Vilma Costa
Introdução
Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade, e Nome de Guerra, de Almada Negreiros, são dois romances contextualizados, respectivamente, em São Paulo e Lisboa dos anos 20. Este trabalho se apoiará na leitura comparativa desses dois textos para discutir a temática proposta: Eros, cidade e modernidade. São textos que trazem em comum as marcas de seu tempo histórico, através da representação da cidade moderna, e da complexa modernidade que se delineava nesse início de século.
Parte-se do princípio de Barthes de que “a cidade é um discurso, e esse discurso é verdadeiramente uma linguagem: a cidade fala aos seus habitantes, nós falamos a nossa cidade…” (1987:184). A discussão, sob este ponto de vista, implica a compreensão de que toda cidade, além do que sua história registra e do que a realidade concreta de sua geografia aponta, possui uma poética muito rica que a transfigura e a reconstrói num discurso de significações múltiplas. Ou seja, a linguagem das cidades é fundamentalmente poética, metaforizada, mediada pela paixão e pelo desejo de cada escritor ou leitor que se aventura a percorrer suas ruas e suas letras.
Amar, verbo intransitivo — São Paulo, comoção da minha vida!
Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade, publicado pela primeira vez em 1927, tem como ambientalização básica os bastidores de uma “casa nobre de estilo” da família dos Souza Costa, “novos ricos” da burguesia ascendente dos anos 20. É aí que se desenvolve toda a problemática da educação de Carlos, o herdeiro. A grande São Paulo, enquanto espaço físico e geográfico, tem uma presença irrelevante. Ela se constitui, porém, em um fio importante da construção textual quando ganha dimensão simbólica nas falas e ações de seus personagens, incluindo-se, entre estes, com destaque, o personagem-narrador. A cidade, mais que um pretexto, como pode parecer, é representada sob múltiplos pontos de vista, o que permite a convivência de um conjunto expressivo de conflitos e contradições. Essa multiplicidade de olhares que lhe são derramados, leituras também da modernidade que ela metaforiza, vai dando vida a cada personagem, construindo um personagem narrador inquieto e questionador, tecendo as redes de relações entre desejo e repulsa, amor e medo, homem-da-vida e homem-do-sonho, realidade objetiva e subjetividade implícita.
O senhor Souza Costa contratou Fräulein como governanta para iniciar no amor seu filho Carlos, o herdeiro de uma família bem posicionada de São Paulo, a cidade em desenvolvimento que estava povoada de perigos: “estes fins de inverno são perigosos em São Paulo” (p.49).
Tratava-se de uma São Paulo impulsionada pela industrialização crescente, com novos modos de produção em desenvolvimento, apontando o surgimento de novos setores de classe. A família de Carlos estava situada neste contexto, oriunda do empresariado emergente, onde os “novos ricos” buscavam a estabilização enquanto afirmação da sua nova condição social. Para isso, tornava-se preciso preservar a família, através da proteção dos herdeiros, desse mundo externo que se anunciava tão ameaçador.
Dentro desta perspectiva inicial, o chefe da família, como bom pai que pretendia ser, contratou uma profissional para iniciar o filho na sexualidade e protegê-lo das aventureiras que andavam à solta pela cidade, com o intuito de dilapidar as fortunas tão arduamente acumuladas. As cidades eram horríveis sob esse ponto de vista porque, em última instância, era inconcebível qualquer forma de desperdício e risco para a riqueza que a burguesia precisava acumular. O gasto com prostitutas, com o amor, com o jogo, com o sonho, com a poesia era uma despesa inútil e perigosa. Por isso “Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!”[1]. Pagar muito bem à professora seria mais garantido e econômico do que deixar o menino à deriva de uma Paulicéia de mil dentes.
A sociedade humana e cada homem em particular têm “interesse em perdas consideráveis, em catástrofes que provoquem, de acordo com necessidades definidas, … crises de angústia e, em última análise, um certo estado de orgia” (Bataille, 1975:28 — grifos do autor). Trata-se de uma orgia que se estabelece a partir de “desordens” em várias instâncias, inclusive na afetiva, o que se opõe, frontalmente, à exigência positivista da “ordem” para o progresso. O que se vê, portanto, é uma tensão permanente entre as concepções sociais, e mesmo individuais, mais profundas e as reais necessidades de acumulação da sociedade capitalista. A melhor forma encontrada para garantir o atendimento das últimas é a posição de intolerância com as primeiras, como assumia o pai de Carlos.
