Camões e Eça de Queirós

A cultura renascentista portuguesa

Francisco José Calazans Falcon
PUC-Rio

Correspondendo, cronologicamente, ao período que se situa entre a segunda metade do século XV e as décadas iniciais do século XVI, o Renascimento Português define-se como uma época de "crise" de valores de toda ordem que se traduz em conflitos e tentativas de ajustamento, incessantes, entre as forças de ruptura e de continuidade.

De acordo com Barreto[1], a Cultura do Renascimento Português assentava-se em três núcleos básicos: o "Escolástico", o "Humanista" e o "Racionalista Pragmático-Experiencial", dotados de forças desiguais e diferentes, sendo hegemônicos o da Escolástica e o da Humanística, ficando o terceiro (também denominado "racionalismo existencial-empírico") numa posição de marginalidade que só tenderá a aumentar durante o século XVI. Mas foi exatamente este que se revelou o mais atuante, qualitativa e quantitativamente, enquanto "Verdadeira Cultura dos Descobrimentos". Todavia, não devemos ignorar o fato de que esses três núcleos ou campos mantêm uma constante interação ao longo dessa época, não existindo assim fronteiras rígidas entre eles.

Conforme tal perspectiva, o campo cultural português dos séculos XV/XVI constitui um todo composto dessas três unidades básicas que devem sempre ser pensadas como em processo de trocas praticamente contínuas, não se justificando que as imaginemos como unidades apenas justapostas ou, pior ainda, cronologicamente sucessivas.

A. Os descobrimentos ibéricos

1. Significação e importância

O termo 'Descobrimentos', no seu sentido mais global, é a categoria classificativa utilizada pelo conhecimento histórico para designar o conjunto fenomenal humano da expansão planetária da Europa ao longo dos séculos XV/XVI.[2]

Na historiografia portuguesa, os Descobrimentos ocupam desde sempre uma posição privilegiada. Estudar-se o Portugal do Renascimento é estudar na verdade o Portugal dos Descobrimentos, essa "grandeza imperial e fatídica" que, segundo Fernando Pessoa, "transformou a face do mundo".
Não se teria sentido retornarmos, agora, à crônica dos Descobrimentos ou à crônica das viagens que se sucederam, segundo ritmos variados, desde 1415 (conquista da Ceuta), até as viagens decisivas de Vasco da Gama (1498) e Pedro Álvares Cabral (1500). Foram na verdade muitas décadas de pacientes explorações ao longo do litoral ocidental da África - Senegâmbia, Guiné, Costa do Ouro, Congo - seguidas pela exploração da "contra-costa" (litoral oriental) e estendidas, mais tarde, após o feito de Vasco da Gama, à Cochinchina, às "ilhas das especiarias" (Indonésia) e, finalmente, à China e ao Japão.

São inúmeros os relatos descritivos, factuais, desses Descobrimentos. Não menos numerosas são também as análises explicativo-interpretativas, parciais ou globalizantes, da famosa "epopéia", tendo em vista suas origens, características e conseqüências. Queremos que fique bastante claro que não nos estamos propondo a apresentar, nem a narração desses sucessos marítimos, nem a discussão sobre a natureza dos seus fatores determinantes ou condicionantes. Nosso interesse pelos Grandes Descobrimentos limitar-se-á à questão das suas relações com as formas de pensamento e estruturas mentais vigentes em Portugal à época dos Descobrimentos. Trata-se de tentar perceber as diversas representações individuais ou coletivas e as tomadas de consciência ligadas de uma forma ou de outra aos Descobrimentos no espaço-tempo marcado, sucessivamente, pelo Renascimento e pela Reforma Católica em Portugal. Um tempo que corresponde cronologicamente ao final do século XV e à maior parte do XVI; um espaço que inclui Portugal, o Oriente, o Brasil e várias partes da África.

Foi decisivo, na modelação da mente nacional, o influxo dos Descobrimentos. O papel que outras motivações desempenharam fora da Península, desempenharam-no eles entre nós, impelindo-nos em direções que só as carências do meio impediram de frutificar e se prolongarem.[3]

Logo no primeiro parágrafo do seu estudo, Silva Dias chama a atenção do leitor para três pontos fundamentais:

  • 1. os Descobrimentos são obra, "por igual", de portugueses e de espanhóis. O mesmo afirma Barreto quando escreve: "Os Descobrimentos portugueses jamais foram um fenômeno nacional (e muito menos nacionalista), mas sim um sistema de ação e pensamento multicivilizacional..."[4];
  • 2. contemporâneos do Renascimento e do Humanismo, os Descobrimentos têm uma especificidade própria e apenas como uma "explosão de vida" se inserem na perspectiva renascentista global;
  • 3. as "promessas" de que os Descobrimentos eram portadores não se concretizaram em função das "carências do meio", daí resultando a ambigüidade que caracterizou, entre os homens de letras portuguesas, sua recepção, a qual evoluiu da visão épica e do deslumbramento dos primeiros tempos para a lamentação ética, envolta num profundo pessimismo moral. Constituem exemplos daquele entusiasmo inicial, entre muitos outros, certos trechos de Garcia de Resende, Andrade Caminha, Duarte Galvão, Fernão Lopes de Castanheda, João de Barros, Pedro Nunes e Luís de Camões[5]. Com um número bem menor de expoentes durante o século XVI, a segunda atitude antecipa algumas das análises pessimistas dos séculos seguintes.

