Cidades em Diálogo

Lisboa em prosa e verso

Ser uma Lisboa que não há
Nuno Brederode Santos (cronista)

Não vou denunciá-lo, por muito que ressinta este martírio a que, como o pior dos tratantes, me sujeitou. Eu bem sei como a melhor das almas desliza nas ondas da perfídia, quando o vento empurra de feição.

Mas não colaboro em fazer do leitor um lorpa, sobretudo porque receio bem que o seja. E, por isso, devo contar-vos a sinistra génese deste enorme mal-entendido.

Telefonou-me em fins de Junho. É homem modelar de simpatia, com um olhar vivaz mas cortês e um bigode que mais sociabiliza do que individualiza. Pediu-me um texto sobre Lisboa, o que me deixou, a um tempo só, apavorado e estupefacto. Mas, para quem como eu desperdiçou um seminário há tempos realizado sobre “refusologia” (enigmática arte e complexa técnica de saber dizer que não), senti-me, apesar de tudo, em maré de sorte. Partia para férias logo em Julho e, uma vez regressado em Agosto, precisaria de cerca de um mês e meio para pôr em dia os compromissos que inevitavelmente se acumulam, em bicha de espera inadiável. Isto permitiu-me falar verdade, escondendo só a alegria: se o artigo era para Julho estava fora de causa, pois só na segunda metade de Setembro é que eu teria disponibilidade para ele. Matreiro, ele fingiu chorar o destino padrasto e despedimo-nos como anjos, num aceno de nuvem para nuvem.

Foi, porém, sol de pouca dura. No dia seguinte, estava a telefonar de novo, achando que, afinal, a segunda quinzena de Setembro era excelente. Sabia que me lançava na lama da rua, no opróbio da nudez entrecoberta só por alcatrão e penas. Tive de me rebaixar ao plano B de combate, isto é, a verdade inteira. E disse-lha.

Sou lisboeta. O que é que querem que eu saiba de Lisboa? Ninguém conhece bem a própria nuca. Devo ter ido umas três vezes na vida ao Museu Nacional de Arte Antiga e a única em que fui ao Museu dos Coches já tinha idade para estar morto. Confundo os nomes de Carnide e Carnaxide. Sigo o conselho do Major Thompson e, para saber um itinerário urbano, pergunto ao primeiro japonês que passar com uma “Nikon” a fazer-lhe de chocalho. Ao volante, costumo ir dar aos sítios triviais, mas seguindo caminhos mais ínvios do que aqueles que atribuem ao Senhor. Fujo das multidões e do social-acidental, dos estádios, dos transportes colectivos e das bichas dos impostos: o que é que eu sei da psicologia colectiva desta tribo tão amável que passa tão bem sem mim? Conheço mal o património e não entendo o fundamentalismo de tantos que bradam aqui d’El-Rei quando a um mamarracho oitocentista se substitui um mamarracho de hoje. Nada sei de arquitectura e confundo facilmente o Prémio Valmor com o Prémio Valflor (que é o que costuma ser atribuído a um cordato pastorinho transmontano, de oito anos, que mata outros tantos lobos à dentada, para evitar que pisem um formigueiro). Olho o Tejo e tanto me comovo em êxtase e nostalgias de golfinhos, como faço contas ao valor perdido da pobre nafta que maternalmente lhe aconchega as margens.

Tudo isto eu lhe expliquei, mas em vão. O bom pérfido devia estar a sonegar o sorriso com o bigode e só me dizia que nada disto tinha importância nenhuma, que era até uma visão muito pessoal da cidade. E Setembro mantinha-se.

Eis porque aqui me encontro, tentando dizer o indizível e, claro está, na noite da véspera da entrega.

No desespero dos últimos dias, mãos amigas e apiedadas fizeram chegar até mim inúmeros calhamaços de títulos desencorajantes e lombadas intimidatórias. Jazem no chão ameno das falecidas boas intenções. Não li nenhum, pois sabia que seria presa fácil do primeiro teórico ou tratadista, por mais excêntrico, a quem abrisse os portões do meu cérebro indefeso. Estou só, tentando pegar de cernelha um touro que não chamei, numa corrida que não é minha.

Apenas sei, ou intuo, que, desarmado dos mais rudimentares instrumentos de análise e apreciação de uma cidade, me resta uma convicção inútil: a de que há mais Lisboas do que lisboetas e ainda mais do que os nossos visitantes nos roubam na avidez do seu olhar rapace. Pergunto-me até se o turista alguma vez apreende a alma do povo que observa, pois duvido que ela resida tanto no “very typical” massificado como no caleidoscópio dos hábitos diferenciados e dos comportamentos de excepção. As regras aproximam, mais do que apartam, as civilizações. Não será então a infracção o que melhor retrata um povo? Não será então o guia turístico o cheque careca do burlão que esconde os humores do quotidiano por detrás de pedras milenárias?

A minha indefinível Lisboa não é, nem pretendeu ser, melhor ou pior do que a alheia. É apenas tão pessoal, tão íntima e até tão mutilada como todas as demais. É apenas um pequeno e privativo presépio, composto de figuras sem rosto e talhadas no barro bruto da minha impartilhável memória. Mas eu aceito-a assim e apego-me a ela com a fanática e lunática emoção de que são feitas outras irracionalidades, como o patriotismo mais acrítico: “my city, right or wrong”. E é o espelho das primeiras reacções que antes de tudo o mais me denuncia. Subo ao cavalo, de armadura e lança, quando me confronto com a expressão de qualquer Lisboa alheia: se é lisongeira, contraponho-lhe a festa da crítica e, se é maledicente, ataco com a raiva do orgulho ferido. Afinal, cada lisboeta caminha pisando a sombra de um outro. O que tanto quer dizer segui-lo como negá-lo.

Talvez por isso propenda a menosprezar os ditames da história, da lenda ou da ficção universal: Lisboa é mais antiga do que Roma; Lisboa foi fundada por Ulisses; Lisboa foi a mão de Deus na dádiva do mundo ao mundo; Lisboa foi o intrépido pisteiro da Cristandade; Lisboa teve a única Inquisição que sucumbiu à caridade, enforcando o professor Pangloss, o grande metafísico da Vestefália; Lisboa ruiu, como Sodoma, mas renasceu, ao contrário dela; Lisboa, a “cidade branca” — e daí? São sombras que nós pisamos.

Mais me interessa pegar nalguns juízos de turistas que, neste mesmo ano cá vieram e que o “Público” pacientemente coligiu. Para os contrariar, é claro. Ou, pelo menos, para preservar a minha Lisboa.

Daniele Kogge (alemã): “Acho que não sou suficientemente inteligente para aprender a falar português”. Nós também não, Daniele. Mas arranjámos um dialecto que se revelou bastante acessível.

Carolyn von Stumann (inglesa): “As pessoas são ainda mais simpáticas do que eu pensava”. Você pensa muito pouco, Carol.

