Beatriz Resende
UFRJ/CNPq
A reflexão que vou apresentar foi provocada, fundamentalmente, por duas experiências que vivi no correr de 1996, na cidade do Rio de Janeiro.
A primeira delas foi a coordenação editorial, em conjunto com Wilson Coutinho, de três coleções de livros produzidos com o apoio da Prefeitura, escritos todos por jornalistas, professores ou escritores de destaque em nossa produção intelectual, ocupando-se todos de temas referentes ao Rio de Janeiro. As obras agrupavam-se em: Perfis do Rio, uma coleção de biografias de artistas (músicos, artistas plásticos), escritores, personagens de destaque em nosso panorama cultural, como Oscar Niemeyer, Hélio Oiticica, Clarice Lispector e outros; Arenas da cidade, ensaios sobre questões polêmicas ou que apaixonam a cidade, como favelas, travestis, carnaval ou futebol e, finalmente, um pequeno grupo de textos curtos, artísticos, chamado Cantos do Rio, escritos por vigorosos autores como Antônio Torres e outros.
A segunda experiência foi a participação em um júri destinado a premiar o melhor romance escrito durante o ano, o que me trouxe não só uma visão mais alargada de nossa produção recentíssima no gênero. Disto falarei ao final.
Este conjunto de obras sobre a cidade, a que vou chamar aqui de “não-ficção”, foi um grande sucesso de público, algumas delas ocupando, de forma destacada, o espaço de suplementos literários e culturais da imprensa. Confirmou-se uma tendência existente hoje em nível mundial de gosto por escritos biográficos, revelações sobre a vida de personalidades do meio intelectual e artístico. Note-se, porém, que, de uma forma ou de outra, era sempre da cidade do Rio de Janeiro de que se estava falando.
Deduz-se daí que o tema da grande cidade, da cidade de hábitos e gostos cosmopolitas, como é o Rio de Janeiro, cidade que, se não tem hoje a importância de São Paulo como cidade global do capital internacional (vejam-se, sobre o assunto, os trabalhos de Saskia Sassen que incluem São Paulo na geografia econômica das cidades globais), permanece determinante em matéria de política, gosto e produção artística.
Não é o caso, porém, de nos determos nesta primeira óbvia constatação. A pergunta é: que cidade é essa de que os autores falaram e pela qual o público leitor tanto se interessou? Dentre os Perfis, as obras que resultaram mais interessantes foram aquelas que falavam de personagens dos anos 50 a 60, espécie de anos dourados do Rio de Janeiro, ainda capital, num país democrático, anterior ao regime militar. É o caso da biografia de Antônio Maria, jornalista, cronista baudelairiano da cidade durante este período, compositor de música popular, autor de pérolas sobre a “dor de cotovelo”. No relato de sua vida surgia a construção de uma cidade da memória. É real ou imaginária a cidade da memória?
