Teresa Cristina Cerdeira da Silva
UFRJ
Começo a falar de Lisboa, falando de viagens, de viajantes, e daquilo que eterniza essas viagens para além da precariedade de cada vida, com um texto de José Saramago, do livro chamado Viagem a Portugal:
A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: “Não há mais que ver”, sabia que não era assim. O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com Sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir. E para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.
Viajar é, portanto, na lição do viajante, sempre recomeçar, para ver o já visto de outra maneira, e para ver o outro lado, a perspectiva inesperada, a claridade ou a sombra que não existiam. Também nós, que viajamos nas palavras que outros teceram, temos que recomeçar sempre diferentemente o caminho pela cidade, porque partimos de um material que não é o referente Lisboa, mas aquilo que da cidade se fez “memória, lembrança, narrativa”.
Lisboa, através dos tempos, foi atravessada por muitas falas. Podemos mesmo dizer que há tantas Lisboas quanto as falas que dela se fizeram. Uma Lisboa de Fernão Lopes, a do Cerco, talvez, que pôs no trono o Mestre de Avis; uma Lisboa camoniana — cais de partida para as grandes navegações — com uma certa praia do Restelo em que ecoava a voz que começaria a comprometer a inteireza do projeto expansionista; ou ainda uma Lisboa inquisitorial, iluminada pelo fogo dos autos-de-fé, Lisboa de Antônio José da Silva admiravelmente redesenhada no século XX por Bernardo Santareno e José Saramago n’O Judeu e no Memorial do Convento.
Muitas são as ficções de Lisboa e só essas podem, na verdade, ser recuperadas. Porque a cidade histórica, a cidade literal, a cidade referencial, essa muda, insere novas paisagens e apaga os vestígios passados que só continuam a existir na memória que os reconstrói, ou na narrativa que os reinventa. Estamos mais uma vez a falar de história e de ficção, esse debate incessantemente retomado, cujos limites não cessam de aguçar nossas reflexões.
Ao pretender falar dessas ficções de Lisboa sabia bem que seria necessário impor um corte conceptual, escolher uma entrada e falar dessa cidade escrita, dessa cidade inscrita nos textos, a partir de uma seleção no burburinho de tantas falas. Optei, portanto, por escolher alguns textos que recriam e conservam a imagem de uma Lisboa vista pelo avesso: não o jardim à beira-mar plantado, mas a Lisboa desmonumentalizada que uma certa literatura ousou configurar. Esse projeto de desmonumentalização da cidade não é necessariamente desfigurador, ou o é tão somente pelo fato de não repetir os caminhos que os cadernos de turismo parecem apontar. Mais que inversão (verter ao contrário), seria uma espécie de perversão (de per-verter, verter através de, diluir) da imagem feita, do estereótipo, num gozo de substituir a fadiga da imagem pela frescura da linguagem feita agora de diluições, de deslocamentos, de derrapagens, de fugas, de deslizamentos.
