Cidades em Diálogo

Fotogramas, vozes e grafias: Lisboa e Rio de Janeiro

Renato Cordeiro Gomes
PUC-Rio

O processo de modernização transforma não só o perfil e a ecologia urbanos, mas também as experiências dos habitantes da cidade, aquela que constitui uma questão fundamental para os modernos. Lugar por excelência das transformações que resultaram da Revolução Industrial, a cidade tornou-se uma paisagem inevitável, pólo de atração e de repúdio, paradoxalmente uma utopia e um inferno. Foi traço forte na pauta das vanguardas e continua, neste final de século, a ser um problema, objeto do debate pós-moderno, num momento em que a era das cidades ideais caiu por terra. Esse processo torna a cidade uma imensa arena de discursos gastos e dispersos, lugar de inscrição e rasura dos signos que desafiam o olhar do habitante, que busca ler a ilegível linguagem urbana[1].

Assim, os olhos dos habitantes, leitores da cidade, estão num processo de fusão visual, compactando uma multiplicidade de gestos, movimentos e imagens, no ato de ver/ler a cidade. Na experiência urbana, cruzam-se extremos momentos de conflito e o banal que sustenta a cidade e lhe dá vida. Tais cruzamentos constituem fatores condicionantes da percepção desses leitores.

Ler a cidade é engendrar uma possível leitura para o que se foi tornando ilegível, num jogo aberto e sem solução. Essas leituras são o relato sensível dos modos de ver a cidade, produzindo uma cartografia simbólica, captando-a enquanto “símbolo complexo capaz de exprimir a tensão entre racionalidade geométrica e emaranhado de existências humanas”[2], como ressalta Italo Calvino, no ensaio “Exatidão”, uma das Seis propostas para o próximo milênio.

Na atividade de leitura, dá-se a passagem do corpo da cidade ao corpo do texto. Ler o corpo urbano para transfigurá-lo em corpo de letras. Leitura: travessia dessa rede intrincada de relações que constitui o texto[3]— o texto da cidade, a cidade enquanto texto, não como forma cristalizada, mas resultado provisório e precário dessa atividade de conexões estabelecida pelo leitor. Deste modo, o corpo da cidade confunde-se com as palavras usadas para descrevê-la, ou com as imagens e representações que construímos dela. O corpo do texto dá a ver a cidade, através de um discurso que não a duplica: nunca se deve confundir a cidade com o discurso que a descreve, contudo existe uma relação entre eles, assegura Calvino[4]. “Nas cidades, os olhos não vêem coisas, mas figuras de coisas que significam outras coisas. Ícones, estátuas, tudo é símbolo. Signos urbanos, como placas, letreiros, anúncios, grafites… Tudo é linguagem, tudo se presta à descrição, ao mapeamento da cidade. O olhar percorre as ruas como páginas escritas: a cidade diz como se deve lê-la. Como é realmente a cidade sob esse carregado invólucro de símbolos, o que conta e o que esconde, parece impossível saber” — afirma Nelson Brissac[5], no ensaio “Ver o invisível”, retomando as formulações de As cidades invisíveis, de Italo Calvino.

Do corpo da cidade ao corpo do texto: desta operação deriva-se o conjunto de textos que forma o corpus deste estudo: Lisboa: inclinações, desvios (1993), ensaio fotográfico de Henrique Dinis da Gama[6], “Lisboa, vistas da cidade”, de José Cardoso Pires[7] (in: Um olhar português, 1991), e o conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, de Rubem Fonseca[8] (in: Romance negro e outras histórias, 1992). A conectá-los, sob a óptica aberta pelas formulações já expostas, a busca de uma arte de ver a cidade articulada com uma arte de andar nas ruas, que retoma a tradição da imagem de “um homem andando pela cidade”, para representar a metrópole moderna, imagem que remonta a Edgar Allan Poe, de “O homem da multidão”.

