Karl Erik Schøllhammer
PUC-Rio
atelier
Caipirinha vestida de Poiret
A preguiça paulista reside nos teus olhos
Que não viram Paris nem Piccadilly
Nem as exclamações dos homens
Em Sevilha
à tua passagem entre brincos
Locomotivas e bichos nacionais
Geometrizam as atmosferas nítidas
Congonhas descora sob o pálio
Das procissões de Minas
A verdura no azul klaxon
Cortada
Sobre a poeira vermelha
Arranha-céus
Fordes
Viadutos
Um cheiro de café
No silêncio emolduradoOswald de Andrade. Pau-Brasil
Entre as experiências dos artistas plásticos brasileiros durante as primeiras décadas do século e as idéias de poetas, escritores e críticos modernistas, corre um fluxo constante e visível que acaba dando ao modernismo brasileiro o caráter de movimento cultural. Neste ensaio, observaremos alguns contatos e afinidades que conduzem o movimento no período que começa alguns anos antes da Semana de Arte Moderna até a culminação com o Manifesto Antropófago de 1928.
Sem dúvida, não seria ousado demais dizer que os artistas plásticos foram – através de seu exemplo concreto e aglutinador – importantes inovadores do pensamento crítico modernista, já que romperam com os códigos anteriores e redefiniram, de maneira revolucionária e antropofágica, a construção histórica da identidade cultural brasileira. Discutir a troca de influências entre as artes visuais e a literatura no movimento modernista não é novidade para a crítica literária, já que, para os modernistas, o próprio esforço artístico de criar uma expressão inovadora da tradição significava romper as fronteiras entre gêneros e disciplinas. Assim, letras e artes se aproximaram, cúmplices, superando ao mesmo tempo o discurso realista e a imagem mimética. A imagem se “textualizava” na procura de uma linguagem pictórica renovadora da herança do naturalismo, e o texto poético incluía elementos sonoros e visuais em busca de efeitos sinestéticos que refletiam uma sensação mais íntegra, plena e sensual da moderna realidade urbana. As palavras-chave foram simultaneidade e sinestesia1, ou seja, a possibilidade de produzir na poesia e na arte os efeitos – experimentados nas novas técnicas audiovisuais, na fotografia, no cinema, no rádio e nos meios de comunicação incipientes, como o telégrafo – próprios de uma percepção aguda da vida urbana em imagens fugazes em movimento frenético. Mário de Andrade adotou esta idéia no “Prefácio Interessantíssimo” do Paulicéia Desvairada (1922), na invenção do “desvairismo” de teor visivelmente futurista. Assim também o estilo telegráfico e cubista de Oswald de Andrade em Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) e no Serafim Ponte Grande (1924) – escritos de maneira fragmentária e polifônica, descontínuos e metonímicos – ofereceram uma expressão suprema desta vertente no Brasil.
Mas é importante destacar que esse intercâmbio entre as artes visuais e os poetas brasileiros, no movimento modernista, se destacou por motivos que iam além do mero interesse de inovação estilística e expressiva. Juntos, eles partiam para uma revalorização da iconografia nacional, buscando elementos constitutivos para uma expressão genuína da identidade nacional numa linguagem moderna e universal e, ao mesmo tempo, arcaica, primitiva e nacional. Nesta ambigüidade criativa, o movimento modernista se catalisava entre, por um lado, a vontade de transgressão da tradição, e, por outro, o desejo de recuperação redentora da mesma.
No prefácio da segunda edição do livro A Querela do Brasil (Zílio, 1977), o autor Carlos Zílio modifica a interpretação do movimento modernista brasileiro nas artes plásticas como expressão de uma ruptura radical com o Academismo do século XIX e com a herança do Neoclassicismo – da Missão Francesa, em particular, representada pela pintura de Debret e de seu discípulo brasileiro, Araújo Porto Alegre.