O estereótipo de cidade gloriosa de onde partiam as naus do Império começa a ser pervertido / diluído no século XIX por uma nova escrita — não mais épica, mas romanesca — que propõe um novo ideário para a narrativa de viagens portuguesa. Falo de Garrett e das suas Viagens na minha terra que inauguram uma proposta de releitura de Portugal no avesso das viagens portuguesas, ou, se quisermos, com sinal oposto ao da apologética do mar como símbolo da glória nacional. Garrett faz, sim, um livro de “viagens”, para situá-lo no contexto lusíada de um país de marinheiros. Mas essas são, agora, viagens na [sua] terra portuguesa, aquela que fica aquém-mar, desconhecida e abandonada pelos olhos de uma “política de transporte” que aniquilou a fixação positiva do homem à terra. Para assinalar este sinal contrário a um movimento secular, parte de Lisboa e do Terreiro do Paço onde desembarcavam outrora as riquezas do Império —, e parte também de barco, porque marinheiras eram todas as viagens da tradição lusíada. Mas é aí, onde a similitude se implantaria, que a perversão se inaugura. O barco não repete as naus, porque não é glorioso e dele não se espera, ao menos, — tão lento vai — que seja o primeiro numa “regata de vapores”[1]. Logo se descobre, entretanto, que a sua falência não é tecnológica: ela se justifica tão somente pela direção do caminho empreendido. Esse barco não desce o Tejo, rumo “ao largo oceano”; ele caminha, ao contrário, “Tejo-arriba”, para ir ao encontro do “quintal português”, “onde a laranjeira cresce na horta e o mato é de murta”[2]. O barco vai conhecer o Portugal interior, vai acompanhar o narrador na parte inicial de sua viagem a Santarém, viagem pequena, certamente, se pensarmos em geografia, viagem sem glória, sem adamastores nem fogos de santelmo. E, no entanto, viagem importante, para dentro de um Portugal a re-conhecer, para dentro da cultura, para dentro das tradições, para dentro da História; viagem ainda de explorador sagaz que, subvertendo o traçado primeiro, investe em viagens paradigmáticas múltiplas a se inscreverem na sintaxe do mero deslocamento espacial que a viagem física prometia. Pontual este senhor Almeida Garrett! Pontual quando pretende acordar o país da falsa imagem gloriosa que criara para si mesmo ao assinalar irônica e sutilmente o fim da épica dos mares.
Claro está que Lisboa ocupa espaço estratégico na leitura que faz Garrett do destino português. É de lá que parte, é a ela que retorna, e a imagem que fica da cidade, nessa navegação nada épica, feita pela contramão da ideologia, é a de uma cidade contemplada pelo vagar de um barco a subir o Tejo, na contra-corrente do rio e na contra-corrente da História. Não mais “a ocidental praia lusitana” de onde os heróis-navegadores partiram para conhecer “os mares nunca de outrem navegados”, mas justamente “este majestoso e pitoresco anfiteatro de Lisboa oriental”, a que guarda mais presente as tradições da “nossa velha e boa Lisboa das crônicas”; uma Lisboa onde tudo é menos “prosaico e burguês, chato, vulgar e sensabor”, a Lisboa da Madre de Deus e das hortas de Chelas.
A um lado a imensa majestade do Tejo em sua maior extensão e poder, que ali mais parece um pequeno mar mediterrâneo; do outro a frescura das hortas e a sombra das árvores, palácios, mosteiros, sítios consagrados a recordações grandes e queridas. Que outra saída tem Lisboa que se compare em beleza com esta? Tirado Belém, nenhuma. E, ainda assim, Belém é mais árido.
A ousadia do narrador é imensa: substitui a grandeza épica pela paz bucólica, a praia ocidental pela Lisboa oriental, a Lisboa burguesa pela Lisboa popular, o “grande oceano por achar” pelo “pequeno mar mediterrâneo” e a epopéia do mar pela tradição da terra nessa porta de saída da cidade que tem mais beleza nas suas hortas e nas suas árvores que a aridez monumental de Belém. Afinal não era Belém uma metáfora do projeto expansionista que tornara definitivamente árida a terra portuguesa?
Garrett impõe um novo olhar para a história que começa por uma perversão do modelo expansionista onde Lisboa era o centro dos olhares. Ensina a olhar a cidade por uma outra perspectiva — que é física, literal e também evidentemente metafórica. Ensina um outro percurso para a viagem dos portugueses, aquela que lhe permitirá viajar “com muito prazer e com muita utilidade e proveito na nossa / sua boa terra”. De certa maneira o primeiro requiem para Os Lusíadas se tecia nessa nova proposta onde o “prazer” não estava mais na ficção de uma glória passada, mas na certeza do “proveito” e da “utilidade“ dos seus projetos viáveis.
Mas o século XIX daria ainda uma outra versão de Lisboa e do mar português no poema que Cesário compõe para a comemoração do 3º centenário d’Os Lusíadas: “O sentimento dum Ocidental”. Ao trazer à memória, ao re-memorar, sabe bem Cesário que de um outro tempo se trata, que só na sua deambulação temporal, só na sua evocação do passado, é possível encontrar o passado glorioso pois, no presente, o que resta é a imagem fixada em monumento de “um épico de outrora” que “ascende num pilar”.
Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico de outrora ascende num pilar![3]
Cesário perverte a imagem gloriosa do Tejo das naus. O escritor sabe que ele não é só aquele que escreve, mas aquele que faz com palavras. Garrett fez com palavras a primeira travessia da terra; Cesário faz com palavras o deambular por uma Lisboa crepuscular; uma Lisboa burguesa, de montras iluminadas, como uma catedral, percorrida pela procissão das “burguesinhas do catolicismo”; uma Lisboa de prostitutas com frio, de trabalhadores fantasmáticos e de um Tejo onde “o peixe podre gera focos de infecção”. Mas também, como a recuperar a imagem daquele “povo povo” de Garrett, vislumbra uma Lisboa onde ainda há, surpreendentemente, “um cheiro salutar e honesto a pão no forno” e varinas varonis, de troncos firmes “como pilastras”, a sacudir as “ancas opulentas”, capazes de sustentar bravamente, embalando nas canastras, “os filhos que depois naufragam nas tormentas”, esses trágicos herdeiros da fatalidade camoniana.
Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio; apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
A Lisboa de Cesário é uma cidade habitada e é esse cenário social degradado que a insere de forma canhestra no contexto das primeiras metrópoles modernas do fim do século XIX. O poeta que deambula por Lisboa é um flâneur baudelairiano que nos permitiria ler “O Sentimento dum Ocidental” como uma espécie de Spleen de Lisboa[4], onde a atmosfera noturna e soturna da cidade produz, nele também, “um desejo absurdo de sofrer”, tradução não literal mas literária do “ennui”, do spleen do poeta francês. Cesário atravessa Lisboa onde “o céu parece baixo e de neblina” e o cheiro do gás, a cor das chaminés, o movimento da multidão evocam por momentos um desejo de evasão, uma certa “invitation au voyage”[5] que a Paris no auge do capitalismo provocara no poeta das Flores do mal. Se o “pays de Cocagne”[6] sonhado por ele, “que se poderia chamar o Oriente do Ocidente, a China da Europa”, toma contornos mais precisos na enumeração de Cesário — “Madrid, Paris, Berlim, S.Petersburgo, o mundo!” —, o desejo de partir para um infinito — a “quimera azul de transmigrar” —, que alargasse o horizonte emparedado da paisagem urbana, está presente nos dois. Entretanto, Cesário talvez acabasse por abrir maior espaço ao social do que ao metafísico, e ao porto — “espaço sedutor para uma alma cansada das lutas da vida” —, ao porto como espaço de quem nem sequer espera uma partida e se contenta em um voyeurismo nostálgico voltado para “aqueles que ainda têm a força de querer, o desejo de viajar ou de se enriquecer”, o poeta português contrapõe a imagem contundente das vendedoras de peixe vivendo às margens de um Tejo sem glórias:
Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera focos de infecção.[7]
Outra é a fórmula pessoana de revisitar Lisboa. Também ele, diferentemente, lê a cidade no seu viés, liberando-a de suas amarras referenciais, para fazê-la surgir em linguagem do olhar de um sujeito em crise, a viver da terrível tensão entre a agonia de um eu finissecular dilacerado e a superexistência de um eu que em máscaras se multiplica. A aposta da modernidade, Pessoa assumiu-a em sua plenitude quando se instalou como instância fictícia, quando elegeu a manifestação do eu sob um fundo de ausência que é a proposta mesma da heteronímia. Levava, assim, à última instância a consciência de Rimbaud de que “je est un autre”, fazendo dessa aguda revelação desinstaladora, dessa recusa de assentar-se no tapete das certezas — violadas antes dele por Freud e por Nietzsche — o cerne da sua criação.