Mireille Stout (holandesa): “Mesmo os que não sabem falar inglês tentam ajudar, com as mãos e os pés e sempre a falar português”. É, Mireille. Não perdemos ainda a esperança de converter a língua inglesa num português falado com os pés.

Liz Patterson (australiana): “Há muito mais negros do que nos outros países europeus onde estivemos”. Muita dessa negritude é ideológica, Liz. São anarquistas catalães fugidos ao franquismo.

Huberto Fabre (mexicano): “São lindíssimas as raparigas portuguesas. Bronzeadas, sensuais, um espanto”. As tuas também, Huberto. E estão cheias de saudade. Volta já, que por aqui ninguém te toma por antropólogo.

Francesca Brignoli (italiana): “É talvez a única cidade em que me apeteceria viver. Mas sózinha não. Com Franca”. Tenho a impressão de que, com Franca, até Beirute te servia.

Rolf Danielsson (norueguês): “Portugal aparece muito pouco nas notícias difundidas na Noruega”. Obrigado. Igualmente.

Malka Verberke (holandesa, falando do trânsito): “Vocês têm mesmo de ter cuidado. Isto parece uma casa de loucos”. Não parece, é. Por todos, recomendo a leitura de uma reportagem recente do John Mortimore, publicada no Sunday Times e expressivamente intitulada “Hell on wheels”. Descreve como um táxi lisboeta bateu os máximos do Mickey Biasion no Bairro Alto.

Brigitte Brelle (francesa): “Fala-se muito no fado, nos azulejos e no escritor Pessoa”. Não leves a mal. Na tua terra fala-se muito no “Moulin Rouge”, na rotunda vitória de Leclerc em Paris e em Max du Veuzit.

Anthony Ferris (inglês, em tom apreciativo): “Parece que a vossa agricultura ainda é bastante orgânica”. Tony: não temos agricultura em Lisboa, ao contrário do resto do país onde ela não existe. Mas é verdade que, há quase uma década que os sucessivos titulares da pasta têm dado um contributo esforçado, pessoal e solitário para uma agricultura muito orgânica. Creio mesmo, tremendo de orgulho pátrio, que é uma política de Estado.

Eis algumas cintilantes reflexões dos novos espiões da paz, esses que trocaram morteiros por guias Michelin.

Que tem isto a ver comigo, que não pretendo ser Lisboa, mas apenas compartilhar do direito, que a todos os mais reconheço, de haver uma Lisboa que sou eu? Uma cidade interior, algo passadista mas sempre visionária, que eu ajudei a fazer muito menos do que ela ajudou a fazer-me? Uma cidade em que os amigos de infância só se fazem no Colégio Inglês, no Charles Lepierre, no Pedro Nunes? Uma Lisboa de tertúlias idas (mas que nos empenhamos hoje em substituir) ao sabor de tempos que foram nossos, mas também de vontades alheias invencíveis? Uma terra onde Campo de Ourique é uma víscera e Campolide já não, só porque o acaso assim (me) escolheu? Uma cidade de convívios fáceis, com a bica do Értilas a fazer uma geração de amizade e de política? Ou a do Gelo, para nos deslumbrarmos com a tensão amistosa de intelectuais rigorosos com intelectuais exotéricos? Ou a da Mexicana, para os aceleras discutirem se o último “kit” de Abarth tinha algum préstimo para uma voluntariosa frota de Fiats 600 já carunchosos? Ou de fins de tarde no Jardim da Estrela a testar, sem dar por isso, um arremedo de luta de classes, no contencioso da pedrada com a malta da Machado de Castro? Ou no Jardim da Parada, onde hieráticos cisnes sulcavam, no rigoroso silêncio de um navio fantasma, o lago dos peixinhos vermelhos? Ou a motivação da campanha do Delgado, com o meu pai a segurar-me pela mão às portas de Santa Apolónia? Ou o movimento estudantil, com a Pró-Associação dos liceus, a Associação Académica de Direito, a crise de 1962 e a expulsão para Coimbra (que não me fez largar Lisboa)? Ou as tardes passadas em “sessões duplas” do Paris, do Europa e do Jardim Cinema, onde, por cada filme de encher o papo, se apanhava com dezenas de “séries B” a preto e branco (com o Randolph Scott, o Joel McCrea, o Broderick Crawford, o Ray Danton, ou reposições mais antigas, como as transpirações do Bela Lugosi ou do Boris Karlof ou as galopantes gargalhadas com o W.C. Fields ou o Buster Keaton ou os Marx) e outro série B, mas em “deslumbrante Technicolor”, com o Jeff Chandler ou o Audie Murphy? Ou, mais tarde, os filmes da Hammer e o Corman? Ou, muito mais cedo, a descoberta da biblioteca do meu pai e, em particular, a “Miniatura”, que, por razões de ordenação na estante respectiva, me fez ler o “Ratos e Homens” do Steinbeck muito antes do “Huckleberry Finn” do Mark Twain? E a sociedade portuguesa de Ciências Naturais, ali à Escola Politécnica? E o CCUL? E, já na faculdade, a “Seara Nova”? E todo o eu sei lá que aqui não ponho, porque me interessa só reafirmar que há mais Lisboas do que lisboetas e esta, que refiro e não descrevo, é apenas a minha.

Há nela muito mais alma do que pedra. É um labirinto de lugar e tempo que me fez, para o bem e para o mal. Como os outros, caminho pisando sombras que não vejo nem conheço. E, ao fazê-lo, deixo as minhas sombras na calçada para que outrem as pise, seguindo-as e negando-as. Não quero uma cidade adivinhável e embalada na tara perdida do “very typical”. Quero prolongar e reinventar na transgressão o espaço que me foi confiado para fazer e viver a minha liberdade. Quero que se não perca a herança dos homens do deserto fazedores das grandes religiões. Quero conhecer trilhos sortidos na areia, pois só assim posso ir ajudando a fazer-me. Mas só os trilhos. Porque conhecer o deserto é perdê-lo.

Se o homem faz a cidade, a cidade faz o homem. E há Lisboas incumpridas, cidades que em nós se fazem.

Poemas de
Alexandre O’Neill

 

MEDITAÇÃO NA PASTELARIA

Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência
Agradece.

Nunca se sabe quando começa a insolência!
Que tempo este, meu Deus, uma senhora
Está sempre em perigo e o perigo
Em cada rua, em cada olhar,
Em cada sorriso ou gesto
De boa-educação!

A inspecção irónica das pernas,
Eis o que os homens sabem oferecer-nos,
Inspecção demorada e ascendente,
Acompanhada de assobios
E de sorrisos que se abrem e se fecham
Procurando uma fresta, uma fraqueza
Qualquer da nossa parte...

Mas uma senhora é uma senhora.
Só vê a malícia quem a tem.
Uma senhora passa
E ladrar é o seu dever — se tanto for preciso!
*
O pó de arroz:
Horrível!
O bâton:
Igual!

