Camões e Eça de Queirós

Desastre literário: sobre a publicação d'O Crime do Padre Amaro

Carlos Reis
Universidade de Coimbra

Os incidentes que rodearam a publicação d'O Crime do Padre Amaro - ou melhor, do primeiro O Crime do Padre Amaro, em 1875 - constituem um episódio decisivo para o amadurecimento literário de Eça de Queirós; consequência imediata desse amadurecimento foi, desde logo, o labor de aperfeiçoamento a que Eça se consagrou, até chegar à versão definitiva do seu romance. Não por acaso e de acordo com um testemunho de Fialho de Almeida, Oliveira Martins teria dito, a propósito d'O Crime do Padre Amaro, que aquele fora "o único romance que Eça trouxera no ventre"[1]. A esta afirmação facilmente se associa a máxima antiga e de alcance muito mais geral, com inteira justeza enunciada também acerca da presente obra de Eça: habent sua fata libelli.

O romance O Crime do Padre Amaro tem, de facto, um destino singular e, antes disso, um trajecto de longa incubação. Destino tão singular que dele pode dizer-se que corresponde não só à parte importante de um certo percurso estético-ideológico, como simultaneamente traduz uma ética da criação artística que os anos tratarão de apurar.

Antes, entretanto, de analisarmos esse episódio fundamental (e nalguns aspectos ainda mal conhecido) da formação de Eça, avance-se o seguinte: que os depoimentos, sobretudo epistolares, que, para o efeito se recolhem, hão-de ser relativizados em função de factores de distorção a que convém estar atento; o epistolário queirosiano (ainda não estudado de forma sistemática[2]), é certamente um corpus altamente sugestivo, pelas informações que encerra, mas não deve, por isso, levar-nos a esquecer o que, afinal, não se passa só com Eça: que, nas suas cartas, o escritor tende, não raro, a encenar explicações ou a ocultar motivações. E muitas vezes não é só o destinatário imediato que é visado: é também um destinatário mediato, inscrito na posteridade, destinatário outro não menos importante do que o primeiro, em quem o escritor provavelmente também pensa, ainda que obviamente o não diga de forma expressa. A esse destinatário outro endereçam-se, por vezes, de forma enviezada, explicações que podem não convencer o primeiro, mas que, a prazo, ilustrarão aspectos importantes da vida literária do escritor[3].

Dito isto, recordemos aqui os passos essenciais de uma querela epistolar sustentada por Eça com Jaime Batalha Reis e Antero de Quental, quando do aparecimento da primeira versão d'O Crime do Padre Amaro. Destinava-se este a ser publicado na Revista Ocidental, como contributo do jovem romancista para um projecto cultural de recorte iberista, dinamizado em Portugal por Jaime Batalha Reis e por Antero de Quental: conforme recentemente demonstrou Maria José Marinho, nos mais remotos projectos da revista (datados de 1872) constava desde logo um espaço destinado ao romance, que seria preenchido por Eça de Queirós[4].

Essa colaboração foi, contudo, acidentada, praticamente desde a primeira hora. Encontrando-se ainda em Lisboa, depois de regressar de Cuba, Eça escreve, em Dezembro de 1874, a Jaime Batalha Reis[5] (que foi, juntamente com Antero, participante directo no imbróglio da publicação d'O Crime do Padre Amaro) e comunica-lhe ter sido obrigado a interromper um primeiro projecto de colaboração para a Revista Ocidental: um romance intitulado Uma conspiração em Havana, de que hoje se não conhece rasto[6].
Colocado no posto consular de Newcastle-on-Tyne (de onde será transferido para Bristol, em meados de 1878), o escritor escreve então, de novo, a Batalha, agora já sobre O Crime do Padre Amaro. É uma carta pouco extensa, com data de 6 de Janeiro de 1875, mas que trataremos de comentar, pela relevância das informações que encerra:

Meu querido Batalha

Meu caro Batalha, que faz o Padre Amaro?
Tenho esperado vê-lo chegar, espalmado num envelope, vestido de imprensa, com o seu crime às costas - mas tenho esperado debalde.
Tens outros planos a respeito do romance para a Revista? Sofreu a mesma revista alguma alteração na sua laboriosa nascença? Tem sido impossível passar a letra de imprensa os gatafunhos românticos em que está escrita aquela história realista?
Se nada disto - então remete-me as provas.
Se - ou por alteração do plano literário da Revista ou por dificuldades de composição - o Padre Amaro não pode ir matar o filho para a rua, à luz pública - então peço-te que me avises - e que mo remetas empacotado.
Se ele não puder cometer a sua patifaria em letra de imprensa - então quero que ele esteja aqui ao meu lado, na gaveta, matando sossegadamente - seu filho - e portanto meu neto. [...][7]

Do que aqui se diz (e também do que apenas se sugere), podemos concluir algumas coisas interessantes. Primeiro: estaria, de facto, acordado, desde início, que Eça receberia provas e nessa expectativa investia uma certa ansiedade. Segundo: Eça admitia, aparentemente sem grande contrariedade, a possibilidade de o seu texto não ser publicado (por ser incipiente, por não aparecer a revista etc.). Terceiro: a não ser publicado, o romance iria simplesmente para a gaveta.

O que parece poder inferir-se é, desde já, o seguinte: Eça estava preocupado com um trabalho a propósito do qual revelava alguma insegurança - a ponto de, como se disse, admitir que ele, sendo-lhe devolvido, tomasse o caminho do esquecimento.

A carta seguinte a Batalha Reis desenvolve a idéia que quisemos insinuar: a de que Eça facultara um texto antigo, produzido sob o signo do impulso e da improvisação[8] (é sintomática, mas por certo não inocente, a expressão antitética "gatafunhos românticos"/"história realista", utilizada na carta anterior), texto que lhe suscitava agora viva preocupação. Daí a ansiosa exigência de segundas provas, formulada na carta de 8 de Fevereiro de 1875:

Meu querido Batalha

Remeto-te as provas.
É indispensável, é absolutamente necessário - que eu reveja umas segundas provas - ou as provas de página. As emendas que fiz são consideráveis e complicadas: e se a um trabalho onde o estilo já de si é afectado e amaneirado, todo cheio de pequenas intenções e todo dependente da pontuação - ajuntamos os erros tipográficos - temos um fiasco deplorável. É portanto indispensável que me remetas imediatamente as provas de página - ou segundas provas. E vai mandando provas - sem descanso.
Agora um importante observação: se os compositores tiverem achado uma dificuldade insuperável em compor os capítulos que estão em borrão - os capítulos suplementares que eu introduzi posteriormente - põe corajosamente de parte todos esses capítulos: e faz compor só o que era primitivamente o romance: os capítulos suplementares são fáceis de conhecer porque estão numa letra confusa, não têm numeração e estão - pelo seu aspecto, evidentemente, intercalados no original que está todo escrito numa letra mais regular e com tiras numeradas. [...][9]

A premência com que Eça solicita segundas provas trai, em nosso entender, mais do que a exigência normal num qualquer escritor, em idênticas circunstâncias. De facto, O Crime do Padre Amaro parecia desde logo marcado por um destino que foi, de resto, o de diversos outros textos ou borrões queirosianos (por exemplo: O Conde d'Abranhos, A Capital etc.), condenados a esperarem, às vezes eternamente, que o seu autor pudesse voltar sobre eles e terminá-los. A fazermos fé no que diz Guerra da Cal (e que não temos razões de peso para pôr em causa), "esta primera redacción debió de comenzarse en Leiria, en 1870. Continuada en Lisboa, fue probablemente terminada en Cuba [...]. A su partida de Lisboa para Newcastle, el novel escritor dejó en manos de su amigo, Jaime Batalha Reis, el original de la novela corta para su publicación serializada en la Revista Occidental"[10]. Isto bate certo, acrescente-se, com o que já sabemos: que Eça não pôde terminar a tempo o tal romance Uma conspiração em Havana, tendo-o então substituído por essa "primeira redacção" do Crime (em 1880, Eça fez algo parecido com O Mandarim, publicado para satisfazer um compromisso com o Diário de Portugal, que por assim dizer tomou o lugar d'Os Maias, cuja elaboração demorou muito mais do que o previsto).