Nas obras que traziam a público temas da cidade, algumas tratavam de temas de certo modo desconfortáveis, como as favelas, que ocupam grande parte da área urbana do Rio, constituindo-se em verdadeiras cidades dentro da cidade, caso da Favela da Rocinha. Ou o belo livro: Certas cariocas, livro do antropólogo Hélio R.S. Silva, sobre nossos travestis. Trabalhos corajosos, de vasta pesquisa, como são também os que tratam de assuntos mais amenos, como o carnaval ou o futebol. Que cidade surgia nestes textos? A denúncia sim, mas o retrato cheio de simpatia, revelando visões de uma cidade partida ( como diz Zuenir Ventura em seu livro com este título), que só não se dividiu definitivamente entre ricos e pobres porque artistas e intelectuais fazem a ponte entre as duas cidades há bem um século. E ainda a cidade oculta, como no caso dos travestis, escondidos pela noite nos espaços de circulação da cidade e abrigados pelos bairros distantes dos subúrbios ou na anomia de prédios de pequeníssimos apartamentos em Copacabana, durante o dia. Deles diz o autor:
Revoluções tecnológicas e vida urbana vêm tornando as rudimentares capacidades masculinas cada vez mais obsoletas, sem emprego, sem destino certo. Essa energia compartilhada, simbólica e coletivamente, está a contraproduzir mulheres nas próprias fontes de onde derivam: os corpos dos rapazes.[1]
O gosto pelo carnaval e pelo futebol são, certamente, ingredientes fundamentais na constituição do “espírito do carioca”. O estádio do Maracanã é um dos símbolos da cidade, quase tão importante quanto o Cristo Redentor ou o Pão de Açúcar. O desfile das grandes escolas carnavalescas traz ao Rio turistas de todo o mundo mas, nem por isso, deixa de ser parte decisiva da vida da população pobre que, embora limitada pela ordem imposta pela modernização dos desfiles, valioso produto para a mídia, se incorpora a esta festa de corpo e alma durante alguns dias do ano. Aí estaria o verdadeiro Rio de Janeiro? Ou trata-se aqui justamente da cidade imaginária, a cidade da fantasia? Os anarquistas do início do século, que Rio e São Paulo herdaram da Itália e da Espanha, não estavam completamente errados quando condenavam, com veemência, tanto o carnaval quanto o futebol, considerados como algo que seria chamado depois, por seus seguidores, de “ópio do povo”. Não podiam perceber, porém, que este ópio era necessário para resistir à vida dos outros dias, quando o Flamengo não joga ou quando o carnaval acabou.
Cidade imaginária, cidade da fantasia, que cidade então seria a cidade real? A cidade virtual do mundo dos negócios, a cidade cinzenta do mundo do trabalho, a geografia urbana que se atravessa cotidianamente?
Da experiência de textos que não fossem “literatura de imaginação”, como chamam ao especificamente literário os defensores do cânone, produzidos por poetas ou romancistas na coleção Cantos do Rio, resultaram relatos subjetivos sobre partes da cidades, um canto de bairro, uma praia, um bar, e depoimentos sobre um passado recente. Antônio Torres construiu uma bela visão da história do centro da cidade, desvendando nossas origens coloniais, o que não agrada aos cariocas lembrar. A cidade da memória, a cidade que ainda não era brasileira, em uma obra, os espaços da superada cultra-cultura, no depoimento de outro, estaria aí a cidade real? Ou, mais do que nunca, à revelia do propósito da “não-ficção”, a cidade imaginária? Uma coisa ficou clara, a divisão canônica dos gêneros, o desprezo pelos chamados “gêneros menores’, não tem mais sentido, e isto vai além da idéia, já evidente, de mistura possível de gêneros literários. É o conceito mesmo de literatura como arte da imaginação que passa a ser revisto, talvez junto com a revisão também da idéia de uma possível separação entre cidade real e cidade imaginada. Se não surge a cidade real no espaço do imaginário, onde podemos ir procurá-la? Nas ruas, na geografia urbana, do lado de fora da janela?
Numa bela conferência feita em 1983[2], Italo Calvino propõe-se a falar sobre o que lhe acontece quando tira o nariz da página escrita e olha em redor, o que faz preocupado em voltar àquelas páginas o mais rápido possível. E, diante da pergunta que se torna evidente — se a página escrita é o único mundo em que se sente à vontade, por que deixá-lo, aventurando-se neste outro imenso mundo que não pode controlar? —, a resposta lhe parece simples. Diz Calvino:
Porque sou escritor. Esperam que eu lance olhares curiosos ao meu redor, capte imagens do que se passa, e então me curve sobre minha escrivaninha e continue minha tarefa temporariamente interrompida. É para fazer funcionar de novo minha fábrica de palavras que devo extrair novo combustível dos poços do não escrito.
E conclui sua palestra afirmando com a beleza que consegue dar às suas constatações:
Os poetas e escritores que admiramos criaram em suas obras um mundo que para nós parece o mais significativo, contrapondo-o a um mundo que também para eles carece de significado e perspectiva. Acreditando que seu gesto não era muito diferente do nosso, levantamos nossos olhos da página para sondar a escuridão.