O amor de Raúl é já uma saudade,
Foi sempre uma saudade...

(O escritório
Toma-lhe todo o tempo?
Desconfio que não...)

Filhos tivemos um:
Desapareceu...
E já nem sei chorar!

*

Chorar...
Como eu queria poder chorar!

Chorar encostada a uma saudade
Bem maior do que eu,
Que não fosse esta tristeza
Absurda de cada dia:
Unha
Quebrada de melancolia...

Perdi tudo, quase tudo...

Hoje,
Resta-me a devoção
E este pequeno inteligente cão.

Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência
Agradece.

 

OS DOMINGOS DE LISBOA

Os domingos de Lisboa são domingos
Terríveis de passar — e eu que o diga!
De manhã vais à missa a S. Domingos
E à tarde apanhamos alguns pingos
De chuva ou coçamos a barriga.

As palavras cruzadas, o cinema ou a apa,
E o dia fecha-se com um último arroto.
Mais uma hora ou duas e a noite está
Passada, e agarrada a mim como uma lapa,
Tu levas-me p’ra a cama, onde chego já morto.

E então começam as tuas exigências, as piores!
Quer’s por força que eu siga os teus caprichos!
Que diabo! Nem de nós mesmos seremos já senhores?
Estaremos como o ouro nas casas de penhores
Ou no Jardim Zoológico, irracionais, ou bichos?

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Mas serás tu a minha “querida esposa”,
Aquela que se me ofereceu menina?
Oh! Guarda os teus beijos de aranha venenosa!
Fecha-me esse olho branco que me goza
E deixa-me sonhar como um prédio em ruína!...

 

UMA LISBOA REMANCHADA

AVENIDA DA LIBERDADE

Subamos e desçamos a Avenida,
enquanto esperamos por uma outra
(ou pela outra) vida.

CHIADO

Ramilhete rubro do desejo,
ramilhete posto pelo olhar
entre dois seios desdenhosos,
a dar a dar.

PARQUE EDUARDO VII

Ah, o êxtase dos namorados
que se olham, beijam, voltam a olhar-se e já não sabem
que mais hão-de fazer, que mais hão-de inventar!

TRAVESSA DO POÇO DA CIDADE

— Vejam lá se se despacham
que eu não quero lá fardas!

Rancho de amor para os soldados.
De cada vez só pode ir um.
E dois cabritos são esfolados
no tempo de um.

AO BENFORMOSO

Entre o fartum de peixe frito
e de sovacos sem sol,
passa o ranço, chique e ligeiro,
da brilhantina ROUXINOL.

BECO DA MAL-AMADA

Se acha que a vida não é boa
utilize gás da Companhia
o combustível de Lisboa.

AZINHAGA DO GUARDA-SÓ

Encontro um resmunguarda que me intima
a parar.

Seria por suspeita? Seria por rotina?
Não. Foi para conversar...

 

CORTEJO

“Passam varinas de gargantas sãs”
fraldiqueiros atrás de um bom regaço
bébés em quatro rodas e mamãs
com quem me faço

Passa uma sobrancelha (ou uma andorinha?)
um joelho aprendiz
uma baraboleta (coitadina!)
presa nos dedos de um petiz

Passa um chá de caridade pelo ar
a ver que asilo há-de ajudar
e a D. Pepa espanhola quase nua
que não passa de moda mas muda de rua

Passa D. Alda de Carvalho e Castro
Tudela da Fonseca (ó respiração!)
Lopes e Silva e ainda Bastos
entre-parêntesis Bramão

Passa depressa ó João!


VELHOS DE LISBOA

Em suma: somos os velhos,
cheios de cuspo e conselhos,
velhos que ninguém atura
a não ser a literatura

e outros velhos. (Os novos
afirmam-se por maus modos
com os velhos). Senectude
é tempo não é virtude...

Decorativos? Talvez...
Mas por dentro “era uma vez...”

*

Velhas atrozes, saídas
de tugúrios impossíveis,
disparam, raivoso, o dente
contra tudo e toda a gente.

Velhinhas de gargantilha
visitam o neto, a filha,
e levam bombons de creme
ou palitos “de la reine”.

A ler p’lo sistema Braille
— Ó meus senhores escutai! —
um velho tira dos dedos
profecias e enredos.

Outros mijam, fazem esgares,
têm poses e vagares
bem merecidos. Nos jardins,
descansam, depois, os rins.

Aqueloutros (os coitados!)
imaginam-se poupados
pelo tempo, e às escondidas
partem p’ra novas sortidas...

Muito digno, o reformado
perora, e é respeitado
na leitaria: “A mulher
é em casa que se quer!”

Velhotes com mais olhinhos
que tu, fazem recadinhos,
pedem tabaco ao primeiro
e mostram pouco dinheiro...

E os que juntam capicuas
e fotos de mulheres nuas?
E os tontilhos, os gaiteiros,
que usam cravo e põem cheiros?

(Velhos a arrastar a asa
pago bem e vou a casa.)

E a velha que desleixa
e morre sem uma queixa?
E os que armam aos pardais
nessas hortas e quintais?

(Quem acerta co’os botões
deste velho? Venha a cidade
ajudá-lo a abotoar
que não faz nada de mais!)

Velhos, ó meus queridos velhos,
saltem-me para os joelhos:
vamos brincar?

 

UMA LISBOA REMANCHADA

NO MESTRE ESCAMA: IRIA

— Dê-me a outra mão, senhor capitão...
— Nunca mais me promove, menina Iria?
— Ah! Agora é major! E eu que não sabia...
— Sou... Mas para si já em segunda mão...
— Também tenho um primo na Manutenção...

NO MESTRE ESCAMA: SR. ENGENHEIRO

— O senhor engenheiro hoje não engraxa?
— Engraxo na Baixa.

NO MESTRE ESCAMA: AZULEJO

— Neste país em diminutivo...
— Respeitinho é que é preciso!

COM QUE ERETISMO

Venha cá você, palavra alma!
Diga “boa-noite!” a esta senhora.
Não lhe mexa na mala.
Não lhe toque na lama.
Não lhe faça maal!
(Estas crianças!) Vá-se embora...

OS ATACADORES

A noiva já de noiva, a noiva já na igreja
e tu não encontras os atacadores!
Já viste na caixa dos sobejos, na mão dos bocejos?
Já viste na gaveta da cómoda?
Já viste nas pregas da imaginação?

Ganha os campos, foge, precede-te a ti mesmo
como um homem legalmente espavorido
por anos de critério,
sê repentino como um menino!

Convém-te não encontrar os atacadores?

Há noivas que esperam até murcharem as flores,
noivas de pé, muito brancas e já a fazer beicinho...

Procura... Procura sempre, pobrezinho!...
Procura mas não encontres os
atacadores...

A CENTRAL DAS FRASES

...já te disse que são os do primeiro...
...e afinal não pudemos telefonar...
...ai nem queiras saber o engenheiro...
...se me dão licença eu vou contar...

