Robert Moses Pechman
Instituto de pesquisa e planejamento
urbano e regional — UFRJ
As pedras de que se constrói uma cidade não são suficientes para edificá-la. Seja Babel, Sodoma ou a Atenas clássica. Seja Londres, Paris ou as “Cidades Invisíveis” de Calvino.
Por mais engenhosas, monumentais e indestrutíveis que possam ser as construções de pedras, elas são insuficientes para se fazer uma cidade.
Da pedra com sua dureza se faz o muro, a muralha, a rua, a catedral, o monumento. E ainda assim, não temos uma cidade, mas um aglomerado pétreo que apesar de engenho humano, continua sendo matéria mineral, da natureza das rochas.
Para que a cidade haja, para que o petrificado se desencante como nos contos de fada, não basta com nomear o aglomerado de pedras, de cidade. É preciso mais do que dar-lhe um nome, é preciso construir-lhe uma história, revelar uma origem, eternizar uma memória. Soprar vida à cidade de pedra é insuflar-lhe a maciez de um discurso que diz quão dura a pedra é!
Aí está pois a fórmula da bruxa para transformar “cidades de pedra” em pedras da cidade: inventar a cidade. Dizer do amontoado de casas, templos, monumentos, fortalezas, que são uma cidade, dar-lhe um sentido, traçar-lhe um destino. Trata-se de dar a essas formas físicas um enquadramento numa teia discursiva, de maneira tal, que a dureza da pedra não se reconheça mais na alma mineral, mas somente na fluidez do discurso.
Injetar alma — significados — na cidade é transformá-la em objeto, é possibilitar o processo de invenção social, é abrir um sulco para o trabalho do historiador.
Agregamos assim, à materialidade do valor de uso/valor de troca da cidade, um outro valor, o simbólico, a partir de onde a cidade se interroga, se presentifica como sujeito novo na história.
É o discurso, em seu poder de evocar símbolos, portanto, que faz da pedra, cidade.
Em cada época histórica esse discurso se travestiu de diversas formas de expressão, diferentes maneiras de conhecer e representar o mundo. Interessa-me aqui, no entanto, cingir-me apenas ao século XIX/XX e à literatura, para tentar observar como esta foi reinventando o conceito de cidade e analisar paralelamente a isto, como pode o historiador se relacionar com essa invenção para construir a cidade em objeto de sua reflexão.
Vejamos, pois, a cidade mais como um parto da inteligência, fruto da capacidade humana de representar o mundo em imagens, como ensina Angel Rama em seu A Cidade das Letras, do que como uma acomodação física ao solo. Ou como alerta Italo Calvino de As Cidades Invisíveis, que jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve.
Pedra e discurso, eis aí nossa questão! Em qual dos dois está a verdade da cidade? De qual matéria podemos fazer a história da cidade?
Certamente que das obras. Mas, mais importante do que saber onde está a verdade da cidade é fundamental analisar como se dá o processo de sua transformação em objeto do discurso. É exatamente nesse momento que a cidade e o discurso que sobre ela se faz dão suporte à legitimação de certas imagens que por seu turno deixam de ser imagens[1] e se transformam em práticas, em concretudes da cidade.
Para ilustrar essa transformação irei me referir a um processo histórico concreto, aquele da derrubada das muralhas das cidades medievais, no século XVIII, quando de sua urbanização e transformação em grandes cidades.Nesse processo, pela primeira vez a cidade se torna foco de observação, análise e discurso. Basicamente, porque a cidade passa a representar a própria civilização na medida em que a vida urbana é vista como destino inexorável. Dito de outra maneira, a cidade é o laboratório onde a civilização moderna está sendo gestada.
A articulação cidade/civilização tornar-se-á fatal para transformação da cidade em objeto de discurso. É óbvio que não se trata apenas do lugar físico onde a civilização estava sendo construída. Isto é, não se trata da cidade em si. Esta articulação diz respeito muito mais à cidade como lugar do entrecruzamento dos discursos sobre a civilização, isto é, trata-se certamente de imagens.
Norbert Elias no seu O Processo Civilizador nos ensina que, segundo Mirabeau, o que se considera ser civilização não se confunde com suavização das maneiras, urbanidade, polidez ou decoro. Tudo isso parece a Mirabeau — assinala Elias — ser apenas a máscara da virtude e não sua face. A civilização nada faz pela sociedade se não lhe dá a forma e a substância da virtude.