Para chegar à literatura brasileira, gostaria de seguir pelos caminhos de outra expressão artística, de íntima relação com a cidade: o cinema. A cidade criou a modernidade e, depois, a pós-modernidade. A cidade e a modernidade criaram juntas o cinema. E o cinema tem sido, ele mesmo, o grande veículo de representação e questionamento das cidades.
Três filmes podem ser considerados marcos da discussão sobre o destino das cidades: Metropolis, Blade Runner e agora o polêmico e, em algumas cidades, censurado Crash.
Metropolis, de Fritz Lang, foi realizado em 1926. Estávamos ainda em pleno vigor das vanguardas. Os temas futuristas, apesar do trauma da ligação do movimento de Marinetti com a Primeira Guerra, ainda vigiam. O filme, amplamente conhecido por todos, traz a cidade dividida em duas partes: a subterrânea, onde sofrem os trabalhadores, “os que fazem a riqueza dos homens”, e a superfície, espaço do supercapitalista, senhor de Metropolis. O conflito entre o mundo do trabalho e do capital terá dois mediadores, o filho do capitalista, aquele que, como os intelectuais, se deixa levar pelos sentimentos, e a bela e pobre jovem por quem se apaixona. Esta porém, tem um clone, um simulacro, o robô Maria. À pureza da jovem trabalhadora, opõe-se a sensualidade feminina da máquina sexualizada, invenção de um cientista perverso e enlouquecido, o judeu Rotwang. (À entrada da casa o cientista existe uma estrela de Davi). O filme é genial, marco do expressionismo alemão, e, tecnicamente, absolutamente de vanguarda. O delírio da cidade futurista e seu espaço preenchido por premonitórios arranha-céus, com o horizonte cortado por zepelins e aeronaves, é inesquecível. Hoje vemos, porém, que traz também todos os problemas do Modernismo: é misógino e racista. É preconceituoso, teme a força da libido feminina e deposita no futuro da cidade todas as suas esperanças.
Na literatura brasileira, também os anos 20 são o momento de exaltação da cidade. O Rio de Janeiro cosmopolita e vertiginoso, verá, no final da década, surgir, no centro da cidade, a “Cinelândia”, espaço ocupado pelos novos prédios de vários andares e pelos cinemas que se multiplicam rapidamente. Copacabana está surgindo. Romancista e contistas tomam a cidade como seu principal tema. Também os poetas cantam o espaço urbano, e mesmo o melancólico Manuel Bandeira não resiste às atrações da cidade grande para a qual se mudara há pouco, o Rio. Em São Paulo, é o momento da “Paulicéia desvairada” de Mário de Andrade, de Oswald de Andrade, de Alcântara Machado. Misóginos todos, racistas nem tanto nesse país de mulatos ‘da maior mulataria’, como dizia Mário, mulato ele mesmo como muitos de nossos grandes autores desde Machado de Assis.