...penses nisso era só o que faltava...
...não as outras duas é que são as tais...
...mas o senhor presidente autorizava...
...na avenida centenas de pardais...

...de facto muito inteligente...
...ó filha por aqui fazes favor...
...que veio ontem p’ra falar co’a gente...
...é mesmo lá ao fim do corredor...

E TINH’ RAZÃO

Anda, meu Silva, estuda-m’aleção
vêsse-te instruz, rapaj, qu’ainstrução
é dos prito upão!
Ou querch ficar para sempre inguenorantão?

Poin os olhos no Silva teu irmão.
Pensas talvês que não le custou, não?
Mas com’é qu’êl foi pdir aumentação
au patrão?

E tinh’ rrazão…

O MACACO

(Valsa lisboeta)
(Comentário a desenhos de Júlio Pomar)

Nunca se sabe

até que ponto

um macaco

pode chegar

na ânsia de

nos imitar.

Dizem

alguns autores

ser o macaco

difícil de apanhar

— mas não

Em quaquer

mundana

reunião

num ombro

numa frase

num olhar

no jeito

«humanista»

de falar

aí temos

o macaco

a trabalhar

procurando

aproveitar

a confusão

Pessoalmente

sou de opinião

que o macaco

é fácil de caçar

até à mão.

 

APROVEITANDO UMA ABERTA

«Ó virgens que passais ao sol-poente»
com esses filhos-família,
pensai, primeiro, na mobília,
que é mais prudente.

Sim, que essa qualidade,
tão bem reconstituída,
nem sempre, revirgens, há-de
proporcionar-vos a vida

que levais.
Se um tolo nunca vem só,
quando não vem, não vem mais
ou vem, digamos, por dó…

E o dó doi como um soco,
até mesmo quando parte
de um tolo que a vossa arte
promoveu de tolo a louco.

Eu quando digo mobília,
digo lar, digo família
e aquela espiada gresta,
aberta, patente, honesta,

retrato oval da virtude,
consoladora do triste,
remanso, beatitude
para o colérico em riste.

Assim, sim, virgens sensatas!
(Nos telhados só as gatas…)
Pensai antes na mobília,
honestas mães de família,
e aceitai respeitos mil
do vosso

Alexandre O’Neill!

JORGE

Podes vir.
Mamã, enfim, morta.

 

TRÊS CARNEIROS DO TEJO

Nasce na serra de Albarracim, em Espanha,
entra-nos em casa pelo Ródão,
arremeda-nos a sua galadela,
depois acalma, vai deitando corpo,
e aqui, já todo ancho, o atravesso
diariamente, eu, o ribeirinho
que traz a mão na estiva de palavras
no outro lado e a cabeça algures.

Cada um com sua nuvem rente à boca,
que em alguns é o cúmulo da prosápia,
das leiras do sono nós todos arrancamos
pra Lisboa, a tão estremecida,
e ao barbeirinho opomos catadura
de quem está zangado com a vida.

E estamos.

*

Dragado de conversas, Tejo, darias mais calado
à nossa companhia,
mas calados só eu e a rapariga
que passou a noite a vadrulhar,
deu um pulo à tia e volta prà cidade
já quase na pele doutra pessoa,
retocado o bâton, aproveitada a olheira,
reposto o seio no lugar, tão sobranceiro!

É de dia caixeira, aposto eu.
Não vale que tu viste, digo eu eu.

*

Ó Tejo nunca inaugurado, nesta praça
devia haver comércio, esplanadas, mesas
onde eu assentaria o cotovelo e, a cafés,
diria, versejando, quem não és.

Com as Dez Odes do Dr. Armindo,
que, aliás, são um poema lindo,
ó Tejo vaidosão tu transbordaste,
tu não te contiveste, tu não te aguentaste!
Mas eu, Tejo continuado, nesta praça
minist’rial que mais te posso dar,
a ti que vens de Albarracim, meu espanhol,
que passaste Almourol,
que passaste Pereira Gomes e Redol,
senão a frase sim ou não ouvida,
com este meu ouvido, com esta minha vida,
a um rapaz que, sem malícia, veio,
da sombra sei lá de que sobreiro,
para dar em alguém, cá na cidade:

Ser da polícia,
dá cantina, barbeiro, autoridade.

 

O TEJO CORRE NO TEJO

Tu que passas por mim tão indiferente,
no teu correr vazio de sentido,
na memória que sobes lentamente,
do mar para a nascente,
és o curso do tempo já vivido.

Não, Tejo,
não és tu que em mim te vês
— sou eu que em ti me vejo!

Por isso, à tua beira se demora
aquele que a saudade ainda trespassa,
repetindo a lição, que não decora,
de ser, aqui e agora,
só um homem a olhar para o que passa.

Não, Tejo,
não és tu que em mim te vês
— sou eu que em ti me vejo!

Um voo desferido é uma gaivota,
não é o voo da imaginação;
gritos não são agoiros, são a lota…
Vá, não faças batota,
deixa ficar as coisas onde estão…

Não, Tejo,
não és tu que em mim te vês
— sou eu que em ti me vejo!

Tejo desta canção, que o teu correr
não seja o meu pretexto de saudade.
Saudade tenho, sim, mas de perder,
sem as poder deter,
as águas vivas da realidade!

Não, Tejo,
não és tu que em mim te vês,
— sou eu, em mim, que me vejo!

 

AUTOCRÍTICA

Ninguém ma pediu e já não está na moda,
pelo menos aquela pressurosa contrição
feita com cálculo e unção, aquela hipócrita
autoflagelação despudorada,
mas já é tempo (para mim) de deitar contas
ao verso e ao seu reverso, de mostrar a língua
a esse médico de quem tenho um pouco,
para ver como vai o foro íntimo
e, por consequência, o verso público.

*

“Nado e criado em Lisboa...” era um começo
não autocrítico, mas autobiográfico.
Sei muito bem que a biografia
explica muita coisa (até a azia!)
mas para quê esquadrinhar os anos
(joguei berlinde, joguei pião e juro aqui
que nunca o fiz para os americanos!)
à cata da raiz, se o que vivi,
para o mal ou para o bem, está aqui?

“Nado e criado em Lisboa...”: rejeitado
por excessivamente circunloquial.

(Comecemos sem mais delongas, prima,
ó volta e meia prima pobre, rima,
que a questão é simples: a poesia
dum tal...)

*

Dizem que me junqueiro, que me tolentino
e até que me paulino,
que tenho tudo e todos no ouvido
e não sou nada original.

Sim senhores, tem visos de verdade!

Serei eu, meu Deus, um ser reminiscente,
um desses semblantes ante os quais manda a prudência
que se pergunte ao botão antes de mais:
— Onde é que eu já vi este tratante?