E Carl Schorske arremata, assinalando que a partir do século XVIII as cidades são definidas a partir de três caracterizações: a cidade como virtude, a cidade como vício e a cidade além do bem e do mal.
Essa articulação, essa teia discursiva que se estabelece entre cidade e processo civilizatório, impregnará definitivamente as imagens formuladas sobre a cidade, tornando-se uma fonte onde a literatura e as artes em geral irão se abeberar. É a partir dessa articulação que a cidade escapole à sua condição mineral, derruba suas muralhas e deixa de ser um mero abrigo, simples fortificação.
A linguagem guarda resquícios dessa operação discursiva estabelecendo parênteses entre cidade e civilização. Assim o termo “civita” (cidade) se abre para “civis” (cidadão), “civilis” (civil), “civilitas” (civilidade), “civilisé”(civilizado) e finalmente para “civilization”. Cidadão, civil, civilidade e civilização amarram-se, pois, fortemente à cidade, indicando que é pela cidade que se civiliza. Isso pela via latina. Pela via grega o termo pólis, para nominar cidade, derrama-se em política, que é arte da negociação, do convívio; em polícia, que diz dos costumes, hábitos e comportamentos, para os quais se clama vigilância, e politesse que é o espírito da sociabilidade, da urbanidade, do decoro e da polidez. Pólis, política, polícia, politesse, etapas incontornáveis na constituição do processo civilizatório.
Essa nova “condição discursiva” não se resume, no entanto, a um “puro e simples entrecruzamento de coisas e de palavras; trama obscura das coisas, cadeia manifesta, visível e colorida das palavras”, como alerta Foucault[2]. É preciso, pois, “não mais tratar os discursos como conjuntos de signos… mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam”[3].
Entre os vários discursos que vicejam na cidade, sobre a cidade, quero me ater ao da literatura, que em sua verossimilhança teve papel crucial na invenção do urbano.
Cidades feitas de letras
As grandes cidades são a grande novidade do século XIX. E não apenas por sua grandiosidade, dimensão espacial ou por seus progressos urbanísticos e arquitetônicos. A novidade aí está longe da efemeridade das modas ou das futricas sociais. O que é absolutamente novo é o fenômeno urbano em si.
Me explico melhor: cidades, as conhecemos desde os confins da história, mas o fenômeno urbano, como estamos assinalando, é algo absolutamente inédito na experiência humana. Para dirimir incredulidades vou adiantando que a terrível novidade, que empresta ao fenômeno urbano especificidade histórica inaudita, ancora-se basicamente na existência de cidades povoadas por uma multidão de seres que, vindos de todos os cantos do país, passam a habitar as grandes capitais; multidão cuja qualidade básica é o individualismo, a experiência da destruição dos laços comunitários e a vivência da dissolução das referências sócio-culturais que orientavam o cotidiano dos indivíduos.
A marcar e disciplinar o ritmo dessas multidões, o relógio, com seu tempo abstrato, tempo apropriado pelo patrão na produção da abundância e da riqueza, define novas formas de dominação.
A definição de uma nova sociabilidade, fundada na diferenciação social e marcada pela fetichização da mercadoria diante da coisificação do ser, cindiu definitivamente os grupos sociais, pautando o seu convívio muito mais no ter do que no ser.
Ora, estes três fatores — a multidão, o tempo abstrato e a existência de novas formas de sociabilidade —, com todo seu caudal de conseqüências, passam a ser a marca do fenômeno urbano.
O que é terrível aí, segundo análise de Stella Brescani, é a
reelaboração radical da imagem antiga da cidade: ao invés do espaço fechado, restrito e defendido dos inimigos externos da cidade medieval, tem lugar a ocupação extensiva, a aglomeração populacional, a derrubada dos muros, a convivência diária com o inimigo dentro dos próprios limites da cidade moderna…[4].
Por tudo isso, as grandes cidade dos século XIX são, aos olhos daqueles que se esforçam por entendê-las, algo impossível de descrever. É o sentimento de estupor, de espanto, de terror e de fascínio diante de um fenômeno, que por falta de vocabulário mais adequado, ou mesmo por falta ainda de conceitos para explicá-lo, recorre-se às metáforas[5].
Como nomear a miséria, a pobreza, a doença, a promiscuidade, o individualismo, as novas formas de vida urbana[6] que desarraigavam e destroçavam os indivíduos?
