado e ensaiado. Mas com que objetivos?
Um elemento marcante encontrado em muitas de suas narrativas talvez possa fornecer uma pista para suposições a este respeito, com a cautela que é necessária nesses casos, pois não se pode saber realmente as verdadeiras razões que movem as pessoas a atitudes extremas como esta, e mesmo num autor de forte pendor auto-referencial não se pode confundir a vida com a ficção. No entanto, não é possível negar a presença, sobretudo em alguns contos, de uma ânsia de reconhecimento, de sucesso, de rápida fama, transferida para certos personagens que agem conforme o que Sá-Carneiro condenava em Santa-Rita como uma falta de ética.
Considere-se, por exemplo, um episódio relatado em “A Grande Sombra”. Trata-se do suicídio de um certo companheiro, um ato gratuito, feito mais para impressionar os amigos a quem o suicida teria contado motivos diversos e teatralizado razões para a sua morte, a essa altura inteiramente banalizada. Chama a atenção, além do completo desprezo generalizado para com a vida, o cuidado fútil com a descrição da vestimenta do sujeito (que seria semelhante à usada pelo autor quando do seu próprio suicídio): “impecável e risonho, de smoking, e nova flor na lapela, uma grande rosa vermelha” e a admiração do narrador diante da atitude do personagem: “Seja como for, criaturas assim aureolizam efetuar-se um pouco em mistério — esbatem-se em Asas, ungem-se de Errado... São, pelo menos, maiores do que eu...”.
Mas é o brevíssimo conto “Ladislau Ventura” que melhor traduz este aspecto, pois trata especificamente de um suposto poeta, um “apaixonado pelas letras” cuja “única ambição era a glória e a celebridade”. Para as alcançar “não recuaria diante de nenhum obstáculo”. Todos os elementos estão aí presentes: o desprezo para com a obra: “...em três ou quatro meses manufaturou dois novos dramas e três novos romances, enviou-os pelos correios a um livreiro”; o descaso para com a vida, dele e dos outros, em face da possibilidade do sucesso rápido, que o leva a forjar um caso de amor impossível, assassinando uma famosa atriz durante um espetáculo e suicidando-se a seguir, conseguindo através da publicidade atingir o seu intento: “Pouco tempo depois, os teatros anunciavam as peças do “poético criminoso” e as livrarias os romances do “terrível amoroso”. Que magnífico reclamo!! As edições esgotaram-se, os teatros encheram-se e hoje ninguém desconhece o nome de Ladislau Ventura...”.[26]
Em “Página dum Suicida”, o autor ensaia uma explicação para esta inegável atração — ainda que nublada por uma suposta intenção irônica, como no conto acima — pelo espetáculo da autopromoção a qualquer preço:
Afinal, sou simplesmente uma vítima da época, nada mais...O meu espírito é um espírito aventuroso e investigador por excelência. Se eu tivesse nascido no século XV descobriria novos mares, novos continentes...No começo do século XIX teria inventado talvez o caminho de ferro...Há poucos anos, mesmo, ainda teria com o que me ocupar: os automóveis, a telegrafia sem fios... Mas agora... agora que me resta?... A aviação?...Pf.... essa já nada me interessa...Não há dúvida: a única coisa interessante que existe atualmente na vida é a morte!...Pois bem, serei eu o primeiro explorador dessa região misteriosa, completamente desconhecida...[27]
Ao lado da ironia melancólica que permeia esse texto, há realmente um paradoxal entusiasmo que terá movido o autor a buscar na teatralização da morte uma motivação para a sua escritura e a sua vida. Seus contos são histórias de grande vaidade, uma vaidade sem limites que inverte os valores até então considerados predominantes na existência, como a própria existência. A consistência do que se faz, a fama decorrente da obra — e não o inverso — tudo isso já parece ultrapassado no código de valores de Sá-Carneiro.
Entre Sá-Carneiro e a ética do nosso tempo de hiper-realismo e superexposição há um abismo de quase um século, embora pouca evolução em “qualidade”. Poder-se-ia arriscar que, tal como seus personagens, Sá-Carneiro sacrifica-se apoteótica e radiosamente pela projeção de seu nome. Sabe — ou espera — que após este gesto será conhecido e lembrado como não seria, talvez, sem o suicídio, que afinal é uma marca de diferença, excentricidade, num certo sentido até mesmo de coragem, exemplo máximo de desprezo pelos “lepidópteros”, do mundo dos quais desejava ardentemente distanciar-se.
Sob um certo aspecto, Sá-Carneiro projeta-se menos pelo que produz do que pelo que se decide a fazer, no momento culminante para o qual viveu e escreveu. Até que ponto sua obra traduz um sentimento e uma tendência “de seu próprio tempo” é um fato a se considerar, pois a moral hedonista que já revela, o prazer confesso pelo luxo e pelo supérfluo, a ausência de sentido para a vida e a pouca fé no poder salvacionista da arte parecem aproximá-lo mais de uma época futura, onde essas características surgiriam com o desenvolvimento tecnológico e a intervenção maciça dos meios de comunicação em massa, bem diferentes do humilde “telégrafo sem fio” que menciona em seu conto como uma conquista máxima, impossível de ser ultrapassada.