Para Zílio existe, apesar da retórica modernista de “ruptura”, uma continuidade desde Araújo Porto Alegre – que, ao fundar a Escola Brasileira de Pintura, inaugurou também a vertente “nacionalista” na pintura brasileira – até os programas modernistas do Pau-Brasil e da Antropofagia, considerados suas máximas expressões teóricas. Sem romper com o estilo acadêmico, Porto Alegre tentou introduzir uma temática histórica de origem romântica que criava “uma imagem afirmativa para um país recém-independente, que foi encontrar em Vitor Meireles e em Pedro Américo os seus mais importantes representantes.” (p.10) O projeto de Porto Alegre, cujo centro institucional foi a Imperial Academia de Belas Artes, visava a aproximar o sistema artístico nacional daquele que existia na cultura oficial dos principais países ocidentais. A importância desta observação de Zílio está na insistência numa continuidade entre, por um lado, o que ele chama “o sentido messiânico” dos projetos de Debret e de Porto Alegre, que se nutriam de um nacionalismo romântico, e, por outro, a procura redentora dos modernistas pela origem autêntica da nação: “Pode-se afirmar que já emerge da Academia o substrato dos princípios modernistas do progresso (atualização) e de identidade nacional (nacionalismo). A diferença com o Modernismo está apenas na mudança de cânones, na troca do Neoclássico pelo Pós-cubismo.” (p.4)
Deste modo, o modernismo evoluía dividindo-se entre duas ambições artísticas: em primeiro lugar, pretendia aproximar a arte moderna do racionalismo da sociedade industrial, começando por adotar o ideário futurista, para romper com a tradição do Academismo e do Neoclassicismo; em segundo lugar, tentava construir uma identidade nacional fundada na recuperação do elemento primitivo, arcaico e bárbaro, explorado pelo caminho expressivo do cubismo, da história cultural do país, redimindo, assim, a tradição. O processo estético que testemunhamos entre os modernistas e que culminou em 1928 com o Manifesto Antropófago produziu um amálgama de influências expressionistas, fauvistas, futuristas, cubistas e pós-cubistas, que aglutinava primitivismo e racionalismo, criando um instrumento capaz de “sintetizar o desejo de progresso com o da afirmação nacional.” (p.11)
A grande diferença entre o projeto de Porto Alegre e o do Modernismo quanto à questão nacional sintetiza-se na concepção do “nacional”, pois, se para Porto Alegre o “nacional” se encontrava estaticamente presente numa iconografia temática e histórica, para os modernistas a brasilidade apenas era perceptível como um impulso humano, um gesto sintetizador, numa criatividade vital, numa expressão genuína ou, enfim, numa linguagem dinâmica que estaria contida virtualmente em todos os recantos da vida brasileira: na música, na comida, na religiosidade, no erotismo, nas cores, na natureza, na dança, na história etc.
Na pintura modernista, como vamos conferir a seguir em Tarsila do Amaral, o nacional deixou de ser simbolizado por uma simples iconografia histórica e paisagística, e veio procurar uma expressão genuína, uma linguagem autêntica do substrato cultural que ultrapassaria o referente realista e naturalista, incorporando elementos imaginários, oníricos e míticos.