A geografia feita com os pés (para citar a imagem de Miguel Torga) é substituída pelo mapeamento através do olho da câmara que recorta Lisboa, no belo ensaio fotográfico de Henrique Dinis da Gama. Se é o humor de quem olha que dá forma à cidade, como quer Italo Calvino[9], é com este condicionamento afetivo que o olhar se faz condutor de Lisboa: inclinações, desvios, confirmando a atração simpática de seu autor para com o objeto, a cidade amada. A operação, a um só tempo, fotográfica e poética, revitaliza imagens perdidas no universo sígnico urbano. E daí, o desvio desse olhar em relação à cidade transformada em imagens construídas pela mídia e conservada em clichê, nos cartões postais. As fotos dão a ver uma Lisboa outra, quase deserta, direcionada ao exato, em que a “paisagem” urbana, quase invisível de tão vista, ganha inusitada visibilidade. O olhar conjuga o ângulo de uma direção com outra que se toma como referência e capta, desclicherizando, o rio, os azulejos, as pedras, os muros, as escadas, o casario, as grades, os telhados… que se inscrevem no espaço com o traço vigoroso da geometria. Manifesta-se a inclinação ao abstrato que desvia o concreto: paisagem urbana lisboeta geometrizada em “vôo petrificado pela luz” (a expressão é do autor), simbolizado pela gaivota fotografada no detalhe do azulejo que se torna emblema do livro.

O olhar que se ancora em Lisboa aprofunda na geografia as razões de uma nitidez. Busca “as harmonias que afinal são traições”: desvios — diz-nos o autor no texto poético que antecede as fotografias. Este outro ensaio é construído nas malhas do imaginário em que se tecem cidade e memória. “As vozes aí se harmonizam, quando imitam a imagem da cidade no corpo dos habitantes, produto de um destino solar”, mas “têm artes de ler as sombras”. Vozes da história anônima, memória feita de água, de terra, de ar, de luz, mostram que a cidade não conta o seu passado, contém-no, todavia, como as linhas das mãos, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nas feridas dos muros e das portas — como as fotos registram.

O texto e as fotos, na mesma propensão ao poético que lê na cidade “as horas que passam pelo tempo”, são, entretanto, desviantes: o verbal e o icônico têm autonomia discursiva — as fotos não são meras ilustrações do texto. Afinam-se, porém, em leitura recíproca e sustentam os arcos do imaginário que interpretam Lisboa. Letra e imagem tramam-se para dar forma à cidade.

Trama de letra e imagem é também a estratégia discursiva de José Cardoso Pires para compor a sua arte de ver Lisboa e de andar por ela, “restaurada” no texto “Lisboa: vistas da cidade”. Ancorado à cidade, procede a uma errância, fragmentando-a em “fotogramas” que concretizam visões plurais, a fim de superar os condicionamentos do hábito que não deixa ver, porque cristaliza as paisagens urbanas. O que faz é ler outras leituras, determinadas representações previamente dadas, de que se apossa o discurso narrativo ordenador das “vistas da cidade”. Abdicando da totalidade, o narrador-autor torna-se um alegorista da cidade, lendo-a em sua errância através de fragmentos. Mas o olhar que capta “ruínas” não é virgem, ou selvagem, pois há filtros que o condicionam: o sonho, a experiência do sujeito narrador, a memória individual, a memória cultural (literatura, biografias, lendas, história), cruzando a memória da cidade e a cidade da memória. Assim, Lisboa é “escrita e prescrita” por meio de uma operação poética que recupera cenas e paisagens já registradas: reordena as imagens e representações que compõem “os arquivos da cidade” (a expressão é referência do texto) — seus registros que incluem o imaginário coletivo e individual — através da interferência discursiva que é manifestação de um desgosto de amor.

Na abertura do texto, Cardoso Pires apresenta-se a partir de uma fotografia. E declara:

Estamos os dois [ele e Lisboa] em mais ou menos: tu cidade desfocada (excesso de luz, é evidente) e eu um tanto à margem, porque há um remorso da minha parte a separar-nos. Remorso, é como quem diz. Mau perder, talvez. O que eu sinto é um mau perder pelas cabronices que tu sofres mais. É mesmo o mau perder, acredita, que faz com que eu tenha por ti, oh Lisboa, um amor rancoroso do tamanho duma cidade.

Único fragmento sem título, essa fala dirige-se à própria Lisboa (chamada de “mana”), num tom de intimidade, e funciona como declaração de princípios e protocolo de leitura, marcando a posição afetiva de quem escreve. É, ao fim e ao cabo, uma declaração de “amor rancoroso”, paradoxo caraterístico do autor, ao mesmo tempo que indica o primeiro e privilegiado filtro que condicionará o percurso que dará conta dos lugares que ainda o intrigam ou fascinam e dos sofrimentos que a deterioração de Lisboa lhe tem causado, as “cabronices” que lhe roubaram a cidade. Por isso está “um tanto à margem”, posição meio oblíqua, necessária, entretanto, para redescobrir a alma dos lugares.