Sua antecipação de um certo “modo de estar no mundo” o faria realmente um ser além de seu tempo, como se sentisse, vivesse e previsse um modo de ser ainda inimaginável para os seus contemporâneos. E é justamente sobre este sentimento anacrônico que fala a Fernando Pessoa no projeto da “Novela Romântica”, onde, muito borgesianamente, lança para o passado o seu conflito presente, para melhor explicá-lo:
Com efeito em Paris, Heitor de Santa-Eulália tem outro grande amigo, de alma, esse: o escritor polaco Estanislau Belcowsky, moço artista emigrado, autor de novelas psicológicas inéditas, incompreendido e desgraçado. Estanislau Belcowsky sou eu. Falará de suas estranhezas, que serão as minhas, das suas ânsias, que serão as minhas. Heitor de Santa-Eulália não o compreende inteiramente, porque um homem de 1830, mesmo Heitor, não me poderia compreender — pressente-o e admira-o. Dá-lhe dinheiro a rodos, para ele gastar pois compreende a necessidade que ele tem de viver em meios luxuosos — tem sobretudo a noção de que mais tarde, nos tempos futuros, na era das máquinas — haverá heróis de novela assim, haverá uma arte de acordo com a psicologia, com a individualidade de Belcowsky. E Santa-Eulália embriaga-se de oiro antevendo a maravilha, e sente que ele é também um pouco, um precursor d’Aquela Raça... Heitor, ouvindo isto, terá grandes espasmos mudos, grandes admirações maravilhosas, embora o pressinta unicamente, embora apenas suspeite, não sabe por que, hein, sê-lo, melhor: devê-lo ser mais tarde, numa outra encarnação, futura, sucessiva....[28]
Na verdade, em sua própria época, Sá-Carneiro está mais próximo da estupefação vivida por Santa-Eulália — de suas suspeitas, pressentimentos e antevisões de outras eras — do que perfeitamente incorporado à atitude que o Belcowsky absolutamente moderno representa para o homem romântico deslumbrado. Transpondo-se a novela para 1916, e admitindo-se que Sá-Carneiro estivesse perfeitamente inserido no seu tempo, quem seria o hipotético, o fantástico Belcowsky, homem do futuro, senão um “pós-moderno”, alguém com quem Sá-Carneiro — à semelhança de Santa-Eulália — gostaria de se identificar, talvez porque se sentisse um “precursor” daquela “nova raça”? Esta parece ser a confusa confissão da “Novela Romântica”, na qual a figura de Belcowsky funciona como a do “homem dos sonhos”.
Experimentando, em antecipação, o sentimento de desreferencialização de um real que se degrada em fantasmagoria, e de dessubstancialização do sujeito que passa a ser secundário e subalterno diante dos objetos; tendendo para a desvalorização da vida, para a banalização da morte, do crime, da violência e da dor, Sá-Carneiro age menos como o romântico decadentista que finge ser em seus poemas, menos como o sensacionista ou o cubofuturista que finge ser em sua vida, e mais como um... pós-moderno.[29] Embora o tom de sua obra faça pensar no decadentismo, há grande diferença entre um Werther, uma Dama das Camélias, um Antony — personagens que gosta de citar — e ele mesmo, assim como também falta, nos ecos modernos de sua produção, a fé empreendedora e a personalidade realmente voltada à aventura revolucionária do início do século.
Os suicídios românticos são apoteoses de desistências — nobres, heróicas ou trágicas — mas sempre motivadas. O suicídio para Sá-Carneiro — como mostram os suicídios representados em suas obras — é a apoteose de uma insistência perversa ou pervertida, premonição de uma vitória “outra”, para a qual prescinde da vida como um não-valor: “Hoje vou viver o meu último dia feliz. Estou muito contente. Mil anos me separam de amanhã... Eu não me mato por coisa nenhuma... acho belo levar comigo alguma coisa que ninguém sabe ao certo, senão eu. Não me perdi por ninguém: perdi-me por mim, mas fiel aos meus versos”.[30] Através do suicídio, e ao contrário do Pessoa-Campos da exclamação “Arre! Vou existir!”[31], Sá-Carneiro crê talvez encontrar uma saída para o que sente ser uma limitação. Carnavaliza e ironiza a si mesmo matando-se — mas em grande estilo, como se o fizesse movido menos por razões de foro íntimo do que pelo absurdo desejo de conferir verossimilhança às palavras escritas em seus últimos poemas.[32]
Desta forma, sua obra não parece tão sintonizada com o gênero fantástico, tendência freqüente nas análises de seus textos, mas com algo muito mais atual: o hiper-realismo. A ficção torna-se mais forte e mais real que a própria realidade. Sá-Carneiro vive e morre num universo virtual, em estado de insustentável leveza, gravando o seu retrato no céu da posteridade, ainda que este seja de um azul artificial e chapado como o do cenário da fotografia que tirou aos quatorze anos, elegantemente vestido e cuidadosamente imobilizado pela pose em frente à pseudoprofundidade da paisagem ao fundo: céu e mar e montanhas pintados num plano contra o qual se destaca a sua imagem de menino obeso.
Pois é justamente a realidade de seu aspecto físico, o caráter grotesco do peso que carrega em seu corpo o que parece impulsioná-lo a buscar as sensações ilusórias e evanescentes capazes de desprendê-lo do chão ao qual está acorrentado. Vale a pena lembrar que Sá-Carneiro chega a interrogar Pessoa sobre se Santa-Rita não teria razão — se “não é assim que se consegue”?...