Entre poetas e artistas plásticos: o expressionismo
O início do movimento modernista no Brasil é, normalmente, situado a partir de 1917, quando a pintora Anita Malfatti – recém chegada de estudos na Europa e nos EUA – expõe pela primeira vez seus quadros, de nítida inspiração expressionista: O Homem Amarelo, A Estudante Russa e Mulher de Cabelos Verdes. Quatro anos antes, o público paulista já havia recebido Lasar Segall, cuja pintura não provocou maior debate, apesar dos traços estilísticos expressionistas do pintor lituano – que mais tarde voltaria ao país para se estabelecer e, durante décadas, deixar sua marca característica no desenvolvimento da pintura nacional. A tímida reação à exposição de Segall foi explicada por Mário de Andrade2 (1972, p.17) como um sintoma de imaturidade do público paulista. A reação violenta, por sua vez, contra a exposição de Malfatti – passados apenas quatro anos – se explicaria, talvez, mais pelo fato de ela ser uma brasileira e, portanto, alvo mais frágil e, óbvio, diferente de um estrangeiro visitante, de quem se podia aceitar um modismo extravagante, porém inofensivo. O ataque contra Malfatti foi orquestrado por Monteiro Lobato, através de uma resenha violenta, sob o título “Paranóia ou Mistificação” que, além de unir o público conservador em defesa de valores pictóricos miméticos, acadêmicos e tradicionais, como deixou também um efeito contrário, imprimindo um “espírito de corpo” entre os simpatizantes das novas idéias estéticas e formando, assim, uma semente para o posterior movimento. Neste sentido, Monteiro Lobato, ironicamente, foi um grande responsável pela união entre poetas, escritores e pintores em torno de idéias estéticas ainda muito vagas, mal desenvolvidas e bastante contraditórias entre si. A própria reação de Mário de Andrade confirma a incompreensão inicial em relação às experiências de Anita. Aliás, incompreensão testemunhada pela própria pintora, profundamente ofendida ao ver um visitante gargalhar descontroladamente diante de seu quadro O Homem Amarelo (Andrade, 1974, p.16). O visitante era Mário de Andrade, que se desculpou. E, ali, naquele mesmo momento, depois das desculpas e explicações, teve início a grande amizade entre Anita e Mário. Difícil saber o significado desta gargalhada, mas, como o poeta mais tarde dedicou um soneto parnasiano (sic!) ao quadro, parece que ainda não havia, de fato, uma compreensão adequada do fenômeno expressionista.
Este episódio não é o único exemplo anedótico do diálogo entre a expressão plástica e a inspiração literária dos poetas modernistas. Mário de Andrade, nos anos quarenta, num ensaio retrospectivo, conta como descobriu Brecheret junto com Oswald de Andrade e Menotti del Picchia em 1920, e o que isso significou para ele em termos de revelação poética: “E fôra o deslumbramento. Levado em principal pelas ‘Villes Tentaculaires’, concebi imediatamente fazer um livro de poesias ‘modernas’, em verso-livre, sobre a minha cidade.” (1974, p.233) Mas o projeto só se concretizou quando Brecheret deu um busto em gesso a Mário e, para espanto geral de sua família, ele gastou uma pequena fortuna para passar em bronze tal Cabeça de Cristo: “Não sei o que me deu. Fui até a escrivaninha, abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara, ‘Paulicéia Desvairada’. O estouro chegara afinal, depois de um ano de angústias interrogativas. Entre desgostos, trabalhos urgentes, dívidas, brigas, em pouco mais de uma semana estava jogado no papel um canto bárbaro, duas vezes maior talvez do que isso que o trabalho de arte deu num livro.” (ibidem, p. 234)
A consciência de Mário sobre esta passagem, que ele chama de um “estado de arte” para um “estado de poesia”, é um exemplo privilegiado da importância que a expressão plástica teve para a concretização do novo ideário poético dos modernos. Para Mário, o estado de arte era compreendido como uma aguda sensibilidade de “excitações psíquicas e fisiológicas” que encaminhava o poeta para um processo subconsciente e espontâneo de criatividade ou de automatismo poético num estouro de “escrever sem coação de espécie alguma tudo o que me chega até a mão – a ‘sinceridade’ do indivíduo. E só em seguida, na calma, o trabalho penoso e lento da arte – a ‘sinceridade’ da obra-de-arte, coletiva e funcional, mil vezes mais importante que o indivíduo.” (ibidem, p.234, nota) A idéia de Mário aponta para uma influência de Freud e da poética surrealista, mas, sobretudo, explica a importância inicial do expressionismo que veio, no contexto alemão, dos grupos der Blaue Reiter, die Brücke e Neue Sachlichkeit, e no contexto francês, do grupo Fauves – por meio dos pintores Segall e Malfatti –, e cuja teoria plástica se baseava na autenticidade de uma expressão subjetiva fundada na identificação sensual, inconsciente mas sempre concreta com o substrato artístico, cultural e histórico do objeto da representação. O expressionismo rompeu com a carga representativa, dando ao quadro uma nova autonomia e auto-suficiência como realidade em si.
