Miguel Pereira
PUC-Rio
Em primeiro lugar, quero agradecer aos organizadores o convite para participar deste seminário, em especial ao meu amigo professor Renato Cordeiro Gomes. Quero também dizer que as reflexões, que aqui dividirei com vocês, têm para mim um valor especial por estarem sendo proferidas sob a tutela da Cátedra Padre Antônio Vieira, um ser absolutamente moderno. Vou lhes falar sobre pontes. Essas construções que ligam um lugar ao outro. 0 nosso lugar atual ao lugar do passado que continua em nós. Por isso começo a minha conversa falando de “Central do Brasil,” esta obraprima cinematográfica de Walter Salles. Vamos lá então.
Símbolo da modernidade cinematográfica brasileira, o filme “Central do Brasil”, de Walter Salles Júnior, faz também uma explícita ligação com o movimento tardio da nossa cultura que se chamou Cinema Novo. Se considerarmos como marco inicial 1955, data de “Rio 40 graus”, de Nelson Pereira dos Santos, e 1980 como o ano em que o movimento chega ao fim, com “Bye, bye Brasil”, de Carlos Diegues, ou “A idade da terra”, de Glauber Rocha, que, no ano seguinte, viria a falecer, o Cinema Novo teria durado 25 anos. Estas datas, no entanto, dizem muito pouco. Nada começa e termina com essa precisão, em se tratando de um movimento artístico. Na realidade, o que “Central do Brasil” faz hoje é retomar o lado mais ideológico do Cinema Novo. Não mais a sua estética.
Embora moderno, o filme de Walter Salles lança várias pontes com o passado. Não realiza, portanto, a famosa ruptura com o antigo. A primeira, foi a escolha de Othon Bastos para fazer o personagem do chofer de caminhão que, aparentemente, nada tem a ver com os personagens do Cinema Novo. Mas Othon Bastos é, como disse um amigo meu, um ator emblemático do Cinema Novo. Sua presença é tão marcante nos filmes dos principais autores cinemanovistas que sua identificação é quase imediata. Basta lembrar o Corisco de “Deus e o Diabo na terra do sol” ou o professor de “0 dragão da maldade contra o santo guerreiro”, ou ainda o Paulo Honório de “São Bernardo”, para não ficarmos apenas em Glauber Rocha, uma vez que Leon Hirzsman é também um dos mais legítimos representantes do Cinema Novo. Se levarmos em conta apenas os personagens, certamente os encaixes começam a fazer sentido, mas não explicam, por si, a ligação com o passado. Até mesmo por serem opostos, o Corisco de “Deus e o Diabo na terra do sol” e o professor de “0 dragão da maldade contra o santo guerreiro”, não espelham realidades iguais, embora “0 dragão da maldade” seja uma espécie de continuação de “Deus e o Diabo na terra do Sol”. 0 personagem de Antônio das Mortes, por exemplo, está caracterizado como no primeiro filme, usando o mesmo figurino e sendo interpretado também pelo mesmo ator, Maurício do Valle. Embora Corisco não tenha esse tipo de continuidade, é como se o personagem ressuscitasse o espírito guerreiro de Corisco, principalmente no final do filme. Ele representa a consciência lúcida, embora, às vezes, também irônica e até mesmo cínica, que se coloca diante dos conflitos sociais e políticos, como uma espécie de comentador dos acontecimentos, e termina por eles contaminado numa ação redentora. Neste sentido, podese dizer que o personagem do caminhoneiro de “Central do Brasil” representa uma nova face do que foram Corisco e o professor. 0 personagem do filme de Walter Salles é um homem de fé, um religioso evangélico, que aparece, como um enviado, quase messiânico, para fazer o bem aos dois peregrinos, Dora e Josué, já quase vencidos pela fome e o desalento.