O eu múltiplo é, paradoxalmente, o eu dilacerado, numa inesperada matemática em que multiplicar é dividir. Ser muitos é exacerbar a consciência do nada, é perscrutar por muitas vias o vazio do ser, é experimentar a sensação dolorosa de partir-se em cacos, sem a proposta de vir, um dia, a recompor o vaso — por serem mais os cacos que a loiça, porque o todo não é a soma das partes, porque o eu é uma ficção[8].
A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Cahiu pela escada excessivamente abaixo.
Cahiu das mãos da creada descuidada.
Cahiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.[9]
A definição é de tal modo iluminadora do despedaçamento presente da subjetividade que não há como sonhar com recomposição da unidade; o descuido da “creada involuntária” é sem remédio e sem retorno, porque era chegado o tempo de o sujeito perder definitivamente a utopia do centramento e da inteireza do eu.
O eu esfacelado desconhece o encontro consigo mesmo e já não é capaz de reconhecer o mundo. Por isso, revisitar já não significa recuperar as imagens espaciais que compuseram outrora o cenário da vida. Por duas vezes vemos “Lisbon revisited”, onde até na língua o estranhamento se concretiza. É com um título em inglês que esse português educado na África do Sul compõe poemas em que revê a Lisboa da infância e não mais a encontra. Ao partir, como o outro, em busca do tempo perdido, não tem sequer o gozo estético e sensual de experimentar a sensação que lhe traz de volta o passado. Combray saíra inteira — com seus sons e suas cores, com sua igreja e as flores do jardim de Swann — da xícara de chá em que o narrador de Proust mergulhara a sua “madeleine”.
E como naquele jogo japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia de água pedacinhos de papel, até então indistintos e que, depois de molhados, se estiram, se delineiam, se colorem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, assim todas as flores do nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as ninféias do Vivona, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha xícara de chá.[10]
Lisboa, ao contrário, está para sempre perdida, nenhum “jogo japonês” é capaz de recuperá-la, nenhuma memória involuntária lhe devolve a magia do passado: a sua visão só chega aos bocados, em fragmentos fatídicos que não recompõem a identidade, porque a magia do espelho se perdeu, ao partir-se em cacos: cacos do espelho, cacos da cidade, cacos do eu.
Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida…
Cidade triste e alegre, outra vez te sonho aqui […]
Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.
Outra vez te revejo — Lisboa e Tejo e tudo —,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver […]
Outra vez te revejo,
Mas, ai de mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim —
Um bocado de ti e de mim!…[11]
A Lisboa do poeta é menos sujeito que objeto: ela não é, ela é vista — ou revista — e nunca reencontrada. A cidade, o rio, o céu azul, tudo perde a identidade e o contorno para ser ausência, “mágoa revisitada” por um eu sem inteireza diante de uma cidade sem inteireza: “Um bocado de ti e de mim”.
Essa leitura de Lisboa por uma ótica tão pessoal pode, em certa medida, calar a cidade factual para só deixar surgir o eco da subjetividade, ou pode trazer uma Lisboa de imagens inesperadas que um diretor de cinema alemão consegue ali recortar. Quero terminar esse passeio pelas ficções de Lisboa com o filme de Wim Wenders: O céu de Lisboa (Lisbon Story). Aí parece que entramos em plena crise do sentido — ético?, político?, estético? — da representação. Porque se trata de um filme que parece caminhar em duas vias indicadas cada uma por um dos idealizadores do filme: o diretor e o engenheiro de som.