Teoricamente, a autonomia do quadro baseava-se na suposição de uma profunda identidade ou analogia entre a estrutura do objeto e do sujeito numa espécie de continuidade, que só o mergulho no impulso do gesto artístico poderia revelar. Ao contrário do impressionismo, que se aprofundava no contato perceptivo e sinestético entre sujeito e realidade, o expressionismo procurava um vínculo fenomenológico entre a corporalidade do artista e a materialidade concreta de seu objeto, que autorizava a expressão do objeto pela sensibilidade espontânea de sua criação. Não se tratava de “subjetivar” a representação pela sensibilidade perceptiva do artista, mas de “objetivar” a expressão subjetiva no encontro impulsivo com a profunda realidade sociocultural de ambos. Assim, o expressionismo permitia explorar o sentimento artístico de “estranhamento” ou de “mal-estar da cultura” diante da realidade histórica – como, tipicamente, no expressionismo alemão – e, também, permitia que um artista latino-americano reencontrasse, em sua própria terra, uma herança cultural oblíqua em forma de um gesto artístico, de um imaginário coletivo, de uma linguagem espontânea da sua independência inaugural.
Numa resenha publicada em 1918, logo depois do encerramento da exposição de Anita, Oswald de Andrade expressa uma compreensão precisa do fenômeno expressionista dentro do contexto brasileiro:
Onde está a realidade, perguntarão, nos trabalhos de extravagante impressão que ela expõe?
A realidade existe mesmo nos mais fantásticos arrojos criadores e é isso justamente o que os salva.
A realidade existe estupenda, por exemplo, na liberdade com que se enquadram na tela as figuras número 11 e número 1 (O Homem Amarelo e Lalive), existe impressionante e perturbadora, na evocação trágica e grandiosa da terra brasileira que é o quadro 17 (Paisagem de Santo Amaro), existe, ainda, sutil e graciosa, nas fantasias e estudos que enchem a exposição. (Oswald de Andrade, 1992, pp.141-3)
“A Caipirinha de Poiret”: Tarsila de Amaral
Durante a Semana de Arte Moderna, as artes plásticas foram representadas por uma exposição no saguão do Teatro Municipal de São Paulo de oito pintores, entre os quais destacam-se Malfatti, Di Cavalcanti, Rego Monteiro e – a grande unanimidade entre todos os críticos – Vitor Brecheret. Tarsila do Amaral, que na época estudava em Paris com os acadêmicos Renard e Julien, não participou da Semana e só tomou conhecimento dos eventos pelas cartas que trocava com a amiga Anita Malfatti.
Em 1922 Tarsila foi admitida no Salon de la Societé des Artistes Français com o quadro Figura (que, por este motivo, mais tarde ela apelidaria de O Passaporte). Alguns meses depois da Semana, Tarsila voltou para São Paulo. Foi quando conheceu Oswald de Andrade, passando a fazer parte do “Grupo dos Cinco”, ao lado de Anita Malfatti, Menotti del Picchia e os Andrades: Mário e Oswald.
A convivência com os modernistas teve grande influência sobre Tarsila, que lê Paulicéia Desvairada deslumbrada pelo exemplo poético. Ela passa a emprestar seu atelier para as reuniões do grupo. Neste mesmo ano, Tarsila volta a Paris, agora já sem ambições acadêmicas, em companhia de Oswald de Andrade, que a apresenta aos artistas da vanguarda cubista: André Lhote, Albert Gleizes, Constantin Brancusi e, finalmente, Fernand Léger. Estuda com Lhote durante três meses, depois um mês com Léger, e comenta, numa carta, sua intenção de tomar aulas com Gleizes neste ano de 1923. Finalmente, resolve estudar por conta própria.
