Willi Bolle
USP
Na época do seu nascimento, na segunda metade do século XVIII, a metrópole moderna encontrou sua representação adequada num meio literário, o gênero do tableau urbano, inaugurado com o Tableau de Paris (1781-1788), de Louis-Sébastien Mercier. As mudanças ocorridas de lá para cá, como a expansão da mídia, inicialmente em forma de revistas e jornais; a explosão da publicidade em passagens, vitrines e anúncios; a aceleração das informações, ligada a invenções técnicas como fotografia, cinema, rádio, TV, vídeo, computador, internet, obrigaram a tradicional cultura literária a repensar seu ofício. Depois das reflexões da geração de Baudelaire sobre as mudanças ocorridas em meados do século XIX, surgiu, nas décadas de 1920 e 1930, um novo paradigma de reflexões na obra de Walter Benjamin e de sua geração. Tentando sintetizar seus pensamentos sobre o fenômeno da metrópole moderna, como palco dessas transformações, pode se dizer que ele procurou não apenas retratar a metrópole, mas considerá-la como um médium-de-reflexão. (Trata-se da tradução do termo alemão Reflexionsmedium, usado pelos românticos de Iéna e retomado por Benjamin, GS I, p. 40, para designar a qualidade da obra de arte de proporcionar o conhecimento crítico.) Essa idéia será explicitada aqui, mostrando em que medida a grande cidade contemporânea marcou a forma e o estilo da escrita benjaminiana da história.
O livro Rua de mão única (Einbahnstraße, 1928), composto de 60 imagens de pensamento, é um texto de iniciação à cultura da grande cidade contemporânea. Numa dessas imagens, “Guarda-livros juramentado”, Benjamin tematiza o impacto da experiência urbana sobre a cultura do livro:
Agora tudo indica que o livro, na sua forma tradicional, vai ao encontro de seu fim. […] A escrita, que no livro impresso havia encontrado um refúgio onde levava sua existência autônoma, é inexoravelmente arrastada para a rua pela publicidade e submetida às brutais heteronomias do caos econômico. […] cinema e publicidade forçam a escrita a submeter-se de todo à ditatorial verticalidade. […] Hoje já é o livro, como ensina o atual modo de produção científica, uma antiquada mediação entre dois diferentes sistemas de arquivos. Pois o essencial encontra-se no fichário do pesquisador que o compôs, e o cientista que o estuda assimila-o a seus próprios arquivos. (GS IV, p. 102)
Na história da escrita, o livro constitui apenas uma etapa. Se na Idade Média ele surgiu, a partir da forma pioneira do codex, na atualidade acumulam-se sinais de dissolução de sua forma tradicional. Em termos de circulação de informações científicas, já existe uma agilidade maior em forma de intercâmbio de fichários. A imagem de pensamento acima pode ser lida também como uma reflexão de Benjamin sobre o seu próprio método de trabalho: o Projeto das Passagens, iniciado em 1927 e no qual o autor trabalhou até o ano de sua morte, em 1940, teve desde o começo a forma de um fichário, avolumando-se no final a cerca de 3.500 fichas.
Diante da crise do livro e contra o pano de fundo de 5 mil anos de história da escrita, Benjamin fez uma previsão quanto à evolução futura. Partindo da constatação de um “estado caótico” da economia e da ciência atuais, apostou numa reviravolta dialética, anunciando um tempo em que os poetas, graças à invenção de uma escrita nova, denominada por ele de internationale Wandelschrift, renovariam sua autoridade na vida dos povos. O conceito de tal “escrita de transformação internacional” não é precisado, mas parece apontar em direção a uma utopia social sob o signo de uma literatura inovadora:
Mas […] o desenvolvimento da escrita não permanecerá atado para todo sempre aos desmandos de um ativismo caótico na ciência e na economia, mas chegará o momento em que a quantidade vira em qualidade e a escrita, que avança sempre mais profundamente dentro do domínio gráfico de sua nova, excêntrica figuralidade (Bildlichkeit), tomará posse de seu teor adequado. Nessa escrita imagética (Bilderschrift), os poetas, que então, como nos tempos arcaicos, serão primeiramente e antes de tudo experts em escrita (Schriftkundige), só poderão colaborar se exploram os domínios […] nos quais sua construção se efetua: os do diagrama estatístico e técnico. Com a criação de uma escrita de transformação internacional (internationale Wandelschrift) eles renovarão sua autoridade na vida dos povos e encontrarão um papel em comparação ao qual todas as aspirações de renovação da retórica revelar-se-ão como devaneios góticos. (GS IV, p. 102 s.)
O surgimento da nova escrita (e da nova literatura) se daria sob uma dupla condição social e tecnológica: 1) Redefinição das funções e das estratégias da escrita, juntamente com uma conscientização do seu “teor adequado” e uma transformação da quantidade em qualidade. 2) Criação de uma escrita imagética com uma nova, excêntrica figuralidade e a exploração dos domínios do diagrama estatístico e técnico.
É perfeitamente plausível interpretar as especulações de Benjamin como uma espécie de intuição das atuais tecnologias computacionais, como o faz Arlindo Machado (1994). Esse aspecto tecnológico, no entanto, é apenas uma parte da proposta de Benjamin. Na verdade, ele, que observou uma profunda discrepância entre progresso tecnológico e qualidade da vida social, almejou uma síntese utópica entre ambos. Nesse sentido, a “escrita de transformação internacional” pode ser: 1) uma escrita (e literatura) de extraordinária mobilidade e irradiação, compreensível em toda a parte; 2) uma escrita visando transformações históricas; 3) um médium-de-reflexão sobre a transformação da escrita e dos demais meios de comunicação. É provável que o próprio Benjamin, com suas imagens de pensamento e seu sistema de siglas em cores (de que falarei um pouco mais adiante), tenha se engajado dessa forma em experimentos com a escrita de transformação internacional.
