Marcelo Secron Bessa
Doutorando PUC-Rio
A Marília Rothier Cardoso
A vida de todos nós, ao contrário do que cremos ou gostaríamos de crer, não é uma seqüência organizada de acontecimentos, dispostos numa ordem causal que estabelece um encadeamento entre eles. É, antes, uma mistura desordenada e caótica que, sofregamente, tentamos ordenar e dar um sentido, tornando, assim, nossas vidas compreensíveis e, de certa forma, previsíveis.
Se necessitamos ordenar nossas próprias histórias pessoais, não poderíamos deixar de ordenar outras, como, por exemplo, a história literária. Nesta, dividimos o tempo em períodos, fases e gerações; separamos, ordenamos e catalogamos os semelhantes por grupos. E, no processo crítico-histórico literário, assim como em nossas vidas, além de ordenar os acontecimentos e dar-lhes um sentido, recontamos, acrescentamos, destacamos e suprimimos outros, num processo contínuo e permamente de elaboração. Sobre essa produção crítico-histórica arbitrária, aponta Silviano Santiago:
Um dos problemas do exercício crítico, quando aliado à pesquisa histórica e à própria criação literária, é o de poder cometer equívocos ao separar o joio do trigo. A separação entre x e y, entre os grupos A e B, visa a um esforço de avaliação em que vão ser configurados o autêntico e o falso, o melhor e o pior, o revolucionário e o conservador, o passível de inspirar novos textos e o necrosado, etc. Se a avaliação é justa — e dificilmente ela o é na sua totalidade —, não há obviamente equívocos. Se os houver, e os há sempre, eles passam a ter a forma de um recalque no tecido histórico que é manufaturado pelo “crítico”. Isso quer dizer que toda avaliação é feita em favor de alguma coisa. (1989: 84-85)
Como o ensaísta observa, sempre há equívocos nesse “esforço de avaliação” empreendido pelos críticos. E os recalcados tornam-se franjas no tecido histórico manufaturado por aqueles. Na literatura brasileira, não são poucos os escritores que podem ser assim identificados, com uma obra pouco lida ou reeditada e, como fios soltos, sem um lugar definido no tecido histórico. Este é o caso, entre outros, do artista plástico e escritor Cornélio Penna (1896-1958).
A obra literária de Penna — composta pelos romances Fronteira (1935), Dois romances de Nico Horta (1939), Repouso (1949) e A menina morta (1954) — fica deslocada na história literária brasileira. Seu trabalho literário classificado de “psicológico”, de “análise interior”, de “intimista” e de “introspectivo” — recheado pelo inexplicável, sombrio e tenebroso — não encontra par entre os contemporâneos do escritor. Mário de Andrade, ao resenhar o segundo romance de Penna, observou:
Para a novelística nacional a psicologia ainda permanece naquela artimética adiposamente satisfeita de si, pela qual dois e dois são quatro. Apesar dos seus exageros e nebulosidades, apesar do seu gosto pelo estudo dos anormais e mesmo do metapsiquismo, o princípio psicológico de que Cornélio Penna se utiliza vem lembrar aos nossos romancistas a hipótese riquíssima de dois e dois somarem cinco. Ou três. E esta me parece a principal contribuição deste romancista. (1972:122)
Certamente, um elogio, apesar de. O uso do ambiente tenebroso, do mistério e do mal-estar que caracteriza a obra de Penna era justamente a restrição de Mário, que via como um “exagero” a utilização desses elementos. Como observou Luiz Costa Lima em um recente artigo, não teriam outro sentido as restrições de Mário a Fronteira, pois, neste romance, era “reconhecido um filão que contrariava a versão em prosa que o modernismo de Mário legitimava” (1997). Desse modo, a possível proximidade de sua obra com o romance gótico do século 18, indicada pelo recurso do mistério e do fantasmagórico — afastando-se, assim, da produção literária de então, na qual eram privilegiados a linguagem clara e coloquial, e o realismo dos romances nordestinos —, parece ter sido um dos motivos para o silêncio crítico que acompanha seus romances.
