"É preciso ser absolutamente moderno"?

Caminhos da modernidade: Antero, Pessoa, Campos, Nemésio

Fátima Freitas Morna
Universidade de Lisboa

Ao publicar, em 1968, o seu Violão de Morro, o poeta português Vitorino Nemésio, que se considerava “carioca de aposento”, dedicou-o “a seus amigos cariocas, de raiz ou adoptivos” e, entre eles, a “D. Cleonice Berardinelli”[1]. Eu, que não tenho violão, quero aproveitar esta oportunidade para agradecer à Professora Cleonice Berardinelli, não só a possibilidade de participar nesta reflexão interdisciplinar acerca da modernidade, mas também tudo quanto nós, portugueses, com ela aprendemos acerca da literatura portuguesa, isto é, tudo quanto nos ensinou sobre nós próprios.

Enfrentar o desafio contido na afirmação de Rimbaud que o título deste encontro interroga — “É preciso ser absolutamente moderno”? — significa, de certo modo, começar pelo princípio e refazer a pergunta que tão insistentemente marcou os últimos dois séculos da cultura ocidental: o que é, afinal, o moderno? Ora, todos sabemos como a semelhante pergunta, daquelas que tocam as raias do indefinível, convém, sobretudo, a resposta indirecta mas luminosamente esclarecedora que só uma parábola pode dar: “o reino dos céus é como ...”. E, embora Baudelaire não seja Cristo, é sempre a ele que regressamos ao tentar traçar um mapa que nos permita reconhecer o território de alguma modernidade:

Ainsi il va, il court, il cherche. Que cherche-t-il? A coup sûr, cet homme, tel que je l’ai dépeint, ce solitaire doué d’une imagination active, toujours voyageant à travers le grand désert d’hommes, a un but plus élevé que celui d’un pur flâneur, un but plus général, autre que le plaisir fugitif de la circonstance. Il cherche ce quelque chose qu’on nous permettra d’appeler la modernité; car il ne se présente pas de meilleur mot pour exprimer l’idée en question.[2]

De facto, ao traçar nestas palavras o perfil do termo modernidade (que ele próprio estava, nesse momento, a cunhar como se fosse novo), Baudelaire fixou nelas a imagem que, analogicamente (como convém aos filhos do barro[3] que, desde a alba romântica, todos nós somos), melhor e mais impressivamente nos figura o cerne dessa categoria em construção. Ser moderno é, sem dúvida, procurar quelque chose, alguma coisa a colocar no lugar vazio de muitas outras que o tempo corroeu e elidiu. Deixou, por isso, de ser possível aprender tudo com os velhos mestres, porque não se encontra neles “le caractère de la beauté présente”[4]— e é esse que interessa ao pintor moderno. Ao afirmá-lo, instala-se, definitivamente, como medida de todas as coisas a mais determinante das fracturas que do mundo velho separaram o mundo novo, aberto a pulso pelos românticos. Que essa fractura se situe no plano da concepção do tempo, é o que todos sabemos e bastariam, de novo, as palavras de Baudelaire para o comprovar:

Le plaisir que nous retirons de la représentation du présent tient non-seulement à la beauté dont il peut être revêtu, mais aussi à sa qualité essentielle de présent.[5]

A progressiva importância do presente, a sua “qualidade essencial” é decerto uma das linhas de força que movem as alterações profundas, não só no plano estético, que levam o século XIX ao encontro daquilo a que chamamos modernidade. Num dos seus melhores poemas, escrito no início da década de 20 do século passado, dizia Garrett: “O presente está no meio, como o ponto no centro do círculo; mas a sua existência é quimera”[6]. Esse seu presente, no entanto, diluído entre passado e futuro, vivia da estabilidade relativa garantida pela concepção de um tempo absoluto pelo qual ele se aferia, um tempo absoluto ao qual um romântico como Garrett podia, ainda, chamar eternidade. O tempo humano relativizava-se, sobretudo, em relação a esse absoluto, não em relação a si mesmo. Estava, todavia, introduzida na consciência ocidental a suspeita de que, algures, na subversão do pensamento acerca da categoria temporal, do tempo enquanto categoria de pensamento, era lá que tudo se iria passar.

À poesia confiou-se então, como sempre, a indagação dos caminhos obscuros através dos quais conviria seguir em perseguição de quelque chose, em busca, digamos, da possibilidade de fixar por um momento o tempo, sim, mas respeitando uma fidelidade nova, ou novamente interpretada: a desejada fidelidade ao “caractère de la beauté présente”. Preguiçosos, chamava Baudelaire aos pintores seus contemporâneos que continuavam a vestir as personagens dos seus quadros “à antiga”, recusando o esforço exigido pela busca daquilo que, na banalidade ou mesmo na fealdade do vestuário do seu quotidiano, permitia aceder à “beauté mystérieuse qui y peut être contenue, si minime ou si légère qu’elle soit”[7] A parábola do pintor Constantin Guys continua a servir: pode ser perfeito o que herdámos, só não temos o direito, nós, modernos (quer queiramos quer não), de continuar a fazer idêntico, a reproduzir as marcas de outros no tempo, porque esse era o tempo deles, e por mínima ou ligeira que seja, a nossa marca é a única possível, se queremos jogar o jogo, perdido à partida mas não inútil, da pegada deixada no tempo:

La modernité, c’est le transitoire, le fugitif, le contingent [...] Cet élément transitoire, fugitif, dont les métamorphoses sont si fréquentes, vous n’avez pas le droit de le mépriser ou de vous en passer. En le supprimant, vous tombez forcément dans le vide d’une beauté abstraite et indéfinissable, comme celle de l’unique femme avant le premier péché.[8]

Que a beleza “abstracta e indefinível” esteja de tal maneira em crise à passagem para a segunda metade do século XIX, não é coisa que surpreenda o leitor desse mesmo Baudelaire que, à Eva impoluta do paraíso bíblico, preferiu, definitivamente, as flores do mal. Mas o horror do vazio que essa beleza abstracta e indefinível inspira, esse, sim, ensina-nos muito mais acerca da premente inscrição do tempo na expressão artística, para cuja necessidade ele aponta. Transitória, fugitiva, contingente, arriscando-se a ser mínima — ou fragmentária, o que será mais perturbante ainda — a beleza moderna só o é, de facto, se conseguir tornar ostensiva a sua temporalidade, se aceitar ser, ela mesma, portadora de tempo, marcando a sua própria morte como horizonte[9], porque só essa marca lhe garante, paradoxalmente, alguma sobrevivência. Como todos os absolutos, a beleza absoluta relativizara-se, a ponto de se tornar insuportável àquele que tantas vezes se disse ter sido o primeiro dos modernos.

A analogia de Baudelaire continua a servir: tal como a figuração anacrónica do vestuário invalida a qualidade moderna do quadro, porque lhe retira o valor comunicacional de um tempo, datado e perecível, mas vivido, assim a fidelidade ao tempo, ao seu tempo, ou melhor, a si próprio no tempo irá adquirindo uma importância progressivamente maior para as antenas sensíveis que registam momentos em palavras, os poetas, filhos do barro e de Shelley, a partir do momento em que Baudelaire colocou nas ruas o seu pintor, o “solitário dotado de uma imaginação activa em constante viagem através do deserto dos homens”.

A questão fundamental da modernidade passa, seguramente, por aqui: representar o tempo, o ser como tempo, em metamorfose constante. Antero de Quental, ao tentar satisfazer o seu prezado tradutor alemão, Wilhelm Storck, fornecendo-lhe as informações biográficas que este lhe solicitara, deixou numa célebre carta, escrita “nesta ilha (que é a minha pátria)” — isto é, em S. Miguel, nos Açores — e datada de 14 de Maio de 1887, um curioso testemunho de como essa questão se insinua em termos insuspeitados por todo o universo da criação artística e, em particular, da criação poética. Depois de tentar sintetizar “o que eu chamarei, embora ambiciosamente, a minha filosofia” (definindo “o ponto nodal e o centro de atracção da grande nebulose do pensamento moderno, em via de condensação” através de termos como “psicodinamismo ou pampsiquismo”), refere-se Antero aos seus Sonetos, dizendo:

Estimo este livrinho dos Sonetos por acompanhar, como a notação dum diário íntimo e sem mais preocupações do que a exactidão das notas dum diário, as fases sucessivas da minha vida intelectual e sentimental. Ele forma uma espécie de autobiografia de um pensamento e como que as memórias de uma consciência.[10]

É, pois, na poesia, nos versos dos Sonetos que Storck e nós, todos os leitores de todos os tempos, podemos encontrar a sua verdadeira autobiografia. Os factos anteriormente arrolados por Antero pesam pouco (nasci aqui, estudei ali, escrevi isto e aquilo); o fundamental, as memórias de uma consciência, essas pesam decerto mais. Serão memórias talvez carentes de marcas óbvias e superficiais do tempo, sem personagens vestidas desta ou daquela maneira, aparentemente omissas até dos menores indícios de figuração objectiva que garanta ao seu sujeito a credibilidade de um corpo, a ilusão de um corpo que só raros sinais apontam. Memórias vazias de quase tudo e que, no entanto, registam as “fases sucessivas da minha vida”, inscrevem um ser no tempo, no percurso labiríntico em que o sujeito se vai construindo como lugar de reflexão, pontual encruzilhada do “pensamento moderno” com um tempo vivido em primeira pessoa. Este sujeito é ainda, dir-se-á, portador de restos vários, de uma imensa nostalgia de absoluto, um absoluto a que tenta dar nome e voz:

Eu não sei quem tu és — mas não procuro
(Tal é a minha confiança) devassá-lo.
Basta sentir-te ao pé de mim, no escuro,
Entre as formas da noite com quem falo.[11]

Esse absoluto, porém, é cada vez mais longínquo e inominado, mergulhando naquela zona de dúvida que não se esgota em referentes (a morte, o inconsciente, o logos, Deus) porventura mais imediatos e que só o paradoxo consegue, por vezes, apontar: o “Não-ser, que és o Ser único absoluto”[12], o “Inconsciente immortal”[13], a “voz, que eu mesmo desconheço”[14]. As imagens de perturbação e incerteza que, literalmente, situam o sujeito num espaço vazio (“a escada multiforme, / que desce, em espiraes, na immensidade”[15], “Nada! o fundo dum poço, humido e morno, / um muro de silencio e treva em torno”[16]) revelam, acima de tudo, essa distância quase intransponível:

Que estranho ser és tu (se és ser) que assim
Me arrebatas contigo e me passeias
Em regiões inominadas, cheias
De encanto e de pavor ... de não e sim ...[17]