A cada passo o Guilherme Pobre diz: “porque você, Sá-Carneiro, bem vê, o artista hoje faz isto, aquilo, aquiloutro, tem tais idéias, etc., etc.”. Das suas palavras depreende-se que só é artista quem assim procede — e por proceder assim. De forma que ele, adotando essas idéias, parece tê-las adotado unicamente para ser como os artistas — para ser artista. Em resumo: no artista o que menos lhe parece importar é a obra. O que acima de tudo lhe importa são os seus gestos, os seus fatos, as suas atitudes.[...] Não acha um caso curioso de ‘intoxicação ansiosa’; de pessoa que se perde na ânsia do triunfo? Ou isto tudo será razoável — será a verdadeira maneira de conseguir? Não o creio, porquanto me parece ter-se arrimado a árvores, fracas, anêmicas mesmo. Um grande ‘gajo’ — desculpe o termo — ou um triste produto?[33]
Desta aparente dúvida depreende-se, por sua vez, uma não-articulada e não assumida certeza. De fato, a morte não o assustava tanto quanto uma vida obscura, sem luxos, sem vênias: sem Paris. A morte poderia ser — como foi — o trampolim para o sucesso, para a posteridade. Acresce que a morte foi rebuscada e estranha, em traje a rigor, com uma testemunha convidada e poemas cruéis precedendo-a, anunciando-a, planejando para o enterro triste e solitário, como na realidade foi, uma pantomima fictícia com a qual se confundiria depois, quando os detalhes sórdidos se perdessem no tempo. A sepultura alugada, o túmulo desaparecido, o mistério das cartas e outros pertences até hoje não localizados, a nenhuma existência de um registro de óbito no país natal, os depoimentos distantes e imprecisos de Carlos Ferreira e José Araújo, amigos de pouca data, tudo isso transformando-o num de seus personagens: uma grande sombra, um homem dos sonhos, um homem que estiolou o gênio, um Professor Antena, um Ricardo de Loureiro. Diria ele a Pessoa:
Mas você compreende que vivo uma das minhas personagens eu próprio, minha personagem — com uma
de minhas personagens.[...]Previram misteriosamente a personagem real da minha vida de hoje estes versos. E você compreende todo o perigo para mim — para a minha beleza doentia[34], para os meus nervos, para a minha alma, para os meus desejos — de ter encontrado alguém que realize esta minha sede de doença contorcida de incerteza, de mistério, de artifício?[...] É um horror, um horror porque é um grifado sortilégio. Por que é que eu se devia encontrar alguém fui encontrar alguém igual a mim próprio?[35]
Sá-Carneiro concebe o suicídio como um espetáculo que encontra em Pessoa um espectador privilegiado. O fato é que a vida e a obra deste autor não se dissociam e parecem confluir para a correspondência, onde se constrói menos uma autobiografia do que um auto-retrato literário: a figura do autor passo a passo, culminando com a fusão em vida da temática literária.
Marshall Berman, em seu conhecido livro Tudo que é sólido se desmancha no ar — A Aventura da Modernidade, cujo título vem muito a propósito do assunto aqui considerado, afirma que:
Ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição. [...] É ser ao mesmo tempo revolucionário e conservador, aberto a novas possibilidades de experiência e aventura, aterrorizado pelo abismo niilista ao qual tantas das aventuras modernas conduzem, na expectativa de criar e conservar algo real, ainda quando tudo em volta se desfaz. Dir-se-ia que para ser inteiramente moderno é preciso ser antimoderno.[36]
À parte os já evidentes paradoxos nos quais vemos inserida a história pessoal de Santa-Rita Pintor e Mário de Sá-Carneiro, seja por se constituir um o artista despojado da obra, e o outro um autor cuja obra se realiza bem ou mal em função da própria personalidade, ambos vivendo pela construção e para a contemplação de suas imagens; há os paradoxos que se vão revelando na natureza dos produtos que ficaram para trás, quando ficaram.
Considere-se a caricatura que dos dois jovens realiza Stuart Carvalhais. Poucos traços, rápidos, nenhum rosto. É evidente a intenção do desenhista, de ressaltar o grotesco contraponto que fazia reconhecível a dupla, não pelas suas feições ou por qualquer detalhe pessoal, mas por comporem, juntos, a risível imagem do gordo e o magro. Lá vão, inconfundíveis, os dois “Lords de Escócias doutras eras”, os talvez “bobos presunçosos”, capturados na excentricidade de seus tipos físicos contrastantes e nada mais.
Ao lado do “gordo” poderia estar um outro “magro”: Pessoa ou mesmo um dos inúmeros personagens-tipo de Sá-Carneiro, retratos inspirados, como já se disse, na sedutora aparência do pintor. Mas o fato é que se trata de Santa-Rita, que sempre foi para Sá-Carneiro alguém presente e próximo, ao contrário de Pessoa, que a maior parte do tempo se confundiu com uma realidade semelhante à das figuras de papel de seus contos, partilhando com elas o mesmo espaço bidimensional: a página escrita das cartas através das quais se relacionaram. A imaterialidade quase mítica de Pessoa era tal, e a necessidade de corporalizá-lo era tamanha, que ambos — Santa-Rita e Sá-Carneiro — acabam por “visualizá-lo” num dos cafés de Paris:
Sabe que o Santa-Rita descobriu um Fernando Pessoa aqui? Eu concordei com a descoberta. Ainda ontem se assentou junto de nós num café do Bairro Latino. Aliás não o conhecemos. Porque este Fernando Pessoa se resume num rapaz que o faz lembrar a você. Faz mesmo lembrar muito. Não tanto nos traços fisionômicos detalhados como no “ar”, na expressão, em certo gesto-tique de atitude imóvel, rosto encostado ao braço, muito característico em você. Compreende? E assim eu estimo vê-lo. Porque fluidos simpáticos e saudosos flutuam envolvendo-o — porque a sua presença me faz recordar, enfim, um amigo querido.[37]
Tal descrição parece revelar a cumplicidade existente entre Mário e Santa-Rita, e a distância real de ambos a Pessoa, cuja presença chega a ser transformada numa miragem. Mas não se trata de uma cumplicidade assumida ou mesmo desejada. Trata-se de uma associação complexa, cheia de conflitos, que traz à cena um dos mais ambíguos paradoxos, justamente o que é ressaltado na caricatura de Stuart: a contradição leve-pesado.
