Heidrun Krieger Olinto
PUC- Rio
É preciso ser absolutamente moderno! Será?
Pequenas dúvidas merecem, talvez, um cauteloso depende.
Antes de articular as minhas reflexões em torno de hipóteses alternativas, facilitadas pelo caráter afirmativo flexível desse verbo, parece-me oportuno sintetizar uma impressão geral.
Não creio que as concordâncias e sensibilidades da consciência contemporânea permitam validar uma proposição que prescreve, de modo tão imperiosa, uma ordem de caráter anônimo, para enfatizar um desejo de vida pessoal. E, muito menos, um projeto utópico global, a ser cumprido sob esta forma de intimação. Mesmo, se por um toque de mágica, se substitua o ponto de exclamação pela interrogação, concedendo portanto não só o privilégio da dúvida mas igualmente a possibilidade de desobediência.
As perguntas que se impõem, nesta situação, podem ser resumidas mais ou menos assim: o que separa, além da distância histórica de cento e vinte e cinco anos, a exortação convicta de então, do seu abrandamento atual; o que permite afiançar, ou não, a permanência do diagnóstico para uma avaliação, digamos, novamente finissecular; e, por último, que significados ocultos podem e querem segredar essas palavras para os seus fascinados leitores posteriores?
Jean Nicolas Arthur Rimbaud, aos dezenove anos, e sob o impacto de suas desventuras amorosas — tão espetacularmente rompidas por um tiro de revolver do amigo Verlaine —, compôs, em 1873, os poemas em prosa Une saison en enfer. Na ótica do texto, e talvez na percepção do próprio poeta, a frase “Il faut être absolument moderne!”, incluída na última parte do conjunto, intitulada Adieu, à primeira vista parecia expressar apenas a despedida do inferno, acompanhada pela advertência, a si mesmo, de uma passagem sem ilusão para a vida moderna. Tratava-se, então, de um gesto patético e periférico, de estímulo impositivo pessoal, diante da visão apocalíptica da história de sua vida privada? Se fosse apenas isso, não merecia tanta agitação.
Os exercícios exegéticos subseqüentes não se legitimam apenas pela ânsia de libertar intimidades escandalosas, mas se motivam, antes, pelo desejo de pensar e de ouvir, em período de conflito, mais uma vez a voz oracular do profeta, ainda que dilacerado e de menor proveito. E, é neste sentido que a confissão canônica e ambivalente do compromisso incondicional de Rimbaud com a modernidade ganha dimensões que desafiam os nossos pensadores mais hábeis e habilitados. Em seu tempo, e possivelmente ainda hoje, a fórmula absoluta do poeta pode, também, ser lida como eco do grito de guerra entoado pelo pintor e escultor contemporâneo Honoré Daumier, convocando todos a participar, com entusiasmo último, no palco da crise da segunda metade do século XIX: “Il faut être de son temps!”
Um olhar sobre a história acidentada da palavra moderno mostra, de imediato, que o termo enfatizado por Rimbaud, e transformado em substantivo por Baudelaire, não foram eventos inaugurais.
Na tradição ocidental sobrevivem muitas modernidades que se distinguem com respeito à cronologia, conteúdo, espaço e função. Wolfgang Welsch, filósofo e crítico alemão da cultura, dedicou, no livro Unsere postmoderne Moderne (1987), uma parte substancial de sua análise à escala diferencial dos exemplos que exigem o predicado moderno para situar uma eventual condição pós-moderna. As questões tematizadas giram tanto em torno da tentativa de qualificar uma modernidade que se distancia, supostamente, de uma pós-modernidade, quanto em torno dos diversos modelos explicativos a ela subjacentes. E, neste contexto, torna-se mais importante enfatizar menos a coesão e homogeneidade dela, do que as incontáveis fragmentações que, na perspectiva de hoje, passam a ser objeto de interesse e pesquisa.
Uma das perguntas mais urgentes refere-se, provavelmente, à curiosidade em saber de que, afinal, consiste a miséria da modernidade que uma suposta pós-modernidade tanto critica, pretende superar, ou, no mínimo, enquadrar.