Num primeiro momento, não seria a própria metrópole a expressão mais patente da nova escrita? Com suas vitrines, passagens e exposições, ela é o palco de um espetáculo sempre renovado; com seus outdoors e tabuletas, seus letreiros e anúncios luminosos, ela se apresenta como uma nova forma de livro, um hipertexto. A metrópole, portanto, se configura como um médium. Será que é possível transformá-la em médium-de-reflexão? Na imagem de pensamento Alugam-se estas áreas, Benjamin confronta o novo médium da metrópole com a idéia tradicional de crítica:
Insensatos os que lamentam o declínio da crítica. Pois sua hora há muito tempo já passou. A crítica é uma questão de distanciamento adequado. Ela faz parte de um mundo onde contam enfoques e perspectivas e onde ainda era possível adotar um ponto de vista. Ora, nesse meio tempo as coisas encostaram à queima-roupa na sociedade humana. […] O olhar essencial de hoje, o olhar mercantil que penetra no coração das coisas, chama-se publicidade. Ela desmantela o espaço da contemplação desinteressada confrontando-nos perigosamente com as coisas, assim como, na tela de cinema, um automóvel, agigantando-se, avança vibrando para cima de nós. […] O que é que, em última instância, torna a publicidade tão superior à crítica? Não é o que diz o luminoso vermelho é a poça de fogo que o espelha no asfalto. (GS IV, p. 131 s.)
Como uma espécie de advogado do diabo da cultura letrada, Benjamin diagnostica o declínio da crítica, assim como diagnosticou o declínio da cultura do livro. Aquilo que poderia ser chamado de “escrita da cidade”, constituiu-se, investido de autoridade, poder e dinheiro, num enorme desafio para o escritor moderno. Pela sua onipresença, a publicidade e a propaganda, ligadas às tecnologias mais avançadas da escrita, submetem a tradicional cultura literária a um questionamento radical, colocando em xeque a própria existência da crítica. Com efeito, a constatação da superioridade da publicidade sobre a crítica resume uma situação com a qual a maioria dos autores, por resignação ou por oportunismo, já se acomodou.
Benjamin, por sua vez, respondeu ao desafio com o projeto de “recriar a crítica como gênero”, como escreveu em carta a Gershom Scholem em 1930 (Briefe, p. 505). Programa que implicou uma completa reaprendizagem do ofício de escrever, o abandono de formas literárias desgastadas e um conhecimento das inovações trazidas pelo mundo da publicidade. Os cadernos temáticos “G” (Exposições, reclames, Grandville) e “E” (Grandville e as exposições) do Trabalho das Passagens testemunham a nova orientação de Benjamin, caracterizada não por uma adesão à publicidade, mas pela tentativa de recriar o distanciamento, de “transformar a quantidade em qualidade”. Vale dizer que ele procurou fazer da escrita da metrópole um médium-de-reflexão (cf. GS I, p. 36-38, 62-69), ou seja, um pensar do pensar urbano, visando “libertar o futuro de sua forma presente deformada, por um ato de conhecimento” (cf. GS II, p. 75).
Dentre as estratégias benjaminianas de recriar uma literatura crítica, apta a “tomar posse de seu teor adequado”, está o desenvolvimento de novas perspectivas e novos instrumentos técnicos. O gênero “imagem de pensamento”, inventado por Benjamin e outros autores de sua geração, opera com novas combinações de elementos, na medida em que é uma montagem de materiais da publicidade e ingredientes da crítica. As imagens de pensamento de Rua de mão única não são simples reproduções, mas citações irônicas da escrita da metrópole, do “grande poema das vitrines” (Balzac). Títulos como Papelaria, Proibido colocar cartazes, Alugam-se estas áreas, Guarda-livros juramentado, Fechado para reforma, são citações de imagens que constituem a escrita (Bilderschrift) da cidade, acompanhadas de legendas transformadoras. Tendo como principal característica formal a combinação de uma pictura (citação) com uma subscriptio (legenda), a imagem de pensamento, que retoma a estrutura do emblema barroco, configura-se como uma reflexão alegórica moderna sobre o ofício de escrever.
Embora inteiramente aberto às novas tecnologias, Benjamin nem por isso abriu mão da tradição hermenêutica, para ler e decifrar a metrópole. Veja-se a imagem de pensamento Papelaria:
Place de la Concorde: o Obelisco. O que, há quatro mil anos, foi ali gravado, ergue-se hoje no centro da maior das praças. Se isso lhe fosse profetizado que triunfo para o Faraó! […] Como se apresenta, na verdade, essa glória? Ninguém dentre dez mil que passam por aqui se detém; ninguém dentro dez mil que se detêm sabe ler a inscrição. […] O Imortal está presente como o obelisco: ele rege um trânsito espiritual que circula ruidosamente ao seu redor, e a inscrição ali gravada não é útil para ninguém. (GS IV, p. 112)
De modo alegórico, a grande cidade contemporânea é considerada um texto enigmático, criptografado, hieroglífico dentro da tradição de Edgar A. Poe, o qual, em seu conto O Homem da Multidão, apresentou a metrópole como um texto escrito no limite da legibilidade. Pode se dizer que Benjamin procurou decifrar esse texto durante a vida inteira, desde o livro de estréia Rua de mão única até seu projeto mais ambicioso, o das Passagens parisienses, ao qual deu mais tarde o título Paris, capital do século XIX e onde se propôs escrever uma história social dessa cidade.