Contradição sugerida pela imagem da dupla — um magro, leve, superficial; o outro gordo, pesado, profundo. Mas seria verdadeira essa contradição? O que já se disse do ponto de vista moral, do ponto de vista de atrações e repulsões, também parece válido do ponto de vista físico. De fato, também neste plano o que parece haver é uma identidade profunda sob uma aparente diferença. O que ocorre é que a aparência de Santa-Rita não entrava em conflito com a sua personalidade, nem com a sua estética. Ele era, e sempre foi, magro, leve, fluido[38]:
Já a sua figura, no meio apagado e morno do café, fazia sensação. O seu ar fúnebre emergindo do fato preto, a sua figura esguia e angulosa, o colarinho muito largo e direito, meio coberto por um laço também preto, o chapéu negro enterrado na cabeça rapada à navalha, o próprio galgo hierático que o acompanhava e ficava em atitude submissa junto da mesa onde ele se sentava a encher longas tiras de papel, dava-lhe um aspecto quase estranho, quase irreal...[39]
Guilherme de Santa-Rita era uma daquela personalidades espantosas que se instalam para sempre na memória de quem experimentou, ainda que de leve, o seu contato. Um ser quase de lenda, este artista sem obra. O seu poder de mistificar — dizem — não tinha margens. O desperdício verbal da sua imaginação fazia, ao que parece, a riqueza de vários poetas e romancistas. [... ]Era quase a personificação da blague...[40]
Um tal carisma já não existia na figura de Sá-Carneiro. Sua flagrante e dolorosa obesidade, sua aparência física totalmente oposta à descuidada elegância e ao desalinho blasé, cobiçado como um estereótipo do artista moderno e cosmopolita, era seguramente um impedimento aos anseios de leveza, sedução, alegre inserção no ambiente artístico de festas, exibicionismo, vaidade, futilidades ao qual ansiava pertencer. Era mesmo uma interdição à expressividade sensual de sua alma feminina, sinuosa, em nada parecida ao “Rei-lua postiço”, ao “Esfinge-gorda” com que duramente se define em seus últimos poemas.[41]
Não é por acaso que confessa, em “Eu-Próprio o Outro”: “A minha alma é esguia — vibra de se elançar. Só o meu corpo é pesado. Tenho a minh’alma presa num saguão.[...] Ai!, se eu fosse belo!...[42], e em carta a Pessoa, no projeto do conto “Pequeno elemento no caso Fabrício”: “Trata-se de um homenzinho que de súbito aparece outro — em alma, claro: ele próprio concorda diante dum espelho que aquele que ele diz ser é louro e gordo: enquanto o espelho lhe reflete um magro e trigueiro”[43], e ainda em carta a Ricardo Teixeira Duarte: “Aliás, eu, física e moralmente, sou uma enorme, uma perpétua incoerência: Sou forte e sou fraco. Tenho saúde e não tenho saúde. Sou tímido e arrojado. Sou bom e mau. Sou mandrião e ativo. Tenho tido sorte, e tenho sido infeliz. Tenho juízo e sou doido. Sou gordo... e magro”, para citar apenas algumas evidências deste que, aparentemente, é o maior conflito na vida de Sá-Carneiro.
Desde então, a aparência já era importante mesmo para um Fernando Pessoa que, avesso à vida social e ao brilho da celebridade, admirava a beleza e afirmava que todos os verdadeiros artistas são fisicamente belos. E o que dizer de Sá-Carneiro? Talvez se não fosse o conflito intensamente vivido por ele diante do que julgava a realidade do espelho não tivesse deixado a obra que deixou — uma evidente e desesperada tentativa de projeção de uma auto-imagem “corrigida”, bela, esguia, em nada semelhante à imagem do outro, “aqueleoutro” contra o qual se lança, tantas vezes com violenta rejeição.
A contradição leve-pesado conduz, por associação, a uma outra, que resgata a pergunta baudelairiana à qual já nos referimos: trata-se da contradição profundidade versus superficialidade, implícita nos paralelismos tão freqüentemente utilizados na literatura: céu-terra, alto-baixo, vôo-queda, esta última de reconhecida preferência nos estudos teóricos sobre Sá-Carneiro. É conhecido o ensaio de David Mourão-Ferreira intitulado “Ícaro e Dédalo: Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa” que lançou a bela e convincente imagem do poeta como um Ícaro procurando nas alturas a aventura e o risco, à revelia dos conselhos do seu ponderado mestre, e por isso queimando imprudentemente as asas no céu em fogo, vindo a cair prematuramente.[44]
A flagrante adequação, bem como as possibilidades que se abrem à análise a partir desta comparação no confronto com as imagens empregadas pelos dois poetas e com episódios de suas vidas faz desta analogia, seguramente, uma das mais produtivas no âmbito da crítica dedicada ao assunto, tendo por isso mesmo influenciado muitos outros trabalhos.