A questão parece, agora, hipostasiada: há um outro, fora, antes ou depois, mas sempre além do sujeito — que se lhe dirige como tu — e esse outro, que não cabe nos nomes conhecidos, deverá providenciar a medida pela qual o sujeito se possa subtrair à sua contingência momentânea. Esta poderia ser a versão simbólica — já que, como o próprio Antero afirma, os sonetos ou, pelo menos, alguns deles “representam simbólica e sentimentalmente as minhas actuais ideias sobre o mundo e a vida humana”[18]— de um certo pampsiquismo no qual Antero encontra o “ponto nodal” do “pensamento moderno”. Mas nem tudo se resolve, de facto, nessa equação. Lá dirá com razão Fernando Pessoa, num fragmento possivelmente datado do ano de Orpheu, que “Antero [...] não era um intuitivo, mas um pensador e um sentimental,”[19] pelo que não lhe seria acessível — nem natural — a condição de poeta dramático, como Shakespeare (ou como ele próprio, Pessoa), “por isto que para ser um poeta dramático supremo é preciso ser um intuitivo e não um pensador consciente”. E, no entanto, seria aqui bem tentador recordar que o mais moderno — e mesmo marcadamente baudelairiano — da poesia de Carlos Fradique Mendes[20], à qual nem sequer faltam os sinais do macadam, se deveu, afinal, ao punho de Antero... Mas Pessoa refere-se neste passo, nitidamente, apenas aos Sonetos, e a genial criação de um poeta satânico, amigo de Baudelaire, em cuja existência real toda a gente acreditou, aí por 1869, 1870 (embora fosse, de facto, criação executada a seis mãos por Antero, Eça de Queiroz e Jaime Batalha Reis), essa prodigiosa invenção terá escapado por completo a Pessoa, que, curiosamente, está no dito fragmento a argumentar acerca das diferenças entre o “espírito inglês e o alemão”, o que de algum modo remete para o veemente germanismo anteriano, tão reiterado na citada carta a Storck.

Não sendo então, do ponto de vista pessoano, acessível a Antero (por variadas razões, entre as quais a sua apontada constituição mental) a via da dramatização, o sujeito da sua poesia bloqueia, às portas do inominado outro, a capacidade de construir, a partir da precaridade temporal, uma via alternativa de resolução para a urgente necessidade de dizer um ser no tempo, sempre mutável, sempre outro em si mesmo. Valeria a Antero, se desculpa houvesse que encontrar para o que não é mais, no fundo, do que uma marca no caminho da modernidade em devir assincrónico nas várias latitudes culturais de uma mesma Europa, lembrarmos que não lhe foi dado experimentar os efeitos de um factor, aparentemente circunstancial, que dominará por completo o posicionamento do sujeito perante a noção de tempo — e, logo, perante si próprio — poucos anos decorridos sobre aquela tarde de Setembro de 1891 em que o poeta suspendeu a tiro, simultaneamente, vida e obra. Se a esse factor chamarmos aceleração, não andaremos longe da verdade.

O certo é que Antero não podia configurar um sujeito que fugisse ao seu mandato espiritual: uma consciência era tudo quanto competia a esse sujeito encarnar. Uma e una como o pensamento, no seu universo mental, se queria uno. As dores da fragmentação eminente, essas eram, sobretudo, nesse universo, sintomas de dissociação de um todo maior, ele sim, absoluto e, porque não, transcendente. A autobiografia possível era, então, a de um pensamento ao qual os sinais da beleza moderna, de que falava Baudelaire, aparentemente exteriores e contingentes, não pareciam indispensáveis. Pessoa, sempre consciente da transitividade estética, escreveu, aí por 1913, um apontamento que indicia a viragem:

Aquilo a que se chama a arte moderna, aquilo que é por enquanto a arte moderna, é apenas o princípio de uma arte — ou, antes, a transição entre os dois estadios da evolução civilizacional. Entre o chamado romantismo e a arte que vai agora caminhando rapidamente para o seu auge.[21]

E se, no mesmo fragmento, afirma que “O maior poeta da época moderna será o que tiver mais capacidade de sonho” (recorrendo, aliás, a Antero para exemplificar uma das vias através das quais se foi desenvolvendo essa capacidade[22]), não deixa de, provocatoriamente, insinuar: “O Infante D. Henrique é o perfeito tipo do sonhador. [...] Mas viveu no tempo em que se podia sonhar.”[23]É que a mutabilidade do tempo exige a mutabilidade do eu, e nem todo o sonho basta para acumular as sensações cada vez mais sem suporte, pura fragmentação, do tempo, sim, mas também do sujeito para quem elas são, afinal, tudo quanto resta da sua ilusória realidade.