Mas a causa do silêncio também pode ser percebida por outro viés. Luiz Costa Lima ainda observa que a reclusão e o caráter introvertido de Penna contribuíram para um isolamento intelectual do escritor, não só na formação de pares mas também na retaguarda certa e adequada. Assim, ao passar à margem de movimentos literários, sociais e políticos, cedendo a seu retraimento, Penna teria pago um preço bem alto.
Mais que pela análise de sua obra, foi pelo viés biográfico que decidi centrar a minha pesquisa inicial sobre o “verbete” Cornélio Penna. A proposta de um estudo biobibliográfico me pareceu sedutora por três motivos. Primeiro, estava coerente com a proposta inicial do curso, que destacava o perfil crítico-biográfico de escritor. Segundo, partia de meus próprios interesses acadêmicos, que estão centrados, atualmente, na questão biográfica. E, terceiro, por serem o estudo biobibliográfico e a pesquisa arquivística um campo rico e vasto de possibilidades crítico-teóricas, mas ainda não muito explorado.
À primeira vista, a vida de Penna é pouco ou nada “biografável”. Formado em advocacia, não chegou a exercer a profissão, tendo trabalhado como repórter em alguns jornais cariocas, nos quais iniciou uma rápida carreira como desenhista e pintor. Posteriormente, trabalhou como funcionário em repartição pública e, por um breve período, foi diretor do Instituto de Artes da extinta Universidade do Distrito Federal (UDF). Depois, graças a uma herança recebida, pôde viver até o fim da vida sem trabalhar. Antes de sua estréia literária em 1935, já era amigo de artistas e escritores, como Lúcio Cardoso, Augusto Frederico Schmidt, Octávio de Faria, Rachel de Queiroz, entre outros. Apesar do círculo de amizades, dificilmente saía de casa ou freqüentava os cafés e o meio literário. Aos 47 anos, casou-se e passou a viver em quase total reclusão com sua esposa até sua morte, em 1958.
No entanto, é justamente essa falta de eventos e, mais especificamente, o seu isolamento que tornam a biografia do escritor mais sedutora. Com seu caráter introvertido, Penna manteve, durante boa parte de sua vida, uma atitude de reclusão — monástica até —, que lembra, de certa forma, as imagens públicas de dois escritores brasileiros contemporâneos, Dalton Trevisan e Rubem Fonseca. Quando era indagado a respeito de sua introversão e de sua aversão aos meios literários, sua resposta era lacônica: “Porque não sou literato”. Além disso, para ele, o isolamento tornava-se “um refúgio e uma necessidade”. O motivo? Freqüentar o meio literário significava viver artificialmente, ter de criar um personagem e representá-lo, além de “ter de tomar atitudes literárias e viver literariamente”. Segundo ele, já era complicado e cansativo demais viver a própria vida, quanto mais a de um personagem.
Mas há, também, outra leitura para tal isolamento. Logo após sua morte, Renard Perez, num artigo do jornal Correio da Manhã, aventou a hipótese de que Penna, “em sua aparente distância, era um homem que cuidava bastante de sua publicidade, dirigindo-a num sentido extraordinário: não representava ele, apenas, o seu papel de homem das sombras?” (1958). Perez sugere, assim, que seu isolamento poderia obedecer, em parte, a uma premeditada construção de sua imagem pública de artista e escritor, ou seja, Penna também representava o teatro que dizia abominar.