Antes que o “saber científico” procurasse responder essas questões, a literatura já as tomava como matéria-prima na elaboração de seu métier. Por isso mesmo a literatura participou ativamente na construção das identidades sociais e na constituição do imaginário sobre as cidades modernas[7]. Ficção e realidade compartilhavam entre si a realidade e a ficção.
Paralelamente ao processo de urbanização, vai se desenvolvendo o hábito da leitura e vai se criando um público leitor que espera ver traduzido seu estupor diante do fenômeno urbano, nas páginas dos folhetins ou nas folhas dos romances.
Que melhor compreensão da multidão urbana, que não se dá a conhecer, que o conto de Edgar Allan Poe — “O homem da multidão” — onde o segredo da turba é tão insondável quanto um livro que de tão grosso jamais poderá ser lido. Que melhor compreensão do tempo devorador — CHRONOS — que o conto “Um Aperto”, onde literalmente os enormes ponteiros de um relógio no alto de uma torre gótica decepam a cabeça da personagem que arribara ao seu cume para observar a cidade e tão extasiada ficara com a visão de conjunto que se esquecera do movimento das horas, deixando seu pescoço no caminho do giro dos ponteiros[8].
Que mais aguda percepção dos mistérios da cidade que o enigmático conto “A Esfinge”[9], que já no seu título pede deciframento. A cidade, vis-à-vis as visões da morte do personagem do conto, exige tradução do seu enigma, sob o risco de devorar os incapazes de fazê-lo.
Baudelaire, assumido leitor de Poe, foi outro que não escapou à cidade. Suas Flores do Mal florescem em solo urbano, no “lodaçal”, onde não se acredita possa irromper o sentimento. E é justamente das ruas, dos “mauvais lieux” da cidade que Baudelaire tira sua poesia, como no poema em prosa “A Perda do Halo”, onde um “homem comum” encontra-se com um poeta num bordel. Estranhando encontrar o poeta, de sentimentos tão delicados, nesse lugar tão sórdido, o “homem comum” revela-se escandalizado com tal encontro. Ao que o poeta explica que, cruzando o bulevar no meio do trânsito intenso de carroças e cavalos, desviou-se para não ser atropelado e perdeu o halo que tinha sobre sua cabeça. Caído no lodaçal, o halo restou na rua e o poeta, livre de ser atropelado e do próprio halo, seguiu em frente para viver os prazeres da cidade sem a sacralidade do halo[10].
O poeta, Baudelaire, abraça a cidade e, conspurcado de vida urbana, se deixa arrastar no caudal da multidão.
Verbalizando o indizível, Baudelaire dá à poesia o poder de iluminação de que só o astro-rei é capaz, no poema “O Sol”:
Quando às cidades ele vai, tal como um poeta,
Eis que redime até a coisa mais objeta,
E adentra como rei, sem bulha ou serviçais,
Quer os palácios, quer os tristes hospitais.[11]
Esgrimindo com as palavras qual trôpego deambulador tropeçando nas calçadas, Baudelaire faz, da aventura urbana, poesia.
Exercendo “estranha esgrima” (“O Sol”), Baudelaire penetra o tecido urbano deixando fluir os seus mistérios, que entrevemos no poema “Os Sete Velhos”[12]:
Cidade a fervilhar, cheia de sonhos, onde
O espectro, em pleno dia, agarra-se ao passante!
Flui o mistério em cada esquina, cada fronte,
Cada estreito canal do colosso passante.
Em Baudelaire, assinala Raymond Williams[13]— “a cidade era uma ‘orgia de vitalidade’, um mundo instantâneo e transitório de ‘êxtases febris’”.
Por isso mesmo, insiste Williams, “a experiência urbana se generalizava tanto, e um número desproporcional de escritores estava tão profundamente envolvido nela, que qualquer outra forma de vida parecia quase irreal; todas as fontes de percepção pareciam começar e terminar na cidade, e, se havia alguma coisa além dela, estaria também além da própria vida”[14].
É o que expressa a poesia do inglês James Thomson[15], o poeta do século XVIII que parece adivinhar o que seriam as cidades modernas.
Ninguém sabe como chegou a ela […]
[…]Mas, ao chegar, se sente cidadão[…]
Pobre infeliz, que chega e não imagina
…que esta cidade é agora sua sina.