    2. Relações com o Humanismo renascentista

A contemporaneidade dos Descobrimentos e do Renascimento em Portugal não nos deve fazer esquecer que se trata de dois universos mentais bem diferentes entre si. O Renascimento, em associação com o Humanismo, é um movimento que abrange homens de letras, filósofos e artistas - "intelectuais" num sentido muito amplo. Os Descobrimentos foram obra de homens ligados às práticas das coisas do mar - navegadores, exploradores e mercadores. O saber renascentista e humanista se liga à palavra, ao texto; já o saber dos Descobrimentos está ligado às observações e experiências do quotidiano das viagens marítimas. São pontos de partida muito distintos para que possamos esquecer as diferenças; são perspectivas e tomadas de consciência produzidas de "lugares" muito distanciados entre si; são atitudes mentais e valores éticos e estéticos que não possuem quase nada em comum. Em síntese, dois universos mentais, duas maneiras diferentes de situar-se no mundo e nele existir; acima de tudo: duas formas específicas de conhecer esse mundo.

B. A cultura do Humanismo renascentista

1. Natureza do Humanismo Português

Segundo Agnes Heller[6], umas das características do "Humanismo" renascentista vem a ser a possibilidade de sua existência ocorrer como algo separado e distinto "da estrutura social e das realidades da vida quotidiana", do que resultaria uma espécie de vida própria o suficiente para permitir o seu desenvolvimento até mesmo em sociedades onde não tenha existido um autêntico Renascimento (=fenômeno social total). Em tais casos, o Humanismo se manteria desenraizado e isolado, conseguindo adesões somente no seio da aristocracia política e dos intelectuais. Cremos que o Humanismo Português aproxima-se muito desse modelo, tanto levando-se em conta as características da sociedade lusa dessa época, quanto a posição social da quase totalidade dos seus humanistas.

Ao mesmo tempo, se a afirmação de Heller ajuda-nos a compreender a natureza social desse Humanismo, a concepção de Kristeller, ao destacar no fenômeno humanista o caráter literário, de tipo retórico, e os fins pedagógicos das práticas dos humanistas, com eventual inclusão da ética em seus estudos, ajusta-se perfeitamente ao conteúdo do Humanismo luso. Neste também vamos encontrar a predominância das "Humanidades" e a inspiração literária e retórica cujos modelos e valores são os de origem greco-romana, se bem que devamos ressaltar a importância praticamente marginal que teve a retórica para a maioria dos respectivos autores.

 

2. Visões renascentistas

A partir do minucioso estudo historiográfico elaborado por Ferguson[7], é possível dividirmos a história do conceito de "Renascimento" em duas fases distintas: 1ª - a fase "contemporânea"; 2ª - a fase historiográfica.

A primeira fase corresponde à autoconsciência dos renascentistas sobre suas próprias realizações e as formas de situá-las na perspectiva do passado. Como consciência da própria época que se percebe a si mesma como "renascente" ou "renascida", são inúmeros os testemunhos: Boccaccio na sua "Vida de Dante", Lourenço Valla na "Elegância da língua latina", Vasari nas suas famosas "Vidas" etc. Em todos eles, com poucas variações, a tônica é a da valorização do passado distante, greco-romano, a depreciação da Idade Média como época de degeneração das artes e do espírito, e a exaltação do presente como um novo tempo, de reatamento com a Antigüidade e de superação da decadência bárbara ou gótica. Trata-se sempre de uma visão que divide a história em três períodos, conectando ideologicamente o último ao primeiro e desqualificando o intermediário.

Em Portugal, nesta fase, típica dos séculos XV/XVI, idéias semelhantes estão presentes na Crônica da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara, em escritos do Infante D. Henrique, em Duarte Pacheco Pereira, em Gaspar Barreiros, na sua Corografia, e na I Década da Ásia de João de Barros[8]. Também estes autores referem-se a uma nova idade, separada dos antigos por uma época bárbara, e o ressuscitar dos valores clássicos. Há no entanto uma diferença: para a maioria desses autores não haveria apenas o eixo temporal ao longo do qual se oporiam "tempos bárbaros" e "tempos policiados" mas, ao lado desse vetor temporal, há um outro vetor, espacial, identificado com os Descobrimentos, estes sim a grande realização do presente e sua principal "diferença" em relação a todo o passado.

A recuperação do passado clássico em associação com a valorização do presente continha em si elementos de natureza contraditória que tanto haveriam de conduzir a uma completa subserviência do presente aos valores "antigos", quanto, ao contrário, provocariam no bojo da exaltação do presente um distanciamento crítico progressivo face ao passado. Esta segunda possibilidade foi típica dos renascentistas portugueses mais diretamente ligados à Cultura dos Descobrimentos. Já delineava-se aí a querela dos "antigos" e "modernos".

A segunda fase, historiográfica, compreende duas etapas: 1. Do século XVII a meados do XIX, repetem-se, sem espírito crítico, as tomadas de consciência produzidas pelos quinhentistas, podendo-se citar: Cellarius, Bayle, Voltaire etc. Tanto o Iluminismo quanto o Romantismo, apesar das suas diferenças respectivas, tiveram em relação ao Renascimento uma concepção fundamentalmente valorativa, pró ou contra, mas cuja essência era ainda constituída pelo discurso dos próprios renascentistas.

2. Dos meados do oitocentos aos dias atuais, processou-se a construção do conceito de Renascimento, destacando-se aí, logo de saída, as análises de Michelet e Burckhardt, prosseguindo, já em pleno século XX, com Cassirer, Gentile, Von Martin e sobretudo com Huizinga, Febvre, Antal, Garin, Panofsky, Kristeller e Heller. Em todos eles, a partir dos mais diferentes pontos de abordagem, o Renascimento é um objeto de análise histórica, um conceito, uma construção do historiador e não mais o comentário ou a glosa dos discursos renascentistas.