Ao criar, nas páginas de Orpheu I, aos olhos estupefactos do leitor português de 1915, um autor de pouquíssima confiança que assinava Álvaro de Campos, Pessoa, que lhe publica as suas “duas composições”[24], está na verdade a executar um magistral exercício de concepção plástica. Nada menos do que a configuração total de um sujeito de nova espécie, absolutamente moderno, sem raízes na abominada “Realidade” mas também não apenas “sonho”. Para que esse sujeito possa exercer plenamente o papel pedagógico — na pedagogia do desassossego, bem entendido — que visivelmente lhe é confiado, Pessoa edifica um painel, um díptico cujas duas faces constroem um antes e um depois, em dois sentidos diversos e simultâneos: um de carácter eminentemente estético, outro referente à dimensão existencial do sujeito. De facto, o “Opiário” é, não só pela ficção da data aposta, mas sobretudo pela sua configuração estética, anterior à “Ode triunfal”, importando pouco, para o efeito pretendido, que tenha sido, ou não, escrito depois. O autor do “Opiário” marca, obsessivamente, as suas raízes finisseculares, deixando bem claro o seu decadentismo, embora não faça dele questão de fé; faz-se — isso, sim — ocasionalmente paúlico, mas com a discreção de quem não terá sequer lido o segundo painel de um outro díptico — que, neste sentido, funcionava, aliás, da mesmíssima maneira — publicado na revista A Renascença, no ano anterior, assinado por Fernando Pessoa.[25] Só depois, três fictos meses depois de “Opiário”, poderá Campos ultrapassar-se a si próprio e tornar outra a sua febre, dando-lhe agora o suporte estético de um futurismo muito especial que vem resolver, definitivamente, o velho dilema inscrito no citado verso de Garrett (o presente como “ponto no centro do círculo” mas de existência quimérica). Na nova geometria que se desenha na “Ode triunfal” ganhará, enfim, consistência um outro presente, soma e síntese de tudo, no qual, como diz Octavio Paz, “todos los tiempos y todos los espacios confluyen en un aquí y un ahora”:[26]

Canto, e canto o presente, e tambem o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E ha Platão e Vergilio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outróra e fôram humanos Vergilio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cincoenta,
Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,[27]

À perturbante interrogação — “Que é o mundo ante mim?” — dava um dos sonetos de Antero uma resposta tornada agora impossível ou, melhor, inútil: “fumo ondeando, / Visões sem ser, fragmentos de existencias ...”[28] O mundo de Campos não só é outro como já não se encontra, decididamente, ante o sujeito, mas sim dentro, fazendo um com esse sujeito cujo limite é bem mais ambicioso, porque leva a outras lonjuras o psicodinamismo anteriano e faz desse excesso a sua corrosiva glória: “Eia e hurrah por mim-tudo e tudo”[29]. Para que esse fim se atinja, no entanto, é preciso que Campos tenha aquilo que, seguramente, não fazia falta a Antero: Campos precisa de criar, verbalmente, a sua biografia, não apenas a de uma consciência, mas a credível biografia tecida de suportes referenciais que, na verdade, não tinha. Verdade? Qual verdade? Pessoa, o autor de autores, não publicou apenas em Orpheu as duas composições do seu engenheiro: deu-lhe aí a consistência necessária para que os seus leitores nele encontrassem um suporte credível de existência vivida, obrigando-o a fazer o percurso das memórias na longitude do Canal do Suez. Para obter tal efeito, não é necessário mais do que percorrer a sequência sinuosa de alguns versos de “Opiário” que parecem repetir, de outra maneira, a enumeração de dados biográficos que Antero alinhava na carta a Storck: “Nasci numa provincia portuguêsa”, “fui sempre um mau estudante”, “fingi que estudei engenharia. / Vivi na Escóssia. Visitei a Irlanda”, “tenho conhecido gente inglêsa / que diz que eu sei inglês perfeitamente”; “Gostava de ter poêmas e novélas / publicados por Plon e no Mercure”; “O meu próprio monóculo me faz / pertencer a um tipo universal.”[30]

É muito relativo, claro está, o uso que Campos dará ao suporte biográfico insinuado nos versos do “Opiário”. Mas que este poema é, sem dúvida, peça fundamental de uma estratégia de construção do autor, prova-o a oscilação de lugar nos vários planos da obra de Campos (o livro intitulado Arco de Triumpho) revelados pela edição crítica da sua poesia.[31] De qualquer modo, foi ao “Opiário” que coube a responsabilidade de apresentar Campos ao leitor português e isso, do ponto de vista da previsão da recepção, era decerto o mais importante na estratégia de Pessoa, que tantas e tão exuberantes provas deu de tal capacidade de prever e condicionar. Isto é, só depois de ter lido o “Opiário” poderá o leitor ver surgir no outro painel do díptico — e numa sequência talvez bem mais linear do que parece à primeira vista — a questão fulcral, a questão do tempo, convenientemente equacionada já do outro lado da barreira do século, ou melhor, concebida agora como coisa moderna:

[...] ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!
[...]
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nú e quente como um fogueiro,
O momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.[32]

O discurso de Campos demarcou-se, duplamente, do “abstracto e indefinível” que alimentava a beleza proscrita por Baudelaire: marcou o seu tempo e inscreveu um ser no tempo, um ser que muito se aparenta, afinal, com o pintor moderno, “ce solitaire doué d’une imagination active toujours voyageant à travers le grand désert d’hommes”, viajante como Campos e como Pessoa, em todos os sentidos. E dificilmente se poderia pedir mais exaustiva resenha exemplar do “caractère de la beauté présente”, naquele particular momento de construção da modernidade, do que aquela que a “Ode triunfal” oferece. Claro está, no entanto, que a resenha não é, por si só, suficiente, e caberá, logicamente, ao engenheiro construir o edifício que lhe assegure suporte teórico: uma estética nova, moderna também, digamos “não aristotélica”:

ao contrário da esthetica aristotelica, que exige que o indivíduo generalize ou humanize a sua sensibilidade, necessariamente particular e pessoal, nesta theoria o percurso indicado é inverso: é o geral que deve ser particularizado, o humano que se deve pessoalizar, o ‘exterior’ que se deve tornar ‘interior’.[33]