Durante uma visita ao atelier de Brancusi, Tarsila fica fortemente impressionada com a estátua La Négresse, que a inspira para o quadro A Negra – marco fundamental de sua nova orientação para os temas brasileiros. De fato, A Negra de Tarsila já demonstra um novo interesse pelos temas primitivos e por um novo naturalismo, numa linguagem cubista de apuração das formas. O quadro marca uma característica simplicidade figurativa, formas e planos sem profundidade, já com aquele traço arcaico e onírico que, posteriormente, veio a caraterizar a pintura de Tarsila. A atração pelo tema do “primitivo” se reafirma e se aprofunda no ambiente parisiense agitado em torno de uma verdadeira “febre negra”. Naquele ano, Tarsila assiste a uma retrospectiva do pintor uruguaio Pedro Figari, com forte presença de temas da cultura negra latino-americana e, sobretudo, do candomblé. Paul Gauguin abre uma retrospectiva de pintura primitivista da Indonésia e Tarsila assiste também a uma exposição de Art Nègre com participação de obras emprestadas por Lhote e Paul Poiret – amigo e designer preferido de Tarsila (Rasmussen; 1993, p.54). Se a pintora brasileira também assistiu a shows de Josephina Baker, não sabemos3, mas seu interesse pela redescoberta dos elementos da cultura negra na sua própria infância na fazenda junto a empregadas negras recebeu um estímulo forte do entusiasmo francês pelo exótico africano.
Oswald e Tarsila ficam amigos de Blaise Cendrars, que os apresenta a outros artistas e intelectuais europeus como Jean Cocteau, Jules Romain, Sonia e Robert Delaunay. O poeta suíço Cendrars vem no ano seguinte ao Brasil e parte, em companhia de Oswald, Tarsila e um grupo de amigos, para uma viagem de “descoberta” do interior do país e para o carnaval do Rio de Janeiro. Vão juntos para as cidades históricas de Minas Gerais à procura da herança artística das igrejas coloniais, das obras de Aleijadinho e da pintura naïf da região.
Para os modernistas a viagem foi de grande importância para a reaproximação da paisagem e da arquitetura brasileira visando a valorizar tanto o universo figurativo nacional como a iconografia tradicional como fundamento para uma criatividade moderna e inovadora. Deste modo, Oswald se distanciou daquele pintor acadêmico brasileiro imaginado e descrito por ele no artigo “Em prol de uma pintura nacional”, já em 1915.(Pirralho 168, ano 4, 2-1, 1915) (Oswald de Andrade; 1992, pp.141-3) Com grande ironia, cria uma caricatura do estudante de pintura que, chegando de Paris, não consegue mais apreciar os motivos e as paisagens brasileiros: “Diante da passagem o nosso homem choca-se então positivamente: – Oh! Isto não é paisagem! Que horror, olha aquele maço de coqueiros quebrando a linha de conjuntura.” Além da crítica e do desejo modernista de libertar-se esteticamente das tradicionais escolas européias, o artigo contém a visão que Tarsila realizaria de uma nova arte nacional, extraída dos “tesouros do país, dos tesouros de cor, de luz, de bastidores que os circundam, a arte nossa que afirma, ao lado do nosso intenso trabalho material de construção de cidades, e desbravamento de terras, uma manifestação superior da nacionalidade.” (ibidem)
Se o início do “estouro” modernista foi marcado pelo expressionismo atrevido de Anita Malfatti, depois da Semana, e ao longo da década de 20, foi Tarsila do Amaral quem, com sua pintura, melhor caracterizou as diferentes etapas da evolução modernista no Brasil. Tarsila não só conseguiu absorver as tendências européias com liberdade criativa e dirigir-se para uma ruptura com as formas tradicionais acadêmicas, como também, e sobretudo, foi capaz de superar a influência cubista que recebera em Paris de Léger, Lhote e Gleizes, sem desprezar a descoberta do primitivo – que lhe propiciou o ambiente parisiense –, fazendo dessa aquisição um passo importante para o encontro fundamental com sua própria brasilidade.