O escritor, contudo, não acharia nada rico e interessante a proposta biobibliográfica de estudo. Sobre isso, declarou a Ledo Ivo, em 1948:
Aliás, quero dizer desde já que acho um erro, e erro grotesco, essa curiosidade de conhecer o autor em sua vida interior, sem ser pelos seus livros. A mim não me interessam absolutamente fatos da existência dos escritores que leio com mais freqüência, e tenho por sistema não ler nunca biografias, nem, e principalmente, as autobiografias e os manifestos de orientação política ou religiosa dos romancistas. Tudo que deve persistir deles, em minha opinião, é somente sua obra de ficção. Viverá só em seus personagens. Como disse em um artigo que escrevi há muitos anos, deixemos apodrecer em paz os corpos dos nossos autores. (Penna, 1958:LXII)
O azedume de Penna em relação à biografia de escritores tem uma razão. Aliás, duas. Em seu caso, o destaque dado ao autor afetaria, de alguma forma, o seu desejo de isolamento. Além disso, tentava frear as contínuas críticas feitas a si, que aproximavam criador e obra, buscando no primeiro os motivos da segunda, como o fez Renard Perez: “O que me completou a compreensão da obra foi o homem. Conhecia-lhe a legenda: era um esquisitão, que vivia fechado em sua casa — verdadeiro museu — sem ter contato com ninguém” (1958). Em outras palavras, o tenebroso, o misterioso, o fantasmagórico que habitavam suas obras estariam presentes nele e seriam sua natureza mais íntima. Daí, o epíteto “homem das sombras” a que Perez se referiu. Mesmo que assim não fosse chamado por seus contemporâneos ou amigos, com certeza Penna assim era visto e percebido. Nos textos de memórias de seus amigos e em artigos de jornais da época, é praticamente constante o uso dos termos “torturado”, “estranho”, “misterioso” e “sombrio” para caracterizar o escritor. Em suas memórias, Augusto Frederico Schmidt lembra que esses qualificativos, entre outros, deixavam-no extremamente irritado, pois, segundo Penna, expunham-no ao ridículo. “Ninguém possuía mais do que ele o sentido do ridículo”, diz Schmidt. “O medo do ridículo era nele quase mórbido. Seria capaz de cometer uma crueldade para não parecer ridículo”, conclui o amigo (1997:209).
No entanto, a fama de “homem das sombras” não surgiu somente a partir de seus romances, mas, ao contrário, iniciara-se em seus trabalhos nas artes plásticas. Parte de sua produção como desenhista e pintor pode ser verificada, ainda que as reproduções sejam sofríveis, na edição de sua obra completa, publicada pela editora José Aguilar. Mas, no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB) da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, onde se encontra o acervo do escritor, os interessados poderão encontrar alguns originais, além de muitos outros desenhos que não foram reproduzidos na publicação citada.
No arquivo, além de desenhos e pinturas, há algumas caricaturas e ilustrações para contos e poesias, que marcaram a colaboração artística inicial de Penna aos jornais e revistas cariocas no começo da década de 20. À primeira vista, a produção artística de Penna, arquivada sem qualquer critério, nem ao menos cronológico, indica, para um leigo em artes plásticas como eu, uma completa falta de estilo ou técnica — apenas, talvez, uma certa coerência temática.
Mas, para o olhar mais atento e erudito de Alexandre Eulálio (1989), existe uma certa coerência nos desenhos e é possível marcar a trajetória de Penna no campo das artes plásticas. Primeiramente, a falta de estilo, observada nos seus primeiros trabalhos, não seria exclusividade sua. É possível encontrar no complexo e diverso ambiente artístico nacional da época uma mistura irresolvida de estilos, basicamente direcionada pelo gosto da moda que vinha de fora. E inclusive Penna, no início, adota o gosto “moderno” dominante, do qual pouco a pouco começa a se afastar, descobrindo, assim, um caminho próprio. Segundo Alexandre Eulálio, seu estilo e seu conseqüente isolamento nas artes plásticas começam aí, ao esquecer o gosto alheio e adotar o personalíssimo traço goticizante das linhas estreitas e angulosas, que, na comparação do ensaísta, assemelham-se a uma “vibração constante de uma agulha de sismógrafo”.
É esse traço que marcará a assinatura “Cornélio Penna” junto ao público. Não só o traço mas também os temas que já estavam em germe nos desenhos anteriores. Feitos com nanquim ou cores como roxo, laranja, rosa pálido e ocre, os desenhos dedicam-se às sombras, ao funéreo, aos ambientes misteriosos. São caveiras, figuras humanas ambíguas sexualmente, sombras, caixões, anjos e demônios sob a luz mortiça de velas e castiçais. Mesmo quando explora outros temas, já que, profissionalmente, amplia sua colaboração como artista plástico na imprensa, a marca sombria e angulosa é inconfundível. Tão sombria e pessoal é essa marca, que levou Murilo Araújo a intitular uma crítica — elogiosa — da obra do artista como “O gênio macabro de Cornélio Penna”.