Blade Runner, de Ridley Scott, produzido em 1982, inspira-se numa obra de ficção científica: Do androids dream of electric sheep?, de Philip K. Dick. Nem toda a importância deste cult-movie foi percebida no momento de sua exibição. Já estavam postas aí as principais questões que povoarão o debate sobre a crítica ao Modernismo, o Pós-Modernismo. Espaço, raça, gênero e classe estão em debate, e a ótica sob a qual os temas são tratados é radicalmente inovadora. A metrópole babelizada do futuro onde se passa a ação é um espaço ocupado por uma população multicultural. Já é uma “cidade global” como caracteriza o cientista brasileiro Octavio Ianni, em 1996:
De tanto crescer pelo mundo afora, a cidade global adquire características de muitos lugares. As marcas de outros povos, diferentes culturas, distintos modos de ser podem concentrar-se e conviver no mesmo lugar, como síntese de todo o mundo. A cidade pode ser um caleidoscópio de padrões e valores culturais, línguas e dialetos, religiões e seitas, modos de vestir e alimentar, etnias e raças, problemas e dilemas, ideologias e utopias. [3]
Os “donos-da-cidade” já a tinham abandonado, indo viver em outros espaços do universo. Além dos negros, hispânicos e orientais restaram na cidade apenas alguns seres deslocados, como o ex-caçador de andróides ou o fabricantes de bonecos de corda, que ocupam desérticos arranha-ceús de arquitetura art déco. Para servi-los, os homens — usando sempre um cientista enlouquecido, desta vez nazistóide — haviam criado seus clones, os replicantes, à sua imagem e semelhança. Algo mais ou menos como a nossa vaidade católica nos leva a crer que Deus tenha feito conosco, ou pelo menos com vocês, homens, e fazemos nós, agora, com ovelhas e macaquinhos. Mas os replicantes não têm memória afetiva e sua vida é breve. Em 82, o muro ainda não havia caído, as utopias começavam apenas a serem questionadas. O filme divide-se, ou melhor, duplica-se, em bons e maus. Se há o frio criador de andróides, há o sentimental criador de bonecos. Zhora, a replicante que faz strip-tease em Chinatown, é cheia de sensualidade agressiva. Raquel, o par romântico do detetive, a andróide humanizada, é bela, suave e discreta. O melhor do filme é o movimento pelos espaços da cidade onde tudo e todos se aglomeram desordenadamente. Marcas do passado convivem com a cidade futurista. A música, utilizando-se dos recursos de sintetizadores, reflete artificialidade. A estética do filme, como um todo — e não à toa sua origem é um livro do gênero tão desprezado pela academia, a ficção científica —, elimina os limites entre bom-gosto e mau-gosto, sublime e grotesco. Os recursos de arte pura misturam-se com os de puro entretenimento e classificar o filme, obedecendo a critérios que separam cultura de massa de obra de arte, foi uma dificuldade!
Do ponto de vista de estudos da cidade, parece-me especialmente interessante o fato de o filme já apresentar personagens que se enquadram numa categoria que só será identificada com propriedade mais adiante, com os estudos sobre globalização e pós-colonialismo. Não é a classe trabalhadora que ocupa os espaços desprezados da cidade do futuro, mas o que vai ser chamado de subclasse. É ainda Octavio Ianni quem define esta categoria, dizendo que, na contemporaneidade, a questão social adquire todas as características de uma questão simultaneamente urbana, e é nas cidades globais que se localiza a subclasse, que se caracteriza por minorias raciais, desemprego por longo tempo, falta de especialização e treinamento profissional, longa dependência do assistencialismo, falta de uma ética do trabalho, droga, alcoolismo. A existência da subclasse indica uma crescente desigualdade e a emergência de uma nova fronteira separando um segmento da população do resto da estrutura de classe.
Como disse antes, as utopias ainda vigiam e o filme termina romanticamente, cheio de esperanças. O robô poderá se humanizar, ainda há espaço fora da cidade para onde fugir de carro e o amor é heterossexual e possível!
Os anos 80, no Brasil, terão uma feição bem definida. O regime militar se esgota, inicia-se a abertura negociada que tem 1984 como marco. Os princípios do Modernismo, que foram revitalizados nos anos 60, estavam longe de serem discutidos. O que caracteriza o período é uma exacerbada preocupação com a afirmação da identidade nacional. Antônio Callado, Darcy Ribeiro (com seu segundo romance O Mulo) — os dois maravilhosos utopistas que acabamos de perder — e mesmo Jorge Amado (com Tocaia Grande), mas sobretudo João Ubaldo Ribeiro, com Viva o povo brasileiro, ocupam-se da questão da brasilidade, confiantes de que a afirmação da identidade é uma atitude libertária, necessária à afirmação e independência de um povo.