O que talvez Eça não esperasse era o choque que receberia, ao ver a efectiva precariedade literária do que deixara em Lisboa e que agora lhe pareceria ainda mais flagrantemente deficiente, na letra de forma em que lhe chegava esse texto lido e emendado em Newcastle, conforme a carta já citada de 8 de fevereiro. Mais do que simplesmente emendado até: o escritor praticamente inaugura aqui o que viria a tornar-se o seu modo de trabalho usual, que agora conhecemos com uma minúcia que até há pouco era substituída por conjecturas sem grande base material. Assim, a partir do manuscrito enviado para a tipografia, manuscrito em estado muito imperfeito, em diversos aspectos, o escritor procedia quase sempre a uma autêntica reescrita, de alcance frequentemente considerável; essa reescrita, muitas vezes necessária até para incutir ao texto a coesão morfossintáctica que não raro faltava ao borrão inicial, exercia-se sobre provas tipográficas sujeitas a modificações substanciais, se é que não, por vezes, substituídas por todo um novo texto, com as demoras e custos que um tal comportamento naturalmente ocasionava[11].

De certa forma, Eça toma agora consciência nítida de que é assim mesmo que a sua escrita se há-de processar e começa a pagar um preço (elevado, diga-se de passagem) por isso mesmo[12].
Noutros termos: ao deixar o manuscrito a Batalha, talvez Eça não estivesse bem consciente do estado de incipiência em que se encontrava o seu texto. Essa consciência agudiza-se agora, em função de uma dupla distância: sobretudo a que o separa já do tempo de redacção do texto, mas também a que agora o separa também de Lisboa. Daí aquela "importante observação" que autorizava Batalha Reis a fazer algo que, vindo de Eça, parece incrível: a eventual supressão dos "capítulos suplementares" (mandados já de Inglaterra? Não é provável[13]), hipótese que deixa transparecer, com alguma nitidez, um certo desnorte, no próprio Eça, quanto ao modo de remediar o que, afinal, era já irremediável.

O ponto aonde queremos chegar é o seguinte: este episódio teve a sua origem também numa certa leviandade de Eça. O jovem escritor não só não cumpriu um compromisso antigo (o de escrever e publicar Uma conspiração em Havana[14]), como não avaliou, com a lucidez dos anos que se seguiriam, os estádios de amadurecimento por que tinha que passar a complexa escrita de um romance. Por isso, a exaltação que emerge da carta (de novo a Batalha), de 26 de Fevereiro, pode ser interpretada também como desabafo de má-consciência e (quase) autoflagelação:

Meu caro Batalha

Acabo de receber a tua carta e estou verdadeiramente indignado. Pois quê! Eu dou-vos um borrão de romance - e vocês em lugar de publicar o romance publicam o borrão!
Nós ficamos em que eu corrigiria as provas - sem o que eu vos dei não era mais que um trabalho informe e absurdo. E vocês não esperam pelas provas - e publicam o informe e absurdo. É verdadeiramente insensato! Vocês sacrificaram o meu trabalho ao desejo de encher a revista de matéria - sem atenção a que a matéria fosse boa ou má: há decerto algumas desculpas do vosso lado, reconheço-o, mas é incontestável que eu tenho montes de razão. Se vocês publicaram a primeira parte - tal qual eu a li nas provas que me mandaram - podem-se gabar de que publicaram a maior borracheira de que a estupidez lusitana de se pode gloriar. É indispensável que V.V. façam uma declaração - dizendo - que estando eu em Newcastle - e não tendo podido corrigir as provas, o romance sai tal qual está no borrão. [...][15]