Em Portugal, a visão do Renascimento durante o século XVIII foi acima de tudo a imagem de uma época de ouro cuja decadência foi causada pelos jesuítas. É assim que nos numerosos textos da época pombalina dirigidos contra a influência cultural e política da Companhia de Jesus, o Renascimento representa tudo o que de bom e promissor havia existido em Portugal antes que desabasse sobre o Reino a praga jesuítica. Um bom exemplo, após Pombal, mas no mesmo estilo, é o de José Anastácio da Cunha em suas Notícias Literárias de Portugal, em 1780.

Na primeira metade do século XIX, com o Romantismo, Alexandre Herculano exemplifica cabalmente a inversão de perspectivas: a Idade Média é exaltada e o Renascimento se converte em período de profunda decadência moral e material[9].

Com a chamada geração de 70, o moderno conceito de Renascimento surge na História de Portugal, de Oliveira Martins: a Renascença reúne mais uma vez todos os elementos positivos da modernidade e os Descobrimentos representam para Portugal a sua forma de afirmação maior. No século atual, Antônio Sérgio e Jaime Cortesão representam a continuação da historiografia do século passado. Sérgio expôs suas idéias em diversos textos mas foi sobretudo em "O reino cadaveroso, ou o problema da cultura em Portugal" (1926) que ele mais radicalizou a antinomia do Renascimento, enquanto Cultura dos Descobrimentos e reino da inteligência, e a Idade Média, ao lado da "época barroca", como sinônimas de reino da estupidez, da intolerância, da ausência do espírito crítico, da mais completa decadência, enfim. Cortesão, ao contrário, encara o Renascimento como simples continuação ou reflexo da época medieval; é um retorno a Herculano[10].

Na atualidade, a partir dos trabalhos de J. S. da Silva Dias, é possível afirmar, como o faz L. F. Barreto[11]:

Consideramos o Renascimento português como um clima epocal, isto é, a vida da Portugalidade dos meados do século XV aos inícios do século XVII. Este clima epocal é uma Crise civilizacional que desestrutura todos os valores materiais e espirituais herdados do passado medieval e clássico [...]

O sistema sociocultural dominante é uma complexa aliança de elementos conservadores, como a escolástica medieval e o anti-humanismo, com elementos abertos e revolucionários como o humanismo cristão e o desenvolvimento da cultura técnico-prática.

3. Sentido do Humanismo renascentista português

Do que ficou exposto até aqui não será muito difícil, nem tampouco arriscado, concluir-se que o Humanismo renascentista em Portugal manteve-se sempre num estado permanente de tensão em face da cultura medieval. Não era muito fácil para o pensamento humanista discernir entre as formas e os valores que deveriam ou poderiam ser conservados e aqueles cuja eliminação se fazia necessária. O mais das vezes tentou-se fugir a esse dilema entre continuidade e ruptura através da superação dialética capaz de eliminar conservando. Na prática, até a década de 1530 a conservação primou sobre a eliminação quando então, sobretudo nos anos 40, as tendências favoráveis à ruptura deram demonstração de um vigor muito maior. Foi no entanto uma demonstração efêmera e sobretudo marcada desde o berço pela orientação desfavorável da conjuntura religiosa em Portugal e na Europa católica. Com efeito, vivia-se justo naquela década o início da viragem da Igreja Católica diante da rápida propagação das seitas protestantes. A cultura humanística, com suas roupagens modernas e inovadoras, aparecia então como suspeita de conivência com os hereges ou, pelo menos, como propiciadora das formas de pensamento demasiadamente "livres" e irreligiosas que seriam as verdadeiras responsáveis pela Reforma. Seria cada vez mais problemático o futuro do Humanismo e dos humanistas naqueles países sujeitos à Contra-Reforma.

Nos seus ideais e práticas culturais, a mentalidade humanística portuguesa era em geral semelhante àquela do restante da Europa dessa época. Como era comum aos humanistas europeus em geral, também os portugueses se interessaram em restaurar textos latinos conhecidos na Idade Média e revelar outros textos, inclusive gregos, desconhecidos ou mal conhecidos pelos medievos. O mais importante, para nós pelo menos, é o fato de que se tratava de uma concepção do saber essencialmente textual, baseada na autoridade dos escritos dos autores greco-romanos cujo peso enquanto "tradição" dos "antigos" possuía um valor supremo, definitivo. No interior desse saber não nos iludamos com referências a "observação" e "experiência"; tais noções nada têm a ver com as suas correspondentes modernas; seu sentido era ainda aristotélico e se referia à mera comprovação ou ilustração, de um saber que era, em sua essência, racional e especulativo[12].

A atividade maior desse Humanismo consistiu na produção literária. Em compensação, foi muito restrito o interesse pela "física" e pela "filosofia (ciência) natural". Na verdade, o Humanismo português consistiu na interpretação e comentário da doutrina aristotélica em sua versão escolástica à luz dos princípios desse mesmo Humanismo. Na realidade, ciência humanística e ciência escolástica possuíam em comum o mesmo desdém pela prática e um idêntico amor aos ensinamentos da erudição livresca. Mesmo no caso da medicina e da filosofia natural, seus progressos não foram realizados em função do Humanismo renascentista. Este, na realidade, com raríssimas exceções, não se preocupou em combater a corrente árabo-escolástica com os dados da experiência ou da observação; as suas armas eram outros textos também[13].

