Cidades em Diálogo

Nacional por abstração

Eneida Maria de Souza
UFMG

A importância de Mário de Andrade e dos modernistas paulistas para o início do Modernismo em Minas está intimamente ligada à visita, em 1924, da caravana a Belo Horizonte, como rota final da viagem às cidades históricas. Motivados pela lição de Blaise Cendras, poeta franco-suíço que incentiva os jovens escritores a buscar o exótico, a tradição e o primitivo presentes na arte barroca mineira, os paulistas saem em busca de elementos capazes de propiciar a descoberta de uma cultura de traço nacionalista. Uma das fórmulas encontradas por Mário de Andrade, com base na experiência com o barroco, foi a sua conjunção com o expressionismo alemão, por ambos responderem por princípios estéticos semelhantes: a deformação do objeto artístico e o surgimento do homem novo. Na substituição contínua que o Modernismo opera em relação às vanguardas, a escolha do expressionismo e o abandono do cubismo e das manifestações artísticas da Escola de Paris serão para Mário uma forma não só de refletir sobre o nacionalismo brasileiro pelo viés de empréstimos estrangeiros, como de reciclar esses empréstimos, optando pela Alemanha em detrimento da França. O que estava em jogo era a defesa de um projeto coletivo de afirmação nacional, presente nas várias áreas do saber.

A cidade de Belo Horizonte acolhe os paulistas e estes se alimentam da riqueza da arte barroca das cidades históricas para a complementação do conceito de moderno e de nacional. A paisagem urbana colonial empresta aos modernistas a contraparte que faltava: o patrimônio cultural, a urgência de “restaurar” obras antigas como uma das saídas para a convivência do antigo com o novo. O registro da passagem dos modernistas em Minas, composto de poemas, crônicas e ensaios de Oswald e Mário de Andrade, traz igualmente desenhos das cidades coloniais, com assinaturas de Tarsila e do escritor paulista. Revestidos de um traço fino e limpo, esses desenhos sugerem o despojamento do olhar modernista diante do ornamento e do acúmulo de detalhes do barroco. O retrato dessa paisagem marca a reunião de tendências estéticas pertencentes a momentos distintos, uma das maneiras de se admitir o diálogo atemporal aí existente. O caráter de revival que preside a toda manifestação artística encontra aqui uma brecha para se pensar o conceito de tardio, acepção desprovida de continuidade histórica e voltada para a descontinuidade temporal.

A mudança dos parâmetros estéticos, conforme as exigências de ordem ideológica e programática, corresponde, nas palavras de Otília Arantes, à inauguração de novos ciclos de atualização, como reforço de nossa sina de país periférico. Trata-se de uma sina que ainda nos condenaria tanto a um estado eterno de defasagem temporal em relação aos empréstimos — o conceito de tardio nasceria daí — quanto a um estado de deslocamento espacial no tocante às idéias que compõem o imaginário global — lembrando aqui o preconceito referente às idéias “sempre” fora do lugar.

No auge do movimento modernista prevaleceu, segundo Otília Arantes, em Mário Pedrosa, itinerário crítico, a tendência nacionalista, após uma fase de total abertura à lição das vanguardas européias, que culminou no endosso de propostas de ordem francamente social. Aliada a essa proposta, a preferência de Mário de Andrade pelos aspectos figurativos da arte modernista e a recusa do abstracionismo explicam a sua preocupação em alertar Tarsila, durante sua estada em Paris, dos perigos de se abandonar o “matavirgismo”, termo criado pelo escritor como solução brasileira aos ismos europeus. Entende-se assim a intenção de pôr em prática uma atividade cultural que se pautava por contornos expressionistas do país, na ânsia de consolidar, pelo apelo à figuração, a imagem ainda pouco definida de pátria.