O instigante nestes novos debates diz respeito à oportunidade de tornar visível algo, aparentemente, pouco notado ou, com escassas exceções, não considerado suficientemente carente para merecer uma menção mais detalhada e atualizada. Três décadas de incansáveis discussões sobre o fenômeno de nome duvidoso, de conteúdo intransparente e de dimensões difusas, revelaram, pelo menos, que ao pós-moderno corresponde um par conceitual igualmente oscilante, camaleônico, e em nada semelhante à idéia monolítica comumente sugerida por reflexões apressadas que traduziam o moderno por um catálogo de normas, de certo modo, estáveis.
Se articularmos estes entendimentos com duas investigações acerca do conceito moderno, realizadas por Hans Ulrich Gumbrecht, respectivamente no final da década de 70 e no início dos anos 90, encontraremos espaço para uma reavaliação mais plausível da palavra de ordem de Rimbaud e do seu eventual efeito em nosso clima finissecular.
No verbete Modern, Modernität, Moderne, feito sob encomenda por Gumbrecht, em 1978, para o dicionário Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland (1978), encontramos materiais de esferas da experiência até agora pouco considerados para construir o conceito moderno. Seu trabalho que acompanha, ao longo de quase quinze séculos, a história semântica do termo, elaborada parcialmente, também, por Hans Robert Jauss, em “Tradição literária e consciência atual da modernidade” (1996), ainda que fundado em modelo historiográfico distinto, pretende ser simultaneamente uma contribuição para discutir teorias e métodos de uma história de conceitos.
O uso do conceito dentro da norma verbal enquanto instituição social leva, segundo ele, à hipótese de que palavras particulares são usadas e entendidas de modo distinto em diferentes esferas da experiência, onde assumem significados diversos. Sem essa premissa, a pluralidade de sentidos que uma palavra é capaz de exibir em diferentes contextos poderia ser interpretada, equivocadamente, em função de mudanças diacrônicas de sentido, quando, na verdade, ocorre uma multiplicação sincrônica de usos e sentidos em esferas de experiência distintas.
Baseado numa descrição sistemática das alterações de sentido, de acordo com o seu modelo teórico, segundo o qual todos os sentidos articulados por normas lingüísticas resultam de seleções socialmente condicionadas a partir das possibilidades semânticas oferecidas por um sistema verbal vigente, Gumbrecht apresenta o esboço heurístico de um sistema de possibilidades semânticas do termo moderno em função de três perspectivas tipológicas. Na primeira, moderno se entende como atual, em oposição a anterior. Neste sentido, o predicado moderno é atribuído a conceitos, objetos ou pessoas que representam lugares institucionais que podem ser realocados. No segundo modelo, moderno é compreendido como par dicotômico de antigo e, nesta perspectiva, o predicado moderno refere-se a uma época experimentada como presente que se afasta de épocas anteriores a partir de determinadas qualidades vistas em sua homogeneidade, apesar de serem complexas. Neste prisma, o início do presente pode recuar para passados remotos. A terceira possibilidade tipológica ocorre quando um presente é pensado pelos contemporâneos na condição do passado de um presente futuro. Essa concepção de moderno, que sustenta igualmente a interpretação da teoria da modernidade de Baudelaire feita por Hans Robert Jauss, permite classificar um presente percebido como tão fugaz que, em vez de ser oposto a eterno como contraponto estável, ele se distancia do passado como qualitativamente diferente (96).
Uma longa história semântica localiza o mais antigo uso do adjetivo modernus já no século V, mas à nossa argumentação interessa a primeira ocorrência do termo no contexto do movimento cultural chamado “Renascimento do século XII”, quando moderno dá lugar a uma nova autoconsciência fundada sobre o contraste com os antigos. É nesta perspectiva que cabe a figura emblemática criada por Bernard de Chartres ao caracterizar os moderni como anões sentados nos ombros de gigantes, e por isso, donos de um horizonte muito mais abrangente.
Esta bela imagem, convocada até hoje para sublinhar as mais diversas e contraditórias leituras do predicado moderno indica, no caso, a admiração pelo passado como condição de sua superação no presente. Entretanto, como sinaliza Gumbrecht, ela permite igualmente elaborar contra-argumentos fundados sobre a identificação de moderno como transitório, antecipando, nesta leitura da figura, a possibilidade de épocas passadas serem entendidas como modernitas.