Alberto Moreiras, professor da Duke University, ao analisar a opressão sofrida pela Argentina durante a ditadura militar, desenvolve uma reflexão que em muito ajuda a compreender o que se passa com a literatura brasileira dos 80. No ensaio “Postditadura y reforma del pensamiento”[4], Moreiras reflete sobre o luto que se instaura no momento pós-ditatorial, compreendendo que, nesta situação, o pensamento se exerce numa condição de luto, pensa a partir da depressão ou pensa a própria depressão. O pensamento, então, ao mesmo tempo assimila o passado, buscando reconstruir-se, reformar-se, seguindo linhas de identidade com o próprio passado. Trava-se uma luta pelo estabelecimento ou restabelecimento da própria possibilidade de sentido nessas sociedades que passaram da dura repressão à democracia liberal. Aparece uma preocupação inevitável em reconstituir a história dos vencidos, às vezes com um inevitável tom ufanista, patriótico. Ou seja, o Brasil dos anos 80 precisa restaurar a positividade do conceito de nação e até mesmo de pátria. É um período de retomada dos chamados símbolos nacionais: a bandeira verde-amarela domina a cena da luta pela completa retomada do processo democrático. Para recuperar a idéia de nação, seria preciso ir para além das grandes cidades, mas o país já se urbanizara, a população se organizara na e em torno da cidade. Num momento em que é preciso recuperar-se das perdas, reconstituir o sentido, não cabe questioná-lo. O ideal da recuperação da identidade nacional, que fora tomada à força, impede, por algum tempo, que se questione o sentido que tomam, no final do milênio, os valores, as características locais, regionais.
Serão precisos bem dez anos para que a literatura brasileira, cumprido luto exaltatório, possa perguntar-se que sentido adquiriu a Modernidade, possa criticar as propostas modernistas, inclusive a noção de progresso, e questionar-se sobre o sentido da moderna vida nos grandes centros. Fique claro que falo aqui da tendência geral da nossa produção literária. Há vozes que marcam já sua diferença, como é o caso dos romances de Silviano Santiago. Se no famoso Em liberdade já surgiam características do narrador pós-moderno, pelos recursos da pseudo-autoria (o romance é um falso diário que teria sido escrito pelo escritor modernista/regionalista Graciliano ao sair da prisão política que sofreu durante a ditadura de Vargas), a narrativa ainda preocupava-se com uma imagem brasileira. Em 85, porém, Stella Manhattan não hesita em deslocar sua ficção para outros espaços e em ensaiar os primeiros passos do que posteriormente se definirá como uma literatura que não teme ser gay.
Somente nos anos 90, porém, uma crítica da questão nacional e da cidade irá se dar, numa literatura recuperada das humilhações sofridas por seus criadores. É o caso de parte da obra de Rubem Fonseca, de que destaco um conto de 92: “A arte de andar pelas ruas do Rio”[5], onde o roteiro do Rio de Janeiro, grande cidade que abriga diferenças de todo tipo, onde miseráveis dormem sob a marquise de companhias multinacionais no centro da cidade, se embrica com citações e referências a narrativas do início do século e onde, no nomear das ruas, misturam-se referências ao passado já demolido. Lembra Blade Runner, sem ficção científica.
A grande modificação que vai se dando, é uma liberdade que se estabelece em relação ao localismo, ao espaço de origem, a origem geográfica da criação literária. Produto da grande cidade mundializada, a ficção brasileira traz para o texto uma relação de mão dupla com outras cidades do mundo. A cidade do romance e do conto brasileiro passa a ser qualquer cidade. Todas as cidades, a cidade, como diz o ensaísta Renato Cordeiro Gomes[6]. João Gilberto Noll, a cada romance de forte e crua subjetividade, vai radicalizando a ruptura espaço/temporal de suas narrativas, onde a rua é qualquer rua, qualquer esquina[7]. Ainda que passe pelo Rio ou por Porto Alegre — sua cidade de origem —, a cidade é qualquer cidade ou nenhuma cidade.
Dois excelentes autores merecem comentário: Isaías Pessotti[8] lança em 93 o romance Aqueles cães malditos de Arquelau, inteiramente passado na Itália, num ambiente de estudos medievalistas, onde pesquisadores contemporâneos se movem por entre bibliotecas, claustros e abadias, num tom de Umberto Eco. A obra tem continuidade em O manuscrito de Mediavilla, cujo título já diz tudo. E Milton Ratoum, em Relato de um certo oriente[9], que traz sua personagem de Paris para Manaus, no Amazonas, para contar a história da pluralidade cultural da cidade através de uma família de libaneses, onde a necessidade de convívio com a diferença se estabelece na própria família de avó católica e avô muçulmano.