Como alegorista, faz-se meio estranho à sua própria cidade, condição necessária, segundo Walter Benjamin, para que o homem possa depreender a alma dos lugares, ou seja, a sua aura, perdida, uma vez que esses lugares foram reduzidos a locais moldados pelo hábito, conformados com traçados pré-estabelecidos[10]. Só assim, fazendo-se estranho, não “lá muito à vontade”, vendo Lisboa “como cidade desfocada”, que a cidade pode habitá-lo e ele morar nela.

Elegendo lugares já moldados pelos hábitos e clicherizados pelos roteiros turísticos, Cardoso Pires constrói, fragmentariamente, sobre eles um percurso outro, abrindo mão dos convencionais elementos de sinalização, signos da linguagem urbana, que indiciam os trajetos habituais, como já assinalou Izabel Margato[11]. “Enfim, esquecendo o slide, as setas do turismo, alfamas, miradouros, fados-fadários, pode-se ir dar — outro supor …”, diz o escritor, para traçar um outro mapa de sua própria lavra.

Lisboa é aí “um corpo para ler e decorar”: do corpo da cidade ao corpo do texto, tecido com “manchas da imaginação”, na verdade, cartografia afetiva, boêmia, literária, que conjuga produção imagística da cidade e produção de subjetividade. Contrabalançando o que se tornou habitual, vincula a magia, o trompe l’oeil (outra imagem forte da estratégia textual): a surpresa — “Lisboa é de surpresas”. Por este viés, capta a alma encantadora dos lugares com seus “requebros, conjugações: geometria esquiva”. A magia abre-se para a ficcionalização; o trompe l’oeil cria o ilusionismo que fecunda o referencial de que também se fazem os fotogramas, pontos de ancoragem. Resulta a “nova” cartografia em que se reciclam os lugares e as histórias contaminados pelo imaginário: Arroios, o lugar da origem, o Largo do Chiado e seus signos (a estátua do Chiado, Fernando Pessoa, Almada, A Brasileira…, as cicatrizes que marcam o que desapareceu: o Chiado, o lugar da memória), a rua do Alecrim (com a famosa estátua de Eça de Queirós, cortado da foto, para só revelar a “fantasia sob seu diáfano manto”), o roteiro dos bares, que “são realmente navegações pessoalíssimas”, a Vila Berta, assombramento que conjuga harmonia e beleza (mais uma das surpresas que a cidade possibilita) e, por último, um café no Terreiro do Passo, ou mais precisamente, um bar com vidraça voltado para o Tejo.

Deste modo, Cardoso Pires constrói a sua arte de andar nas ruas de Lisboa tramada com a de ver a cidade, arte que é “uma articulação sensível”, atividade de conexões plurais, para ler a Lisboa que continua incerta, e, por isso, possibilita sempre outras leituras. Porque “errante na paixão”, o amor rancoroso, que distancia e, paradoxalmente, aproxima, abre espaço para revelar o invisível:

No corpo duma cidade há sempre uma articulação sensível, a mais frágil, ou a mais desprotegida. Aqui, na capital de Ulisses, há várias para quem as saiba encontrar e o que surpreende é que algumas delas são nós íntimos, rosas ocultas, da paisagem consagrada.

Buscar essa frágil e desprotegida articulação sensível é também a proposta do protagonista-escritor de “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, de Rubem Fonseca. Este conto pode ser situado numa tendência da narrativa urbana brasileira contemporânea, que, frente aos impasses que a cidade enfrenta, alimenta-se da nostalgia, a dor da perda, romanticamente projetada num passado idealizado, quando as imagens congeladas nos cartões-postais e as frágeis mitologias urbanas se desgastam, no momento em que as certezas da modernidade são postas em xeque. Num tempo pós-utópico, a cidade, aqui em destaque, o Rio de Janeiro, torna-se uma questão, e volta-se a pensá-la enquanto condensação simbólica.