Em suma: foi o tal "borrão", certamente um tanto caótico, saído do que parece ter sido uma primeira redacção e sem as emendas "consideráveis e complicadas" (segundo o próprio escritor, confirmado por Teófilo Braga[16]), foi esse "borrão", dizíamos, que apareceu publicado no primeiro fascículo da Revista Ocidental. E foi isso que continuou a acontecer nos fascículos seguintes, como se deduz destas palavras, escritas em 21 de Abril, quando quase metade do romance estava já publicado:Cada fascículo que me chega da revista - é um nova facada! Cambaleio, sucumbo, envio-te nos ventos que vão para o sul, as pragas mais escolhidas, - e penso em suplícios a dar-te, o empalamento e o esfolamento, o esquartejamento, - lambendo os beiços de gula[17].Falta, entretanto, esclarecer o seguinte: por que não foi de facto interrompida a publicação? O telegrama que Eça mandou a Batalha, também em 26 de Fevereiro, era taxativo: "Suspende imediatamente publicação romance manda provas o publicado absurdo não autorizo publicação resto sem rever provas"[18]. E, no entanto, a publicação continuou, nem sequer sendo inserida de imediato a declaração de ressalva de responsabilidade, exigida por Eça; essa declaração acabou por surgir apenas no final do último folhetim, em 15 de Maio, tendo sido aparentemente negociada pelo pai de Eça com Jaime Batalha Reis. Numa carta do juiz Teixeira de Queirós ao filho, de que se conhece apenas um fragmento, ficamos a saber alguma coisa acerca desta negociação e também algo mais; escreve o pai de Eça:Publicou-se o 3º nº da Revista, e nele continua o Romance, e continuará nos seguintes até se concluir.
No nº seguinte sairá uma declaração em que se diga, que o teu Romance vai publicado como o escreveste fugitivamente há anos; que tencionavas corrigi-lo e alterá-lo, mas que o não podes fazer por estares em Inglaterra, e não se poder suspender agora a publicação. Assim fica tudo remediado, e salvos os teus escrúpulos.

Convém não te indispores com a Revista (...)[19].

Esta carta sugere desde logo que, nesta época, o pai do romancista tinha alguma influência na gestão dos seus negócios literários; ao mesmo tempo, ela reforça a ideia de que este primeiro Crime era, de facto, um texto relativamente antigo e certamente exigindo reformulação (a expressão "escreveste fugitivamente" tem até um certo sabor queirosiano...); por último, note-se o muito significativo conselho, segundo o qual era importante manter boas relações com a Revista Ocidental, nem que isso obrigasse a uma concessão: continuar a publicar o "borrão", coisa que de resto o pai de Eça anuncia no início do trecho transcrito, aparentemente fazendo uso de uma autoridade que para o efeito possuiria[20]. E a verdade é que, quando escreve de Newcastle a Ramalho Ortigão, em Março de 1875, Eça parece já resignado a aceitar o "desastre literário"[21].

Faltam, contudo, algumas peças importantes, neste longo incidente: a confirmação de que Eça terá deixado em Lisboa todo o manuscrito, o que confirmaria também, por extensão, que ele não podia, só por si (designadamente não mandando mais original), suspender a publicação; e obviamente faltam-nos ainda as provas emendadas pelo escritor, que talvez esclarecessem por que razão elas não foram consideradas pelos editores da revista: por efectiva premência de tempo (como explicou Batalha), por estarem substancialmente emendadas (facto também aduzido pelo mesmo Batalha), por desleixo ou simplesmente por censura moral.

A questão da possível censura moral é, neste contexto, relevante, primeiro que tudo por remeter para as relações literárias e ideológicas entre Eça e os seus amigos mais próximos: Batalha Reis, Ramalho Ortigão e sobretudo Antero. Entre os dois primeiros parece ter havido um entendimento quanto à correcção de provas, trabalho que deveria caber a Ramalho: este tratou, entretanto, com Batalha - e sem autorização de Eça -, o que se deveria ou não cortar, tendo em atenção, por um lado, a articulação interna do texto e, por outro lado, a ousadia de certos episódios, eventualmente chocantes e prejudiciais para a causa do Realismo
[22].

No caso de Antero, a questão é de certa forma mais complexa, até por se tratar de um vulto talhado para assumir um grande destaque ético e moral, relativamente aos seus companheiros de geração. Parece inegável que entre ele e Eça cavava-se já uma distância considerável, no que toca à questão das relações entre Arte e Moral: Antero, como se sabe, formulara reservas sérias ao entusiasmo de Batalha Reis a propósito d'O Crime do Padre Amaro
[23]. O que permite vislumbrar divergências que, desde data relativamente antiga, eram efectivas entre Antero e Eça: se ambos tinham participado (com Batalha Reis, recorde-se) no episódio-Fradique, em 1869, tinham-no feito de pontos de vista estético-ideológicos não necessariamente coincidentes, o que, por outro lado, bate certo com a dinâmica pluridiscursiva e dialógica que medularmente informa esse importante episódio. Ora, já então Antero contestava, em Fradique (e porque não também num Eça em quem insistentemente afloravam seduções satânicas?), o satanismo "que é o realismo no mundo da poesia", interrogando-se ainda:

Ora, francamente, será esta a missão da Poesia?
O seu ideal, isto é, a sua lei suprema, não será, pelo contrário, consolar, moralizar, apontar o belo espiritual, a esperança e a crença? Que quer dizer a fria contracção da ironia, nos lábios da virgem feita para sorrir e cantar? A poesia não pode ser o grito da agonia: é a voz mais pura e mais íntima do coração: é mesmo nas vascas da morte, é sobretudo nas horas da provação, um hino, carmen.
[24]

E, no entanto, é a Antero que de início (quer dizer: antes ainda da intervenção de Ramalho) é confiada a tarefa de orientar directamente a publicação d'O Crime do Padre Amaro, conforme revela Batalha em carta que já citámos:Fizemos o que podíamos para suprir a tua falta: o teu romance é lido, ditado pelo Antero a um copista e assim vai para a imprensa. As provas são todas revistas, não pelo nosso corrector mas pelo Antero ou por mim com o maior cuidado[25].Conhecendo-se, por um lado, o que era a caótica escrita de Eça (para mais num "borrão"!) e, por outro lado, os pruridos moralistas de Antero, não é difícil adivinhar o resultado deste trabalho editorial.
Compreende-se assim o tom furibundo da carta de Eça, em 26 de Fevereiro: "Eu não sou um moralista: sou um artista"; e logo depois confirma diferenças de posicionamento ético-cultural em relação a Antero, numa afirmação conhecida: "O Antero é o maior crítico da península mas entende tanto de arte - como eu de mecânica. O Antero dirigindo a publicação do Padre Amaro é simplesmente hórrido"
[26].
Mas esta ríspida reacção poderá ter-se transformado, logo que acalmados os ânimos, em serena ponderação acerca do tom justo para uma representação crítica de costumes e mentalidades, até porque, apesar das diferenças notadas, o juízo de Antero não podia ser inteiramente indiferente a Eça. O que significa que estava já em causa o destino próximo d'O Crime do Padre Amaro e a necessidade da sua reformulação. Deste modo, a mais que provável censura de Antero poderia facultar ao romancista (de forma conflituosa e pouco ortodoxa, diga-se de passagem) uma certa recepção ao seu "borrão"; essa censura evidenciava as divergências que ficaram sugeridas, mas provavelmente vinha reforçar em Eça o propósito de refazer o romance de alto a baixo - e acabaria por propiciar a elaboração de uma das grandes obras da literatura portuguesa.