Fräulein, como governanta da casa, passou a garantir a tranqüilidade do lar. Assumiu a posição de “membro que faltava e de novo cresce. Começara como quem recomeça e a tranqüilidade aplainou a existência dos Sousa Costa, extraindo as últimas lascas da desordem, polindo os engruvinhamentos do imprevisto” (p.53). Chegou para ensinar o amor, o amor “calmo” que precisava da muita tranqüilidade para se estabelecer.
Pretendia ensinar o amor. Não qualquer amor, como ela mesma afirmava, vinha ensinar Carlos a “criar um lar sagrado!” (p.78). Um amor que não é só o que o senhor Sousa Costa pensava, voltado para a reprodução da família burguesa que constituíra, e sua continuidade no herdeiro. O amor que Fräulein se dispunha a ensinar dizia respeito à arte de amar, enquanto “amor sincero e elevado, cheio de senso prático”[2]. Provavelmente o mesmo sentimento que figurava em seus sonhos, evasão e fuga das dificuldades que a profissão lhe trazia: “Como é belo o destino do casal superior. Sossego e trabalho. Os quatro ombros trabalham sossegadamente, ela no lar, o marido fora do lar. Pela boca da noite ele chega da cidade escura…” (p.64). O lar, em sua concepção, constituía-se enquanto o espaço do sagrado, do amor elevado, ao passo que da cidade escura chegava o homem que havia mergulhado no mundo profano do trabalho.
Sua concepção de cidade não tinha as mesmas prerrogativas que a do senhor Souza Costa. Talvez o único aspecto em comum fosse o ponto de vista etnocêntrico que possuíam. Ele raciocinava segundo sua posição de classe, o bom chefe de família burguês que precisava proteger o herdeiro de uma cidade perigosa que ameaçava sua estabilidade. Ela encarava a cidade como o contraponto do seu sossego doméstico, jamais ameaçado, pois situava-se no plano do imaginário, mais precisamente no domínio do desejo de comunhão e completude a partir de sua própria cultura. O homem-da-vida de Fräulein, incorporando a razão e o pragmatismo da modernidade alemã, estabelecia o conflito, de certa forma, harmonioso com os desejos mais profundos do seu homem-do-sonho.
Mas a cidade continua…[3] São Paulo é como Carlos, o menino que estava crescendo com a rapidez da modernidade. “Mas Carlos era ardido, tinha pressa” (p.71). A cidade se expandia no frenético movimento da multidão nas ruas, das fábricas em acelerada produção de riquezas, dos automóveis em alta velocidade. São Paulo era um corpo em transformação como o de Carlos, que estava sujeito aos calores e hormônios da adolescência. Ambos, guiados pela inconstância da idade ou pela condição humana, seguiam passos emaranhados.
Nesse sentido, o narrador assume um ponto de vista solidário e compreensivo com o menino ardido e machucador, mas inocente. Sim, porque: “Carlos era machucador. Porém não fazia por mal… (…) … aí estão a pureza, a inocência, os ossos e a graça sutil do rapaz.” (p.95)
Apesar das marcas inconfundíveis do psicologismo em sua escrita, e as explícitas referências a Freud, o narrador não assume uma posição de analista frente a uma patologia, quando ressalta o aspecto machucador de Carlos. Apresenta-se como um filósofo, discutindo a questão da presença da violência no homem, enquanto impulso primitivo, por isso inocente. É nesse sentido que tanto a cidade quanto Carlos saem machucando na exuberância e potência da juventude de cada um.