A leitura hermenêutica da metrópole, por parte de Benjamin, é construída em forma de paradoxo. No centro de sua praça principal, os habitantes de Paris erigiram um monumento diante do qual aparecem no papel de iletrados – e, no entanto, é esse obelisco, encomendado em tempos arcaicos pelo Senhor dos escribas, que rege o trânsito espiritual da metrópole moderna. Certamente não se trata, para o alegorista Walter Benjamin, de querer transformar seus contemporâneos em egiptólogos. Importa-lhe formular uma hermenêutica historiográfica que seja crítica em relação ao discurso desgastado da propaganda, da publicidade e da comunicação do seu tempo e que possa se renovar através de uma volta às energias de invenção próprias das primeiras cidades e dos primeiros sistemas de escrita.
O diálogo de Benjamin com a escrita hieroglífica não se limitou à formulação alegórico-teórica dessa imagem de pensamento. Ele estabeleceu com aquela escrita também uma relação imitativa e performativa, na medida em que criou, na segunda metade dos anos 1930, uma escrita secreta para uso pessoal que parece ser um conjunto de hieróglifos modernos: um sistema de siglas em cores que integra a planta de construção e o conjunto de materiais e notas do seu Trabalho das Passagens.
Em que contexto e circunstâncias surgiram as siglas? Em 1938, Benjamin elaborou um modelo do Trabalho das Passagens, que ficou inacabado, mas do qual existe um plano de construção integral, reencontrado em 1981 na Biblioteca Nacional da França. Nesse plano, que representa a estruturação mais avançada de todo o projeto, o autor inventou um sistema de 30 siglas em cores que simbolizam as 30 categorias construtivas de sua obra: categorias como O Flâneur e a Massa, Melancolia, Antigüidade parisiense, o Herói, a Mercadoria etc.
Sobre esses siglas existem duas teses. A primeira, defendida principalmente pelo editor do Passagen-Werk, Rolf Tiedemann, considera-as como “signos de transferência”, que desempenham uma função essencialmente classificatória. No fichário de seus materiais e anotações do Projeto das Passagens, com cerca de 3.500 itens Benjamin marcou em 1938 cerca da metade, ou seja, uns 1.750, com siglas coloridas, para poder melhor “transferi-los” para o plano de construção. A tese da função de transferência é evidente e materialmente comprovada.
Além dessa função classificatória, as siglas, pelas suas qualidades estéticas, suscitam uma questão que diz respeito à escrita da história, e eis a segunda tese. Embora se saiba a que categoria construtiva corresponde uma determinada sigla, não se sabe por que o autor escolheu precisamente tais formas e tais cores para representar uma determinada categoria da história social da cidade de Paris. Será que existe – paralelamente às diferenciadas explanações verbais – um segundo sistema historiográfico, mais primitivo, constituído por ideogramas e hieróglifos, diagramas e sinopses gráficas? Uma hipótese a ser considerada seriamente num autor que, ao longo de sua obra, mostrou um acentuado interesse pelas relações entre palavra e imagem, scriptura e pictura.
Com base no meu deciframento do plano de construção do Trabalho das Passagens, em 1995/96, na Bibliothèque Nationale, e no estudo das siglas em seu contexto original, eu gostaria de desenvolver aqui a tese do valor estético próprio das siglas em cores. A hipótese a ser comprovada é que a escrita benjaminiana das siglas – apesar do seu caráter secreto e pessoal, e do seu inegável esoterismo – constitui um sistema intercomunicável. A escolha das cores e das formas, além de traduzir opções idiossincráticas do autor, se baseia num repertório do qual fazem parte a obra gráfica e teórica de Albrecht Dürer, a Teoria das Cores de Goethe, o ensaio O pintor da vida moderna de Baudelaire, a teoria da pintura e das cores de Paul Klee, as concepções da Bauhaus e das vanguardas das décadas de 1910 e 1920 – em suma, o que há de mais expressivo na tradição construtivista.
No meu entender, se Benjamin, além de dissertar verbalmente sobre a capital do século XIX, inventou um sistema semiótico paralelo, foi porque sentiu a necessidade de pensar o Trabalho das Passagens também em forma imagética. Os ideogramas ou neo-hieróglifos lhe permitiriam trabalhar com as categorias construtivas de uma maneira não alcançável aos meios verbais. O sistema de siglas em cores, conforme veremos, cumpre funções de representação da história – como a sinopse em forma de diagrama, o trânsito rápido entre as partes, mudanças de estrutura, a representação espacial do tempo, a escrita simultânea e constelacional etc. – que, dessa forma, não podem ser cumpridas por sistemas puramente verbais. Nesse sentido, as siglas em cores que, à primeira vista, pareciam ser um mero fenômeno marginal, se revelam como uma forma que abre novas dimensões para a escrita da história.
Passemos agora a conhecer algumas das siglas (cf. Figura 1: As categorias construtivas do Modelo das Passagens em forma de siglas). Como foi explicado, minha leitura do Trabalho das Passagens não parte da scriptura, ou seja, da explanação verbal das categorias construtivas e, sim, da pictura, isto é, dos ideogramas que representam essas categorias e que serão lidos conforme a sua própria sintaxe. Não pretendo, com isso, decifrar o segredo pessoal da escrita esotérica de Walter Benjamin, mas tornar visíveis as potencialidades da historiografia constelacional que ele propôs.