*

Se pensar bem, o Junqueiro não me diz lá grande coisa.
O seu anticlericalismo fica-se pela batina;
o seu verso é tribunício e eu gosto da surdina
(ou do simulacro de estentor quando ele ajuda à crítica).
O 5 de Outubro já veio e já se foi,
mas não é a lata-de-trovões junqueiriana
que estamos a pedir na circunstância épica
que se aprò... que se aprò... que se aproxima.

Liguei sempre ao Junqueiro (sei porquê)
a conversa de advogado e a conversa de barbeiro.

Um tio advogado recitou-mo quando eu tinha treze anos
e não era mudo e só na rocha de granito;
um barbeiro anarquista, que me fazia a barba
com a estropiada mão bombista,
impingia-me “A Lágrima”, mas só ele é que se comovia
com aquela aguadilha que tremia
e ainda hoje deve tremer, tremeluzir
em certas almas litográficas, singelas.

Depois vi o Sérgio desmontar
as peças duma máquina que nem sequer havia
e perdi o Junqueiro de vista.

Será que eu me junqueiro? Pode ser,
já que tenho comido, sem saber,
de muita alpista...

Quanto a esse Tolentino, esse faceto,
devo dizer que nada lhe roubei
mas que podia ser meu neto.

Como neto podia muito bem
ser de Paulino, desse abade
que com certeza me arranjaria mãe...

(Continua o desfile, ó prima, já que a prosa
vai bonita a pretexto de autocrítica...)

*

Cesário diz-me muito: gostava de ferramentas, como eu,
e vê-se que para ele o ser feliz
era lançar, originais e exactos, os seus alexandrinos,
empunhar ferramental honesto
cuja eficácia ele sabia que
não vinha da beleza, mas da perfeita
adequação.
Não tem halo, tem elo e o seu encadeado
é o verso habilmente proseado.

(Que feliz eu seria, ó prima, se o Cesário
me tivesse deixado uma garlopa!)

António Nobre, embora seja muito em inho,
é o grande Só que somos nós,
por isso gosto dele (ai de mim, coitadinho!)

(E em conclusão do megalómano discurso,
ó prima, um bilhete-postal para o Pessoa,
a quem devemos todos tanto, a prima inclusive!)

Muito querido Pessoa, saberias agora
que não basta ser lúcido, merda, que não basta
a gente coser-se com as paredes
e cercar de grandes muros quem se sonha,
que não basta dizer basta de provincianos!

*

Bem sei que tenho sido, não poucas vezes, derrotado pela pressa,
que me espojo na anedota ou a embalo
na folha-de-flandres da conversa,
bem sei que muitos dos meus versos
nem para atacadores.
Sei que não se deve, que não é táctico cuspinhar contra o vento,
que logo, a jusante, um sujeito nos berra:
— Ó cavalheiro sua besta e se faz obséquio fosses cuspir na tua irmã!
Sei que não é bonito jogar ao chinquilho nos salões,
onde há tocheiros, santos, meninada, abstracções, tias
que a minha malha pode ofender, partir.
Sei que o sal das palavras
vai saraivar, às vezes, carne viva.
Sei que a rapariga que vem forrar os cantos
onde os homens se juntam, magote de pexotes,
com a sua esquivança de felino,
não aguenta a palavra com que eu lhe pego na palavra
e à queima-roupa lhe atiro.

*

A poesia é a vida? Pois claro!
Conforme a vida que se tem o verso vem
— e se a vida é vidinha, já não há poesia
que resista. O mais é literatura,
libertinura, pegas no paleio;
o mais é isto: o tolo dum poeta
a beber, dia a dia, a bica preta,
convencido de si, do seu recheio...
A poesia é a vida? Pois claro!
Embora custe caro, muito caro,
e a morte se meta de permeio.

*

De permeio, a morte? Sim, a arrenegada,
venha rebuçada ou escancarada,
a que te ceifa inteiro ou se deita, primeiro,
de esperanças, na tua lástima de cama.

De permeio, pois pois, que isso de morrer
não faz parte de nenhum programa.

E podia fazer?

 

E DE NOVO, LISBOA...

E de novo, Lisboa, te remancho,
numa deriva de quem tudo olha
de viés: esvaído, o boi no gancho,
ou o outro vermelho que te molha.

Sangue na serradura ou na calçada,
que mais faz se é de homem ou de boi?
O sangue é sempre uma papoila errada,
cerceado do coração que foi.

Groselha, na esplanada, bebe a velha,
e um cartaz, da parede, nos convida
a dar o sangue. Franzo a sobrancelha:
dizem que o sangue é vida; mas que vida?

Que fazemos, Lisboa, os dois, aqui,
na terra onde nasceste e eu nasci?

 

OS LAGARTOS AO SOL

Expõe ao sol a perna escalavrada,
no jardim do Príncipe Real,
uma velha inglesa. Não há nada
tão bonito (pra mim), so natural.

E conversamos: “Helioterapia
medicina barata em Portugal”.
Accionista do sol, ajudo à missa:
“But, não muito, que senão faz mal”.

Gozosos, eu e a velha, ali ficamos
à mercê de meninos e marçanos.
Ela, a inglesa, de perninha à vela;
e eu, o português, à perna dela.

Talvez que, se Briol nos conservara,
alguém um dia nos ajardinara.

 

RUA DO OURO

Fui rejeitado a cotovelo pelos saldos
Vi um ourives preso ao alfinete da gravata
a caprichar em filigranas
com uma pé-de-avestruz americana
O cheiro do café recém-moído transportou-me a outras plagas
Vi as sangrentas luvas pinares sobre as cabeças transeuntes
Ouvi dizer a um tipo que bela fôrma,
e pensei que terás tu para lhe meter dentro?
Li num cabeçalho o passado tem os olhos do presente postos no futuro
Embarquei em sapatos enforquei-me em gravatas
Descompus Cesário Verde que atravessava a rua
sobraçando uma chave-inglesa o descuidado
Contei os buracos duma roda de gruyère na montra daquela

charcutaria que tem uns rissóis

[sabes de camarão

Comprei um candeeiro diz que nórdico
a sua luz acompanha a mão de quem escreve e pára quando a mão
pára

Ouvi pedir compra-me o comboio eléctrico
e ouvi adiar se passares compro
Senti o cheiro das revistas recém-postas à venda
e pensei que bom estamos na Europa
Escorreguei os olhos pelas tabuletas dos advogados
Fisguei a abelha do trabalho que o Cesariny transformou em
mosca

e também vi vou sempre ver o pelicano do frontão
reflectido na montra faz um figuralhão
Subi ao de Santa Justa e para dominar os complexos
deitei lá de cima um avião
Vi à noite os casais que vêm ver as montras
gente que faz o quilo de nariz contra o vidro
Ouvi dizer a Banca é muitas vezes detestada porque pouca gente sabe o
que é um Banco

Sigo as recomendações dos lojistas da artéria

PREFIRO A RUA DO OURO.