A pintura, porém, deixa de ser, ainda na década de 20, a expressão do artista. Em 1928, ano de sua primeira exposição individual, passa por uma crise que culmina com a realização do trabalho “Anjos combatendo”, também intitulado “Confronto de anjos”. Neste quadro, dois anjos quase demoníacos, em traços angulosos e orientais, travam uma luta, em que, claramente, já há um vencedor. Este empunha no alto de sua cabeça uma cruz clara e luminosa, enquanto o outro, com uma cruz escura e opaca, cai no espaço negro.
Em sua crise, Penna considera sua obra um equívoco e a si um pintor menor, por não conseguir, como observou Eulálio, “provocar no espectador a ânsia de absoluto que ele gostaria de incutir” (1989:22). Após publicar na imprensa o texto “Declaração de insolvência”, em que expõe as razões acima, decide parar de pintar e se dedica à literatura que, para ele, seria “maior” que a pintura. “O vencedor e o vencido sou eu mesmo e ao mesmo tempo”, esclarece sobre o seu abandono. A partir daí — apesar de eventualmente produzir algumas capas de livros para amigos e, inclusive, de ser o autor da capa e dos desenhos de seu primeiro romance, Fronteira —, a pintura para Penna será uma arte auxiliar e menor.
De certa forma, Penna transporta o mesmo “traço personalíssimo” de seus desenhos para a literatura. Alexandre Eulálio lembra que viu um desenho de Penna, pela primeira vez, na adolescência: Piedade (1924) deixou-o surpreendentemente impressionado pela estranha configuração do desenho, no jogo branco e preto, e pelo estupor causado por tema tão fúnebre e soturno. Anos depois, ao ler Fronteira, teve reavivada a forte impressão anterior causada pelo desenho.
Mas, se Penna distinguiu-se e isolou-se — artisticamente — dos ilustradores e artistas gráficos brasileiros da década de 20 por adotar um traço peculiar, na sua incursão pela literatura a distinção e o isolamento seriam muito mais significativos e profundos. Na década de 20, o escritor, ainda que reservado, possuía amigos — entre eles, muitos escritores — com quem mantinha uma vida social e intelectual, mas, gradativamente, durante as décadas seguintes, afasta-se cada vez mais do convívio social e intelectual, levando-o ao isolamento folclórico.
Numa entrevista dada a um programa de rádio em 1949, cuja transcrição está incluída no acervo do escritor no AMLB, uma pergunta lhe foi feita: o isolamento seria um bem ou um mal para um escritor? “Aparentemente é um mal”, disse ele, “porque o escritor se afasta assim da corrente de idéias que existe, que vive, que está correndo sempre, nas redações dos jornais, nas livrarias onde os literatos se reúnem, e assim perde o contato com a moda, tão imperiosa nas artes como nos vestuários femininos”.
Um mal, aparentemente. Na verdade, como ele indica, é um bem que o escritor se afaste do mundo social e, principalmente, dos meios literários, pois, aquilo que circula neles, é somente moda, um gosto efêmero de formas de se vestir ou escrever. Se entendermos por “moderno” aquilo que está na moda, o gosto contemporâneo e atual, e se fizéssemos a seguinte pergunta a Penna: “É preciso ser absolutamente moderno?”, a resposta seria — com muita certeza — “Absolutamente, não”. Entre o que está ultrapassado e o que está na moda, entre o antigo e o novo, entre o passado e o presente, Penna certamente escolheria os primeiros.
Num momento em que novo, ruptura, moderno, revolução, presente e futuro são, entre outras, as palavras de ordem, Penna encaminha-se pela contramão, isolando-se em um mundo e tempo particulares. Como o Drummond de Sentimento do mundo, o tempo também é a matéria de Penna, mas, ao contrário do primeiro, não é o tempo presente, os homens presentes e, tampouco, a vida presente que o seduzem. É, antes, o passado que o fascina, cultuado com um fervor quase religioso.