É claro que estas ligações são de minha responsabilidade. Apesar de parecerem um tanto forçadas, têm a sua justificativa no fato de o mesmo ator representar os três papéis. Não sei se Walter Salles escolheu Othon Bastos pensando no que falei acima. Mas pouco importa. Talvez tenha sido um ato inconsciente, embora tenha admitido publicamente que seu filme tem muito de sua admiração pelo Cinema Novo. Apenas para dizer que não estou só neste tipo de ilação, cito aqui um pequeno parágrafo do livro Literatura e cinema, de Randal Johnson:
Dois anos antes da adaptação de “Macunaíma” para o cinema, José Celso Martínez Correia dirigiu a primeira representação da peça agressivamente anticapitalista de Oswald de Andrade, “0 rei da vela” (1933), dedicandoa ao cineasta Glauber Rocha depois de ter visto seu “Terra em transe” (1967). Joaquim Pedro de Andrade deu o principal papel feminino de “Macunaíma” (Ci, a guerrilheira urbana) a Dina Sfat depois de vêIa em “0 rei da vela”. Augusto de Campos levou Caetano Veloso para assistir a peça de Oswald de Andrade, e dai em diante Caetano começou a referirse ao tropicalismo como “neoantropofagia”... Todos estes eventos aparentemente triviais demonstram a interrelação de várias formas de produção artística.[1]
Talvez mais elucidativo desta ponte com o Cinema Novo seja mesmo a Central do Brasil. Não há como evitar a evocação de “Rio Zona Norte”, de Nelson Pereira dos Santos. A metáfora de Walter Salles é contundente. Lembro apenas a seqüência do assassinato do pivete na linha do trem. Rude, trágica, neorealista, cinemanovista. No filme do Walter Salles não há lugar para a comiseração. 0 trágico se junta ao lírico e o que salta aos olhos é um Brasil Central (do Brasil). Por essa estação terminal passa o Brasil vivo, humano, excluído, criativo. Foi também neste universo que muitos filmes do Cinema Novo buscaram seus personagens ou com eles se identificavam. Era uma tentativa de compreender esse Brasil dos excluídos. A “estética da fome”, tese apresentada por Glauber Rocha, por ocasião da retrospectiva do Cinema Novo, na Resenha do Cinema LatinoAmericano, realizada em Gênova — em janeiro de 1965, sob o patrocínio do Columbianum, uma instituição criada e dirigida pelo padre jesuíta Angelo Arpa —, reproduz, com exatidão, este sentimento profundo que tornou o Cinema Novo algo exemplar na cultura mundial:
A fome latina ... não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida. Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entendeu. Para o europeu, é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro, é uma vergonha nacional. Ele não come, mas tem vergonha de dizer isto; e sobretudo, não sabe de onde vem esta fome. Sabemos nós que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto, que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos de tecnicolor não escondem, mais agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superarse qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.[2]
Parece até que Glauber falou estas palavras ontem. Na verdade lá se vão mais de 33 anos. Lembram também a lúcida teoria do nosso geógrafo maior Milton Santos que nos diz que dos excluídos emergem as soluções e a criatividade. A única esperança que resta à humanidade são os famintos. De certo modo, é o que nos diz também Walter Salles em seu filme “Central do Brasil”. Como identificar a humanidade hoje senão naqueles que não a têm por não participarem em nada da chamada vida moderna? Penso aqui no sociólogo francês Paul Virilio que questiona inclusive o chamado Cibermundo. Em entrevista ao Globo de ontem, dia 12 de abril, Domingo de Páscoa, sobre o seu livro Cibermundo, a política do pior que será lançado, no Brasil no segundo semestre, pela Relume Dumará, Virilio diz textualmente que a invenção de um objeto técnico como o navio e a invenção do naufrágio. Mas este acidente, diz ele, corresponde a condições e época dadas, o que indica tratarse de um acidente local. Com a telemática, a informática, a teletecnologia, continua Virilio, inventase um objeto global, e não mais local, que tem a potência do acidente total, ou seja, de um acidente espontâneo e global. E completa Virílio: O crack financeiro asiático mostrou que a política econômica é globalizada. O crack só foi local porque não há uma interconexão cibernética dos mercados. Minha preocupação finaliza, é chamar a atenção que pela primeira vez inventamos um acidente integral, exatamente como a reação em cadeia nuclear.
Ora, se é verdade o que diz Paul Virilio, isto é, se estamos fazendo do espaço virtual o grande vilão da nossa incapacidade de sermos simplesmente humanos, a esperança só pode estar de fato nos excluídos. Se vítimas forem desse acidente integral de que nos fala Virilio, serão capazes de reconstruílo com a humanidade que os humanos civilizados não foram capazes. Não quero aqui fazer profecias, nem muito menos a apologia da política do pior. Ao contrário, ser absolutamente moderno parece me uma atitude construtiva, solidária., humana, como a que o Walter Salles nos mostra em seu filme.
Além do Brasil Central do Brasil, creio que mais uma ponte pode ser lançada como ligação com a modernidade do Cinema Novo. É essa capacidade cultural de ir contra a corrente. De certo modo, Walter Salles não se interessa pelo efeito especial em si. Não o nega. Algumas maravilhosas seqüências de seu filme só puderam ser feitas com o uso de técnicas cinematográficas competentes e avançadas. Trabalhou, como se diz, com tecnologia de ponta. No entanto, o que se vê, se vê mesmo. Sua criação visibiliza para nós aquele ser humano que está adormecido, num lado, um tanto tenebroso, da nossa alma. Na maioria das vezes, o cinema mostra muito, mas visibiliza pouco. E Walter Salles vai na contra mão desse cinema. Teve a coragem de assumir o novo, portanto, o moderno. Pois, ser moderno é ser hoje. Esta ponte já foi lançada por Glauber Rocha, no texto já citado, em 1965:
Onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade, e enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da censura intelectual, aí haverá um germe vivo do Cinema Novo. Onde houver um cineasta disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, ai haverá um germe vivo do Cinema Novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a por seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo. A definição é esta e por esta definição o Cinema Novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do cinema industrial é com a mentira e com a exploração.[3]
Novamente Glauber Rocha rompe com a mediocridade, a repetição, com o quadro de exploração cultural a que se submetem os medíocres e passadistas. Alguém duvida que esta é uma atitude moderna? Pelo menos neste caso, é preciso ser absolutamente moderno.
Páscoa de 1998 (12 de abril)
Notas