É essa particularização do geral que obriga Campos a insinuar nos versos um simulacro de dimensão existencial de primeiro grau, digamos assim, para o seu sujeito — e a sugestão autobiográfica, no sentido anteriano, lá está também, por sua vez, constituindo um segundo patamar na construção desse sujeito, só que agora fortemente ancorada em marcas visíveis e sensíveis do tempo que pessoalizam, que tornam “interior” o “exterior”:

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, féra para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.[34]

E Nemésio, que tem ele a ver com tudo isto? Aparentemente, esta guerra de antigos e modernos não é sua. A segunda geração modernista, a que, incontornavelmente, pertence, para lá de todos os equívocos, encontra pela frente, além da realização da obra própria, um trabalho de consolidação e de divulgação a fazer (e por isso tantas vezes se diz que, de certo modo, a define a dimensão crítica e até o papel editorial que desempenhou em relação ao primeiro modernismo). Uma maneira simples, se não simplista, de articular ambas as gerações consiste, justamente, em recordar que a primeira fala, como Pessoa, de modernos e de arte moderna enquanto a segunda fala, como Régio, de modernistas e de modernismo, embora considerando este “um certo modo de personalidade actual — mais fácil de classificar do que de definir.”[35]

O rumo que essa segunda geração dá, maioritariamente, à sua obra não interessa aqui desenvolvê-lo: Nemésio não segue, como se sabe, esse rumo maioritário. De qualquer modo, um certo sentido do moderno é um dado adquirido no momento em que esta geração se manifesta: as mais violentas agressões ao horizonte de espera do público foram já praticadas, o “lepidóptero burguês” escandalizou-se, sufocou de raiva e esqueceu há muito as heróicas investidas de 1915-1917 quando a Presença começa a trabalhar, dez anos depois. Nemésio é, então, um equívoco, ou vários. Tinha começado a publicar, muito convenientemente, em 1915, mas coisas que ninguém leu, e que ele próprio fez questão, mais tarde, de esconder. Por certo, teria então 14 ou 15 anos, era neo-romântico, como podia, ligeiramente simbolista, nada mais. Em 1922, como toda a gente em Portugal, entusiasmou-se com a travessia aérea do Atlântico Sul por Gago Coutinho e Sacadura Cabral e fez o seu longo poema patriótico, esteticamente saudosista, mas motivado por um dos emblemas da modernidade: o avião. Em finais da década de 20, é sobretudo conhecido como prosador — e não muito bem visto por aqueles que chamavam agora a si próprios “modernistas”, que o consideravam demasiado tradicional, regionalista mesmo, falhando a rotunda marca cosmopolita que continuava a cercar o moderno.

Subitamente, em meados dos anos 30, por peripécias duma carreira académica que entretanto iniciara, Nemésio dá por si em França, a escrever em francês, a pensar noutra língua, lendo, finalmente, os modernos, Appollinaire, por exemplo. E o que agora escreve configura, de facto, um outro autor. Para esse outro autor Nemésio propõe, como outrora Campos os seus “Apontamentos”, uma arte poética, um poema-programa[36] no qual define a poesia nova que o invade, uma poesia “immensement malheureuse / involontaire et brutale”, “une autre Poésie / qui se dévêt en avant”, vórtice de futuro que o obriga, talvez na ânsia de captar de novo a “beauté moderne” de que falara Baudelaire, a rebelar-se “contre ce lâche mot Beauté”, símbolo maiusculado de um absoluto para sempre perdido, perigosamente atraído pela imagem indesejada e mesmo impossível “de l’unique femme avant le premier péché.”[37]

O pintor moderno, aquele a quem Baudelaire retirou a identidade particular para lhe dar a outra, mais definitiva, de anónimo “amoureux de la foule et de l’ incognito”,[38] transportava consigo uma característica que, a partir dele, marcaria sem remissão todo aquele que encarnasse essa outra forma de identidade, o ser moderno: um ser “par nature, très-voyageur et très-cosmopolite”.[39] De facto, não é apenas Campos que viaja muito e fala inglês perfeitamente — ou Pessoa, “a viagem a que chamamos Pessoa”, como diz Eduardo Lourenço[40]— que vive um persistente e fecundo bilinguismo, mesmo quando, aparentemente, separa os idiomas em que pensa e escreve. O trânsito linguístico, recorda Octavio Paz, seduz os modernos, e é muitas vezes o caminho para eles se encontrarem a si mesmos:

Las primeras manifestaciones de la vanguardia fueron cosmopolitas y políglotas: Marinetti escribe sus manifiestos en francés y polemiza en Moscú y San Petersburgo con los cubofuturistas rusos; Jlebinkov y sus amigos inventan al zaum, el lenguaje trans-racional; [...] Arp escribe en alemán y en francés, Ungaretti en italiano y en francés, Huidobro en español y en francés. La predilección por el francés revela el papel central de la vanguardia francesa en la evolución de la poesía moderna.[41]