O paradigma dicotômico antigo/moderno, ainda adequado no século XIV como modelo explicativo para o renascimento da cultura antiga no presente, perde plausibilidade durante o século XV a favor de uma concepção trifásica da história dividida em florescimento do passado (Antigüidade), decadência cristã (Idade Média) e Renascimento e, nesta visão do presente, um passado ajuizado como exemplar é separado do presente por uma era sombria, a Idade Média. Embora a relação com a Antigüidade, como modelo de imitação incondicional, domine a autoconsciência renascentista, ela já se encontra permeada pela esperança de um renascer cultural da antigüidade greco-romana.
Uma posição explícita a favor da consciência de superioridade do presente começa a tomar forma, no entanto, apenas em 1687, numa sessão da Académie Française, transformando-se em uma polêmica de vinte anos, conhecida como Querelle des Anciens et des Modernes, e que terminava por substituir a visão cíclica da história pela concepção do progresso histórico. A autoria da famosa proposição, “c’est nous qui sommes les anciens”, usada por Charles Perrault e Fontenelle, que lideravam o movimento, é discutível. Segundo Matei Calinescu, foi Francis Bacon o responsável pela construção paradoxal que situa a experiência dos jovens em relação à sabedoria dos velhos a partir do argumento de que os modernos são realmente os antigos que, em seu próprio tempo, tinham sido jovens e modernos (Calinescu 1987:24). Outros defensores anteriores da modernidade, entre eles Descartes e Pascal, usaram também a figura que passou por consolidar, curiosamente, o reconhecimento do valor próprio do presente a partir de duas posições inicialmente incompatíveis. A solução final da disputa entre os modernos, que desvalorizavam as obras da Antigüidade, e os antigos, que as queriam ver julgadas de acordo com o gosto de seu próprio tempo, não sublinha apenas o interesse que cada época deveria merecer dos posteriores, mas igualmente a percepção de que nós que somos tão modernos, seremos logo antigos, enfatizando-se, assim, uma nova autoconcepção da situação histórica do presente: cada época vendo-se como passado do futuro.
Durante o século XIX não se manifesta apenas uma compreensão renovada do presente, a partir da transformação do moderno em movimento temporal, mas o novo denominador da consciência alterada do presente passa a ser a própria experiência da aceleração acompanhada pela convicção de que a própria modernidade, em última análise, era fadada a ser superada. Essa idéia toma forma na substituição do termo moderno, enquanto conceito de época, pelo uso enquanto nomeação de um presente experimentado como ponto de transição (Gumbrecht 1978:104).
A novidade dessa consciência temporal evidencia-se, por exemplo, na reflexão de Stendhal por ocasião da escrita de uma carta, em 1832. Pressentindo que esta, mal terminada, em futuro muito próximo, já poderia perder a sua atualidade e passar a fazer parte do passado, ele indaga: “Que penserai-je de ce que je me sens disposé à écrire en le relisant vers 1835, si je vis?”. E essa preocupação com o juízo do futuro próximo sobre o próprio presente tem para Stendhal como conseqüência uma nova consideração acerca da validade de sua ação no tempo:”ma philosophie est du jour ou j’écris” (apud Gumbrecht 1978:110).
Três décadas depois, Baudelaire em Le peintre de la vie moderne traduziu a nova sensibilidade temporal numa teoria estética da modernidade que oferece potencial explicativo, ainda, para as vanguardas do século XX. A suposição de que todos os passados devem ter-se experimentado como presente e a sua arte como moderna, levou Baudelaire à conclusão de que as palavras moderno e modernidade não nomeiam apenas particularidades de uma época mais recente, mas todas as idéias dos homens em diversas épocas, sempre perecíveis, sobre o belo. E é nesta ótica que ele acaba por qualificar o moderno como transitório, fugidio e contingente. Nesse conceito, que abrange a criação de múltiplas idéias transitórias, não cabe como contraponto uma antigüidade na qualidade de essência de um passado, mas tão somente o perene. Tanto o princípio do moderno quanto do eterno complementam-se na dupla natureza do belo, e a tarefa da arte devia consistir no resgate do belo no transitório para que o eterno possa constituir-se em contraface do moderno.