E, no entanto, a um certo olhar, a verticalidade sobre a qual se baseia esta analogia não parece ser realmente a orientação mais característica da geografia poética de Sá-Carneiro, apesar do que sugerem suas imagens literárias preferenciais. Isto provavelmente porque, assim como para Santa-Rita, o céu para Sá-Carneiro não é o céu dos poetas dantescos e miltonianos: seres privilegiados e inspirados que ascendem ao sagrado e ao sublime através da imaginação e da fantasia. Tampouco é o céu destes seres de aspirações elevadas que são os filósofos: metáfora do pensamento, da atitude racional e lúcida, um céu inteligível que nos distrai menos da terra do que compreende a sua lei.
Para este poeta e este pintor, exilados das formas tradicionais de grandeza e beleza — heroísmo, santidade e genialidade artística, sinônimos de “profundidade” — a noção do céu estaria mais próxima de uma imagem de limite pessoal, um lago invertido onde os narcisos futuristas poderiam experimentar a sensação de se refletirem nas “alturas” sem dispenderem esforços ou correrem riscos desnecessários, como o de afundar e desaparecer nas profundezas do esquecimento. Visto hoje à luz — se é que assim se pode chamar — da pós-modernidade, o céu para eles parece representar tão-somente um espelho onde não buscam nada além de suas próprias imagens.
Sá-Carneiro e Santa-Rita não estão na natureza, mas num recinto fechado, pesado de adornos, cortinas e tapetes, onde muitos segredos poder-se-iam esconder... e, no entanto, já não há nenhum segredo. O único céu que parecem ver é o teto — do quarto, do atelier, dos cafés. Não há, pois, aventuras para este poeta e para este pintor, mas uma aventura de caráter muito específico: sua “ascensão” à superfície, sua desmistificação da falsa profundidade, sua descoberta de que tudo se passa na fronteira.
Como na história de Alice do outro lado do espelho, de Lewis Carroll, os animais do país das maravilhas dão lugar a figuras de cartas de baralho sem espessura. A antiga profundidade desdobra-se na superfície, converte-se em largura. Explodem, então, os rápidos e irrealizados projetos de pintura de Santa-Rita, assim como, na poesia de Sá-Carneiro, as cores: palavras iluminadas por uma fonte artificial, sem nenhum sentido senão a beleza que evocam, cuja sensualidade à flor da pele tenciona provocar menos o desejo de compreender que o de tocar, inatingível sempre.
Em sua análise sobre a passagem de Alice do “País das Maravilhas” para o “País do Espelho”, Gilles Deleuze explica como, nesses casos, o céu passa a não significar, em absoluto, uma altura que seria somente o inverso da profundidade. Na sua oposição com a terra profunda, o ar e o céu são a descrição de uma superfície pura e sobrevôo do campo desta superfície: “O céu solipsista não tem profundidade”. O que não significa, porém, pelo menos para Deleuze, um critério negativo. Aliás, ele faz questão de ressaltar como um estranho preconceito este que:
valoriza cegamente a profundidade em detrimento da superfície e que pretende que “superfície” signifique não “de vasta dimensão” mas “de pouca profundidade”, enquanto “profundo” signifique, ao contrário, “de grande profundidade” e não de “fraca superfície”.[45]
De fato, nem Santa-Rita nem Sá-Carneiro parecem revelar vocação para verdadeiros vôos ou profundos e perigosos mergulhos. Seus interesses concentram-se mais na “vasta dimensão da superfície” — de suas vidas, obras, e, no caso de Sá-Carneiro, por que não dizer do próprio corpo, objeto de suas reconhecidas preocupações, tema de tantos de seus escritos?... Além disso, é evidente que não querem deixar mensagens outras além do eventual registro de suas imagens, tornadas objetos e temas preferenciais de sua arte. Não querem salvar a ninguém, nem a si mesmos, e nem pensam no poder salvacionista da arte como os demais modernos.
Daí porque tendem a realizar uma arte pouco natural, pouco comprometida, que celebra justamente a sua artificialidade, sua gratuidade, o seu “erro”. Daí porque Santa-Rita deixa para trás a incógnita de sua obra reduzida a cinzas, sobre a qual nada poderá ser dito, e Sá-Carneiro deixa para trás a incógnita de um suicídio sem razão. Não é absurdo, pois, que a observação de Kuspit a respeito dos artistas pós-modernos pareça tão adequada aos dois:
In short, the neo-avant garde Herostratic artist uses avant-garde art as the instrument of his resentful narcissism — as an ironic mirror at once. But through this proccess he deprives it of its therapeutic ambition, which is what makes it of service to humanity — not to speak of the distorted form his own ambition takes. In general, this disservice is that he denies art its sacred function as a temple in which humanity can find sanctuary, an inviolate space in which spirit can be restored by the experience of the primordial. He profanes the temple of art by treating it merely as an instrument of fame. [46]
Se uma tal atitude de gratuidade, no plano pessoal, pode ser explicada em função sobretudo da satisfação egocêntrica, conquanto autodestrutiva, do criador; no plano da obra resultante parece adquirir outras conotações, pelo menos na opinião de críticos como Gaston Bachelard, que vê no impulso de desmaterialização de certos poetas o princípio de uma “filosofia do apagamento”, função de sua participação no que ele denomina de “rara natureza aérea” da poesia.