Em carta à família, datada de 1923 (Amaral; 1975, v.I, p.69), Tarsila menciona a renovação de seu interesse pelos temas brasileiros como um poderoso catalisador de uma memória infantil de formas e cores ligadas à sua própria formação na fazenda da família no interior de São Paulo:
Sinto-me cada vez mais brasileira: quero ser a pintora da minha terra. Como agradeço por ter passado na fazenda a minha infância toda. As reminiscências desse tempo vão se tornando preciosas para mim. Quero, na arte, ser a caipirinha de São Bernardo brincando com bonecas de mato, como no último quadro que estou pintando. (Amaral; 1975, v.I, p.84)
A orientação para a importância dos temas primitivos se formula com clareza por Oswald em 1923, num discurso na Sorbonne sobre “O esforço intelectual do Brasil contemporâneo”. Aqui, o poeta destaca o atributo da cultura africana na cultura brasileira – “O negro é um elemento realista” – e mostra a vitalidade que a arte européia recebe das fontes não-européias através de artistas como Picasso, Derain e Lhote. Oswald rejeita aqui os artistas da Missão Francesa que “dirigiam nossa pintura por uma vereda do velho classicismo deslocado que fez até nossos dias uma arte sem personalidade. Na pintura como na literatura, a lembrança das fórmulas clássicas impediu longamente a livre eclosão de uma verdadeira arte nacional.”(Oswald; 1992, p.38) Finalmente, Oswald realça o cubismo como a inspiração que permitiu que pintores brasileiros – citando Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Zina Aita, Rego Monteiro, Tarsila do Amaral e Yan de Almeida Prado – se libertassem “da arte imitadora dos museus” e se lançassem em direção a “uma pintura realmente brasileira e atual.” (ibidem, p.38)
Numa carta a Tarsila, desta mesma época, fica evidente, porém, que Mário não compartilhava do mesmo entusiasmo de Oswald pelo cubismo, ainda que fosse um sincero admirador de André Lhote (de quem acabou mesmo comprando o quadro Futebol). Mas, independente disso, Mário reforçou sempre para Tarsila e Oswald a importância da busca do “Brasil profundo” – na natureza, na população e na cultura de origem:
E se fizeram futuristas!! hi! hi! hi! Choro de inveja. Mas é verdade que considero vocês todos uns caipiras em Paris. Vocês se parisianaram na epiderme. Isto é horrível! Tarsila, volta para dentro de ti mesma. Abandona o Gris e o Lhote, empresários de criticismos decrépitos e de estesias decadentes! Abandona Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para a mata-virgem, onde não há arte negra, onde não há também arroios gentis. HA MATA VIRGEM. Criei o matavirgismo. Sou matavirgista. Disso é que o mundo, a arte, o Brasil e minha queridíssima Tarsila precisam. (apud Amaral; 1975, p.110)
Mas a convergência entre os três sobre os temas nacionais, ao lado do interesse que o tema brasileiro e latino-americano despertava no ambiente parisiense, acrescido do deslumbramento experimentado durante a viagem às cidades coloniais de Minas, cristalizou, em 1924, O Manifesto da Poesia Pau-Brasil – texto redigido por Oswald e que dá nome e início à fase mais fértil na pintura de Tarsila, culminando no Manifesto Antropófago4, quatro anos depois, e com a célebre e festejada exposição retrospectiva de Tarsila em Rio de Janeiro em 1929.
As primeiras frases do manifesto parecem, sem dúvida, dirigidas – ou, ao menos, inspiradas – na pintura de Tarsila. “A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.” Assim, na redescoberta dos “fatos” simples, as cores, as formas, as linhas, os volumes da paisagem nacional, Tarsila consegue a renovação da sua linguagem artística, absorvendo as inspirações do modernismo francês, devorando-as antropofagicamente, numa inovação com perspectivas que ultrapassam as nacionais.