Mesmo à época em que foi "novamente fundada a Universidade", transferida de Lisboa para Coimbra, em 1537, ou quando da criação do Real Colégio das Artes (Coimbra), em 1547, a orientação humanística que se imprimiu aos estudos não deixou de assentar-se essencialmente na erudição livresca. Novos livros, outros autores, mas ainda e sempre "autoridades" (agora impressas em letras de forma).

A partir de meados do século XVI, declina o Humanismo e fortalece-se a influência dos padres da Cia. de Jesus. Coube a estes desenvolver o que se convencionou chamar de "A Segunda Escolástica" Portuguesa, a qual foi exposta nos diversos textos da obra coletiva conhecida como Curso Conimbricense. Em síntese, seus autores conseguiram fundir, até onde isto foi possível, o Humanismo e a Escolástica. Do Humanismo os jesuítas utilizaram os métodos críticos e filológicos para restaurar a versão latina de Aristóteles e partilharam da sua rejeição à escolástica decadente, sobretudo a dos nominalistas e dos naturalistas italianos do século XV. A Escolástica jesuítica apóia-se principalmente em S. Tomás e outros autores do século XIII, porém a ótica cultural em que eles se situam é a do Humanismo, inclusive quanto ao desprezo ou a pouca importância que deram à filosofia da ciência. Em suma, com a Segunda Escolástica Portuguesa, tem-se, a partir da segunda metade do século XVI, uma Escolástica integrada no ambiente do Humanismo, mas também um Humanismo integrado na Escolástica[14].

Nesse processo de passagem/substituição da cultura Humanística a/pela Escolástica, um fato permaneceria comum: a marginalidade da Cultura dos Descobrimentos. Nenhum desses saberes assumiu a problemática e a ótica dos Descobrimentos.

4. Histórico do Humanismo em Portugal

O Humanismo renascentista foi um fenômeno relativamente tardio na Península Ibérica uma vez que somente no final do século XV ocorrem suas primeiras manifestações. Alguns quinhentistas portugueses tiveram consciência desse atraso da cultura portuguesa do seu tempo, inclusive Camões, Sá de Miranda, André de Resende, Garcia de Horta e Francisco de Holanda. Pode-se tentar explicar ou ao menos justificar tal situação invocando argumentos os mais diversos: a pobreza, a lonjura dos grandes centros, a primazia dedicada aos Descobrimentos, grande sorvedouro de haveres e energias, materiais e espirituais, no dizer de Hernani Cidade. Em compensação, os estudiosos do assunto destacam sempre o quanto os descobrimentos ibéricos contribuíram para enriquecer o Renascimento e o Humanismo europeus, tema ao qual ainda retornaremos.

Muito embora Hernani Cidade afirme que "os primeiros alvores do Renascimento brilham em Portugal em meados do século XV", nas cortes de D. Duarte e D. Afonso V, precisamos encarar com muitas cautelas essa perspectiva. Primeiro, porque as indicações que temos de outros autores, se não infirmam aquela proposição totalmente, limitam-lhe em muito o alcance real. Segundo, porque ela entra em contradição com algumas afirmações subseqüentes desse mesmo autor. É bastante problemático configurar-se a presença em Portugal das novas correntes culturais renascentistas mencionando como provas os livros de D. Duarte e D. Pedro, as crônicas de Gomes Eanes de Zurara e Rui de Pina, ou o Cancioneiro Geral organizado por Garcia de Resende[15]. Aliás, no próprio H. Cidade há todo um capítulo intitulado "Inferioridade da cultura portuguesa a respeito da castelhana; suas causas"[16], o qual constitui como um que prólogo à argumentação seguinte, esta sim decisiva: graças às vantagens da sua independência político-cultural, os portugueses foram capazes de imprimir um novo rumo a sua cultura[17]. Que rumo foi este então? O rumo dos Descobrimentos, responderíamos.

Fecundamos o espírito do Humanismo e do Renascimento com um imprevisto e riquíssimo cabedal de observações e experiências, que contribuiu para que ele não se exaurisse na esterilidade das formas dialéticas ou literárias sem conteúdo que não fosse o greco-latino[18].

Esta foi de fato a autêntica e importante contribuição lusa e uma das suas melhores evidências se encontra nos resultados do relacionamento entre o Doutor Pedro Nunes e D. João de Castro, o primeiro, cosmógrafo do Reino desde 1525, autor do Tratado da Esfera, o outro, um nobre cultivado, mas sobretudo um "marinheiro", navegador atento às questões práticas das viagens marítimas.
Existe uma pergunta de H. Cidade que poderá servir-nos de orientação nesse assunto:

Este espírito do Renascimento não haveria transcendido, entre nós, para além destas manifestações de natureza interessada, prática, determinadas pelos objetivos práticos que serviam? Teria sido capaz de se erguer, em esforço especulativo, a uma nova concepção da Vida e do Universo?[19]

Na realidade, o "espírito do Renascimento" ao qual o autor se refere significa concretamente a chamada "sabedoria do mar", como veremos. O sentido global da pergunta vem a ser exatamente o grande problema, e também a grande polêmica, acerca do caráter científico, especialmente em termos de uma cientificidade moderna, que estaria presente ou não na produção dos autores diretamente ligados às grandes navegações e descobrimentos.

Nas últimas décadas do século XV amiudaram-se os contatos entre os portugueses e a cultura italiana, quer através da presença de mercadores genoveses, florentinos e outros italianos em Lisboa, quer em decorrência das constantes viagens de portugueses à Itália. Eram estes não só os comerciantes e emissários oficiais da Coroa, como também numerosos clérigos e membros da família real, além de peregrinos e estudantes, em busca, estes últimos, das universidades e centros culturais como Bolonha, Pádua, Florença, Roma etc., dada a situação lastimável em que se achava a Universidade de Lisboa. Havia também toda uma corrente de sentido inverso formada por algumas dezenas de mestres e artistas italianos chamados a ensinar jovens da nobreza e da burguesia.