A ficção eminentemente urbana deste autor vem compondo um amplo painel sobre a violência e estabelece um diálogo constante com o mundo extraliterário, mas rompe com a rede de significações produzida pela banalização e pelo caráter de espetáculo da própria violência. O discurso ficcional desconfia da retórica que a veicula nos meios de comunicação de massa e da lógica das aparências, através da reflexão sobre o próprio discurso. Tematizando o Rio de Janeiro como cidade partida, mais que segregada espacialmente, dividida pelo medo e pela incompreensão das populações que não têm uma linguagem comum (como vêm demonstrando os estudos de Alba Zaluar[12] e de Maria Alice Resende de Carvalho[13] e o livro-reportagem A cidade partida, de Zuenir Ventura[14]), os contos e romances de Rubem Fonseca ultrapassam a violência condicionada pela luta de classes, para revelá-la enquanto traço forte que atravessa toda a sociedade. O crime ultrapassa qualquer fronteira ou limite, até porque Rubem Fonseca se nega a tematizar apenas a violência dos oprimidos. A geografia da violência impõe-se a outros possíveis recortes da cidade, diluindo contornos, embaralhando as linhas do mapa, conforme atesta Vera Follain de Figueiredo[15]. Emblemático, neste sentido, seria uma leitura contrastiva dos contos “Feliz Ano Novo”, em que um grupo de bandidos que vive na Zona Sul, assalta, numa noite de réveillon, uma casa da alta classe média, e “Passeio noturno I” e “Passeio noturno II”, em que um alto executivo milionário, após um dia estressante de trabalho, atropela, com seu carro importado último modelo, mulheres indefesas, na certeza da impunidade. O círculo da violência amplia-se, ainda, quando atinge as instituições, como se pode constatar, por exemplo, no romance-noir A grande arte (1983).

Por outro lado, são temas também recorrentes, na obra do autor, o esfacelamento e a falência da afetividade como forma de violência e a perda da cartografia afetiva das pessoas que “vivem empilhadas na cidade enquanto os tecnocratas afiam o arame farpado”, segundo declara, em sua “poética”, o personagem-escritor entrevistado no conto “Intestino grosso”, que encerra o volume de contos Feliz Ano Novo (1975). Sob esta visão da realidade urbana, carioca sobretudo, parece circular um viés romântico e nostálgico de uma cidade cordial e compartilhada, núcleo de “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”.

Este conto retoma a tradição da narrativa urbana carioca, para registrar os percursos de Augusto, que se torna escritor diletante, após ganhar um prêmio na loteria, abandona o trabalho burocrático e se instala num sobrado vazio, no centro da cidade, lugar de origem do protagonista, para escrever um livro também intitulado A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro. Nas trajetórias deste simulacro de flâneur exilado na pós-modernidade que não vê a cidade através da multidão, mas a olha com seu olhar enraizado, a narrativa dissemina cenas que mimetizam a violência urbana proliferante, para estampar o estado de abandono e miserabilização que corroeu o mito da antiga Cidade Maravilhosa. Enquanto olha e escreve, o escritor andarilho registra os que estão à margem da sociedade, os excluídos da própria modernização, com suas vozes que não se comunicam. Registrando essa cidade polifônica, cujas vozes se mostram impossíveis de harmonização, e sua face obscura e ao mesmo tempo tão visível, acredita que pode, porque pensa, solucionar os problemas da cidade dividida, não-compartilhada e perversa. Mas seu objetivo não é oferecer a cidade como espetáculo exótico do “horror, do crime e da miséria”; enfoca precipuamente a perda da cidade compartilhada, a corrosão do diálogo, a perda dos referenciais de sua cartografia afetiva, a violência da destruição da memória da cidade. Andando pelo centro histórico da metrópole, “Augusto quer encontrar uma arte e uma filosofia peripatéticas que o ajudem a estabelecer uma melhor comunhão com a cidade. Solvitur ambulando” — atesta o narrador.