Este tráfego entre cidades encontra forte expressão nos contos de Sérgio Sant’Anna que compõem O monstro[10], três narrativas que se controem em espaços que vão da violência do Rio de Janeiro à impessoalidade do último andar de um grande hotel de Chicago.
Pulemos de volta ao cinema, com o terceiro dos filmes sobre cidade. Sobre cidade? Veremos em seguida. Crash, do diretor canadense David Cronenberg, inspirou-se na narrativa dos anos 70 de J.G. Ballard, parte da “Trilogia do desastre urbano”. Sobre a trilogia, diz Ballard — a quem Massimo Canevacci chamou de “antropólogo intuitivo” — “procurava escrever sobre os cenários modernos, as cidades modernas e de que modo suas novas tecnologias poderiam, de maneira terrível, despertar certas forças do inconsciente que estiveram adormecidas”[11].
O filme de Cronenberg é dos mais incômodos, desagradáveis, arrebatadores, contundentes e belos que já vi. Em outros casos estas propriedades aparecem separadas, juntas talvez apenas em Crash, que, para ficar mais claro, foi apresentado no Brasil como Crash, estranhos prazeres. Definido pela imprensa como “um pesadelo erótico sobre a obsessão sexual desenvolvida por vítimas de acidentes de carros”, o filme causou polêmica por onde passou. Censurado, cortado, repudiado, o filme foi considerado pelo Cahiers du Cinema o melhor filme de 1996.
Em Crash, a partir de um acidente ocorrido com o personagem Ballard — homônimo do autor, como acontece em outra narrativa que podemos chamar de pós-moderna, Cidade de vidro, de Paul Auster, onde o narrador-personagem é o detetive Paul Auster —, desencadeia-se uma série de cenas onde carros, sangue e sexo sucedem-se obsessivamente. Tomados por uma compulsão à repetição, os personagens recriam, primeiro através da simulação de acidentes e depois em acidentes reais, as situações limites de violência e morte que provocam um delirante erotismo que os une em todas as possíveis combinações sexuais. Ao invés da robô de formas humanas, criação da tecnologia em Metropolis e em Blade Runner, aqui é a mulher acidentada que se assemelha a um robô com sua anatomia alterada pelas inúmeras próteses que carrega. O cientista enlouquecido toma a forma do especialista em acidentes e acidentados que desenvolve “projetos” e junta sadismo e sedução num corpo cortado por cicatrizes. O culto da dor e da morte, uma constante nas obras de Cronenberg, desdobra-se em dor/amor/prazer. Paixão e morte se aproximam e o filme termina quando, após quase matar a mulher amada em violenta cena onde o assédio se dá pela perseguição de um carro a outro, Ballard consola a sobrevivente dizendo “Maybe the next time”, como um amante que se desculpasse por não ter levado a mulher ao orgasmo.
Por que assistir a um filme como esse? Em primeiro lugar porque, por mais contraditório que possa parecer, é belo. Mas sobretudo porque é instigante e traz muitas das questões deste final de milênio que relutamos em encarar mas que, queiramos ou não, estão aí.
Do alto da sacada de um edifício, o casal contempla a cidade que se resume a vias expressas de alta velocidade. O resto do espaço são os “não-lugares” da cidade contemporânea: garagens de aeroportos, estacionamentos, auto-estradas.