Em todo o caso, a compreensão do presente, abreviado em ponto de passagem no tempo, parece ter atingido um limite semântico para o conceito moderno que é cruzado no instante em que o próprio presente, por assim dizer, se antecipa como momento de construção do futuro (Gumbrecht 1978:121). Segundo Gumbrecht, já em 1895, Antoine Albalat, um dos críticos principais do atualismo da escola naturalista, teria proposto atribuir a essa tendência o predicado dans-le-mouvement, mas enquanto esse termo não foi absorvido pela norma lingüística, um outro, oriundo da discussão estética por volta de 1900, teve um sucesso invulgar: vanguarda (122). Como palavra, batizava os representantes de novas posições pré-revolucionárias, em oposição não só ao passado mais recente, mas igualmente ao próprio contexto sócio-cultural. Esse momento marca um ponto culminante na história semântica do conceito moderno, pela emergência de um conteúdo não existente no sistema referencial da linguagem corrente, alterando, deste modo, o significado que lhe tinha sido atribuído. Em sua origem uma palavra da terminologia militar, e já usada antes de 1900, vez por outra, como designação metafórica pelas mais novas escolas artísticas e por grupos políticos de orientação futurista, o predicado vanguarda só podia ampliar o seu horizonte semântico à medida que dessa nova experiência do tempo resultasse, também, uma nova compreensão do presente na qualidade de momento constitutivo do futuro. Desde então, o emprego do termo moderno torna-se mais raro para nomear tendências sociais, literárias e artísticas mais recentes e sua função se limita hoje ao primeiro tipo, ou seja, ela se entende predominantemente como atual, par dicotômico de anterior.
Curiosamente, a maioria dos representantes da modernidade, após o fracasso de seus próprios programas, só perceberam que a substituição do predicado moderno pelo termo vanguarda implicava o abandono do conceito de época e que era preciso encontrar propriedades específicas para ser definido em relação ao passado. Nesta perspectiva, as transformações nas diversas tendências artísticas ocorreram com tal velocidade que todos os princípios estéticos originários da modernidade deixaram de ser plausíveis. E, deste modo, cresceu a idéia da impossibilidade de impor a modernidade como orientação de um novo presente. Uma situação que antes do término da primeira década do século XX já podia ser resumida por esta simples fórmula: não existe mais modernidade (Gumbrecht 1978: 123).
Característico para o século XX tornou-se a substituição da idéia de uma seqüência diacrônica de teorias estéticas e estilos de época, em que os últimos formam necessariamente a arte do presente, a favor da consciência de que cada momento presente, em sua dimensão sincrônica, oferecia uma quantidade imensa de conteúdos e procedimentos, uma hipótese articulada por Gumbrecht como passagem de uma diacronia de estilos de época para uma sincronia de possibilidades estilísticas (126). O presente, neste modelo, corresponde, assim, ao momento seletivo das possibilidades em aberto para construir o futuro, precisando comprovar-se como passado deste futuro.
A percepção do presente como momento de transição em direção ao futuro, transformando a modernidade em categoria de movimento, revela, neste prisma, a sua orientação antagônica com respeito à tradição. De modo simultâneo, a esse imperativo de mudança e ao enfraquecimento do uso moderno como indicador de época, impõe-se a percepção de desenvolvimentos desiguais de esferas da vida distintas, o que se reflete igualmente nas diferentes transformações semânticas do termo.
Assim, a estética do século XX, na reflexão filosófica referida a ela, pode ser interpretada a partir do fortalecimento da idéia baudelairiana vertida em conceituação da modernidade. O caráter transitório de obras de arte modernas deixou de ser sentido como destino fatal, em troca da percepção de uma negatividade desejada, no sentido de oportunidade de resistência a uma sociedade alienada.
Uma das razões que motivam as reflexões de Gumbrecht, no artigo “nachmodernEZEITENräume” (espaçosposterioresaosTEM-POSMODERNOS, numa tradução literal), de 1991, pode ser traduzida como desconfiança em relação à filosofia e às ciências humanas que, contrariando expectativas gerais, não ocupam posição de vanguarda no pensamento atual, o que, segundo ele, se revela no fato de que mesmo no final deste século, ainda não assimilaram plenamente um pensamento nachmodern. Um dos objetivos do ensaio pode ser visto, então, pela tentativa de mostrar como na perspectiva nachmoderne da vida cotidiana, — em oposição às teorias acadêmicas institucionalizadas — as dimensões espácio-temporais há muito são experimentadas em movimento, sem que essas mudanças tivessem causado dificuldades dramáticas de adaptação.