Em seu ensaio O Ar e os Sonhos, o autor classifica os poetas que trabalham a imagem do céu em quatro grupos, conforme a inclinação predominante de suas abordagens para uma associação com um dos quatro elementos fundamentais da natureza: a água, o fogo, a terra e o ar. Assim, há os que vêem no céu um líquido fluente e se animam com a menor nuvem, os que vivem o céu como uma chama, os que o contemplam como uma abóbada pintada, e os que de fato participam de sua natureza aérea:
a imaginação do tipo aéreo oferece um domínio em que os valores de sonho e de representação são intercambiáveis em seu mínimo de realidade. As outras matérias endurecem os objetos. Assim, no domínio do ar azul, mais que alhures, sente-se que o mundo é permeável ao devaneio mais indeterminado. É então que o devaneio tem realmente profundidade. O céu azul se torna côncavo sob o sonho. O sonho escapa à imagem plana. Em breve o sonho aéreo, de um modo paradoxal, já não tem senão a dimensão profunda. As duas outras dimensões em que se diverte o devaneio pitoresco, o devaneio pintado, perdem seu interesse onírico. O mundo está então do outro lado do espelho sem aço. Possui um além imaginário, um além puro, sem aquém. Primeiro ele não tem nada, depois tem um nada profundo, em seguida uma profundidade azul. [47]
É difícil classificar Sá-Carneiro em apenas uma das abordagens propostas por Bachelard, uma vez que a sua noção do céu é fluida: ora perde-se entre as nuvens, ora arde em chamas, ora estampa-se no azul artificial do dossel de um leito. Em todos os casos, porém, quando parece predominar o devaneio “pitoresco e pintado” — a plasticidade superficial, a ornamentalidade gratuita — sua escrita sofre um processo de evanescimento, de desmaterialização, onde a realidade se confunde com o sonho. Escapando à imagem plana, portanto, o céu de Mário transfigura-se, atingindo a “profundidade azul” da imaginação do tipo “aéreo”.[48]
“Morro à míngua, de excesso” — diz Mário, em A Queda. Prolixa porque demasiadamente lacunar, excessiva porque demasiadamente pouca, a escrita resultante deste tipo de imaginação tem sido considerada, nos últimos tempos, uma escrita feminina. Para Lúcia Castello Branco, a escrita feminina não é exatamente a escrita das mulheres, mas a escrita que busca a inserção do corpo no discurso:
Ao lermos o texto feminino, sempre esbarramos nesse corpo do narrador, ali exposto, a nos dizer que não é apenas um signo, uma palavra, uma representação, mas o que antecede ao signo, à palavra, à representação. É claro que essa relação da escrita com o corpo não se dá apenas nos textos femininos. Em última instância, todo discurso é atravessado pelo corpo, é suportado pelo corpo, na medida em que há sempre um sujeito, um autor, por trás daquelas palavras. Entretanto, há escritas que privilegiam esse “por trás” do corpo, essa sua ausência/presença, buscando fazer disso uma pura presença, uma presentação, em lugar de uma representação. Quando fazem isso, de uma maneira ou de outra, elas se corporificam (ou se femininizam), priorizando mais a voz, o som, que o sentido; mais o como se diz do que o que se diz; mais a coisa que o signo. É especialmente aí que o feminino e a mulher se interseccionam, uma vez que, na mulher — e na escrita feminina — o corpo ocupa um lugar privilegiado.[49]
A constituição de uma obra auto-referencial cuja temática gira em torno do próprio corpo revela Mário de Sá-Carneiro como um desses homens responsáveis pela percepção e pela expressão de uma dicção feminina na escrita, e não nos moldes de Fernando Pessoa, que, em suas cartas de amor à Bebé, por exemplo — “ridículas porque, do contrário, não seriam cartas de amor” — emprega um tatibitate infantil. A escrita feminina de Sá-Carneiro, com a sua paradoxal profundidade do plano, da superfície e do vazio, não é uma escrita do fingimento e da simulação, onde o poeta dialoga com uma idéia preconcebida da mulher, mas é uma escrita inscrita na vida e na verdade do próprio homem: o poeta que fala.
É bem verdade que Pessoa tentou atingir essa “profundidade azul” na poesia de Alberto Caeiro, tentativa falha desde o início, não só porque o autor era uma simulação, um personagem, mas porque os olhos azuis deste personagem eram desde sempre incapazes de refletir o céu sem refletir sobre o céu, ainda que o fizessem de maneira paradoxal. Mas se falhou talvez na escrita, não terá falhado na concepção, pois é a “idéia Alberto Caeiro”, em sua intencional mestria, que é feminina: fundada numa lógica não-fálica, numa ausência fundadora, num vazio produtivo — “o mito do nada que é tudo” capaz de influenciar e de criar Outros, de criar, inclusive, o Mesmo.
Como mostra o exemplo de Sá-Carneiro, porém, é flagrante a associação entre a escrita feminina e a plasticidade própria das artes visuais, associação que remete à distinção entre poesia e pintura: a poesia tradicionalmente ligada ao tempo, à ação, ao masculino; a pintura ligada ao espaço, à passividade, ao feminino.