Como ponto de partida nos servirá a categoria construtiva da Melancolia. No livro Origem do drama barroco alemão, Benjamin a usou para interpretar o gênero do Trauerspiel e, por extensão, a mentalidade vigente no início dos Tempos Modernos. Sua referência pictográfica era a gravura Melencolia I (1514), de Albrecht Dürer. Naquela folha, o artista representou emblematicamente a idéia da história como construção: um canteiro de obras, mostrado no momento de interrupção do trabalho, para intensa auto-reflexão e especulação. A Melancolia é uma categoria fundadora também do Trabalho das Passagens. Nas siglas é expressa por um retângulo preto, que simboliza o espírito próprio da “bílis negra”. A vertical que corta esse enquadramento sombrio é da mesma cor roxa com a qual, segundo Paul Klee (p. 471 s.) termina o arco-íris e se interrompe o círculo cromático. Podemos ver nessa sigla uma representação da idéia de oficina da história (François Furet).
A chave principal para o uso de símbolos formais e cromáticos por parte de Benjamin é uma folha dos manuscritos da Crônica berlinense (1932), reproduzida nos Addenda (1989) dos Gesammelte Schriften e que merece ser citada aqui na íntegra:
Quando eu estiver velho, gostaria de ter no corredor da minha casa / Um mapa de Berlim / Com uma legenda / Pontos azuis designariam as ruas onde eu morei / Pontos amarelos, as ruas onde moravam minha namoradas / Triângulos marrons, os túmulos / Nos cemitérios de Berlim onde jazem os que foram próximos a mim / E linhas pretas redesenhariam os caminhos / No Zoológico ou no Tiergarten / Que percorri conversando com as garotas / E flechas de todas as cores apontariam os lugares nos arredores / Onde repensava as semanas berlinenses / E muitos quadrados vermelhos marcariam os aposentos / Do amor da mais baixa espécie ou do amor mais abrigado do vento. (GS VII, p. 714)
Assim como Benjamin, pouco antes de ter que exilar-se, imaginara um mapa particular de memória afetiva de sua cidade natal, assim ele idealizou alguns anos mais tarde, ao elaborar o Modelo das Passagens, um mapa da capital do século XIX, bem mais complexo, na forma do sistema das siglas em cores, para o qual aquele primeiro esboço fornece a chave. Na frase “Pontos azuis designariam as ruas onde eu morei”, o azul é a cor que representa o eu escritural, que reaparece na sigla o Herói, simbolizando o poeta da modernité, Baudelaire, em seus diversos papéis (flâneur, dandy, trapeiro, etc.), assim como seu duplo, o crítico Walter Benjamin, sendo que ambos se propuseram a tarefa heroica de “dar uma forma à Modernidade”, de “definir a sua fisiognomia”. A categoria o Herói é, pois, um exemplo de historiografia fisiognomônica.
A cor amarela, simbolizando o sol, a luz e o princípio feminino, aparece na sigla Paris ctônica. Por que foi escolhida justamente a cor mais luminosa para representar a descida aos subterrâneos da cidade, ao reino dos mortos, às camadas arqui-históricas? É que esse papel, desempenhado na Antigüidade por Virgílio e no fim da Idade Média por Dante, é exercido na Modernidade por um fotógrafo. Nadar, com suas tomadas das catacumbas, registrou documentos da arqui-história da metrópole, que cabe ao historiador revelar (cf. GS V, p. 827). Nessa sigla, onde a um quadrado amarelo cheio se sobrepõe um círculo preto (simbolizando talvez o perfil de um cône através do qual se desce), temos uma representação espacial do tempo.
Depois de termos conhecido, em sua forma de siglas, três do total das 30 categorias construtivas do Trabalho das Passagens, vejamos uma subconstelação de oito siglas que pode ser chamada “Planos de Paris” (cf. Figura 2). Esse conjunto reúne todos os retângulos e quadrados, sendo que três dessas siglas já foram introduzidas (Melancolia, o Herói e Paris ctônica); as cinco restantes são: Antigüidade parisiense, Rebelde e alcagüete, o Flâneur e a Massa, a Mercadoria e Disposição sensitiva.
As relações entre o mapa de uma cidade e a geografia mental de seus habitantes sempre exerciam um fascínio especial sobre Benjamin. Em toda sua obra podem ser detectadas metáforas cartográficas, como “mapa da vida”, “esquema gráfico” “rede de coordenadas”, “diagrama”, comparação entre a “construção dos versos” e a “planta da cidade”. Se reuníssemos o conjunto das 30 siglas numa única página, como o autor o fez numa de suas folhas de manuscrito e se, em vez de arrolá-las linearmente, as agrupássemos de acordo com suas tensões gráficas e seus teores histórico-sociológico-filosóficos, obteríamos “uma figura semelhante a uma constelação”, constituída de “pontos luminosos”, segundo a expressão do próprio Benjamin (cf. Briefe, p. 688). Por meio das siglas, ele pratica uma escrita da história em forma de cartografia.