Em Tarsila conjugam-se, simultaneamente, a atração cubista pelas paisagens urbanas modernas e a procura de uma renovada iconografia nacional na preferência pelos motivos rurais, numa síntese temática e estilística feliz que consegue, por um lado, conciliar as diferenças entre as duas vertentes, funcionalizando racionalmente a composição das paisagens do interior, e, por outro lado, inserindo elementos da natureza brasileira – uma palmeira, um cactos etc. – nos motivos urbanos. Nestes últimos, observamos uma nítida influência de Léger, como uma procura de uma pintura à altura e adequada ao desenvolvimento da moderna cidade industrial e técnica, impregnada de uma confiança construtivista para com a ordem e a organização desta sociedade do futuro expressa na harmonia, na simplicidade e no equilíbrio dos elementos pictóricos. Em quadros com E.F.C.B. (Estrada de Ferro Central do Brasil) (1924), São Paulo (135831) (1924), São Paulo (Gas) (1924) e A gare (1925), vemos a inclinação para estações de trem, postos de gasolina, pontes, prédios modernos, torres, guindastes, instalações elétricas e caminhões em paisagens urbanas sempre compostas com alta simplicidade, usando formas geométricas quase infantis e um colorido vivo e alegre. Uma palmeira ou uma discreta igreja tradicional assina no quadro a tropicalidade, mas o espaço urbano em geral, como nos quadros de Giorgio de Chirico, é vazio, sem vida e sem humanidade. Assim, o equilíbrio e a tranqüilidade traduzem uma utopia de perfeição industrial possível, uma tecnologia soft – quase um “brinquedo” – perfeitamente integrada na paisagem e um preenchimento do espaço que indica uma totalidade íntegra entre os componentes e o todo.
Outros quadros, por sua vez, incorporam a realidade caótica das cidades brasileiras, como Morro da Favela e Carnaval de Madureira, do mesmo ano crucial de 1924, e O Mamoeiro, de 1925. Aqui vemos o povo brasileiro, seus animais e seus barracos dentro de uma urbanização cheia de graça, também fazendo parte, harmoniosamente, da natureza. Também em Feira II a exuberância das cores – amarelo, verde e vermelho – dentro de um desenho geometrizado quase esquemático enfatiza a sensação de ingenuidade e pureza dentro da composição equilibrada e consciente que, embora podendo ter se inspirado na pintura naïf de Rousseau (O Aduaneiro), no contexto de Tarsila transmite um desejo claro de unir o elemento racional e confiante da modernidade – proposto por Léger – à busca de uma linguagem apurada e simples – expressão privilegiada do primitivo brasileiro.
Ainda que este projeto de síntese se realize para Tarsila com muita eficiência na fase Pau-Brasil, é só em 1928 que sua exploração das possibilidades pictóricas, de fato, culmina. No quadro Lagoa Santa, de 1925, nota-se já que o motivo do interior adquire uma dimensão estranha, quase fantástica, pela presença das estacas em verde-escuro, ocre e marrom, que atrapalham a visão do espectador da paisagem interiorana, cujos volumes estilizados predominam sobre o aspecto realista e mimético do desenho. Começa aqui, portanto, uma pesquisa de “purificação” das formas iconográficas que acaba rompendo, de vez, com a figuração realista, revelando uma dimensão onírica e mítica na evolução temática e uma nova magia na simplicidade alcançada através de cores e formas figurativas.
Em 1928, Tarsila pinta o quadro que conclui a fase Pau-Brasil. Oswald, que recebe o quadro como presente de aniversário, batiza-o de o Abaporu (na língua tupi-guarani, aba: homem; porú: que come), e esta tela se torna, então, o símbolo absoluto do movimento antropofágico que se articula alguns meses depois com o Manifesto Antropófago. O Abaporu também mostra a importância da linguagem figurativa encontrada por Tarsila inicialmente no quadro A Negra, e de novo aparecem as formas gigantescas, arredondas e voluptuosas forçando a dimensão e a figuração ao limite do absurdo e evocando motivos arquetípicos.