Não menos importantes foram os contatos de centenas de estudantes portugueses com as universidades espanholas (Salamanca, principalmente), e com as de Paris, Louvain, Oxford etc. Somente Salamanca foi freqüentada por mais de 800 estudantes portugueses na primeira metade do século XVI. Em Paris, Bordéus, Poitiers, distinguem-se mestres e bolsistas portugueses. Foi aí que se preparou a verdadeira nata do Humanismo português, segundo Oliveira Marques. Basta-nos mencionar os nomes de Margalho20, Francisco de Melo, D. Miguel da Silva, D. Jerônimo Osório e, principalmente, os Gouveias - André e António de Gouveia, nomes de prestígio europeu. Segundo Luís de Matos, Portugal chegou a enviar para Paris, entre 1500 e 1520, a média de 50 bolsistas por ano.[21]

Nos reinados de D. Manuel e D. João III, prosperidade econômica, cosmopolitismo e completa decadência da Universidade de Lisboa acentuam esse intercâmbio intelectual intenso com outros pólos culturais. A primeira metade do século XVI foi assim a grande época do Humanismo e do Renascimento de Portugal. Oliveira Marques sintetiza as principais realizações e manifestações dessa época através de três principais tópicos: ensino, produção literária e contatos internacionais.

Destes três tópicos setoriais o único que irá interessar-nos aqui é o primeiro. Todavia, antes de a ele nos referirmos, não devemos esquecer um fato dos mais importantes, já assinalado por Silva Dias: o impacto maior do Humanismo, enquanto mentalidade típica de uma época, concretizou-se em setores extra-escolares. Dentre tais setores destacam-se a ação missionária e a produção literária. Na primeira, as novas realidades antropológicas, observadas no quotidiano das navegações e conquistas, fizeram emergir algo assim como a consciência de lacuna em relação ao caráter ecumênico da pregação da palavra de Deus; era forçoso reconhecer a existência de homens que simplesmente não conheciam o Evangelho de Cristo.

A atividade literária, inerente ao Humanismo, encontrou na Cultura dos Descobrimentos uma temática nova e extremamente rica. Exemplo disso é a literatura de viagens, um gênero único na Europa do século XVI. A épica da empresa ultramarina, a simpatia em relação à cruzada portuguesa nas terras longínquas dos infiéis e gentios, obtiveram um eco favorável na literatura da época onde a especificidade lusa se expressa por intermédio da exaltação da sua dupla missão, cristã e imperial.

A influência humanística sobre o ensino processou-se de várias maneiras em Portugal, porém as mais significativas em termos humanistas foram provavelmente as mudanças de currículos de estudos e métodos de ensino, a criação de colégios e a instalação da Universidade de Coimbra.

A bem dizer, quase todas as escolas de nível médio e superior sofreram influência humanista: pela presença de professores estrangeiros ou preparados no exterior, pela introdução do Grego e do Hebraico, pelo refinamento do ensino do Latim. Dentre os professores estrangeiros, ficaram particularmente célebres os nomes de Nicolau Clenardo (dos Países Baixos) e George Buchanan (escocês). Houve um interesse especial pela fundação de colégios - "maiores" ou "menores" - cuja organização e cujo ensino copiavam modelos franceses ou espanhóis, nos quais os estudos eram principalmente de Humanidades e Matemáticas de acordo com os princípios humanistas. Os Colégios Menores caracterizavam-se por oferecerem "estudos secundários" a título de preparação para a Universidade.

Um verdadeiro mecenato manuelino estendeu-se a Paris, onde o Colégio de Santa Bárbara, dirigido por três Gouveias, de 1520 a 1557, era o centro de referência dos bolsistas portugueses. André de Gouveia, um pedagogo revolucionário em sua época, dirigiu o College de Guyenne, em Bordéus, de 1534 a 1547, assegurando-lhe fama internacional.

Quando, em 1547, D. João III fundou o Colégio das Artes e Humanidades em Coimbra, segundo o modelo do Colégio Real criado por Francisco I na França, André de Gouveia foi chamado pelo monarca e recebeu plenos poderes para organizar os estudos e nomear os professores. Gouveia foi à França e recrutou dez mestres franceses, escoceses e portugueses do mais alto nível, iniciando-se as aulas nos princípios de 1548. Alguns dos cursos eram obrigatórios para o acesso à Universidade. Todavia, a morte inesperada de André de Gouveia, em junho do mesmo ano, soou como um dobre de finados para aqueles que confiavam no futuro da experiência humanista mais completa e consistente tentada em Portugal.

A Inquisição, instituída por D. João III em 1536, mas somente liberada das restrições, inicialmente impostas por Roma, em 1547, pelo Papa Paulo III, foi chamada a intervir no Colégio das Artes em função de denúncias de práticas imorais e de suspeitas de heresia. Foram processados Buchanan, Diogo de Teive e João da Costa, testemunhando o velho Diogo de Gouveia, teólogo escolástico, ex-reitor da Universidade de Paris, contra o seu falecido sobrinho, André de Gouveia, suspeito, segundo ele, de herege - "da mesma farinha de Lutero"[23]. Processos, condenações, expulsões, liquidaram em poucos anos com o projeto inicial do Colégio das Artes. Dentro do espírito da Reforma Católica, D. João III decidiu entregar a direção do Colégio aos padres jesuítas, unindo-o ao Colégio de Jesus, em 1555, sob a alegação de que o fazia para que os inacianos "nos fizessem mais católicos, posto que menos latinos".
Esse autêntico "processo" do Humanismo materializado no Colégio das Artes, baseado em acusações oriundas de querelas pessoais, foi o ponto crucial da luta dos setores tradicionalistas da cultura portuguesa contra os "inovadores". Sob a máscara das suspeitas declaradas estava de fato a rejeição aos métodos, programas e à filosofia humanística que os informavam, por livres em demasia e, como tais, verdadeiras ameaças à unidade da fé.