Do conjunto das 30 siglas, ao qual dediquei um estudo anterior (Bolle, 1996), foi escolhida aqui, como recorte ilustrativo e didático, a subconstelação mais expressiva. A denominação Planos de Paris parece-me bem adequada, na medida em que, nesse conjunto de oito siglas, há diferentes “planos” que se sobrepõem e que representam o tecido urbano em seus diversos níveis: redes subterrâneas e ctônicas (o metrô, as catacumbas), o traçado das ruas e praças na superfície, com seus cruzamentos e sinais, e, acima, atrás dos anúncios luminosos, o texto primordial, a escrita do universo. Ao mesmo tempo mimética e não-mimética, simples e complexa, essa forma de organização das categorias construtivas do Trabalho das Passagens oferece uma visão de conjunto e uma orientação num canteiro de obras fragmentário, labiríntico e difícil.
O elemento geométrico comum às oito siglas dessa constelação, o plano retangular, representa desde os hieróglifos egípcios até o espaço da morada: uma casa e, por extensão, um bairro, uma cidade. “E muitos quadrados vermelhos marcariam os aposentos / Do amor da mais baixa espécie ou do amor ao abrigo do vento”, escreve Benjamin no mapa afetivo de sua cidade. O retângulo evoca também o que foi uma das principais invenções na história da escrita: o campo da página, suporte topológico para todo tipo de signos. Nesse mapa de iniciação à metrópole, há um vai-e-vem entre a topografia da página e a topologia da cidade, os signos e sua referência real: as siglas coloridas evocam a luminosidade de vitrines e passagens, a polifonia das atrações e dos divertimentos, a simultaneidade dos lugares de memória e do perder-se no labirinto urbano. É um sistema de escrita em que a elaboração verbal mais diferenciada e mais sutil encontra-se lado a lado com o riscado mais primitivo.
Vejamos agora em detalhe as siglas ainda desconhecidas. A sigla Antigüidade parisiense, representada por um quadrado vermelho, é uma espécie de resumo de toda a constelação. A cor acentua a relação afetiva entre o escritor (o eu escritural, o Herói) e a cidade. Proust falava do “papel das cidades antigas em Baudelaire e da cor escarlate que introduzem em vários pontos de sua obra”. Para o escritor da era das Guerras Mundiais, convivendo com a mais avançada tecnologia da destruição, as cidades destruídas da Antigüidade, como Tróia e Cartago, são um memento da caducidade – e ao mesmo tempo um incentivo para produzir um tipo de literatura que “um dia se possa tornar antigüidade”, isto é, que tenha a qualidade de durar. Quanto à forma da sigla, ela expressa o isomorfismo entre o significante (o quadrado, o conjunto dos retângulos da constelação, o formato da página) e a geometria da metrópole. Podemos nos lembrar da vista sobre a cidade medieval em Notre Dame de Paris, de Victor Hugo, onde o espaço urbano se estrutura ao longo de quatro eixos: dois no sentido Norte-Sul (Porta Saint-Martin – Porta Saint-Jacques, Porta Saint-Denis – Porta Saint-Michel) e dois no sentido Leste-Oeste (Porta Saint-Antoine – Porta Saint-Honoré, Porta Saint-Vitor – Porta Saint-Germain). Na cidade moderna, correspondem-lhe representações como o retângulo vazio que simboliza o “mapa de Paris” em Le Paysan de Paris (1926), de Louis Aragon, ou textos triviais como os mapas do metrô, onde cada linha é identificada por uma cor diferente.
A categoria Rebelde e alcagüete, simbolizada por um quadrado roxo cheio, fornece um olhar sobre a paisagem política e social da cidade de Paris entre a Era das Revoluções (1789-1848) e a Era do Capital, que se iniciou com o Segundo Império. “Protegida pela corrupção parlamentar, a classe dominante persegue seus negócios” – assim Benjamin resume a era moderna. Ele focaliza em especial a camada social intermediária, a bohème, economicamente instável e politicamente indecisa, de onde provém a maioria das pessoas que lidam com o aparato da mídia. Num ensaio “cinematográfico”, o crítico-escritor segue os caminhos de Baudelaire pelas ruas de Paris, com suas passagens e vitrines, as múltiplas sensações e a polifonia das vozes, os fluxos e refluxos das massas. Os pontos de parada são os bares. O roxo enquanto cor mista do vermelho e do azul simboliza a superposição da cidade de Paris e da figura do Herói, assim como a atmosfera carregada de vinho e a atitude ambígüa da camada intermediária. Dos instantâneos de conspiradores e agentes de polícia, literatos e trapeiros, jornalistas e prostitutas, e da montagem dos diversos “planos” desse ensaio cinematográfico resulta um quadro da mentalidade das classes médias e baixas.
A categoria O Flâneur e a Massa, simbolizada por um cruzamento preto dentro de um retângulo preto, tematiza o contato do literato observador com a multidão urbana. (O termo “cruzamento” é tomado emprestado ao Spleen de Paris de Baudelaire que fala do “cruzamento das inúmeras relações” nas “cidades gigantescas”). O flâneur é a alegoria do literato, que vai ao mercado, “no seu entender, para olhá-lo, na verdade, porém, para encontrar um comprador” (GS I, p. 536). É também uma alegoria dos intelectuais da geração de Benjamin, que sentiram um fascínio enorme pelo fenômeno das “massas”. “Conquistar as massas” era a palavra de ordem dos dois movimentos políticos que se combateram de modo implacável na República de Weimar, os comunistas e os nacional-socialistas. Como tantos outros intelectuais de esquerda, Benjamin idealizava as massas oprimidas, esperando delas ações de resistência e de revolução, mas foi duramente surpreendido pelo triunfo nazista. A cor preta simboliza possivelmente o seu trabalho de luto, incluindo a tentativa de compreender o fenômeno das massas através de uma reflexão histórica. Através de um estudo comparado da representação da multidão em vários escritores do século XIX, ele conseguiu olhar através do véu mitificador e identificar a massa sobretudo como um “ajuntamento maciço de clientes” (GS I, p. 559), aproveitado pelo Estado totalitário como clientela. O crítico registra assim uma das mais significativas transformações ocorridas na Modernidade: a degradação do cidadão em consumidor.