Em seu projeto de articular o texto, a cidade e a memória, Augusto percebe a perda da alma encantadora da cidade reduzida a locais moldados pelo hábito, percebe-a não mais em comunhão com seus habitantes e quer ir rastro atrás dessa cidade perdida. Deseja com seu livro em processo de escrita redescobri-la, reinventar uma leitura para ela. Tenta resistir nostalgicamente à discordância entre o ritmo da metrópole e o de sua sensibilidade afetiva. Quer recuperar suas raízes e por isso ocupa o centro da cidade, num tempo em que tudo é previamente dado, exposto em visibilidade total, num espaço de pulverização social, da desestabilização do eu, da comunicação problemática. Andando ao rés-do-chão, colado à realidade que observa, preso ao cenário urbano, lugar por excelência da atenção flutuante, Augusto não consegue fugir do valor de exposição da cidade que perdeu a aura, de que ele tenta ler pedaços, as ruínas que restam. Anda e escreve sobre uma cidade sem aura, mas é acometido pela nostalgia da aura. Pretendendo construir o seu leitor ideal, como ensina as prostitutas a ler, ele indica que precisa de um leitor que o entenda. O leitor que procura é o que possa significar a cidade, que possa ser um signo dela. Quer ensinar a cidade a ler, para que ela possa se reconhecer no desenho que pretende fazer através das palavras: transfigurar o corpo da cidade no corpo do texto, grafia urbana. A arte de andar nas ruas é também a de preparar aquele que vai receber de volta a cidade, agora recriada pela letra. O projeto de Augusto mantém simultaneamente o tom nostálgico e a desilusão pós-utópica, ao alimentar o desejo de tornar legível o espaço urbano, salvando a sua escrita do fantasma da morte.

Através destes percursos pelas cidades de letras e imagens, grafias e fotogramas — Lisboa e Rio de Janeiro, conjugadas pela arte de andar e de ver —, percebe-se que não há a exclusividade de um modelo para a leitura da cidade. Aceitando o fragmentário, o descontínuo e contemplando as diferenças, os textos de Henrique Dinis da Gama, José Cardoso Pires e Rubem Fonseca procuram escapar às exigências excludentes do modernismo, refuncionalizando a tradição, respectivamente, das culturas portuguesa e brasileira. Reciclando a memória cultural, esses textos cenarizam a cidade patchwork[16], com sua polifonia, sua mistura de estilos, captados por olhares que colhem a multiplicidade de signos, na busca de decifrar o urbano lisboeta e carioca, que se situam, ambos, no limite extremo e poroso entre ficção e realidade. Conjugando fotogramas, vozes e grafias, os textos revelam a cidade enquanto o lugar de inscrição e rasura dos signos cuja legibilidade seduz e desafia o olhar do leitor, ao mesmo tempo que indicam serem cidades não apenas produtos da memória ou do desejo, como muitas das cidades invisíveis de Italo Calvino; são objetos complexos que incluem a realidade e sua descrição[17]: cidades que se confundem com as palavras, as imagens e as vozes usadas para descrevê-las. A operação poética que (re)inventa, que dá a ver essas cidades, é levada, entretanto, até certo ponto; caso contrário, obter-se-iam cidades verossímeis demais para serem verdadeiras.

 

Notas

  • 1 Para as questões sobre a legibilidade da cidade ver nosso Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
  • 2 CALVINO, Italo. “Exatidão”, in Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.85.
  • 3 BARTHES, Roland. “Da obra ao texto”, in O rumor da língua. Lisboa: Edições 70, 1987.
  • 4 CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.59.
  • 5 BRISSAC, Nelson. “Ver o insisível: a ética das imagens”, in NOVAES, Adauto org. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.311.
  • 6 GAMA, Henrique Dinis. Lisboa: inclinações, desvios. Porto: Afrontamento, 1993.
  • 7 PIRES, José Cardoso. “Lisboa, vistas da cidade”, in Um olhar português. Lisboa: Círculo do Livro, 1991.
  • 8 FONSECA, Rubem. “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, in O romance negro e outras histórias. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
  • 9 CALVINO, Italo. Op. cit. p.64.
  • 10 BRISSAC, Nelson. “É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nelas?”, Dossiê Walter Benjamin. Revista USP, n.15, set-out-nov. 1992.
  • 11 MARGATO, Izabel. “Deambulando por Lisboa com José Cardoso Pires”. Cópia xerografada, ensaio inédito.
  • 12 ZALUAR, Alba. Condomínio do diabo. Rio de Janeiro: Revan: UFRJ, 1994.
  • 13 CARVALHO, Maria Alice Resende de. Quatro vezes cidade. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994.
  • 14 VENTURA, Zuenir. Cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
  • 15 FIGUEIREDO, Vera Follain de. “A cidade e a geografia do crime na ficção de Rubem Fonseca”. Literatura e Sociedade, n.1. São Paulo: DTLLC: FFCH: USP, 1996, p.89.
  • 16 CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica. São Paulo: Studio Nobel, 1993, p.10.
  • 17 PATTON, Paul. “Imaginary cities: images of postmodernity, in WATSON, Sophie & GIBSON, Katherine ed. Postmodern cities and spaces. Oxford: Cambridge: Blackwell, 1995, p.112.