Fräulein, por sua vez, ensina a língua alemã a Carlos, inicialmente como um pretexto. A palavra erotizada, entretanto, de instrumento, vira objeto de desejo e de poder. Possuir o domínio da língua alemã é uma forma de Carlos possuir a professora de alemão, penetrar nos seus segredos, apoderar-se dela como seu objeto de desejo. Por outro lado, Carlos oferece à professora o fascínio do seu jeito pachorrento e brasileiro de ser, numa linguagem que vai deixando marcas de preferências muito suas “nos beijos de após venturas”[4]. Fräulein, ao ensinar o amor, ao fingir ciúme verdadeiro, aprende a senti-los. Carlos, o machucador, aprende com a fraqueza de Fräulein a exercitar sua força, ensina a professora a se entregar aos próprios desejos e fragilidades. Fräulein, ao ensinar, aprende. Carlos, ao aprender, sem querer, ensina. Enquanto isso, o narrador se delicia com a possibilidade de ser o poeta que inventa, em aspiral e labirinto, as configurações da difícil e experimental aprendizagem de fixar num texto um projeto estético, um desejo, mais uma procura[5]…
Nome de Guerra — Lisboa em busca de significação
Em Nome de Guerra, de Almada Negreiros, escrito em 1925 e publicado em 1938, a cidade não tem como referencial pontos geográficos, “a significação é vivida em oposição completa com os dados objetivos” (Barthes, 1987:184). A realidade geográfica objetiva é secundarizada pela necessidade da busca de significação. Lisboa é o espaço constitutivo da ação dos personagens. A partir dessas ações e de seus conseqüentes desdobramentos, é que vai se configurando a complexa rede de uma textualidade. Através da reconstrução do curso da vida de Antunes, o personagem principal, é que se dá a recriação discursiva da cidade, assim como esta acaba sendo um agente de transformação.
Duas mulheres marcam momentos distintos e importantes na vida de Antunes: Maria e Judite. A primeira representa a sua ligação à terra natal, situa-se no terreno da tradição agrária. Ela vive e morre em função do amor de concepção romântica. Antunes não partilha desse amor. Esteve preso a ela por desígnios estranhos a sua vontade, como estava preso à terra de origem, sendo objeto dos outros e não sujeito de seu próprio destino.
Por outro lado, “a explicação daquela imensa cidade, para ele, Antunes era a Judite” (p.131). Ela é um instrumento de conhecimento de si próprio e da cidade. Torna-se sua alfabetizadora na nova língua. Ele segue seus passos, é levado por sua mão pelos meandros e labirintos de um discurso inicialmente indecifrável. Para dominar os novos códigos não poderia prescindir da experiência urbana, precisando deixar para trás a sua aldeia, onde só conhecera a vida através dos livros.
Enquanto Maria é lembrada permanentemente vestida, o primeiro contato com Judite foi de choque: tem nos braços uma mulher nua. A perplexidade do primeiro momento é substituída pelo desafio de enfrentar e vencer a incomunicabilidade da nova realidade e suas conseqüências.
Diferentemente do campo, que representava a tradição, na qual o personagem situava-se como objeto de regras coletivas previamente traçadas, “a cidade vai ser […] um agente procurado de transformação, que o herói do livro acaba por aceitar, sofrer e vivenciar” (Seixo, 1989: 271). Isto, entretanto, não se dá tranqüilamente, e sim através de um processo conflituoso que acumula consecutivos “choques”. Os pares antigo-moderno, campo-cidade, objeto-sujeito tensionam-se e interagem entre si, durante todo o desenvolvimento do romance. A vivência urbana, ao estabelecer choques e rupturas, opera a transfiguração nos elementos marcados por referenciais da tradição, possibilitando fendas nas quais novos significados acabam por ser escritos.