Curiosamente, não é apenas o encontro com a modernidade, com um outro autor em si, um autor moderno, o que acontece a Nemésio ao escrever em francês. É também no volume de 1935 (para o qual conseguiu, aliás, a chancela de um editor parisiense desejada por Campos nos citados versos do “Opiário”), à sombra do mesmo Rimbaud que tutela este nosso encontro e a que o título La Voyelle Promise sem dúvida alude,[42] que se torna mais evidente a construção de um sujeito com suporte referencial particularizado na poesia de Nemésio. Começa aí, de facto, a tecer-se nos versos uma cadeia de referências autobiográficas, muitas vezes através de formulações metafóricas, claro, mas perceptíveis, que vão, a pouco e pouco, ao longo de uma extensa obra que se estende até 1978, configurando um sujeito paradoxalmente coeso, legível de livro para livro como o mesmo e sempre outro, marcando a sua temporalidade através de sucessivas metamorfoses estéticas, diferenciadas em cada volume. Isto é, quanto mais perceptível for a textura existencial do sujeito, suportada pela aludida camada de referentes capazes de produzir a sugestão autobiográfica (não importa se verídicos ou ficcionados), mais se acentua a transitoriedade, a mutabilidade, a contingência — o ser como tempo, em devir. Apenas é preciso que esse sujeito tenha biografia e a inscreva, que crie uma ilusória narrativa, fragmentária, evidentemente, ainda que só legível em extensão, não num poema mas na obra toda, para que seja a variabilidade dessas inscrições a dizer, por si própria, que qualquer registo é registo de tempo, vincando à sua maneira “le caractère de la beauté présente”, nem abstracta nem indefinível, mas antes vivida, na atitude que a já citada “Art poétique” de Nemésio parecia preconizar: “Allons, allons, à l’assaut de la vie”.

No fundo, não estaremos muito longe da perspectiva que, nos versos da “Ode triunfal”, de Campos, colocava Platão e Virgílio, os antigos, no seio dos emblemas da fábrica da modernidade (as máquinas, as luzes eléctricas) apenas porque, antes de serem antigos ou modernos, eles “foram humanos”. Ora, se alguma busca orienta a poesia de Nemésio, ele que a si próprio tantas vezes se referiu como peregrino e viajante, será sem dúvida a busca da inscrição no tempo de um ser que é, antes de mais, tempo e devir:

Abro no choupo inciso o meu semblante
(Sou gravador em pedra).[43]

Essa inscrição permitirá, por seu turno, integrar no transitório e fugitivo presente aquela “doble y vertiginosa sensación” a que se refere Octavio Paz ao falar do paradoxo que encerra a concepção moderna do tempo: “lo que acaba de ocurrir pertenece ya al mundo de lo infinitamente lejano y, al mismo tiempo, la antigüedad milenaria está infinitamente cerca ...”[44]. À poesia cabe, no fundo, tornar perceptível essa fusão:

Chamarei os velhos que foram
No bosque humano
Eu velho agora
Novo para eles
No tronco antigo
de Neanderthal.[45]

O caminho da poesia nemesiana até atingir plenamente, já perto do fim, esta amplitude começa, de facto, quase quarenta anos antes, em La Voyelle Promise. Aí se figura o sujeito através de uma imagem emblemática — “le milan voyageur”[46]— que, no livro seguinte, e já em português, se desdobrará em duas — o “bicho harmonioso” e o “navio desarvorado”[47]— e é com esse pouco que Nemésio constrói quase tudo. O seu milhafre-navio viaja, como Campos pelo Canal do Suez, num amplo mapa (“Il y avait Amsterdam, / Et il y avait Montpellier”...[48]), inscrevendo lugares, objectos, personagens, indo e voltando, revisitando periodicamente o lugar de origem (a ilha, as ilhas todas deste mundo, as do espaço e as da imaginação), os livros que lê e o pensamento que deles se tece, as grandes questões (“o Ser, o Nada, o Tempo, a Morte”[49]), os amigos, os animais, os rituais, as outras linguagens ... Dir-se-ia que a sua maior conquista é a capacidade de ilustrar plenamente a concepção moderna de um devir sem causalidade, em que o simultâneo e o sucessivo não se opõem, apenas se justapõem. E os livros de Nemésio, à medida que vão surgindo, parecem sempre outros, inesperados, imprevisíveis, surpreendentes — e, no entanto, tão reconhecíveis na sua diferença como pegadas de um mesmo caminho. Uma dessas pegadas marca, sucessivamente, em três andamentos, as passagens pelo Brasil e tem uma importância simbólica no conjunto da sua poesia muito maior, a meu ver, do que a que, em geral, lhe é atribuída, como que confirmando a sua conhecida afirmação: “Vinte anos de viagens ao Brasil têm-me ensinado muito”.[50] Bastaria, de resto, considerar a coincidência da publicação reunida dos Poemas Brasileiros, em 1972, com o volume Limite de Idade, do mesmo ano, e atentar na flagrante diversidade de registos e de opções que ambos revelam para se ter ideia de quanto o caminho da modernidade que Nemésio faz seu é, sobretudo, o caminho da metamorfose constante, da transitividade e da contingência assumidas como características fundamentalmente humanas, um caminho que se embebeu da experiência-limite da fragmentação e a ela sobreviveu, e por isso se tornou, afinal, um caminho para outra coisa à qual tentamos nós, neste final do século XX, dar nome, como outrora Baudelaire ao circunscrever o termo modernidade.

A poesia de Nemésio, de facto, tecida de fios tão vários, será talvez apenas isso: o “logbook”, para usar um termo que lhe era caro, o livro de bordo de um “solitaire doué d’une imagination active toujours voyageant à travers le grand désert d’hommes”, em busca de “quelque chose”, de algo que assinale aos outros a maneira como se vestiam as personagens de um certo tempo, assim reflectindo aquele traço mínimo e ligeiro que não escaparia, decerto, ao pintor Constantin Guys.