 

VELHOS / 1

Tem sempre um quadradinho de marmelada para o bisneto pequeno.
Tira-o não se sabe donde.
Guarda os baraços dos embrulhos,
desfaz-lhes os nós (“Os japoneses põem os meninos nas escolas a desfazer nós!”)
e, baraço a baraço, fabrica um novelo multicor
que pode fornecer fio para atar um embrulho,
por exemplo, o da louça chinesa que, peça a peça,
vai pondo no prego.
Não se engana (e já trepou aos oitenta e muitos)
a declinar o rosa-rosae que aprendeu em coro quando pequena.
Gosta de cães, mas tem medo, desde que outro dia,
isto é, há vinte anos,
lhe morreu o Kiss atropelado,
das trelas sentimentais.
Numa gaveta defendida a naftalina,
dentro duma caixa de cânfora,
guarda palminhos de renda, uma gargantilha, véus, vidrilhos,
longos alfinetes ornamentais (aqueles de chapéu).
Arrasta consigo um passado a sépia de fotografias.
Diante de cada uma, recita parentescos, genealogias.
E a fechar o cortejo mostra sempre a do seu casamento.
Era formosa, cheiinha, um verdadeiro quanto-baste de mulher.
Enviuvou; sobreviveu a dois filhos; vive com uma amiga.
Às vezes está amuada, não sai do seu quarto e passa o dia inteiro a tisanas.
Quando visita o bisneto,
insiste em ensinar-lhe o rosa-rosæ:
quer que ele seja um causídico.
Já não escolhe a comida; escolhe os dentes.
É um passarinho.
Mas nos seus olhos doces, azuis e moços,
uma gaiata traquina.

 

VELHOS / 2

O Mataboches, o que deixou os alemães passarem em sucessivas vagas,
para, depois, do seu buraco, os dizimar pelas costas,
está que não pode.
Reformado da fábrica onde, até há poucos anos,
aproveitando as espertinas de ex-gaseado,
guardava as larápias sombras da noite,
o Mataboches já nem à taberna vai.
A filha, antes de sair para o trabalho,
deixa-o sentado à janela, entre canário e sardinheira,
com um mata-moscas à mão.
E o Mataboches passeia o curto-alcance dos seus olhos
do amarelo ao rosa,
vigiando mosca e varejeira.
Às vezes apanha chuva e larga a rir
(por ser regado ao mesmo tempo que as sardinheiras?)
um riso que põe o canário, espavorido,
a harpejar as barras da gaiola.
Penugem amarela rodeia o Mataboches.
Ele não dá por nada; dá a filha,
que lhe ralha e lhe faz ciúmes com o Hilário, o canoro.
Passa-se, então, um curioso ritual:
a filha tira o canário da gaiola, diz-lhe: “Ele foi mau prò meu Hilário!”,
e enquanto o pai se agita, regouga, troca e destroca
seus gestos de meio paralítico,
ela, com um olho no velho, beija o passarinho,
alisa-lhe as penas, quase o come.
E o ritual só acaba quando o Mataboches
mistura a sua baba com o seu ranho.

O Mataboches, o do C.E.P.,
peneira o ar com o mata-moscas
e erra a última mosca.

 

VELHOS / 4

Pouco a pouco arrumaram-no — é a vida! —
“num trabalho muito mais consentâneo
com as suas possibilidades actuais”.

A sua experiência, Azeredo, é-nos insubstituível.
Mas... que anda o senhor a fazer com os pardais?
Primeiro, migalhas no parapeito da janela.
Depois, na sua incrível secretária!
Acredite que eu nada tenho contra a sua pardalada,
Azeredo, mas não despacho, enfim, a papelada
que me venha com lembranças tais!
Aqui para nós, Azeredo, sabe como lhe chamam?
Pois fique-se com esta: o velho dos pardais.
Você traz-me a rapaziada indisciplinada
e é coisa, Azeredo, que eu não tolero mais!
Por que não vai você, ó Azeredo amigo,
dar milho àqueles pombos do Rossio?
Cartuchinho no bolso, na manhã de domingo...
É muito mais próprio e até muito mais lindo!
De qualquer forma, Azeredo, tenho dito!

Azeredo agradeceu a admoestação.
Disse do seu ornitólogo amor, mas prometeu
emendar-se, cumpridor como era.
Voltou à secretária, tinha um pardal à espera.

Azeredo sentou-se e chorou em silêncio,
enquanto o passarinho com o bico lhe puxava o lenço.
Colegas perpassavam, risos maldisfarçando.
A aflição do passarinho crescia com as lágrimas
que de Azeredo, uma a uma, o lenço iam molhando.

Foi então que o pardal chamou a si um coração maior.
Seu bico aduncou-se, seu corpo (tcht!) num ápice cresceu,
desdobrou longas asas, as garras firmou
e o olhar tornou-se-lhe um fuzil do céu.

Mil espanholas refrescando-se com os seus abanicos
foi o voo da ave, que em círculos medonhos deixou tudo em fanicos.
E ainda hoje os funcionários, que fugiram aos gritos,
se recusam a entrar na sala onde Azeredo
é um cadáver feliz e incorrupto,
sob outro, alado, bastante mais pequeno!

 

POEMA DE
João Pedro Grabato Dias
[2]

Há trabalho e Trabalho. Vou para o Trabalho
Nasci já em tempo de greve e doem-me os nós das ferramentas
a descoroçoar há tanto tempo no quente das algibeiras
ajeitadas somente ao artesananto caseiro de tempo de greve

ao desbastar inútil nos pausinhos do tédio por aparas de alheamento
ao conserto eventual da torneira da pia, ao fusível queimado.
Suspeito, sei, que o Trabalho é outra coisa. Uma talhada de alegria.

Uma grande talhada de alegria pegajosa e muito doce,
entre duas fatias de olhar a prumo crostilhante
e tudo amaciado com meio térmus de serenidade
em goles lentos, espaçados e salivares.

Vou para o Trabalho. Já me chamam as sereias.
Cantam vaaaiiiiiiiiii vem vem vem! E eu vou.
Não tenho medo às sereias, bem, tenho medo às sereias.
Um medo noturno de fitas de papel pondo grades nos vidros
dum alfabeto diferente enchendo manuais de defesa civil
duma girandola de suásticas nos espelhos do barbeiro
— no tempo em que minha mãe me mandava ao barbeiro e eu ia —

das lancinantes viúvas policiais recheadas de ganga azul
correndo sobre uma grande fotografia gelada
sarapintada de eléctricos amarelos, tramuéis de belém para o reino dos XXX

um medo com cheiro a gás lacrimogênio e as bastonadas
um fundo de correrias de anjos em sapatilhas de corda
um fiii de puuuuuuta varino ladrado num pregão de desespero
a areia nos dentes do um rumor de carda e casco de aço
as longas baionetas horizontais que me molduram a infância.

Tenho medo às sereias, tenho medo. Não tenho medo.