Tarsila descreve seu Abaporu como “uma figura solitária monstruosa, pés imensos, sentada numa planície verde, o braço dobrado repousando num joelho, a mão sustentando o peso-pena da cabecinha minúscula. Em frente, um cacto explodindo numa flor absurda” (Amaral; 1975, p.249) Ainda mais estilizado, vem, a seguir, seu Urutu (Cobra), pintado em apenas quatro cores – verde, azul, lilás e vermelho – e mostrando um ovo branco enorme envolvido por uma cobra. No ano seguinte, Tarsila pintaria o quadro Antropofagia, no qual o Abaporu encontra-se, explicitamente, com A Negra, e Sol Poente, que, sem perder a figuratividade, descreve paisagens tropicais imaginárias: árvores geometrizadas, corpos humanos pré-históricos e animais fantásticos, estranhamente, compondo a paisagem. Em O Lago (1928) a pintora abandona a profundidade abstrata de Distância (1928) e revela uma paisagem estilizada e fantástica tornando concretude sensual e exuberante. O mesmo acontece em Cartão Postal (1929), cujos animais alegres evocam o Macunaíma lançado por Mário de Andrade no mesmo ano – e, assim, o poeta e a pintora se acompanham na exploração da dimensão mágica e mitológica dos temas brasileiros. Ainda em 1929, essa mesma tendência se aprofunda estilisticamente no quadro A Floresta, uma paisagem de palmeiras que circunda um monte de ovos enormes pintados em cor-de-rosa: promessas de um futuro novo ou resíduos de um passado arcaico?
O fim da antropofagia pictórica
Nas paisagens simbólicas da Tarsila dos anos da antropofagia reconhecemos fortes impulsos surrealistas. A pintora conheceu o movimento surrealista em Paris através dos quadros de Jean Arp, Yves Tanguy e Joan Miró e adaptou as formas “biomórficas” (Day & Sturges; 1987, p.70) que ofereciam para ela um nexo entre a investigação da brasilidade e a dimensão inconsciente de sua memória afetiva. É assim que nas formas estilizadas do Ovo vislumbra-se, conjugada, a força enigmática e estática de um desconhecido ovo pré-histórico e a mobilidade sinuosa da cobra que abraça o ovo, num misto de desejo e ameaça, que se traduz, formalmente, em tensão figurativa. Assim, também, a estranha paisagem do Abaporu evoca uma iconografia surrealista tropical aliando uma técnica simples e quase gráfica a conteúdos libidinosos e arcaicos.
A trajetória de Tarsila nos anos 20 marca, claramente, a força criativa da exploração dos temas nacionais, absorvidos, digeridos e metabolizados antropofagicamente numa linguagem híbrida e livremente inspirada em tendências estéticas européias como cubismo, primitivismo, pós-cubismo e surrealismo. Sem dúvida, Tarsila cumpriu o programa antropofágico, no sentido de encontrar um gesto diferente e original partindo da livre devoração dos impulsos estrangeiros. Nesse sentido ela expressou perfeitamente a liberdade criativa conquistada no rompimento com a submissão às idéias importadas do Velho Mundo. Por outro lado, talvez a procura de Tarsila alcance o seu limite em 1929, data em que parece estacar tanto o movimento antropofágico quanto o casamento da pintora com Oswald de Andrade. É como se Tarsila se deparasse com um esgotamento das possibilidades no primitivismo que se reflete, então, nessa fase surrealista. Outros artistas, como Di Cavalcanti, Brecheret, Portinari, Rego Monteiro, Dias, Segall, e a própria Tarsila, nos anos seguintes, partiram para um outro tratamento dos temas brasileiros – agora mais inclinado à dimensão histórico-social. Mas isso é uma outra história.
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Notas