Dentre as categorias já vistas, o Herói, Rebelde e alcagüete e O Flâneur e a Massa pertencem à parte do meio do Modelo das Passagens, intitulada “A Paris do Segundo Império em Baudelaire”, a única que chegou a ser terminada; elas fornecem sobretudo um rico material de fontes históricas e uma reconstrução dos mitologemas da Modernidade. As duas categorias que ainda faltam para completar a constelação Planos de Paris são mais teóricas e pertencem respectivamente à parte inicial e final.
A Mercadoria é a categoria que rege a parte final, que deveria chamar-se “A mercadoria como objeto poético”. Acentua-se aqui o caráter do estudo de Benjamin como um tableau da história das mentalidades. Na sigla correspondente – um cruzamento vermelho dentro de um quadrado preto – o preto parece simbolizar a melancolia urbana, sobretudo depois da destruição de bairros inteiros em função do “embelezamento estratégico” realizado sob o prefeito Haussmann. A cor vermelha faz lembrar os atributos eróticos da mercadoria (“a embriaguez à qual se entrega o flâneur é proporcionada pela mercadoria, circundada pela torrente dos clientes”, GS I, p.558), aos quais se acrescentam os atributos do sagrado (“as exposições mundiais são os lugares de peregrinação até o fetiche da mercadoria”, GS V, p. 50). Com a evocação da loja de departamentos La Ville de Paris, a cidade inteira é transformada alegoricamente numa grande loja. O deciframento dessa paisagem do reclame, da moda e das exposições se dá através da teoria marxista do fetiche da mercadoria, reformulada por Benjamin em termos de uma “empatia para com a alma da mercadoria” (GS I, p. 1102 e 561). Através de categorias como O Flâneur e a Massa, a Prostituta e Mercado literário (cujas siglas contêm todas a marca do “cruzamento”), ele mostra como a mercadoria fetichizada, enquanto emblema do capitalismo, atua no imaginário e nas relações sociais.
A última sigla a ser considerada aqui é o contraponto dialético da anterior, como se vê de um só olhar ao comparar suas configurações gráficas: à Mercadoria, cruzamento vermelho dentro de um quadrado preto, se opõe a Disposição sensitiva (entenda-se: de Baudelaire), cruzamento preto dentro de um quadro vermelho. Esta categoria integraria a parte inicial do livro, intitulada “Baudelaire como alegorista”. Ela expressa a qualidade auto-reflexiva e dialética do poeta enquanto produtor de textos que são mercadoria. Baudelaire, que tinha plena consciência de como se fabricava a aparência no mundo do reclame, da moda e da nouveauté, resolveu fazer dessa experiência o tema de sua poesia. Entre as técnicas de desvalorização e valorização de imagens, sua opção recaiu sobre o procedimento mais antigo da alegoria, que lhe permitiu identificar criticamente o que ocorreu sob o signo da Mercadoria. Nas alegorias baudelairianas, a poesia enquanto mercadoria “procura olhar seu próprio rosto”, diz Benjamin – isto é, ela procura se conhecer a si mesma. Assim, a relação Disposição sensitiva vs. Mercadoria mostra uma reviravolta crítica da literatura contemporânea em relação ao mundo da publicidade.
Com isso, voltamos ao nosso ponto de partida. Durante o percurso, chegamos a conhecer duas formas literárias que ilustram, cada qual à sua maneira, a prática literária que corresponde ao programa benjaminiano de “recriar a crítica como gênero”. Por meio de dois gêneros, as imagens de pensamento de Rua de mão única e as siglas em cores do Modelo das Passagens, o crítico consegue mostrar como a onipotente “escrita da metrópole” pode ser transformada num médium-de-reflexão.
Significativamente, ambos os gêneros operam na fronteira entre scriptura e pictura, mas de modo bem diferente. Nas imagens de pensamento, as imagens são sempre verbais, ainda que os títulos tendam a sugerir as “imagens gráficas” (Schriftbilder) de tabuletas. Já nas siglas, compostas de um grafismo e uma legenda, o elemento dominante é a imagem; trata-se de uma “escrita imagética” (Bilderschrift). Sob esse aspecto, a constelação das siglas benjaminianas pode ser comparada com quadros construtivistas da mesma época, como Place de la Concorde (1938-1943), de Piet Mondrian, ou sua composição mais expressiva, Broadway Boogie Woogie (Figura 3). Aqui como lá, temos um tecido de figuras geométricas em diversas cores, com o qual se procura recriar mimeticamente o tecido urbano. Há, no entanto, uma diferença importante entre as siglas de Benjamin e o quadro de Mondrian. É que o crítico-escritor, por operar simultaneamente com a pictura e a scriptura, sublinha sua opção por um sistema de expressão que se situa no campo intermediário entre as duas semióticas.