A cidade moderna, ou a mulher que a representa, está ligada a Antunes por vínculos de uma relação que tem seu valor baseado nos mesmos parâmetros que regem a sociedade de mercado, valores de troca: “O Antunes seguia atrás dela como uma mercadoria” (p.137). A prostituta, mulher-mercadoria, e o homem, que também é mercantilizado, ligam-se por interesses diversos que representam ganho para cada um. Antunes a usa para aprender os segredos da sexualidade, da cidade e da sua própria vida. Tê-lo ao lado, por sua vez, é conveniente para Judite, porque, segundo suas próprias palavras, ele é “um rapaz com Educação, rico, com futuro… Uma mulher vale mais por acompanhar um homem do que por ser livre.” (p.136)
Ao mesmo tempo que um utiliza o outro e são, portanto, necessários, findo este valor de uso, tornam-se completamente descartáveis. “Judite não é gente, é uma pedra de toque, é um degrau, é a entrada, é a minha entrada na realidade” (p.144). Ela é a porta de entrada de Antunes na realidade complexa da modernidade, como a cidade é a porta que abre a possibilidade do objeto tornar-se sujeito. Judite abre as portas do novo porque os referenciais da tradição, representados por Maria, ainda estão presentes para Antunes. Uma não exclui a outra no imaginário do protagonista. Tanto que as duas esgotaram-se ao mesmo tempo para ele. “Na sua vida estava escrito assim: morreu a Maria, acabou-se a Judite…” (p.171 — grifos do autor).
Ao atravessar essa porta de passagem, sem Maria e sem Judite, Antunes retoma a sua condição de ser só no mundo. O fato de suportarmos “mal a situação que nos amarra à individualidade” (Bataille, 1968:17) aponta para a necessidade de contato com o outro. Daí o caráter erótico do encontro ou da sociabilidade[6]. Por isso, “o que ele [Antunes] queria era ter contato com a multidão, fazer parte dela, das massas ignorantes e inconscientes, ter a inconsciência e a ignorância dos que nada sabem…” (p.76).
Mas era também preciso saber “povoar sua solidão”, através da introspecção, num mergulho em si mesmo, na busca de significação da vida. A tentativa de retorno à origem estabelece o diálogo do passado com o presente e aponta vários nascimentos. Inerente a esta idéia, está a suposta presença da morte, pelo menos duas vezes.
Cada nascimento de Antunes tornou-se possível a partir da decomposição de sua vida anterior, do confronto com novas circunstâncias, completamente novas e marcantes, que apontavam um corte definitivo, ou golpe mortal, no que ela tinha sido até ali.
No capítulo XIV, “À segunda vez que se nasce, assiste-se ao próprio nascimento”, o fato decisivo partiu de uma descoberta. Apesar da educação que lhe reprimia os desejos e a ação, não podia fugir da constatação de que “aquele corpo nu de mulher foi o mais belo espetáculo que os seus olhos viram em dias de sua vida!” (p.66). A mulher nua, a cidade nua passaram a fazer parte da sua existência. Para que este novo nascimento se desdobrasse em crescimento seria preciso a morte da vida anterior, assim como seriam as substâncias em decomposição desta que alimentariam a sua nova condição.
Isto é literalmente afirmado no título do capítulo L, “Quando se nasce pela terceira vez/ há sempre restos das duas primeiras” (p.177). No terceiro nascimento, poderemos destacar também mais uma revelação: “E pela primeira vez o Antunes pensou que ele também queria ganhar dinheiro, o seu dinheiro” (p.178). A necessidade de ganhar o seu dinheiro, portanto, de trabalhar, aparece enquanto novo elemento na sua história de vida. Elemento este decisivo para, de objeto, tornar-se sujeito[7].
É assim que “o protagonista aluga a sua independência” (p.189). A partir daí, “o Antunes reconhecia-se com direito à vida por ter já começado a pagar seus tributos” (p.182). Encontrava-se, portanto, mais vivo do que nunca, depois de ter morrido pela segunda vez. As rupturas, com seus nascimentos, oferecem a Antunes novas lentes transfiguradoras de observação. Os mesmos personagens e pontos da cidade passaram a exigir outras leituras.
“Tudo o que a ele tinha acontecido até esta água-furtada era para rasgar. Só depois […] poderia então começar a pensar na maneira de arranjar para si uma nova alma mais competente” (p.190). Rasgava as folhas escritas do que passou, para recomeçar a escrever, a partir de um olhar multifacetado e, portanto, mais competente. Para Barthes: “O texto é (deveria ser) essa pessoa desenvolta que mostra o traseiro ao Pai Político” (1993:69). A janela aberta sobre o Tejo, neste momento da sua vida, constitui-se em uma poderosa lente, cristalina como aquelas águas furtadas, que possibilita alguma legibilidade. “Lisboa parecia a Antunes uma cidade escondida com as traseiras de fora”. A cidade escondida, ilegível até então, tem as traseiras de fora, para quem quiser (ou puder) lê-la.