No caso da reforma da Universidade, apesar da presença de algumas tendências humanistas, o objetivo principal foi o de transferir de Lisboa para Coimbra, em moldes totalmente renovados, inclusive quanto aos docentes, uma instituição de estrutura corporativa, mais dependente da Igreja que do próprio rei, e, além do mais, já completamente desmoralizada em função do seu baixo nível intelectual e da total indisciplina de seus mestres e alunos. Contra essa "fortaleza da cultura medieval", D. João III aplicou um remédio definitivo, em 1537: ordenou a sua "nova fundação", localizando-a em Coimbra, mantendo-se apenas os vínculos simbólicos com a antiga Universidade de Lisboa. Modificou-se o plano de estudos através da cópia do modelo de Salamanca, de onde vieram quase todos os docentes, uma vez que pouquíssimos dos mestres de Lisboa foram aproveitados. Suas novas ordenações sublinhavam a subordinação à autoridade do rei e reduziam os vínculos com a Igreja. O reitor deixou de ser eleito passando a ser nomeado pelo monarca. Em 1541, uma lei viria a proibir aos estudantes portugueses receberem graus universitários no estrangeiro.[24]

Diante da intenção da Companhia de Jesus de assumir o controle da educação em todos os níveis, a resistência da Universidade de Coimbra somou-se à dos Agostinianos e Dominicanos. As Cortes de 1562 protestaram contra essa influência crescente dos jesuítas, especialmente quanto à entrega do Colégio das Artes à sua direção. Mas foi inútil, pois o fantasma da heresia parecia justificar as constantes perseguições contra os professores, bem como a estagnação do ensino, completamente enquadrado na metodologia escolástica e cada vez mais alheio à "Cultura dos Descobrimentos", à mentalidade científica em gestação em outros quadrantes europeus e às lições da "experiência". Única novidade, talvez, foi o grupo de comentadores de Aristóteles - os Conimbricenses -, escolásticos puros, metodologicamente perfeitos vivendo nos sécs. XVI/XVII! Deles se originou a publicação, pelo Colégio das Artes, de oito volumes de Comentários a Aristóteles - o famoso "Curso Conimbricense", dirigido por Pedro da Fonseca, entre 1592 e 1606, e largamente editado na França, Alemanha e Itália.

A Universidade de Coimbra foi subordinada à Mesa da Consciência e Ordens, em 1576; seus "Estatutos", de 1612, confirmados em 1653, sobreviveriam até Pombal. A Universidade abrangia os colégios maiores, ou Faculdades, e sete colégios ou escolas menores, inclusive aquilo que chamaríamos de "ensino primário". A resistência oposta por Coimbra aos jesuítas levou estes a obterem, em 1559, a fundação da Universidade de Évora, confiada oficialmente à sua direção pelo Papa, em 1568, mas bem menor no entanto que a de Coimbra quanto ao âmbito dos seus estudos. Todavia, em 1561, os jesuítas conseguiram do monarca que só pudessem ingressar nas Faculdades coimbrãs de Cânones e Leis os estudantes graduados no Colégio das Artes.

Em Évora, Luis de Molina, de origem espanhola, tornou-se conhecido internacionalmente em conseqüência do seu livro, De concordantia liberi arbitrii cum gratia donis, divina prescientia et providentia (1588), origem do "molinismo", doutrina filosófica e teológica amplamente difundida e discutida nos séculos XVII/XVIII. Tratava-se de uma tentativa de conciliar, em meio aos debates da Contra-Reforma, as propostas dos reformadores com os princípios fixados pelo Concílio de Trento. Dessa proposta resultaria uma batalha quase interminável entre jesuítas e dominicanos.

5. A Contra-Reforma e o fim do Humanismo renascentista

Portugal não conheceu diretamente a Reforma; apenas alguns casos de suspeita de heresia, nunca talvez devidamente comprovados. Mas as implicações teológicas de certas concepções filosóficas atinentes ao conhecimento da natureza podiam ser bastante perigosas. Silva Dias, discutindo certas "ausências", tanto em D. João de Castro, quanto em Pedro Nunes, reconhecidamente adeptos do conhecimento que associa a observação e a razão, detém-se no silêncio desses humanistas acerca da obra de Copérnico. Se D. João de Castro poderia invocar a seu favor as "fatalidades da cronologia", o caso de Pedro Nunes, tendo em vista tudo que hoje sabemos sobre a amplitude de suas leituras, não pode ser atribuído à ignorância dos textos de Copérnico. Daí afirmar Silva Dias:

O silêncio [de Pedro Nunes] tem, pois, todo o ar de uma atitude significativa. Significa [...] a recusa de se introduzir numa ordem de idéias e problemas cujas implicações teológicas não podiam escapar ao seu espírito.[25]

Ora, ainda segundo o mesmo autor, Pedro Nunes tinha plena consciência tanto das implicações teológicas do heliocentrismo, quanto das conseqüências que advinham em Portugal de tais tipos de questões: bastaria lembrar-se das emigrações de Amato Lusitano (1534), Garcia da Orta (1534) e Luís Nunes de Santarém (1544?) ou os processos instaurados pelo Santo Ofício contra António Luís (1539), Fernão de Pina (1546), Fernão de Oliveira (1547), os lentes do Colégio de Artes (1550) e "vários sequazes do erasmismo e correntes afins", para não mencionar as perseguições contra os cristãos-novos, "seus irmãos de sangue".