Por um lado, a tentativa de um olhar estrangeiro de aproximar-se da cidade, aproximação que se configura concretamente na leitura metafórica da viagem de automóvel de um dos personagens feita da Alemanha até Portugal — mais precisamente até Lisboa —, atravessando a França e a Espanha de uma Europa unificada e sem fronteiras, onde a identidade dos países se resume à diferenciação lingüística das placas de trânsito na autoestrada e às emissões radiofônicas nas ainda diferentes línguas. O que se percebe é que a história dessa aproximação da cidade se cumpre no sentido inverso da concretização do estereótipo fornecido pelo cartão-postal de Lisboa que o especialista de som — Winter — recebe do amigo, diretor de filmes e, especialmente, de um filme sobre a cidade de Lisboa. Na sua chegada, o desencontro com o amigo, o alojamento em sua casa que congrega a tradição e a decadência, o contato não ortodoxo com os hábitos, os livros, e os amigos do amigo desaparecido, tudo parece conduzir a um conhecimento da cidade pelo veio de uma intimidade que revela antes o seu avesso do que a sua face oficialmente revelada pelos documentos turísticos de que o cartão-postal havia sido o portador irônico. O único monumento que parece sobreviver é o rio, que é antes um som entre outros colhidos pelo personagem para o filme que o amigo deixara em rolos ainda não montados. O som para o Tejo é feito de instrumentos e vozes do conjunto Madredeus, reunido em ambiente quase de ficção sugerido pelo predomínio do azul feérico na quase totalidade de suas aparições. O Tejo passa a ser música, como Lisboa é toda imagens e sons: o amolador de facas, as lavadeiras, o elétrico que sobe as ladeiras, os pombos em revoada. A intimidade com a cidade, com as pessoas na cidade, é uma relação amorosa, como é amorosa a relação com a música que a diz, como é amorosa a relação com os poemas de Pessoa transcritos em graffitis na parede da casa ou lidos por Winter na perseguição das pistas de reconhecimento da trajetória do amigo na cidade de Lisboa, relação amorosa ainda na sugestão de um idílio não consumado que ele mantém com a jovem Teresa do grupo Madredeus. Conhecer Lisboa é amá-la como imagem e como música da vida.
Por outro lado, há a via do diretor que ultrapassara uma primeira relação de idílio com a cidade — que o teria levado a um primeiro impulso de guardá-la em imagens fílmicas que o olho do sujeito captara —, por uma crise teórica sobre a questão da representação na obra de arte. Partindo da idéia de imagem como simulacro do real, teria ele chegado à radicalização platônica do conceito de imagem como reflexo, jogo, ilusão, falsificação ou manipulação do real. Recusando uma estética contemporânea em que a cópia se sobrepõe ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser, a imagem à coisa, o personagem opta por negar o primeiro investimento de elaboração fílmica, em nome de um puro arquivo da realidade presente da cidade, filmada agora não mais por um olho que vê, observa, recorta, escolhe ou manipula o real, mas por uma câmera sem olho humano, colocada nas suas costas, captando a perspectiva jamais vista, onde a lacuna entre o referente e a imagem tendesse a zero. Imagem na sua pureza referencial, que estaria sendo coletada para o arquivo da posteridade como as imagens mais verdadeiramente realistas. Contra o lixo tecnológico, contra as imagens da mídia vendidas pelo poder cultural e que invadem a nossa privacidade, ficava o desespero da abdicação da própria arte, o silêncio do cinema ficção em nome do cinema documentário: a autenticação se sobrepondo à representação.
Os tempos pós-modernos não poderiam ter mais dilacerante resposta, falência mais desesperançada, que só é revertida quando o discurso do desencanto é acordado pelo engenheiro de som que descobrira o sentido da arte no amor da cidade, no amor na cidade. O filme estava feito e era preciso terminá-lo, era preciso ignorar cem anos de técnicas cinematográficas acumuladas e ir buscar com os meios mais precários, com as tomadas dos cameramen despidos de técnica — as crianças de um bairro simples de onde se vê o rio —, com o avesso da técnica, os recantos do avesso da cidade, a gente do povo, as casas que seriam destruídas pela modernidade das novas estradas e de que só restarão as memórias que delas se fizerem. É essa a proposta de Winter, que tem nome de inverno, mas que descobre a magia do céu azul de Lisboa, que é estrangeiro, mas penetra a cidade tendo as crianças como guias, que se esforça para saber a língua, e que lê Pessoa para aprender Lisboa.
Garrett, Cesário, Pessoa, Wim Wenders… Avessos de Lisboa. Ficções de Lisboa…
O viajante volta já.
Notas