Notas

  • 1 Cf. Fialho de Almeida. Figuras de destaque. Lisboa: Liv. Clássica Editora, 1923, p. 138.
  • 2 Um contributo significativo nesse sentido é a dissertação de mestrado de Maria João Simões. Correspondências: Eça e Fradique. Análise de estratégias epistolográficas. Coimbra: Faculdade de Letras, 1987.
  • 3 Não esqueçamos o seguinte: o século XIX é um tempo em que o escritor assume uma consciência nítida da sua dimensão de homem de cultura projectado (ou possivelmente projectado) para além do seu tempo, pelo que não são raros os gestos em que calculadamente ele procura assegurar uma posteridade efectiva; o cuidado colocado na escrita epistolar (o escritor sabe ou suspeita que as suas cartas poderão ser publicadas) é um desses gestos. Cite-se, a este propósito, o seguinte testemunho em carta de Eça a Domício da Gama: "A irregularidade da minha vida epistolar provém de que eu penso sempre as minhas cartas antes de as escrever" (Correspondência. Recolha, coordenação, prefácio e notas de Guilherme de Castilho. Lisboa: Imp. Nacional-Casa da Moeda, 1983, vol. II, p. 519).
  • 4 Cf. Maria José Marinho, "Geração de 70. Subsídios para a história da 'Revista Ocidental'". In: Congresso Anteriano Internacional, ed. cit., p. 381-421 (uma versão revista e ampliada deste texto foi publicada na Revista da Biblioteca Nacional, s. 2, vol. 7, 1, Jan-Jun. de 1992, com o título "A Revista Ocidental, 1875 - um projecto da Geração de 70"). Entre outras informações importantes aqui reveladas, conta-se a que se refere à autoria do prospecto da revista, da responsabilidade de Batalha Reis e não de Antero, como se supunha (cf. p. 384 e 401-407).
  • 5 Cf. Correspondência, ed. cit., I, p. 85-87; esta carta responde à de Batalha Reis, de 1 de Dezembro, publicada por Beatriz Berrini (apêndice a Cartas inéditas, Lisboa, "O Jornal", 1987, p. 50-51) em que veementemente se pede a Eça que honre os seus compromissos com a Revista Ocidental; no comentário a essa carta de Batalha, Beatriz Berrini declara que Eça se encontra já em Inglaterra quando escreve a Batalha, o que pela própria carta se verifica não ser correcto. Outras cartas que interessam à história da publicação do primeiro Crime encontram-se também no volume Eça de Queiroz e Jaime Batalha Reis. Cartas e recordações do seu convívio. Escritos coligidos e apresentados por Beatriz Cinatti Batalha Reis. Porto: Lello & Irmão, 1966.
  • 6 O Prof. Guerra da Cal supõe ter, de facto, existido o manuscrito deste romance (cf. E. Guerra da Cal. Lengua y estilo de Eça de Queiroz. Apêndice: Bibliografia queirociana sistemática y anotada e iconografía artística del hombre y la obra. Coimbra: por ordem da Universidade, 1975, tomo 1, p. 422). Entretanto, o testemunho de Eça a propósito desse desconhecido relato não tem que ser tomado à letra: diversas vezes (por exemplo: a propósito da escrita d'Os Maias) o escritor deu imagens deformadas, por excesso, do estado em que se encontravam os textos em que se encontrava a trabalhar.
  • 7 E. de Queirós, Correspondência, ed. cit., p. 88-89.
  • 8 Em 1876, na nota prefacial à segunda versão, escreverá Eça que a versão da Revista Ocidental conservava "toda a sua feição de esboço, e de um improviso".
  • 9 E. de Queirós, Correspondência, ed. cit., p. 95-96.
  • 10 E. Guerra da Cal, Bibliografia queirociana, ed. cit., vol. 1, p. 17. Divergimos, portanto, do que afirma Beatriz Berrini, provavelmente com base conjectural, mais do que por verificação documental: "Ao partir para a Inglaterra em princípios de Dezembro, Eça nada lhes [a Antero e Batalha] entregou. Será de Newcastle que remeterá os capítulos iniciais do Crime do Padre Amaro" ("Antero de Quental e Eça de Queiroz: sempre amigos". In Congresso Anteriano Internacional, ed. cit., p. 56; cf. também id., "Antero de Quental - nostálgico e profético". In: Antero de Quental et l'Europe, Paris: F. C. Gulbenkian/C. C. Portugais, 1993, p. 118); não se percebe bem como Eça, tendo chegado a Newcastle a 30 de Dezembro, logo na carta de 6 de Janeiro de 1875 podia esperar provas de um texto que tivesse mandado de Inglaterra; cf. Archer de Lima. Eça de Queiroz diplomata. Lisboa: Portugália Editora, s.d., p. 83 ss. e Luiz Viana Filho. A vida de Eça de Queiroz. Porto: Lello & Irmão Editores, 1983, p. 73 ss.
  • 11 O estudo introdutório da edição crítica d'A Capital!, por Luiz Fagundes Duarte (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992), analisa esta problemática, no que àquele romance diz respeito. Uma demorada análise dos materiais de trabalho da "oficina do escritor" encontra-se em C. Reis e M. do Rosário Milheiro, A construção da narrativa queirosiana. O espólio de Eça de Queirós (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989).