Para dar uma idéia mais pormenorizada da especificidade das siglas benjaminianas, esboçarei, neste final, uma comparação com os hieróglifos egípcios. Ela poderá ser aqui apenas provisória, inclusive porque tenho que deixar para um trabalho futuro a discussão das importantes contribuições do egiptólogo e teórico da cultura Jan Assmann (1988) sobre a escrita hieroglífica, no contexto das atuais investigações sobre a materialidade da comunicação. Para uma primeira introdução aos hieróglifos, achei que devia dar prioridade a quem os decifrou, Jean François Champollion, que sistematizou suas descobertas no tratado Principes généraux de l’écriture sacrée égyptienne (1836).
As siglas ou os neo-hieróglifos benjaminianos se situam num limiar da escrita: enquanto um de seus lados (a scriptura) aponta em direção ao desenvolvimento do alfabeto moderno (arbitrariedade do signo), o outro lado (pictura) remete para as formas mais antigas, pictográficas e ideográficas da escrita (a fisionomia e a magia dos signos). A quantidade das siglas – trinta – corresponde ao número de signos do primeiro alfabeto da humanidade, inventado em Ugarit (Síria-Palestina), por volta de 1350 a.C. (cf. Koenig, p.5). Embora, segundo Benjamin, a “capacidade mimética” tenha diminuído ao longo dos milênios (cf. GS II, p.211), continua existindo, assim mesmo, um acesso a ela e ao saber oculto dos antigos, através do médium da escrita, esse “arquivo de semelhança não-sensorial” (p.209). Eis um conceito – conforme explica W. Menninghaus (1980, p.64 s.) – que está equidistante tanto da tese da arbitrariedade quanto da tese mimética e onomatopaica. Conceito que nos permite entender melhor o caráter limiar da escrita imagética de Benjamin, quer dizer, de suas siglas em cores.
O molde intelectual de “semelhanças não-sensoriais” encontra-se já na Antigüidade. Enquanto os inventores do alfabeto optaram contra a mimese e a favor da arbitrariedade, os antigos egípcios – conforme explica Champollion – usaram “simultaneamente signos para idéias e signos para sons”, ou seja, ideogramas lado a lado com símbolos fonéticos. Na verdade, foram os egípcios os primeiros a ter a idéia do alfabeto (ou da escrita fonética), mas, em vez de aderirem integralmente a ela, preferiram manter o sistema mais antigo dos hieróglifos, igualmente adequado à representação ideográfica, analógica, sintética, e à anotação fonética, analítica. (É de notar que esse sistema duplo voltou a ser usado, hoje em dia, nos programas de software.) Os hieróglifos eram, portanto, uma escrita no limiar de sistemas diferentes, com uma capacidade extraordinária de armazenamento, de trânsito e de expressão. Além dessas dimensões, que a aproximam da Wandelschrift imaginada por Benjamin, era uma escrita da ambigüidade e do segredo.
Para compreender o “trânsito espiritual”, regido no nosso tempo pelos inventores da escrita e das primeiras cidades, focalizemos dois tipos de procedimentos que fazem parte da história e do sistema da escrita hieroglífica. Em primeiro lugar, a passagem da escrita imagética, mimética, para a arbitrariedade dos signos. Os hieróglifos egípcios se prestam para ilustrar de modo paradigmático os procedimentos da abreviatura (siglas são abreviaturas) e, relacionado com isso, a transição para a abstração semiótica. Naquela escrita, a abreviatura se deu da pictura em direção à scriptura. O estágio mais antigo dos signos egípcios eram os hieróglifos de caráter monumental, talhados na pedra e baseados em mimese pura. São imagens completas de coisas, com uma determinada estilização. A formação de um estamento de escribas, a utilização do papyrus e a necessidade de formas mais rápidas de anotação (a estenografia hieroglífica) levaram a diversas formas de redução daquelas imagens primitivas: a) limitação dos elementos imagéticos a um número mínimo de traços; b) concentração sobre os contornos essenciais; c) reprodução apenas parcial (pars pro toto). Esse tipo de abreviaturas acabou sendo um estágio de transição para signos puramente convencionais, ou seja, arbitrários, onde não é mais possível reconhecer a semelhança sensorial com o objeto representado. No caso das siglas em cores, Benjamin caminhou em sentido inverso: dos signos verbais arbitrários (isto é, das categorias teóricas) em direção aos elementos imagéticos elementares (formas e cores). A utilidade dessa redução se manifesta, conforme vimos, no caráter extremamente compacto dos textos, na apresentação sinóptica, na espacialização e simultaneidade, enfim, nos usos próprios de diagramas.
Em segundo lugar, consideremos a combinatória e a simultaneidade de sistemas diferentes de escrita. O passo decisivo para o deciframento do hieróglifos por Champollion foi a descoberta de que os antigos egípcios usaram três sistemas de escrita simultaneamente, segundo uma determinada técnica e arte combinatória: pictogramas (a escrita imagética), símbolos fonéticos e ideogramas (a representação de símbolos e idéias através de imagens). Os pictogramas abrangiam corpos celestes, homens, animais, plantas, objetos de uso, instrumentos, edifícios, formas geométricas e: imagens de monstros – formando um repertório de cerca de 900 signos. Note-se a importância do imaginário (os monstros), que se situa além da esfera mimética. Quanto aos símbolos fonéticos, eles constituíam cerca de três quartos de um texto. Existiam ao todo 260 signos fonéticos diferentes, ou seja, cada fonema podia ser representado em média de nove a dez formas diferentes. (Transpondo esse princípio para o português: o som “a”, por exemplo, poderia ser reproduzido pelo símbolo de palavras tão diferentes como “astro”, “ar”, “água”, “abelha”, “aroma”, “apetite”, “antigo”, “ágil”, “arma”, “artifício”.) Com isso, abriu-se um horizonte imenso para a gramática da poesia. Finalmente, havia os signos simbólicos ou ideogramáticos, que se subdividiam em sinédoques (pars pro toto), metáforas (semelhança), metonímias (causa e efeito) e: enigmas e relações ocultas.