Considerações finais
Amar, verbo intransitivo e Nome de Guerra são dois textos que trazem em comum a discussão da cidade enquanto um espaço onde se acumulam as contradições e conflitos da sociedade moderna, dos anos 20, revestidos por uma poética que integra o indivíduo a uma complexa rede de relações. O erotismo acaba sendo um elemento que sobrevive, na acepção original do mito, enquanto elo de ligação entre elementos isolados e definitivamente fechados na incômoda impotência da sua individualidade.
Nome de guerra se apresenta aos moldes de um romance de aprendizagem, onde as questões vão sendo apresentadas, numa articulação de personagens, cenário e ação, conectados a uma reflexão psico-filosófica permanente de um narrador onisciente. Tem uma estrutura capitular sintetizada por subtítulos que sugerem uma reflexão dirigida para a interioridade do personagem principal. Amar, verbo intransitivo, dentro também de uma discussão da aprendizagem, foge aos padrões lineares da construção realista para ser elaborado a partir de uma poética multifacetada (procedimento discursivo que se aproxima de estéticas vanguardistas, a exemplo do cubismo), dinamizada por vozes que se harmonizam na desordem estabelecida por opiniões e interesses conflituosos.
Antunes se liga com fascínio à multidão, elemento com o qual se envolve e no qual se dilui, no prazer do anonimato que, por vezes, rompe ou, por outras, reafirma a solidão do ser descontínuo que é. A solidão na multidão não interessa, inicialmente, a Carlos. Sua iniciação se dava dentro da proteção familiar, só depois desses primeiros passos poderia percorrer cada canto da Paulicéia de mil dentes.
Para Antunes a cidade é procurada enquanto elemento de transformação. A busca de significação passa pela relação entre a origem agrária e a vivência citadina, perplexamente nova e inicialmente ilegível. Judite é a metáfora de uma Lisboa que se inscreve vertiginosamente na modernidade em oposição à antiga estrutura social agrária, metaforizada por Maria, na vida do personagem.
Carlos não tem como referência uma origem, sua condição de “novo rico” descarta essa questão. Ele próprio metaforiza a São Paulo dos anos 20, que estava comprometida, nos calores de sua adolescência, com um projeto de modernidade, um progresso que prometia prosperidade e riqueza num futuro próximo e promissor. A cidade, em sua pressa de crescer e entrar definitivamente na modernidade, não podia prescindir da tecnologia e do capital de outros países. A intelectualidade brasileira de vanguarda bebia numa fonte externa aos princípios fundamentais de suas teorias. Carlos precisava, para aprender o amor, do trabalho paciente e profissional da professora alemã.
Lisboa e São Paulo são lidas e fixadas, a partir da escrita desses romances, por Mário e Almada de maneiras bastante diferenciadas, o que apenas reflete o caráter múltiplo da estética modernista dessa época. Muitos pontos de semelhança também poderiam ser destacados. Mas, para finalizar, cabe ainda ressaltar o caráter vanguardista de ambos na postura crítica às velhas formas estéticas e às antigas estruturas sociais, que de certa forma elas representavam.
Exigia a natureza que os homens cedessem, ou, mais ainda, que vergassem. A possibilidade humana depende do momento em que, conhecendo uma vertigem inultrapassável, um ser houve que se esforçou por responder não (Bataille,1968: 55 — grifo do autor).
Tanto Mário de Andrade quanto Almada Negreiros respondem não através da sua poética, fazendo de suas cidades a leitura possível da resistência a uma natureza física e social que exigia que os homens cedessem ou, mais ainda, vergassem.
Na linguagem da cidade, na sua poética caótica e desordenada, a necessidade de completude e comunhão envolve cada indivíduo numa promessa remota de harmonia. É na poética, tênue corda-bamba entre a realidade e o sonho, que Eros transita, possibilitando momentos de evasão, de plenitude, mesmo que instantâneos e remetidos à angústia, conseqüência da eminente perda dessa perspectiva de felicidade.
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Notas