  • 12 É certo que Eça publicara já o romance O Mistério da Estrada de Sintra. Contudo, as peculiares circunstâncias da sua publicação (primeiro no Diário de Notícias, logo depois em livro), também o facto de ele decorrer de uma escrita compartida (com Ramalhão Ortigão) e até a sua condição (para Eça, na época) de divertissement, colocam-no numa situação totalmente diversa, no que à questão em apreço diz respeito.
  • 13 Embora Guerra da Cal o não diga, o que parece certo é que Eça tenha deixado logo todo o texto do Crime em Lisboa, quando partiu para Inglaterra. De facto, não só a dificuldade das comunicações, na época, aconselharia a que assim se fizesse (note-se: Eça parte em Dezembro, o primeiro número da revista é de 15 de Fevereiro, publicando-se com periodicidade quinzenal), como ainda as alusões feitas aos tais "capítulos suplementares" permitem pensar que eles já fariam parte de um conjunto deixado em Lisboa; caso contrário, Eça certamente aludiria a capítulos enviados posteriormente e não se ficaria pelas referências aos seu "aspecto", como forma (aliás imprecisa) de os distinguir dos restantes.
  • 14 Essa leviandade vinha de trás, desde a quebra do compromisso relativamente ao romance Uma conspiração em Havana, leviandade asperamente criticada por Batalha Reis em carta de 1 de Dezembro de 1874: "Há muito e muito tempo que te comprometeste a escrever o romance. Sinto em primeiro lugar que a tua seriedade não estivesse à altura de compreender que o devias ter feito tirando durante esse tempo todo, um bocado, aos teus passeios, às tuas toilettes, às tuas ceias, ou às tuas amantes"; e a seguir Batalha pressiona ainda Eça: "É-nos absolutamente necessário que escrevas 30 páginas como as da Revista dos Dois Mundos dum conto passado na Havana de costumes urbanos que comece e acabe nessas 30 páginas - isto até o próximo sábado. O não o fazeres seria para nós e para a empresa um comprometimento mesmo mais grave do que eu te posso dizer nesta carta pelos compromissos que já temos" (Cartas inéditas de Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Batalha Reis e outros. Introdução, comentários e notas de Beatriz Berrini: Lisboa: O Jornal, 1987, p. 50-51).
  • 15 E. de Queirós, Correspondência, I, p. 98-99. Esta carta responde à que Batalha Reis escrevera, a 17 de Fevereiro, explicando por que razão não haviam sido consideradas, para correcção e impressão, as emendas feitas por Eça nas primeiras provas: "[...] Quando chegaram as tuas provas corrigidas - ou melhor pelo que eu vi, refeitas - já a 1ª parte do Crime do teu filho estava no 1º número da Revista que saiu no dia 15 e que hoje te envio. Já nós víramos que era impossível estar a mandar-te com antecedência necessária provas para Newcastle que em idas e vindas levam 16 dias" (carta do espólio de Batalha Reis, cit. por Maria José Marinho, "Geração de 70. Subsídios para a história da 'Revista Ocidental'", loc. cit., p. 393).
  • 16 Cf. T. Braga. Eça de Queirós visto pelos seus contemporâneos. Porto: Lello & Irmão, 1945, p. 30.
  • 17 Correspondência, I, p. 108.
  • 18 E. de Queirós, Correspondência, I, p. 97.
  • 19 "Algumas notas" a O Crime do Padre Amaro. Obras de Eça de Queirós, I (Edição do Centenário). Porto: Lello & Irmãos, 1946, p. 582-583.
  • 20 Essa autoridade, reiteração da mencionada influência que nesta época o pai de Eça exercia nos negócios do filho, é depois reforçada, quando o juiz Teixeira de Queirós se empenha (e se responsabiliza economicamente), junto do editor Chardron, pelas primeiras edições em livro d'O Crime do Padre Amaro (cf. "Algumas notas" a O Crime do Padre Amaro, loc. cit., p. 584-585).
  • 21 "A propósito deste indivíduo [o padre Amaro], dir-lhe-ei que a sua carta convenceu-me, um pouco à contre-coeur, de que a melhor maneira de aceitar o desastre literário executado por B... [Batalha] - era calar-me, emendar, refazer tranquilamente o romance, e publicá-lo num volume - que se pertença e responda por si" (Correspondência, I, p. 102).
  • 22 Cf. duas cartas de Ramalho Ortigão em Cartas inéditas de Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Batalha Reis e outros, ed. cit., p. 53-55.
  • 23 Referimo-nos aqui à conhecida carta (a Oliveira Martins) em que Antero de Quental chama ao Crime "Pigault-Lebrun forrado de Flaubert" (cf. Cartas I. Organização, introdução e notas de Ana Maria Almeida Martins; Lisboa: Univ. dos Açores/Ed. Comunicação, 1989, p. 270).
  • 24 Carlos Fradique Mendes. Versos. Recolha, prefácio e notas de Pedro da Silveira. Lisboa: Edições 70, 1973, p. 55-56.
  • 25 Cit. por Maria José Marinho, loc. cit., p. 393.
  • 26 Loc. cit., p. 99.