As novas experiências são ilustradas por Gumbrecht a partir do mundo dos saguões nos aeroportos. Para os passageiros em trânsito, ainda que o aeroporto de Nova York se encontre ao seu alcance atual — simultaneamente apreensível pela consciência e pelo corpo — ele, na verdade, é experimentado como alcance potencial, à medida que os saguões dos aeroportos são espaços sem nome que não se vinculam com determinada cidade mas, antes, com todos os outros saguões do mundo. Se a hipótese for correta, esse tipo de espaço — locais de trânsito ou de distribuição — encontra-se, hoje, no centro de nossa experiência de vida. Além desses deslocamentos na experiência de nossas zonas espaciais cotidianas, algo semelhante ocorre com respeito a nossas zonas temporais. Elas se mesclam constantemente, fazendo com que os nossos corpos transitem simultaneamente em tempos diferentes. No exemplo de Gumbrecht, o aeroporto Kennedy transforma-se em espaço de temporalidade altamente complexa.
Suponhamos que o nosso passageiro, chegando da Europa, tenha tomado o café da manhã ainda na Europa e, tendo tomado o segundo café da manhã no avião, sente então vontade de almoçar, esse seu apetite corresponderia a um tempo social que o seu corpo trouxe da Europa. No caso, ele estaria, por assim dizer, espacialmente presente no corpo do passageiro, mas em conflito com o tempo local dos empregados do restaurante do saguão que — tão cedo em sua manhã — só oferecem café e sanduíche de queijo. A esses tempos, de nossa situação inventada, acrescentam-se, ainda, no espaço único do saguão de trânsito, os tempos dos passageiros vindos do ocidente dos Estados Unidos, e que são visíveis nos rostos cansados dos madrugadores. (Gumbrecht 1991:58)
Se acrescentarmos a essa situação, ainda, os vários relógios encontráveis na maioria dos terminais indicando simultaneamente zonas temporais distintas, correspondentes aos respectivos fusos horários, teremos uma temporalidade radicalmente complexa. Junto com a espacialidade em trânsito, ela contribui para uma sensação de aleatoriedade contrária à direção do viajante que se desloca de um espaço de partida para um espaço de chegada, e essa sensação parece dissolver a sua intencionalidade e a sua linearidade.
Uma visita a qualquer cidade grande maximiza, de algum modo, essa experiência, porque a sua imagem se modificou desde a nossa última visita. A fúria restauradora, especialmente dos anos 80, junto com as formas arquitetônicas neo-historicistas e pós-modernas, transformou a pluralidade difusa das concretizações de estilos passados — ainda perceptíveis na cronologia das etapas estilistas seqüenciais — em multiplicidade total onde a identidade histórica dos diversos elementos particulares é agressivamente sublinhada (Gumbrecht 1991:58-59).
Essas novas experiências sinalizam mudanças fundamentais em nossa constituição espácio-temporal e a dificuldade em descrevê-las, porque os nossos repertórios conceituais disponíveis são totalmente incapazes de apreender aquilo que, em nossa vida cotidiana nachmoderne, há muito já se tornou trivial. Os novos esboços conceituais para estas temporalidades e espacialidades nachmoderne precisam incluir estruturas de experiência levando em consideração os múltiplos níveis do tempo e do espaço social (62).
Em vez de deixarmos o presente para trás nós o empurramos, por assim dizer, em direção ao futuro. E, ao mesmo tempo, os espaços do passado passam a ser reproduzidos, no presente, numa perfeição técnica antes inimaginável.
Dois movimentos — tanto o deslocamento do futuro próximo para um futuro distante, quanto o preenchimento do presente com múltiplos passados — convergem, portanto, na impressão de que o presente ampliou o seu espaço no tempo nachmodern. Nesta hipótese, o tempo nachmodern não é meramente uma nova época na seqüência linear do tempo, porque a construção de épocas, em constantes processos de substituição, tornou-se improvável. O tempo, enquanto tempo histórico, parece ter parado o seu movimento num presente de horizonte cada vez mais aberto e, ao mesmo tempo, ele parece estar atravessado por movimentos cada vez mais velozes, numa pluralidade de tempos simultaneamente co-presentes.
Para Gumbrecht, essa situação dificulta a manutenção de uma premissa de dois milênios e meio no pensamento ocidental: a diferença entre identidade e diferença. Somente os textos de Jorge Luis Borges (não por acidente canonizado como o pai da pós-modernidade) revelaram ao público intelectual que a própria língua não se opõe à eliminação dessa diferença, de que resulta a simultaneidade de diferença e identidade. No conto de Borges, o texto do Quijote, de Pierre Menard, é apresentado, ao mesmo tempo, como idêntico e como diferente em relação ao texto original de Cervantes (67).