Antecipando-se a possíveis manifestações das heresias reformistas em solo lusitano, a Inquisição, apesar de ter sido instituída por razões de Estado, possuía um alvo certo: os judaizantes, vulgarmente conhecidos por "cristãos novos". Por extensão, no entanto, todas as heresias, e não só elas, encontravam-se sob sua alçada.

A direção e o controle da cultura implantaram-se assim a partir de meados do século XVI. Não bastassem a Inquisição e o controle eclesiástico sobre as universidades e colégios, havia ainda a censura, imposta pela Inquisição a partir de 1540; em 1547 foi publicado o primeiro "Index" de livros proibidos, ampliado e impresso em 1551, e, após, em 1581 e 1624. Visando obras contrárias à fé e aos bons costumes, tais listas incluíam livros tidos por heréticos, livros sobre "coisas lascivas e desonestas", livro sobre feitiçaria, astrologia e semelhantes[26]

A censura era tríplice: da Inquisição, do Ordinário (bispo diocesano), e do rei (Desembargador do Paço). Dela não escaparam Camões, Gil Vicente, Sá de Miranda e inúmeros outros; alguns livros eram riscados ou rasgados nas partes proibidas e outros eram simplesmente queimados.
A trilogia constituída pela Inquisição, Censura e Companhia de Jesus bloqueou o desenvolvimento cultural, cristalizou as manifestações literárias, filosóficas e artísticas em moldes monótonos e nada criativos, afastou Portugal das principais correntes do progresso científico europeu. Tais efeitos negativos tornaram-se evidentes no século XVII[27] posto que na segunda metade do XVI ainda se fizeram presentes algumas das mais importantes produções literárias renascentistas, a começar pelos Lusíadas (1572).

A historiografia portuguesa contemporânea tem demonstrado a falta de pertinência das concepções tradicionais sobre o papel da Inquisição e da Contra-Reforma em geral no quadro histórico da cultura portuguesa. Mas ficou de pé a certeza de que a Censura, a Inquisição e a Contra-Reforma imprimiram uma fixidez indiscutível à cultura lusa até o limiar do setecentos, pelo menos. Fiéis a seus objetivos ideológicos e políticos conservadores, a Inquisição e a Contra-Reforma instauraram procedimentos ostensivos e sutis de dissuasão, incluindo-se aí a perseguição aos cristãos-novos e o policiamento das leituras críticas ou doutrinais, bem como o cerceamento à circulação das idéias. A censura, acoplada ao castigo da Inquisição para os infratores, gerou um clima de medo quase generalizado por parte dos intelectuais. Temiam estes qualquer associação com autores ideologicamente "depravados", sendo evitada até a simples posse de livros de autores nacionais ou estrangeiros considerados "suspeitos", ainda que se tratasse das suas obras não condenadas. O terror intelectual contaminava como verdadeira peste as obras e as consciências; a autocensura funcionava com maior eficácia talvez que a própria Censura. Para sobreviver era preciso integrar-se ao clima da Contra-Reforma. A cristalização da cultura foi assim uma conseqüência inevitável.

Não havia campos neutros para os defensores da ortodoxia tridentina. A autoridade não podia ser discutida num setor do saber, na ciência, por exemplo, sem que com isso ficasse comprometida a autoridade em matéria de teologia. "Estabilizava-se a inteligência para defender a vivência" cultural portuguesa, ou seja, a da Contra-Reforma.

O desenvolvimento científico foi o maior prejudicado. Seus raros expoentes, ligados ou não à Cultura dos Descobrimentos, viveram a maior parte do tempo fora de Portugal, como foi o caso de Francisco Sanches. Outros, como Pedro Nunes, não puderam sobreviver senão às custas de mil cautelas e silêncios. Daí a reduzida ressonância dos Descobrimentos nas estruturas culturais lusas. O ensino livresco e o critério de autoridade permaneceram intactos, pois nem a observação nem a experimentação lograram sobrepujar "o comentário dialético de velhos textos e a construção especulativa". O saber baseado na erudição dos autores "antigos" e sempre dependente de métodos puramente literários permaneceu totalmente alheio às lições e sugestões advindas de e com os Descobrimentos.

O balanço do ensino da medicina, da física, da filosofia natural, é francamente negativo. São testemunhas dessa "Frustração Cultural da Expansão" a que se refere Silva Dias, ou, quem sabe, dos inúmeros possíveis históricos que se não concretizaram.

A CULTURA DOS DESCOBRIMENTOS

A. Campos ou regiões do saber

A Cultura dos Descobrimentos, núcleo "racionalista pragmático-experiencial" da Cultura Renascentista portuguesa, compreende diferentes campos ou regiões do saber responsáveis, por sua vez, por novos conteúdos. Destes se diferencia um corpo específico de conhecimentos e atitudes/comportamentos de observação e reflexão numa certa noção de "experiência" aglutinados pelos respectivos especialistas sob o rótulo comum de "A sabedoria do mar".

Metodologicamente, a pesquisa e análise dessa Cultura dos Descobrimentos têm sido realizadas em geral no ponto de vista da história e teoria das idéias, utilizando principalmente a produção discursiva de natureza textual. Mais recentemente, porém, registram-se algumas tentativas, ainda incipientes, de proceder a análises baseadas nos pressupostos da chamada história das mentalidades. Por ora, no entanto, pretendemos desenvolver unicamente o primeiro desses tipos de abordagem.