Se o primitivismo trazido pelo cubismo fora substituído pelo caráter mais deformado e contundente da arte expressionista-barroca, o abstracionismo será ainda motivo de resistência. Para os defensores de um traçado mais nítido para o desenho do nacionalismo brasileiro, a configuração plástica do país não coincidia com o aspecto disforme e sem rosto da arte abstrata, dotada de uma estética calcada mais nas manchas e nas linhas do que nas imagens, embora deformadas, das figuras. Um Portinari ou um Segall representavam, plasticamente, o momento de alta significação monumentalista e social da arte brasileira dos anos 30. A fusão entre vanguarda estética e vanguarda política permitia ainda a permanência de valores sociais e coletivos no âmbito da arte, a ponto de ser a pintura desta época uma das grandes referências da tradição nacionalista e engajada do moderno. Indaga-se contudo o que ficou deste programa estético, com o abalo das ideologias causado pela 2ª guerra mundial ou pela introdução de outras idéias, trazidas agora pelos Estados Unidos. As inúmeras transformações processadas na cultura, e dentre elas as de ordem mediática, reforçam a necessidade de romper com as raízes nacionalistas, uma vez que a redemocratização do país exigia novas linguagens e diferentes parâmetros estéticos. O abstracionismo dos anos 40, por exemplo, aclamado por Mário Pedrosa como uma das formas de redefinir regionalismos e nacionalismos artísticos, chegava aos portos do país com a mobilidade das esculturas do americano Calder.

Na década de 40, a equação moderna brasileira, já realizada nas áreas da literatura e das artes plásticas, recebe novo impacto e se configura, tardiamente, nos projetos arquitetônicos, com a presença de Lúcio Costa e Niemeyer e sob a influência do arquiteto francês Le Corbusier. O projeto da Pampulha, desenhado para se instalar na periferia de uma cidade moderna e recém-construída, deu continuidade às obras anteriores realizadas por seus autores, além de abrir o caminho para a construção de Brasília, obra-prima de arte concreta. Inaugurado em 1942 — com exceção da Igreja de São Francisco —, o conjunto arquitetônico representava, no Brasil, a continuidade do que fora iniciado, em 1922, nos planos literário e artístico. Essa construção, por se achar afastada do centro da cidade e enxertada na parte ainda despovoada de Belo Horizonte, deslocava o espaço tradicional reservado à vida pública e dava início a uma arquitetura moderna na “periferia” de uma cidade igualmente moderna. Com traços racionalistas e abstratos, voltado para o caráter internacional que presidia seu projeto estético e para a singularidade da arte de Niemeyer, o conjunto arquitetônico acrescentou outra dimensão ao conceito de moderno.

Ao fundir uma preocupação ao mesmo tempo internacionalista e regional — esses são os termos da época —, o conjunto da Pampulha é analisado por vários críticos e, dentre eles, Mário Pedrosa, como dotado de brio às vezes excessivo, de gratuidade experimental e luxo, ao ser associado às condições históricas que possibilitaram tal desvario: o comércio inicial com a ditadura. Analisada ainda por Otília Arantes, com o respaldo de Kenneth Frampton, essa obra pertenceria ao programa arquitetônico intitulado “regionalismo crítico”, ao mostrar a tensão entre a modernidade universal e a idiossincrasia de uma cultura enraizada. Essa solução arquitetônica foi capaz de preservar as referências locais, e por essa razão foi denominada “arquitetura do lugar”, sem que fosse negligenciado o seu diálogo com as tendências artísticas internacionais.

O discurso de abertura da Exposição de Arte Moderna de 1944 — que, sob a curadoria de Guignard e J.G. Menegale, reuniu artistas do Rio e de São Paulo — aponta a intenção do então prefeito da cidade, Juscelino Kubitschek, de reforçar a atmosfera de renovação artística de Belo Horizonte, com o intuito de colocá-la no nível das grandes metrópoles. Uma nova metrópole deveria, pela sua tradição e história, sensibilizar-se com as mudanças processadas na área cultural, sem se deixar contaminar “pela toxina de idades mortas”. A idéia de progresso se casava com o empreendimento modernizador da época, da mesma forma que marcava as grandes vanguardas políticas do século XX. No entender desse discurso político, arte e técnica caminhavam lado a lado com a política, pelo convite aberto de Kubitschek no sentido de reforçar a analogia pretendida. Mas todos sabemos que raramente os discursos artísticos atuam de forma correlata ao processo modernizador e progressista que, em distintos momentos, reveste a modernidade de aparatos ideológicos desprovidos de contradição e de rasuras.