Marc Augé toma a noção de non-lieux como chave para sua compreensão do que chama de “surmodernité”. Non-lieu opõe-se à noção sociológica de lugar, desenvolvida pela tradição etnológica, que se refere à cultura localizada no tempo e no espaço. Define Augé:
Les non-lieux ce sont aussi bien les installations nécessaires à la circulation accélérée des personnes et des biens (voies rapides, échangeurs, aéroports) que les moyens des transports eux-mêmes ou les grands centres commerciaux, ou encore les camps de transit prolongué où sont parqués les réfugiés de la planète.[12]
A grande cidade contemporânea, que não aparece no filme, deixa nele, porém, todas as suas marcas: o risco de atravessá-la, o medo que assalta os passantes com freqüência, a dor diante de sofrimentos a que se assiste a cada dia, a iminência da tragédia cada vez que se entra em um carro. Ao mesmo tempo, a necessidade da aproximação excessiva, a sexualidade reinventada, não são mais do que sinais da solidão, da anomia, da distância entre os ocupantes encastelados da cidade.
O mais radical no filme é o que mais nos faz pensar, persegue-nos fora do cinema e nos deixa na difícil e pós-moderna situação de irrecorrível convívio com a dúvida: a total ausência de valores morais e, mais ainda, a ausência completa de qualquer traço de sentimento humanista nesta coreografia do choque. Não há defesa, não há justificativas, não há apologia e não há esperança. É aí que se ergue um abismo imenso entre Crash e a crítica à cidade mundializada de Blade Runner.
Em muito Crash se aproxima do último livro de João Gilberto Noll, A céu aberto.
Se vocês ainda conseguem se lembrar, falei no início desta apresentação de uma segunda experiência vivida no ano passado, o júri de premiação de romance. Este romance, minha derrotada sugestão, foi considerado por quase toda a crítica uma narrativa excessiva, violenta, demasiadamente homossexual. A ausência de julgamentos éticos e morais incomodou. Na realidade, tais afirmativas não são infundadas. O livro é tudo isso. Mas não é só isso, como gostaria de mostrar.
Creio que mais duas obras destacaram-se dentre as publicadas no ano que passou, possuindo, como veremos, muito em comum. Tanto assim que acredito se possa falar numa característica do momento, um estilo talvez, certamente uma idêntica inscrição no polêmico campo do Pós-Moderno. Silviano Santiago publicou o premiado Keith Jarrett no Blue Note[13], uma seqüência de contos gays — improvisos, como chamou o autor — que se passa quase inteiramente na solidão de Nova Iorque. Em outra cidade, que não a sua, o narrador/personagem experimenta a vivência de viajante tão comum a nós todos que exercemos o ofício de intelectuais, divulgadores de cultura. Somente a última narrativa o traz de volta ao Rio de Janeiro para a última das separações narradas, a do amigo morto.
Os bêbados e os sonânbulos[14], do jovem Bernardo Carvalho, escritor surgido já quando a literatura brasileira retomava novo fôlego, segue na esteira da narrativa em ritmo de pesadelo de João Gilberto Noll. O romance inicia-se no Rio de Janeiro com a situação limite de um jovem que descobre ter um tumor no cérebro que terminará por alterar sua personalidade, transformando-o em outra pessoa. A partir daí segue-se um movimento permanente por diferentes partes do mundo, passando pela cama de diversos homens:
Na minha obsessão comecei a pensar que talvez amar um homem por noite tivesse a sua beleza, fosse uma necessidade inconsciente de amar a humanidade toda de uma vez, e ser amado por ela, uma tarefa impossível e desesperada [15]
Continuam os deslocamentos até o personagem transformar-se no narrador/escritor, criador talvez de toda uma farsa sem limites de tempo ou espaço, de volta a Nova Iorque onde toda a seqüência da narrativa até então é posta sob suspeita. O verdadeiro jogo do romance é essa exacerbação do ficcional através da dúvida permanente sobre a coerência da narrativa e da identidade do narrador: “Daqui para frente, tudo é verdade. Isto não é uma ficção. Nada foi inventado”, interferência que vem se firmando como uma característica do narrador pós-moderno. Mais adiante:
Na época, decidi não publicar este manuscrito. (…)Desde o início ele tinha servido para me fazer perder o sentido da literatura.(…) Passei por Nova Iorque no mês passado, depois do discurso de Estocolmo, e, dessa vez, ao contrário das anteriores, tinha perdido o interesse pela cidade.[16]
Dentre as características partilhadas pelas obras de Santiago, Carvalho e Noll, destaco o descompromisso com o espaço cultural e geográfico de origem, o local, até chegar ao desaparecimento mesmo da cidade.