 

Notas

  • 1 Vitorino Nemésio, Violão de Morro, Lisboa: Edições Panorama, 1968. A extensa dedicatória ocupa todo o verso da capa e é reproduzida em facsímil na 2ª edição do volume (in Poemas Brasileiros, Amadora, Bertrand, 1972, entre as pp. 48 e 49). A expressão “já sou carioca de aposento” é usada por Nemésio na dedicatória de Ode ao Rio. ABC do Rio de Janeiro (1965), também incluída nos Poemas Brasileiros, p. 81.
  • 2 Baudelaire, “Le peintre de la vie moderne” in Écrits sur l’art II, Paris: Éditions Gallimard et Librairie Génerale Française, 1971, p. 149. O texto foi, como é sabido, inicialmente publicado no jornal Le Figaro (26 e 29 de Novembro e 3 de Dezembro de 1863). Quanto ao já tantas vezes destacado carácter fundamental deste estudo, bastaria recordar o plano teórico em que o próprio Baudelaire se situa ao afirmar, por exemplo: “C’est ici une belle ocasion, en vérité, pour établir une théorie rationnelle et historique du beau, en opposition avec la théorie du beau unique et absolu;” (p. 136).
  • 3 Refiro-me, como é óbvio, ao título da célebre obra de Octavio Paz, Los hijos del limo. Del romanticismo a la vanguardia (Barcelona: Seix Barral, 1974), para cuja noção de modernidade remeto, implicita e explicitamente, ao longo deste texto.
  • 4 Baudelaire, op. cit., p. 151.
  • 5 Ibidem, p. 134.
  • 6 Almeida Garrett, “Solidão” in Lírica Completa, Lisboa: Arcádia, 1971, p. 284.
  • 7 “Le peintre de la vie moderne”, p. 150.
  • 8 Ibidem, pp. 150-151.
  • 9 Cf. Octavio Paz, op. cit., p. 16: “La modernidad es una tradición polémica y que desaloja a la tradición imperante, cualquiera que ésta sea; pero la desaloja sólo para, un instante después, ceder el sitio a otra tradición que, a su vez, es otra manifestación momentánea de la actualidad.”
  • 10 Antero de Quental, Obras Completas. Cartas II, org., introd. e notas de Ana Maria Almeida Martins, Ponta Delgada / Lisboa, Universidade dos Açores / Editorial Comunicação, 1989, p. 839.
  • 11 Os Sonetos Completos de Antero de Quental publicados por J. P. Oliveira Martins, Porto: Livraria Portuense de Lopes & Cª Editores, 1890, p.105.
  • 12 Ibidem, p. 108.
  • 13 Ibidem, p. 117.
  • 14 Ibidem, p. 113.
  • 15 Ibidem, p. 102.
  • 16 Ibidem, p. 103.
  • 17 Ibidem, p. 115.
  • 18 Cartas II, p. 839.
  • 19 Fernando Pessoa, Obras em Prosa, org., introd. e notas de Cleonice Berardinelli, 2ª ed., Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976, p. 309.
  • 20 Cf. Joel Serrão, O Primeiro Fradique Mendes, Lisboa: Livros Horizonte, 1985. Recorde-se que a obra anunciada de Fradique Mendes, de que o jornal O Primeiro de Janeiro (nº 272, 5.12.1869) revela algumas amostras, se intitularia Poemas do Macadam; entre os então publicados, destaque-se o designado pela dedicatória “A Carlos Baudelaire (autor das Flores do Mal)”, supostamente datado de “Paris: dia do enterro de Baudelaire: 7 de Setembro de 1867”, a par de outros, de acentuado cunho baudelairiano: “As flores do asfalto”, “Noites de Primavera no Boulevard”. Joel Serrão reproduz a notícia de O Primeiro de Janeiro, juntamente com os poemas, nas pp. 265-273.
  • 21 Pessoa, op. cit., p. 298.
  • 22 “Metendo esse ruidoso mundo, a natureza, tudo, dentro do próprio sonho — e fugindo da “Realidade” nesse sonho. É o caminho português (tão caracteristicamente português) que vem desde Antero de Quental cada vez mais intenso até à nossa recentíssima poesia.” (ibidem).
  • 23 Ibidem.
  • 24 “Opiário e Ode Triunfal. Duas composições de Alvaro de Campos publicadas por Fernando Pessoa”, Orpheu, ano I, nº 1, Janeiro-Fevereiro-Março de 1915, p. 69 (2ª ed. facsimilada, Lisboa, Contexto, 1994).
  • 25 Fernando Pessoa, “Impressões do crepusculo”, A Renascença, vol. I, nº 1, Fevereiro de 1914, p. 11. Trata-se, como se sabe, da estreia impressa de Pessoa como poeta, através de dois poemas conhecidos pelos incipites (“Ó sino da minha aldeia” e “Pauis de roçarem ansias pela minh’alma em ouro”) que, posteriormente separados pelo autor e o segundo nunca reeditado em vida, representavam, na sua primeira impressão, em conjunto, uma estratégia, do meu ponto de vista, muito semelhante à que Pessoa usa em Orpheu, relativamente às duas composições de Campos: a configuração estética (versificatória, estilística, temática) do primeiro torna-o, no plano da leitura, claramente anterior ao segundo, criando a noção de um devir, de um antes e um depois, apoiada por variadíssimas sugestões e, entre elas, a de uma projecção “biográfica” do sujeito no primeiro poema, que se dilui no segundo, criando este (o famoso “Pauis” tão largamente tratado) a imagem de um estádio novo, ostensivamente posterior e moderno (de uma modernidade ainda muito finissecular e pós-simbolista, como é óbvio) que lhe terá ditado a carreira enquanto fixação exemplar de uma estética nova (paúlica), a que deu o nome e os contornos.