Sem ignorar a relação ambivalente, e por vezes precária, existente entre estética, técnica e política, torna-se necessário refletir sobre o convívio da industrialização com a vanguarda artística promovida pelo discurso modernizador de Kubitschek. A arquitetura, em escala bem maior do que outras manifestações culturais, representou, para o governo, uma maneira visível e popular de novamente redefinir os conceitos de território e de apropriação na era moderna. O preço a pagar por esse investimento residia na proposta da arte abstrata, referida linhas atrás: o começo da capo, a recusa em admitir o passado como modelo e a necessidade de construção da nacionalidade pelo viés de valores internacionais e cosmopolitas. A abertura de Minas para as formas mais arrojadas da arquitetura inseria o discurso político na rota da vanguarda, pelo rompimento com o passado do período colonial, visto como subdesenvolvido.

O barroco, embora investido de um importante componente na caracterização do elemento nacional, além de marcar a arte de Niemeyer, não irá funcionar de maneira semelhante àquela do alto modernismo. O estreito enlace entre a arte abstrata dos anos 50 no Brasil e o descrédito na proposta nacionalista do modernismo irá traçar uma tendência artística que se volta contra o figurativismo, o primitivismo e o expressionismo, uma vez que são outras as tintas a serem utilizadas no processo de remodelagem do rosto da nação.

Na citada Exposição de 1944, embora a vertente abstrata começasse a se integrar à paisagem brasileira, são expostas obras de Malfatti, Tarsila e Portinari, sem que nenhum quadro abstrato tivesse espaço para ser exposto. A polêmica que movimentou a imprensa na época mantinha, portanto, relação com a obra que se colocava a meio caminho dessa tendência, “O Galo”, de Portinari, por esta não revelar verossimilhança entre o título e a sua figuração. A ausência de referente facilmente detectável — a pintura remetia para a imagem de um galo de cabeça para baixo — demonstra como a recepção da arte moderna em Belo Horizonte se revestia ainda de preconceitos de ordem artística e cultural.

Se a recepção tardia da obra de arte atua indiscriminadamente em tempos diversos, um dos fatores de releitura da modernidade tardia poderia se explicar pela concepção de tardio como sinal de atraso temporal, de percepção posterior do que deveria ter sido captado no momento de contato com o objeto artístico. Esta posição não se sustenta de forma conceitual, entendendo-se que não se trata apenas de definir o moderno tardio como recepção atrasada da arte. Pelo fato de não existir uma relação hierárquica entre presente, passado e futuro, a representação tardia da modernidade convida à releitura do que não foi realizado no passado, seja por limitações teóricas, seja por recalcamento. Ou, em outras palavras, procede-se à releitura do que falta, à compreensão do hiato verificado nas manifestações do passado, rasuras que irão irromper no presente sob a forma de um tempo a ser recriado, com variações e diferenças. O que se comprova é a perspectiva crítica trazida pelo revival, condição de toda arte, pela apropriação contínua aí realizada do material de que a cultura é feita.

As manifestações tardias do moderno não terminam aqui. O conjunto arquitetônico da Pampulha é, hoje, o cartão-postal da cidade, embora carente de um tratamento mais cuidadoso por parte dos órgãos oficiais. O traço moderno de sua arte requer, contudo, reflexões que o insira na proposta político-cultural da época e o lance em direção às indagações da arte contemporânea. Enquanto persistir a pergunta sobre a herança ou o rastro da modernidade ainda existente, estaremos formulando questões capazes de ajudar um pouco na construção da história da literatura e das idéias no Brasil. A abstração, resposta da vanguarda e do moderno para os nacionalismos artísticos pautados pelo apelo à figuração, é um alerta para a subtração do contigente de realismo reducionista que permeia o complexo conceito de nacional.