Essa combinatória múltipla dos egípcios era, portanto, muito mais complexa que a mera combinação bilateral de pictura e scriptura. A esses cruzamentos de som e sentido, emblemas e esoterismo, acrescenta-se a extraordinária flexibilidade da escrita em relação ao seu suporte material: os hieróglifos podiam adaptar-se da maneira mais engenhosa possível a qualquer superfície disponível. Com tudo isso, os egípcios dispuseram de uma riqueza expressiva com a qual os escritores de vanguarda do século XX puderam apenas sonhar. O projeto de uma “história da poesia esotérica”, aventado por Benjamin no ensaio sobre o Surrealismo (1929), e a criação do seu sistema de siglas em cores são expressões de tais sonhos. Olhando bem, a cor pode ser considerada como uma terceira dimensão, entre o material e o espiritual, e além da pictura e da scriptura…
Como mostrou a comparação das siglas benjaminianas com os hieróglifos egípcios, elas podem ser entendidas como uma resposta ao desafio que se colocou para as vanguardas: representar a metrópole moderna como o espaço da simultaneidade de tempos históricos diferentes. Pensemos nos experimentos verbi-voco-visuais dos cubistas, futurista e dadaístas, na enumeração caótica e na polifonia; ou também no gênero do “ instantâneo” (literário), cultivado por Benjamin no seu ensaio sobre o Surrealismo. Depois de 1933, suas observações sobre o ressurgimento do esoterismo na poesia desdobraram-se numa visão política. No ensaio sobre Bachofen (1934), ele fala da contribuição importante do esoterismo para o fascismo alemão (GS II, p. 229). No ensaio sobre a reprodutibilidade técnica (1936), ele observa o desenvolvimento de uma avançada tecnologia da mídia juntamente com uma recaída no culto. É possível que a criação de um sistema próprio de signos esotéricos, no Modelo das Passagens, tenha sido também uma réplica de Benjamin à emblemática nacional-socialista Um recurso mimético com uma função crítica, assim como o foram antes as imagens de pensamento de Rua de mão única, enquanto antídoto contra o reclame e a propaganda; ou ainda, no próprio projeto das Passagens, as imagens dialéticas enquanto deciframentos da “história originária” (Urgeschichte) do século XX, situada em parte no mito, em parte na história.
“O espanto que as coisas que nós presenciamos ‘ainda’ são possíveis no século vinte, não é um espanto filosófico”, observou Benjamin nas “teses” Sobre a filosofia da história (1940), com vistas ao fascismo. Sua crítica de uma concepção linear da história, presa ao mito do “progresso”, além de ser formulada verbalmente nessas teses, foi também expressa por ele no próprio médium de sua escrita: na historiografia constelacional das siglas em cores. Conforme foi exposto, essa escrita, que opera no limiar entre scriptura e pictura, se presta para reproduzir mimeticamente o mundo da metrópole moderna, regido cada vez mais pela emblemática publicitária e propagandística, mas ao mesmo tempo é capaz de proporcionar um conhecimento distanciado, crítico e transformador, próprio de um médium-de-reflexão.
Referências bibliográficas
Assmann, Jan. “Im Schatten junger Medienblüte. Ägypten und die Materialität des Zeichens.” In: Materialität der Kommunikation. Orgs. Hans Ulrich Gumbrecht e K. Ludwig Pfeiffer. Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1988, p. 141-160.
Benjamin, Walter. Gesammelte Schriften. 7 vols. Orgs. Rolf Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser. Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1972-1989.
Benjamin, Walter. Briefe. 2 vols. Orgs. Gershom Scholem e Theodor W. Adorno. Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1978.
Bolle, Willi. “As siglas em cores no Trabalho das Passagens, de W. Benjamin.” In: Estudos Avançados, São Paulo, 10 (1996), n( 27, p. 41-77.
Champollion, Jean-François. Principes généraux de l’écriture sacrée égyptienne. Paris, Institut d’Orient-Michel Sidhom, 1984 (1.a ed.: 1836).
Furet, François. L’atelier de l’histoire. Paris, Flammarion, 1982.
Klee, Paul. Das bildnerische Denken. Basel/Stuttgart, 3.a ed. 1971.
Koenig, Viviane. La naissance de l’écriture. Paris, Hachette, 1990.
Machado, Arlindo. “Fim do livro?” In: Estudos Avançados, São Paulo, 8 (1994), n( 21, p. 201-214.
Menninghaus, Winfried. Walter Benjamins Theorie der Sprachmagie. Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1980.
Mercier, Louis-Sébastien. Le Tableau de Paris. Paris, 1781-1788.
Mondrian, Piet. Ausstellungskatalog, Gemeentemuseum, Haia. Org. Yve-Alain Bois et al. Berna, Benteli, 1995.
Poe, Edgar Allan. Tales and Sketches1831-1842, 1843-1849 (Collected Works, vols. 2, 3). Org. Thomas Ollive Mabbott, Cambridge (Mass.)/ Londres, 1978.