  • 26 Op. cit., p. 21.
  • 27 “Ode triunfal”, Orpheu I, p. 77.
  • 28 Sonetos, p. 109.
  • 29 “Ode triunfal”, p. 83.
  • 30 “Opiário”, Orpheu I, pp. 72, 73, 75.
  • 31 Cf. “Arco de Triumpho. Cinco projectos” in Edição Crítica de Fernando Pessoa II: Poemas de Álvaro de Campos, edição de Cleonice Berardinelli, Lisboa: INCM, 1990, pp. 51-53. Nos dois primeiros planos (“Projecto I” e “Projecto II”), o poema ocupa o segundo lugar, depois dos “Trez sonetos”; no terceiro, contudo, passa para a primeira posição, a abrir o volume. O facto de não constar do “Projecto IV” corrobora, de certo modo, esta hipótese, já que nele só figuram aquilo a que o “Projecto V” chama “As cinco odes que formam este livro”, isto é, aquilo a que poderíamos chamar um Campos plenamente sensacionista, que tivesse apagado as marcas da transição estética que o “Opiário” pressupõe.
  • 32 “Ode triunfal”, pp. 79-80 e 82.
  • 33 Álvaro de Campos, “Apontamentos para uma esthetica não-aristotelica I”, Athena, vol. I, nº 3, Dezembro de 1924, p. 115 (edição facsimilada, Lisboa, Contexto, 1983).
  • 34 “Ode triunfal”, p. 77.
    35 José Régio, “Classicismo e modernismo”, Presença, vol. I, nº 2, 28 de Março de 1928, p. 1 (edição facsimilada compacta, Lisboa, Contexto, 1993).
  • 36 “Art poétique” in La Voyelle Promise, Paris / Coimbra, Éditions R.-A. Corrêa / Edições Presença, 1935, pp. 15-16.
  • 37 Baudelaire, “Le peintre de la vie moderne”, p. 151.
  • 38 Ibidem, p. 140. Não se tratando, obviamente, de processos de idêntica natureza, recorde-se que, tanto a construção da personagem do pintor moderno no texto baudelairiano como a construção (heteronímica) pessoana do poeta moderno Álvaro de Campos, em 1915, compartilham, como verso e reverso, de um mesmo pressuposto em relação às respectivas criações. Baudelaire pactua com o seu leitor o esvaziamento de uma personagem supostamente real (“Nous feindrons de croire, le lecteur et moi, que M. G. n’existe pas, [...] on supposera que tout ce que j’ai à dire de sa nature, si curieusement et si mystérieusement éclatante, est plus ou moins justement suggéré par les oeuvres en question; pure hypothèse poétique, conjecture, travail d’imagination.”, ibidem), enquanto que Campos convenciona, implicitamente, com o leitor, através da sua existência editorial, a outra, que não tem. Ora, é talvez da eliminação desse pressuposto que surge o movimento de Nemésio em direcção a um sujeito que, de certo modo, deixará de precisar da imagem de um outro para se tornar outro a si mesmo, por aí configurando uma etapa diferente nos caminhos da modernidade.
  • 39 Ibidem, p. 141.
  • 40 “A vertigem imóvel” in AAVV, Fernando Pessoa e o seu Tempo, Lisboa: Biblioteca Nacional, 1988, p.11.
  • 41 Op. cit., pp. 162 e 163.
  • 42 Cf. André Siganos, “Vitorino Nemésio et Arthur Rimbaud: pour une symbolique des voyelles”, Ariane, nº 1, 1982, pp. 207-213.
  • 43 “Epígrafe” in Limite de Idade, Lisboa: Estúdios Cor, 1972, p. 15.
  • 44 Op. cit., p. 21.
  • 45 “O limite” in Limite de Idade, p. 20.
  • 46 Título do poema das pp. 7-8.
  • 47 A primeira dá o título ao volume e a um dos poemas, ainda escrito em França (O Bicho Harmonioso, Coimbra: Revista de Portugal, 1938, pp. 9-10), e termina com versos que prenunciam, de certo modo, os citados do poema “Epígrafe”: “Deixarei, estampada pelo silêncio definitivo, / A ramagem fremente dos meus dedos, num pouco de terra — / Estranho fóssil!”. Quanto à segunda, ela surge no início do poema “A vaga verde” e é, do meu ponto de vista, uma imagem fundamental no universo nemesiano: “aquele navio desesperado, / Aquele navio humano cheio pelos porões, / Sou eu. Isto é: eu — o navio desarvorado” (ibidem, p. 52).
  • 48 La Voyelle Promise, p. 8.
  • 49 Vitorino Nemésio, “Prefácio: da poesia” in Poesia (1935-1940), Lisboa: Liv. Morais Edit., 1961, p. 10.
  • 50 “Brasil. Canto IX” in Jornal do Observador, Lisboa: Verbo, 1974, p. 354.