Tenho medo e não tenho. Mas que farei do sangue que vi correr
de Santos ao Conde de Óbidos, riachando na calceta de pedra redonda
e era a lama que nos obrigava a agarrar as paredes
no regresso da escola aos andares altos da pobreza ainda remediada?

Perguntai a uma criança que viu sangue correr às portas da escola
o que disse a professora na aula de hoje.

Perguntai a uma criança que viu uma carga da guarda republicana
de espada nua sobre as mulheres de alcântara
que sentido tem a palavra herói.

Perguntai a uma criança que viu correr o sangue dos seus amigos das docas
os gangas que lhe ensinaram a iscar um camoeiro
a teoria marxista dos nós de cânhamo e a amar a guitarra
o rol das dinastias, os nomes e cognomes e o milagre das rosas.

Perguntai a uma criança que viu matar às portas da escola
se ainda quer ser soldado quando for grande.

Perguntai a uma criança que viu a arma marcar a carne
a razão porque muda de passeio sem razão aparente
porque é que treme quando vê a farda do cobrador da luz
porque é que lê livros de adulto debaixo do divan
porque é que detesta sair aos domingos de tarde
porque é que não responde às visitas — a amável D. hortênsia
e as suas pistolas de chocolate — porque é que
perguntai-lhe, por que é que... por que é que!

***************************************************

Mil novecentos e quarenta em Lisboa. Lisboa após Expo.
Com a última nau negreira aportada ao restelo
com a branca pedra manuelina rozando vergonha
e o grande arraial minhoto à escala do microcefalismo
do pastorinho de santa comba, o pastorinho santo cuja aguilhada
ordenou tanto tempo o gado nacional e outros
o pastorinho iluminado que meteu os três da iria
numa tamanquinha, num surrão, numa cova dum dente
o pastorinho histórico sémennarista a golpes de vara
enfornado em fornos de algodres e servindo ao país quentinho
com uma ciência campesina de contar cruzados com bolotos
e a dureza sovina de quem aprendeu a dizer deus o salve
aos pobres de estrada sem um padrinho cura
o pastorinho com medo do lobo comum nisto e naquilo
e nos confiou tanto tempo a cães pastor cruzados de hiena
porque a mentalidade de pastorinho é esta: antes a salvo do lobo
no redil de rocalha onde já nem giesta medra
que liberto às alegrias do pasto que provém a ovelhas e lobos!

Ali estava eu, e testemunho. Menos que menor entre a grande arte
de gesso e cartão e ripados de pinho e sisal e cola
as grandes aparências fascis fachadísticas de claras em castelo
das gordas empadas dos francos manhosos, dos de bré sem brio,
do molungo leomoldo, do feyo feio, e todos os santeirinhos
de abaixo de braga em dia de bota abaixo e abre a dorna.

Ali estava eu. E a Arte? De alma até almada!
Dos gomilhos de um dórdio aos fundilhos dum tal
que nem quero lembrar e trazer ao proscênio
não vá sem querer dar-lhe a glória póstuma que sozinho não pode!
Um leitão de barro servia-se à bairrada por um espeto do ferro
e a posteridade sentou-se ali a tomar notas pra depois
enquanto um dragão de horror corria de meia ibéria à estepe
abria as asas de carbúnculo de polo a polo
e fazia chover uma sombra de fogo no globo rotativo.

E súbito, na noite baixa e húmida de inverno lisboeta
numa repetição de matiné de dois anos antes
cine peninsular da figueira, boris karloff na tela branca
a mão seca sedosa e fria de minha mãe desceu-se aos olhos
roubando-me ao mundo para subir ao útero puríssimo
da higiene mental, ao esterilizado viver sem ver.

Mas eu já tinha visto, ou pensara ter visto, o meu brinquedo melhor
o meu pretinho da guiné de lata pintada, o incansável
corredor de bicicleta no soalho de pinho da rua da lomba
o fascinante camarada mais perto do sol rimando em café
cor de café, cheiroso como o café sagrado moído à mão
e bebido em golinhos de encanto adulto com silêncios especiais
e sopradelas de bichinha gata e falsa severidade
enquanto eu lambia a colher com saizinhos de açúcar
à sombra tutelar, divina, já então mítica, de minha avó clementina.

Míope congênito, aventureiro das brumas, sempre pude ver distintamente
o que imaginava distintamente. O anulador dos meus monólogos
o encetador dos meus diálogos, o meu amigo da guiné
o ansiado irmão que vivia mais perto do sol
estava mesmo ali, tinha chegado no anoitecer de inverno
sem ser prevenido da névoa de lisboa, sem camisola de lã
sem calças à golfe, sem luvas de malha, menino jesus! sem luvas!
A mãe dele não tinha emprego na cuf, a mãe dele, não ia de eléctrico
para o emprego, e eu associava confusamente os transportes públicos
com tempo para fazer luvas de malha, e luvas de malha com mãe
e luvas de malha e mãe com castanhas assadas e viagens de eléctrico.

A mão de minha mãe soltou-me do cais da dor dela
como uma amarra soltada do lado da terra
senti a brisa do seu amor à verdade inchar-me a vela
e parti ao encontro do meu irmão da guiné
o meu irmão corajoso que só trazia tanga com tanto frio
parti num mar de encanto sobre a calçada de basalto e lioz
do lado norte da rosa dos ventos a caravela ao fundo
avançando, navegando na minha primeira largada à vida
a bruma fazendo-se bananeiras e coqueiros, o meu irmão esperando-me
via-o perfeitamente esperando-me junto aos seus
a minha alegria não me deixava navegar mais depressa
mas estava a chegar, sabia-o, estava a chegar mesmo
e de repente ó glória vooei! com o sobretudito aberto em asas
com as asas empurrando-me veloz, sem peso, levando-me
aaiii dolor! a quilha do peito rudemente travada por uma grade de paus
aaiiiiii dolor! por uma grade de paus enterrados no chão
travando-me no vôo para o meu irmão da guiné
fazendo-me reconhecer que não tinha asas, que tinha sobretudo
que sobretudo, sobretudo tinha frio, que eu agora era o frio.

A criança que eu era, não é eu. É uma criança em que eu era.
Objetivamente não posso recordar-lhe os caracóis como os meus
A objectividade da minha galharda calvície não permite
que dentro de um poema proto heróico, eu me apresente como herói.
Não creio que voltasse jamais a ter sobretudo até à capa e batina
nem seguramente voltei a usar calças à golfe ou luvas de malha.
Perdi-lhes o direito ali mesmo e para sempre.
Não me recordo ter voltado a voar sem que soubesse
que estava a usar a imaginação ou uma figura de retórica.
Nunca mais me voltei a sentir quentinho, ou, se voltei
recordá-lo teria sido insuportável e esqueci-o logo.
Nem nunca mais achei frio demasiado, e tenho vivido provocando
os elementos e as sensações embora não relacione de modo algum
aquela criança que ao tempo de encontrar o seu irmão da guiné
se achou olhando-o de um lado da paralisada pseudo decorativa
na súbita desgarradora descoberta de estar no zôo
sem amendoim possível para o seu irmão da guiné.