Peter Sloterdijk oferece uma saída semelhante para a compreensão de nossa situação atual. A sua visão demanda a substituição da coruja de Minerva pelos agitados pardais nos telhados da cidade. A coruja, animal simbólico da filosofia, emerge do crepúsculo com olhar retrospectivo e transforma o tempo em pensamento. O preço desta tradução em conceito torna-se visível na impossibilidade de sua vivência. Segundo o filósofo alemão, “o tempo vivido apresenta um núcleo opaco; no fulgor obscuro do instante agitam-se tensões de tendências impossíveis de serem transformadas em transparência conceitual” (Sloterdijk 1992:9). E, nesta ótica, a filosofia dos pardais corresponde a um pensamento de simultaneidades, e adequada ao emblema veloz, ela nos livra da onipotência indolente da perspicácia a posteriori e da melancolia da reminiscência absoluta. Onde a coruja hegeliana enxerga uma totalidade, porque a própria totalidade se aproxima do fim e nos aparece como figura intelectual em declínio, os pardais, nos telhados, assobiam seus cantos fugazes — opiniões transitórias, inclinações momentâneas, perfis em processo, horizontes em movimento. “Esses pardais são, provavelmente, situacionistas, perspectivistas, taoístas. Não defendem conhecimentos últimos e cantos totalitários. Seus conceitos nos telhados, são nômades e voláteis, saudando as manhãs, conhecendo a posição do sol e o escurecimento do céu” (Sloterdijk 1992:10).
Uma última comparação permite, então, a volta à questão colocada. Fredric Jameson classificou de estratégia modernista a sua proposta de um mapeamento cognitivo, porque ele retém um conceito impossível de totalidade “cujo fracasso representacional parece agora tão proveitoso e produtivo quanto seu sucesso (inconcebível)”. Esse mapeamento não se baseia em algo tão simples como um mapa e é preciso “tentar imaginar uma coisa diferente” (Jameson 1991:405).
Mas eis justamente a questão.
Enquanto Jameson considera desejável “adotar uma abordagem genealógica e mostrar como o mapeamento deixou de ser acessível através dos próprios mapas” (Jameson 1991:405), Gumbrecht oferece uma imagem diferente das possibilidades de sobvrevivência do conceito moderno, até na alteração da própria grafia: nachmodernEZEITENräume (1991).
Se, nesta perspectiva, aventuramos uma resposta à nossa pergunta inicial — afinal, (não)queremos ser modernos? — ela não será absoluta. Em última análise ela depende do campo semântico que construímos em torno do termo. E certamente dos desejos eventuais, nostálgicos e extemporâneos que embaraçam o bom senso e as nossas certezas.
Por outro lado, nomes são apenas nomes. E, como já pensei em outras ocasiões, às vezes eles são mal distribuídos e infelizes porque causam certos estragos — no reino das idéias! Além do mais, esse batismo, talvez equivocado ou apenas mal entendido, tão somente confirma a crise. Afinal, nomes não correspondem às coisas (Olinto 1997:62).
E essa não é uma convicção ou filosofia apenas ornitóloga.
Referências bibliográficas
CALINESCU, Matei. Five faces of modernity. Durham: Duke UP, 1987.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. “nachmodernEZEITENräume”. In:—— e Robert Weimann (eds.). Postmoderne — globale Differenz. Frankfurt: Suhrkamp, 1991, pp.54-70.
——.”Modern, Modernität, Moderne”. In: O. Brunner, W, Conze e R. Koselleck. Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch sozialen Sprache in Deutschland. V. 4, Stuttgart: Klett-Cotta, 1978, pp. 93-131.
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo. São Paulo: Atica, 1991.
JAUSS, Hans Robert. “Tradição literária e consciência atual da modernidade”. In: Heidrun Krieger Olinto (org.). Histórias de literatura. As novas teorias alemãs. São Paulo: Ática, 1996, pp. 47-100.
OLINTO, Heidrun Krieger. “Reflexões sobre uma falsa dicotomia: moderno/pós-moderno”. Travessia, 31, 1997, pp.39-63.
SLOTERDIJK, Peter. Mobilização copernicana e desarmamento ptolomaico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.
WELSCH, Wolfgang. Unsere postmoderne Moderne. Weinheim: Acta Humaniora, 1987.