No seu isolamento e desprezo por tudo o que lembre o mundo “moderno” e tecnológico — não indo a cinemas, tendo horror ao rádio e preferindo ouvir antigas caixas de música —, Penna constrói um espaço onde, nostálgico, pode sentir saudades de um tempo em que não viveu. Com seu gosto por antigüidades, transforma sua residência numa espécie de museu, onde, num ambiente sombrio e de pouca luz, móveis antigos de todos os estilos, tapetes, cristais, louças, telas, entre outros objetos, disputavam milimetricamente o espaço da casa.
No ambiente de luz mortiça de sua sala, um objeto reinava e, talvez, era, para Penna, o mais valioso de sua coleção: um antigo quadro de pintor desconhecido, sempre ladeado por dois castiçais funerários, em que uma menina — na verdade, uma tia materna do escritor — com vestido de brocado branco, cabelos cacheados e uma coroa de flores na cabeça jaz, estática e palidamente, numa cama ou berço. A menina não dorme; está morta. Esse quadro, intitulado A menina morta, perseguiu como nunca a imaginação do escritor, até levá-lo a escrever seu último romance de título homônimo. Mais que isso, o quadro A menina morta tornou-se seu emblema junto aos amigos e conhecidos quanto ao gosto fúnebre e ao apreço ao passado.
E, mais que o gosto fúnebre, parece ter sido esse apreço ao passado — identificado, então, como passadismo ou subserviência à tradição — o ponto espinhoso na vida de Cornélio Penna. O seu gosto por antigüidades, seu isolamento e seu conseqüente afastamento da “moda” intelectual e literária seriam mais do que atitudes idiossincráticas. Na sua recusa veemente do novo e preferência clara pelo antigo, aliadas ao fato de ser ele um monarquista e católico, Penna aglutinava em si todos os atributos para ser considerado retrógrado, conservador e reacionário. Se alguns artigos de jornais da época apenas sugerem isso, os companheiros do escritor pouco explicitam ou desenvolvem tal questão em memórias, por motivos diversos, mas óbvios.
Um dos poucos a tocar nesse ponto foi Tristão de Athayde, pseudônimo de Alceu Amoroso Lima, um dos companheiros da vida particular e, também, profissional de Penna; este foi diretor do Instituto de Artes da UDF, da qual Tristão foi reitor por um breve período na segunda metade da década de 30. Devido a certo ato de Tristão como reitor, Penna, em carta particular, censurou-o, qualificando o ato de “liberal”, o que foi motivo para um longo congelamento da amizade. E Tristão, mais adiante em suas memórias, numa comparação simbólica, lembra que a mesma palavra — “liberal” — que congelara a amizade com Penna também fez degelar, alguns anos depois, a frieza de sua relação com Oswald de Andrade (1973:230).
No entanto, mesmo que assim realmente fosse — conservador e reacionário —, não seriam esses atributos exclusivos unicamente do escritor, mas, também, partilhados com outros. Mas o que difere Penna desses é sua recusa peremptória a aderir publicamente a qualquer filiação, seja intelectual, política ou religiosa. Como sempre ressaltava, o que lhe importa é a obra, e não o artista. Daí a sua ojeriza a autobiografias e a manifestos de orientação política e religiosa de escritores, que, na sua lógica, são um grande erro.
Apesar de ser um católico fervoroso e praticante, jamais permitiu que sua crença se unisse a discussões intelectuais e políticas, ao contrário de outros artistas e intelectuais, como, por exemplo, o próprio Tristão de Athayde. É, aliás, no acervo-arquivo deste, que está, entre outras cartas de Penna, a resposta a um convite feito por Tristão ao escritor: fazer uma conferência sobre o ponto de vista católico na arte. Numa resposta curta, o escritor declina o convite e desabafa: “(...) Esse ponto de vista católico é, para mim, todo um pequeno drama miserável e instintivo, sem o menor vislumbre intelectual, e vejo, com medo, que tenho de resolvê-lo muito só e muito triste, porque as soluções com as quais tenho deparado são demasiado grandiosas (...)” (destaque de Penna).