MEUS GRANDES FILHOS DA PUTA, cabrões de merda do inferno
quem me pode devolver ao que eu podia ter sido?
quem redime do frio de lisboa o meu irmão da guiné?
Negreiros do luxo e da luxúria quem paga os anulados
futuros de uma criança de caracóis e do seu irmão da guiné?
Não há sangue assassino capaz de encher a minha talha de ódios
nem mar que me dissolva esta dor continente.
Quero nascer de novo, quero nascer de novo, quero nascer de novo
Não desisto do meu irmão da guiné!

Detesto climas de emoção, palavra de honra. Palavra de Honra.
Poucas vezes a dei e nenhuma em verso, nem a rimar.
Seria seguramente incapaz numa praça de gente madura
de gritar: POR-TU-GUE-SES! ou VIVA A PÁTRIA vivó!
Há no entanto uma circunstância e sempre medularmente a mesma,
em que histerizo a dor e a ansiedade sem temor ao grito uivado
e sinto que alívio o universo de um grande peso
com um de costa a costa incensurável Filho da puuuuta!
ou um cabrão de merda libertário.
Toda a grande rota lingüística e multi milenar, vinda do grito
à raiz do vocábulo cromagnon e subiu como um salmão sonoro
os açudes da língua avó da língua, avó da língua, avó da língua
mãe da língua em que me exprimo a gosto e livre
me justifica estas sonoridades, as consente e exalta.
Não justifico. Ensino. Sobre isto, tenho dito e desço aqui.

 

A CARTA DA CORCUNDA PARA O SERRALHEIRO[3]
Maria José[4]

Senhor António:
O senhor nunca há de ver esta carta, nem eu a hei de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo.

O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto à janela quando o senhor passa para a oficina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importância na corcunda do primeiro andar da casa amarela, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquela rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja dela mas não tenho ciúmes de si porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir à rua e falar consigo ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecê-lo de falar.

O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguém que gostasse de mim como se gostasse das pessoas que têm o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e também tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguém.

Eu gostava de morrer depois de lhe falar a primeira vez mas nunca terei coragem nem maneiras de lhe falar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber.

Eu sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as corcundas são más, mas eu nunca quis mal a ninguém. Além disso sou doente, e nunca tive alma, por causa da doença, para ter grandes raivas. Tenho dezanove anos e nunca sei para que é que cheguei a ter tanta idade, e doente, e sem ninguém que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me dói, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor.

Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu nunca posso ter — e agora menos que nem vida tenho — gostava de saber tudo.

Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vai ler isso, e mesmo que lesse nem sabia que era consigo e não ligava importância em qualquer caso, mas gostaria que pensasse que é triste ser marreca e viver sempre só à janela, e ter mãe e irmãs que gostam da gente mas sem ninguém que goste de nós, porque tudo isso é natural e é a família, e o que faltava é que nem isso houvesse para uma boneca com os ossos às avessas como eu sou, como eu já ouvi dizer.

Houve um dia que o senhor vinha para a oficina e um gato se pegou à pancada com um cão aqui defronte da janela, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, ao pé do Manuel das Barbas, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim, para a janela, e viu-me a rir e riu também para mim, e essa foi a única vez que o senhor esteve a sós comigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar.

Tantas vezes, o senhor não imagina, andei à espera que houvesse outra coisa qualquer na rua quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito para os meus.

Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um estrado para poder estar à altura da janela. Passo todo o dia a ver ilustrações e revistas de modas que emprestam à minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando me perguntam como era aquela saia ou quem é que estava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu às vezes me envergonho de não saber, porque estive a ver coisas que não podem ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda por cima ter vontade de chorar.

Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque ninguém julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que explicar porque é que estive distraída.

Ainda me lembro daquele dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia que parecia o próprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ela mas com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi por isso que invejei toda a gente, o que não percebo mas o certo é que é verdade.

Não é por ser corcunda que estou aqui sempre à janela, mas é que ainda por cima tenho uma espécie de reumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse paralítica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me aceitar que o senhor não imagina. Eu às vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas à vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é e não como tinha vontade de ser.
(...)

— e enfim porque lhe estou eu a escrever se lhe não vou mandar esta carta?

O senhor que anda de um lado para o outro não sabe[5] qual é o peso de a gente não ser ninguém. Eu estou à janela todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de vida e gozar e falar a esta e àquela, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui à janela por tirar de lá.

O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saúde o que é a gente ter nascido e não ser gente, e ver nos jornais o que as pessoas fazem, e uns são ministros e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros estão na vida da sociedade e casam e têm batizados e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos médicos, e outros partem para as suas casas aqui e ali, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e há artigos assinados por outros e retratos e anúncios com os nomes dos homens que vão comprar as modas ao estrangeiro, e tudo isto o senhor não imagina o que é para quem é um trapo como eu que ficou no parapeito da janela de limpar o sinal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por causa da água.

Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de vez em quando me dizer adeus da rua, e eu gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais, que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá para onde se vai se soubesse que o senhor me dava os bons dias por acaso.

A Margarida costureira diz que lhe falou uma vez, que lhe falou torto porque o senhor se meteu com ela na rua aqui ao lado, e essa vez é que eu senti inveja a valer, eu confesso porque não lhe quero mentir, senti inveja porque meter-se alguém conosco é a gente ser mulher, e eu não mulher nem homem, porque ninguém acha que eu sou nada a não ser uma espécie de gente que está para aqui a encher o vão da janela e a aborrecer tudo que me vêm, valha me Deus.

O António (é o mesmo nome que o seu, mas que diferença!) o António da oficina de automóveis disse uma vez a meu pai que toda a gente deve produzir qualquer coisa, que sem isso não há direito a viver, que quem não trabalha não come e não há direito a haver quem não trabalhe. E eu pensei que faço eu no mundo, que não faço nada senão estar à janela com toda a gente a mexer-se de um lado para o outro, sem ser paralítica, e tendo maneira de encontrar as pessoas de quem gosta, e depois poderia produzir à vontade o que fosse preciso porque tinha gosto para isso.

Adeus senhor António, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir porque eu sei que não posso esperar mais.

Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida.[6]

Aí tem e estou a chorar.

 

Notas

  • 1 Textos interpretados pela atriz portuguesa Maria do Céu Guerra.
  • 2 Um dos pseudônimos (enquanto poeta) do pintor António Quadros.
  • 3 Copyright © Assírio & Alvim, Lisboa.
  • 4 Pseudônimo de Fernando Pessoa. Este texto foi ‘encontrado’ por Teresa Rita Lopes, tendo sido por ela publicado em Pessoa por conhecer — textos para um novo mapa. Lisboa: Editorial Estampa, 1990.
  • 5 Variante: “Calcula”.
  • 6 No início da linha, a indicação “end” (fim).