É voltando ao A céu aberto que finalizarei esta reflexão. A narrativa se inicia com um rapazinho que precisa procurar o pai para poder ajudar a curar o irmão que está doente. O pai está na guerra e é necessário encontrar esta guerra, que permanece por todo o romance, acontecendo em algum lugar. Neste pesadelo de que não se acorda, o irmão se transforma em mulher, que se transforma em amigo, que se transforma no filho do amigo e são todos possuídos pelo narrador: “Cheguei a pensar na ocasião o que seria de mim sem o gosto pelo sexo”, diz. Um personagem do romance de Bernardo Carvalho afirma: “O mundo é cem por cento sexo”. Num tempo indeterminado, o personagem move-se por espaços indefinidos, obsessivamente em busca de aproximações excessivas. A sanguinolenta cena em que o personagem violenta um rapazinho nos provoca um desejo de abandonar a leitura, próximo da vontade de sair do cinema que Crash produz.
Celeste Olalquiaga[17], estudando a sensibilidade cultural nas metrópoles contemporâneas, afirma que a alta tecnologia reformulou a percepção contemporânea, especialmente a distinção entre os paradigmas temporal e espacial. A substituição do continuum temporal por uma obsessiva, paralisante repetição é associada pela autora à compulsão à repetição, considerada por muitos “a doença do século XX”. Junto a essas mudanças perceptuais, a tecnologia estaria, para ela, gradualmente deslocando o orgânico em favor do cibernético, e o simbólico com o imaginário produzindo a fragmentação do eu que é compensada pela intensificação de prazeres pornográficos e dolorosos. Esses processos tanto ajudam a articular uma política totalitária de fiscalização e controle quanto o seu oposto, uma dinâmica que atravessa fronteiras e hierarquias, permanecendo o mais importante problema do debate pós-moderno.
Por que continuar com uma leitura como essa? Justamente porque ela nos provoca, nos incomoda, mexe conosco e porque a escrita de João Gilberto Noll atinge aqui uma beleza despojada que beira a perfeição, e, em extremos de sensibilidade, evoca uma simplicidade esquecida que parece impossível no universo globalizado da pós-modernidade. Cito:
Tardes que se enluaravam cedo…O quê?, perguntei distraído ao vento, como se tivesse escutado uma voz vinda de alguma misteriosa descarga dos ares. O quê?, repeti. O colega sentinela me puxou a manga feito me chamasse ao prumo do momento e me contou que sim, as tardes daquele período triste de sua infância se enluaravam cedo, ele não sabia bem porquê (…) assim eram as coisas no período mais triste da minha infância, pois veja aquele sinal de chuva logo ali, eram assim os dias no período mais triste da minha infância, de repente a gente precisava voltar para casa, baixar a vidraça, e no lado de fora não se conseguia ver mais nada além de pingos escorrendo-escorrendo-escorrendo.[18]
Volto aqui, para concluir, à bela imagem que Italo Calvino constrói em sua conferência, tirando os óculos de míope para se refugiar do mundo exterior na literatura. Nenhum destes escritos nos oferece abrigo da cidade real. Neles não está a cidade da memória, os sonhos da cidade da fantasia, a esperança da cidade oculta que surge travestida. Neles também não está o mundo virtual que tanto assusta a Jean Baudrillard. O crime não é perfeito, deixa traços.
Se a cidade global por onde nos movemos, neste final de milênio, é aquela onde as vivências reais se tornam ilusórias e remotas, onde a humanidade, capaz de produzir os clones de Blade Runner, torna-se menos real do que as histórias que se apresentam na TV, no vídeo, nos filmes, nos jornais, onde o indivíduo afetivamente embotado não consegue distinguir o essencial do supérfluo, então, talvez essa literatura possa nos servir como as lentes de que precisamos para encontrar a cidade desejada.
Notas