Uma das mais fortes motivações que W.J.T. Mitchell encontra no clássico estudo de Lessing — Laocoonte ou dos Limites da Pintura e da Poesia, de 1766 — para o estabelecimento da distinção da literatura como arte temporal e da pintura como arte espacial é a rígida noção de poder e de hierarquia entre os sexos, profundamente enraizada no contexto cultural do século XVIII, que transpareceria na maioria das considerações feitas por este autor sobre as artes ditas “irmãs”. Como observa Mitchell, no estudo de Lessing:
Paintings, like women, are ideally silent, beautiful creatures designed for the gratification of the eye, in contrast to the sublime eloqüence proper to the manly art of poetry. Paintings are confined to the narrow sphere of external display of their bodies and of the space which they ornament, while poems are free to range over an infinite realm of potential action and expression, the domain of time, discourse and history.[50]
Este tipo de concepção pode ser apreciado na prática, por exemplo, no quadro de Jan Vermeer (1632-1675) — pintor holandês famoso por suas naturezas-mortas com seres humanos — intitulado Soldado e Jovem Sorridente. À exemplo do que ocorre em várias de suas obras, este quadro deixa claro como a esfera de atuação masculina é exterior ao espaço da casa. O homem sentado à esquerda da pintura, de costas para o observador, está próximo à janela aberta e à luz que vem de fora. Diante dele estende-se na parede um grande mapa, símbolo do amplo espaço das viagens, batalhas, comércio e aventuras que constituem o seu mundo. A pose incômoda que assume, sentado na beirada da cadeira, revela o seu formalismo no interior do pequeno espaço doméstico, ao contrário da bela moça, sobre cujo rosto recai a iluminação do quadro, e que sorri, tranqüila e à-vontade, escutando silenciosamente a palestra do homem à sua frente.[51]
Como assinala Mitchell, Lessing, em sua rígida distinção teórica, também deixa implícito um critério de valoração segundo o qual a poesia deve ser considerada uma arte superior à pintura, não exatamente porque a categoria do tempo seja por ele considerada superior à do espaço, mas porque o tempo, vinculado sobretudo ao imaginário masculino, seria necessariamente considerado superior à categoria do espaço e às suas atribuições mais proximamente femininas, segundo o pensamento da época.
Se, como diz Jean-Clarence Lambert, “Imaginar é ver”, caberia à poesia, com seu vasto campo aberto ao poder quase demiúrgico da imaginação, um lugar visivelmente privilegiado em relação à pintura, limitada esta à reprodução de imagens já existentes no mundo. Compreende-se, assim, como a posição de Lessing se amparava numa concepção realista da pintura. Num polêmico artigo, J. Gibson questiona essa concepção, mostrando como são conflitantes as duas teorias habitualmente aceitas sobre o que seria uma pintura:
Underlying all the discussions of representation there are currently two conflicting theories of what a picture is. The first theory assumes that it consists of a sheaf of light rays coming to a station point or perceiver, each corresponding to a spot of color on the picture surface. The second theory assumes that it consists of a set of symbols, more or less like words, and that a painting is comparable to a written text. On the first theory, a picture can represent a real object or scene insofar as the light rays from the picture are the same as the light rays from the original. On the second theory, a picture can stand for a real object or scene insofar as the language of pictures is understood. The second theory says that one has to learn to ‘read’ a picture, while the first theory denies it.[52]
Gibson aponta as falácias de ambas e propõe uma terceira teoria, enfatizando a diferença entre o pensamento verbal e o visual, e atribuindo a este último uma liberdade inusitada, semelhante à conclusão a que chega Lambert em seu ensaio sobre a pintura não-figurativa: “Si Imaginar es ver, también Ver es imaginar”.[53] Assim, para Gibson, e ao contrário das opiniões tradicionais:
Not only do we perceive in terms of visual information, we also can think in those terms. [...] Visual thinking is freer and less stereotyped than verbal thinking; there is no vocabulary of picturing as there is of saying. As every artist knows, there are thoughts that can be visualized without being verbalized.[54]
A arte não-figurativa teria posto em prática a representação destes pensamentos visuais, perseguidos pela estética da desaparição ou pela filosofia do apagamento que o poeta Mário de Sá-Carneiro levou adiante — talvez mais do que qualquer outro de Orpheu — através dos estranhos bailados, traçados na superfície mesma das palavras de seus poemas, em frívolas seções de manucure e dispersão, ou através dos impulsos antigravitacionais dos narradores de suas histórias.[55]
Mas à época de Sá-Carneiro, esta leveza era absolutamente insustentável, sentida como uma incapacidade, uma limitação. Ser “profundo” ainda era uma condição indissociável da ascensão aos andares supremos ou ao céu da sabedoria, da arte, da ciência — ou mesmo do sucesso. Vive-se ainda toda uma tradição de verticalidade que é expressa no próprio mito do Orpheu, não o Orpheu da superfície, que toca e canta despreocupado, mas o “Orpheu dos Infernos”, incrédulo e investigador, pintado por Santa-Rita em rios de escarlate.[56]
O poeta gordo continua, portanto, preso ao seu paradoxo existencial: é um homem pesado, que não se ajusta aos padrões de beleza física modernos, baseados no conceito de leveza, e é dono de uma obra leve, que não se ajusta aos padrões estéticos modernos, baseados no conceito de peso. Não pode ser um homem superficial do le monde[57], como Santa-Rita, nem um poeta profundo, como Pessoa. Aventura-se, portanto, ao suicídio, que não só lhe rouba o peso do corpo — a insuportável existência em permanente contradição —, como confere certa profundidade aos seus escritos tão auto-referenciais, pela tragicidade teatral imposta à sua história de vida.
Explica-se, ante essa perspectiva, a pertinência da preposição “sobre” no último verso do poema “A Queda”: “Tombei ... E fico só, esmagado sobre mim”; que tanta discussão tem gerado desde que foi apresentado a Fernando Pessoa. Compreende-se a resistência de Mário em mudá-la para “sob”, desfazendo, assim, todo o efeito pretendido. É que os seus versos descrevem uma autêntica, embora paradoxal, “queda para o alto”, como fica claro nestes versos, onde o verbo “tombar” — “num grande retrocesso” — é associado a “ascender”:
Não me pude vencer mas posso-me esmagar,
— Vencer às vezes é o mesmo que tombar —
E como inda sou luz num grande retrocesso,
Em raivas ideais ascendo até ao fim
[...]