A resposta dramática a Tristão faz mais do que apenas reiterar em outro tom o que o escritor costumava afirmar irônica e categoricamente a respeito de vida e atitudes literárias e de manifestos políticos e religiosos de escritores. Sugere também uma certa angústia que lhe dava a exigência de um comprometimento, seja religioso, intelectual ou político. Daí a vantagem de viver isoladamente: ao ter de resolver, na penumbra de sua residência, “muito só e muito triste” seus “pequenos dramas”, livrava-se de um comprometimento além do literário que lhe era exigido, mas que não queria ou não podia, por razões diversas, ter. E, além de uma opção, um isolamento assim torna-se, também — e principalmente —, uma prisão.
Nas minhas idas ao AMLB para pesquisar o acervo de Cornélio Penna, a busca por essas razões diversas enfrentou um problema comum a muitas pesquisas biográficas: a precariedade de dados disponíveis, principalmente em se tratando de Cornélio Penna. Por mais que revirasse e lesse papéis, cartas e outros documentos, as lacunas que se apresentavam eram maiores. Em seu silêncio, pendurado numa das paredes do AMLB, A menina morta — o famoso quadro que agora também é um objeto do acervo — tornava-se, para mim, a cada momento que o olhava, um emblema não só de Penna mas também das pesquisas arquivística e biográfica.
Mas, além do silêncio e da precariedade de dados que dificultavam a pesquisa e que, de certa forma, eram até previsíveis, um ponto inesperado surgiu. Se a vida é uma mistura desordenada e caótica de acontecimentos a que tentamos atribuir-lhe um sentido, a fim de torná-la mais compreensível, e se o projeto biográfico nada mais é que uma construção desse sentido, comecei a questionar o sentido que eu tentava imprimir à vida de Penna. Não estaria eu, na investigação de seu isolamento, direcionando-a para uma leitura que destacava os binarismos novo/antigo, revolucinário/reacionário, ruptura/tradição, modernismo/passadismo, e que se aproximava, de algum modo, de uma mesma perspectiva crítico-histórica que o manteve como franja do tecido histórico literário? Sim, creio que essa investigação é também necessária, até para se fazer uma revisão desse tecido. Mas não estariam Penna e, também, sua obra — ambos deslocados — esperando novas abordagens, críticas e leituras? Assim, para contornar a precariedade de dados e na esperança de encontrar novos possíveis caminhos, produzi um ensaio literário-ficcional no fim do curso.
Confesso que ainda não encontrei o, ou melhor, um caminho. E tenho a certeza de que essa perdição é compartilhada por muitos de nós das Letras, ao sermos desafiados no exercício crítico — não só, mas principalmente — por escritores como Cornélio Penna. Mas, para sairmos dessa cilada, é preciso que abandonemos um certo conforto crítico-teórico e descubramos novas abordagens em que possamos aferir que dois e dois — além de quatro — somam cinco. Ou ainda, quem sabe, três.
Referências bibliográficas
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LIMA, Alceu Amoroso e LIMA, Cláudio Medeiros. Alceu Amoroso Lima: memórias improvisadas. Petrópolis: Vozes, 1973.
LIMA, Luiz Costa. “Um romance ímpar”. In: Jornal do Brasil, Caderno Idéias/Livros, 6 de dezembro de 1997.
PENNA, Cornélio. Romances completos. Rio de Janeiro: Editora José Aguillar, 1958.
PEREZ, Renard. “Cornélio Penna: o homem e a obra”. In: Correio da Manhã, 1º de março de 1958, p.10.
SANTIAGO, Silviano. “Fechado para balanço (sessenta anos de modernismo)”. In: Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
SCHMIDT, Augusto Frederico. “Cornélio Penna”. In: As florestas: páginas de memórias. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, Faculdade da Cidade, 1997.
Notas