Aqui percebemos nitidamente o papel civilizador da cidade. Para o bem ou para o mal, a civilização moderna não é possível sem a cidade. E a cidade não só como cenário, mas condição inevitável da civilização.
E, como estamos tentando demonstrar, a literatura teve papel decisivo na transformação da cidade de fato estético em fato histórico. Estou sugerindo que as imagens construídas pela literatura, da cidade, transformaram-se em repertório da própria cidade pelas mãos dos leitores. Ou melhor, as imagens ficcionais da cidade se transformaram numa chave a destrancar os insondáveis mistérios de uma cidade que não se revelam à simples observação.
Dickens, Balzac, Hugo, Dostoievski, Gogol, Wordsworth, Zola, para só citar literatos europeus do século XIX, foram alguns dos que, ansiando por desvendar a alma humana, compreenderam que deviam debruçar-se sobre a janela do gabinete onde escreviam e encarar a cidade, estabelecendo um fluxo entre o devaneio pessoal e intransferível e o bulício das ruas.
Não é por menos que Baudelaire sugeria que o verdadeiro artista moderno deveria “épouser la foule” e que para o observador apaixonado, o flanêur, é grande fortuna escolher sua moradia “no flutuante, no movente, no fugitivo e infinito”[16].
A rua do século XIX, ensina a historiadora Arlette Farge, sintetiza, exprime o drama da civilização ocidental na transição para a modernidade. Como território denso que é, a rua encerra em si o essencial da vida. E arremata Farge “a vida se fabrica aqui, na rua, a golpes de ternura e violência”[17].
Era impossível, portanto, para esses autores, compreender a sociedade moderna sem se debruçar sobre a cidade, sem se aventurar pelas ruas.
No século da “Comédia Humana”, assinala Chantal George no seu livro La Rue, “todos vigiam: os romancistas, os poetas, os pintores e logo os fotógrafos”[18]. É a ânsia de apanhar a vida “no vivido”.
Oposta à casa, a rua transforma-se num museu de tudo, aberta ao olhar analítico e indagador. Por mais que o artista se tranque em seu gabinete a perscrutar a sua subjetividade, a descobrir o seu eu lírico e a proteger sua individualidade, ameaçada de ser devorada pela sociedade das multidões, chega-lhe pelas frestas da casa o chamado das ruas[19]. Como neste excerto de um autor francês do século XIX:
Quando o sol é pleno e plena a liberdade, eu amo deixar a minha modesta pocilga e baixar a rua, e me misturar aos grupos que como eu têm muito tempo a perder, e pouca coisa a ganhar… Eu me permito o prazer inocente e barato de percorrer, flanando os diversos bairros da cidade, observador curioso eu deslizo desapercebido por todos os lugares onde a multidão se concentra, onde as paixões se agitam, onde os sentimentos se exaltam.[20]
João do Rio, cronista carioca da virada do século é quem, talvez, melhor sintetiza a necessidade do escritor descer à calçada e assistir ao espetáculo das ruas[21].
Na sua crônica “A Rua”[22], João se indaga sobre o que é a rua, para concluir que ela não é apenas um alinhado de fachadas por onde se anda nas povoações. A rua, argumenta o cronista, “a rua é um fator de vida das cidades, a rua tem alma!”.
Essa constatação, que dá à rua a qualidade humana da subjetividade, fez dela, em conseqüência, objeto de interesse daquele que anseia por desvendar os segredos da alma humana, o artista. Compreende-se, pois, a compulsão da literatura por desencastelar-se e enfrentar a cidade em busca da vida moderna. E é nessa busca que a literatura vai moldando no imaginário a “cidade possível” de cada época e, em conseqüência, contribuindo para a constituição da identidade das personagens urbanas nos séculos XIX e XX[23].
Tumor, colméia humana, lavas vulcânicas, mistério insondável, mecanismo monstruoso, vício, virtude, glória, progresso são imagens literárias cabíveis para nomear uma mesma ou várias grandes cidades em processo de urbanização ao longo dos séculos XIX/XX. E, justamente por serem imagens, têm o poder de dar aos processos sociais em formação a legibilidade necessária à sua compreensão, antes ainda que o pensamento científico delas se aposse, esvazie-as de seu conteúdo dramático e dote-as de uma pretensa cientificidade incontestável.
É por serem imagens, ainda, que podem ser literatura, ou se tornar história, virar pedra, tornar-se cidade.
História/Literatura, pedra e discurso.
Um discurso da pedra!
Notas