Tombei.”[58]
Para Eduardo Lourenço, que também discorda da legitimidade da pulsão ascencional em Sá-Carneiro, “este estranho Ícaro voou em permanência dois vôos opostos e toda a ascensão lhe foi queda, e toda queda ascensão. Não voava em céus ou para céus que não havia. Voava nele mesmo, experimentando na queda aquele pavor fulgurante que remata os pesadelos onde se cai para lado nenhum, infindamente”.[59]
Se tivesse vivido cinqüenta anos depois, contudo, Sá-Carneiro não precisaria se matar: “profundo” teria deixado de ser um elogio, como diz Deleuze. O poeta sensível e obeso já não precisaria fingir ser um Ícaro: condenação constante a uma queda, anseio de levitação vivido como dor e privação. Poderia então, sem culpa, confessar-se uma “estátua falsa” — “Só de ouro falso os meus olhos se douram;/ Sou esfinge sem mistério no poente” — e até fazer seus versos como os que Lou Reed e John Cale teceriam no futuro em homenagem a Andy Warhol, o pintor das celebridades:
I’m no sphinx, no mistery enigma
What I paint is very ordinary
I don’t think I’m old or modern
I don’t think I think I’m thinking
It does’t matter what I’m thinking
It’s the images that are worth repeating
Images/Images/Images/Images
If you’re looking for a deeper meaning
I’m as deep as this high ceiling....[60]
Sem a pessoana necessidade de se multiplicar em personalidades menos banais, Sá-Carneiro poderia mesmo fazer coro a Álvaro de Campos em seus pressentimentos tão procedentes, pelo menos no que se refere a essa tendência da arte moderna:
Ver as cousas até ao fundo...
E se as cousas não tiverem fundo?
Ah, que bela a superfície!
Talvez a superfície seja a essência
E o mais que a superfície seja o mais que tudo
E o mais que tudo não é nada.[61]
A poesia de Sá-Carneiro revela, enfim, a opção por uma “horizontalidade” poética, onde o duplo sentido da superfície, a continuidade do avesso e do direito substituem a altura e a profundidade, transformadas em imagens reincidentes e problemáticas em seus poemas. Em seus versos já não há nada atrás da cortina, salvo misturas inomináveis, nada acima do tapete, salvo o céu vazio. Como diz Deleuze, “o sentido aparece e atua na superfície, de maneira a formar letras de poeira ou como um vapor sobre um vidro em que um dedo pode escrever”.[62] Explica o poeta: “É que há Arte que se aprecia melhor antes de se procurar compreendê-la. Pressentir é mais que sentir” — estranha observação para um suposto “sensacionista”, embora coerente com os seus princípios, pois:
Para mim basta-me a beleza — e mesmo errada, fundamentalmente errada. Mas beleza, beleza retumbante de destaque e brilho, infinita de espelhos, convulsa de mil cores — muito verniz e muito ouro: teatro de mágicas e apoteoses com rodas de fogo e corpos nus. Foi esta a mira da minha obra.[...] E debruço-me então perdido sobre as minhas páginas impressas: não a ver se elas estão “erradas” — pouco importaria — mas a ver se na verdade fascinariam por seus lavores coloridos a criança febril que as folheasse: como eu horas esquecidas aos 9 anos passava lendo e relendo “Gil Brás de Santilhana”: porque a edição era ilustrada com litografias multicores.[...]Certo céu azul de uma delas, juro-lhe, nunca o esqueci. [63]
Nas suas propostas para o terceiro milênio, Ítalo Calvino comenta como a estratégia da leveza parece essencial à sobrevivência da arte:
Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu deveria voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle. No universo infinito da literatura sempre se abrem outros caminhos a explorar, novíssimos ou bem antigos, estilos e formas que podem mudar nossa imagem do mundo.[64]
No conto dedicado a Santa-Rita, Sá-Carneiro oferece o que poderia ser considerado um instantâneo de si mesmo e do amigo, contrapontos que foram em vida: “Vês tu: nem teve fim a nossa vitória. Pois eu não fixei apenas o instante luminoso. Fiz mais: desci da vida — hoje sou eu próprio a auréola. Sou o Instante. Estilizei-me em tempo. Parei.”
Flecha de Zenão — instante estilizado, paradoxalmente imóvel, na era da velocidade febril —; “auréola” em si mesmo, numa época em que a perda da aura da obra de arte sequer começara a ser discutida, Sá-Carneiro talvez já desconfiasse do céu como um limite, e da modernidade como intrínseca e fatalmente suicidária. Como diz Eduardo Lourenço:
Os românticos suicidaram-se para escalar o céu. Os simbolistas para regressar ao limbo mais consolante do que a vida real. É do interior da vida real, da vida real cada vez mais próxima do sonho, que Sá-Carneiro se mata, em pleno coração da modernidade eufórica de Paris, sublinhando nela, até à metáfora, a sua indiferença de capital sem lugar para a Morte como derradeira âncora do Sentido. No future para o Sentido, foi o que Sá-Carneiro absorveu...[65]
Não só Sá-Carneiro com o suicídio, mas Santa-Rita com a voluntária destruição de sua obra, parecem absorver o élan mortel da modernidade, como se já visualizassem o futuro como um muro contra o qual o Sentido se estatelaria, e pressentissem que, para além do azul do “novo” céu, já não haveria certezas. Pois, como diz Lourenço — não tão entusiasmado quanto Martin Jay a respeito das “novas visões que estão por vir”[66]— já não é possível “virar a esquina da modernidade para qualquer restauração do Sentido nela perdido, glosado ou esquecido sem tropeçar no Morto, eternamente sem sepultura, como a um suicida sacralmente é devido”.
Eis o auto-retrato em duplo.
Notas