Num dos seus últimos trabalhos, Barreto refere-se à diferença acima ao distinguir, logo de início, a presença de dois "campos": o da linguagem e do pensamento - "cultura discursiva", e o das formas comportamentais/existenciais; ou, em outros termos, uma história cultural e uma história das mentalidades. Desta, ainda em construção, são apenas descritas, de forma sumária, as alterações nos modos de vida e das condições de comportamento da existência no mar[28].

A cultura discursiva engloba, obviamente, os três núcleos culturais renascentistas já mencionados, mas é no âmbito estrito dessa cultura discursiva enquanto Cultura dos Descobrimentos que se definem os três campos nucleares que a constituem: o campo técnico-prático da marinharia, o campo da sabedoria do mar e o campo da antropologia-geografia colonial. Filosófico-científico e técnico, tal conjunto foi sempre muito mais de natureza prática, enquanto projeto de conhecimento. Não se deve também ignorar que, na periferia desse núcleo, localizam-se as áreas literário-ideológicas e das artes plásticas, cujas tendências seriam "predominantemente valorativas e subjetivas", caracterizando-se, segundo o mesmo autor, como uma espécie de expressão cultural "sobre e em torno" dos Descobrimentos, mais do que propriamente "Cultura dos Descobrimentos".[29]

Em linhas gerais, as características principais dos três campos acima indicados seriam as seguintes:
1. O campo técnico-prático - Compreende o desenvolvimento de instrumentos de precisão e de medida para a observação/orientação (astrolábio, balestilha, quadrante etc.), e a invenção de regras gerais para a arquitetura e engenharia naval e militar. Em seu conjunto, configuram o surto de uma "ciência náutica", de essência pragmático-instrumental, à qual se acopla o território da construção naval.

2. O campo teórico-positivo - Abrange as relações entre a matemática e a astronomia e a geografia, mas inclui também os tratados informativos sobre "material médico" (medicina, botânica e zoologia). Integram este campo, em momentos distintos, Diogo Gomes e Duarte Pacheco Pereira e, mais tarde, a geração de Pedro Nunes, Amato Lusitano Garcia da Orta, D. João de Castro, Cristóvão da Costa e Fernando de Oliveira.[30] Indução e dedução, enquanto caminhos para um saber científico, manifestam-se então de forma imprecisa, imperfeita, uma vez que as "teias do universo mental aristotélico" ainda aprisionam ou condicionam as formas de pensamento em sua quase totalidade.

3. O campo etnológico prático-colonial - Corresponde ao esforço no rumo de uma atitude antropológica e etnológica nova. Na antropologia/geografia colonial têm origem os inúmeros quadros informativos, "verdadeiras gramáticas civilizacionais", onde se incluem conceitos-chave como "natureza humana", "civilização", "diferença", tudo em conflito com o etnocentrismo então vigente.

Tais campos não devem ser interpretados, no entanto, como gavetas ou compartimentos tendentes a aprisionar e empobrecer uma realidade extremamente rica e complexa. O próprio Barreto demonstra longamente o que afirmamos a partir do exame rigoroso de dois textos, o "Tratado da Esfera", de D. João de Castro, e o "Tratado", de Cristóvão da Costa. O primeiro versa sobre matérias astronômicas mas é principalmente "uma introdução não apenas à astronomia náutica mas à filosofia da ciência da Sabedoria do Mar"; já o segundo versa sobre a matéria médica renascentista mas constitui na verdade um diálogo com os "Colóquios" de Garcia de Orta, "uma leitura crítica que procura avaliar a força e o limite dos 'Colóquios' de Garcia de Orta".[31]

B. Os novos conteúdos do saber

Nos campos da Geografia e da História Natural, os portugueses submeteram os conhecimentos da Antigüidade e da Idade Média à prova da experiência consubstanciada num gigantesco manancial de informações de toda espécie: sobre a geografia de mares e terras desconhecidas, sobre a flora e a fauna, sobre os homens, enfim. Desmoronaram-se os antigos mitos, como do "antimundo" e dos antípodas. O encontro de outros homens pôs em relevo as diferenças de civilização, de costumes e de crenças; mas colocou no primeiro plano das preocupações lusas a tomada de consciência dos deveres da fé cristã, sobretudo naquelas regiões onde se tornou evidente a ausência de qualquer anúncio do Evangelho. No Brasil, principalmente, a realidade era totalmente original: a terra e seus habitantes. O nascimento dessa imagem do Brasil e do índio traduziu-se numa dialética do Outro e do Mesmo Civilizacional.[32]

Assim, se o relato de Gomes Eanes de Zurara[33] ainda pode ser visto como um discurso historiográfico de transição, onde a imagem do Outro se reflete na imagem do Mesmo, após a chegada à Índia e ao Brasil não seria mais possível deixar de reconhecer a existência do Outro como Diferença: serão então as imagens do "Oriente" e do "Índio" do Brasil.[34]

Revolucionando mitos e conceitos, os Descobrimentos forneceram argumentos para a fundamentação do humanismo antropocêntrico, e para o reconhecimento do "mundo do homem". Unidade do gênero humano, unidade e variedade da natureza, o caráter da cultura como produto histórico, com um conteúdo variável no espaço e no tempo, tudo isto ficou evidenciado com os relatos dos navegadores e descobridores. Coube aos teólogos e juristas debruçarem-se sobre tais realidades para dela extraírem tanto uma teoria de evangelização quanto um direito natural, capaz de conciliar ou não as preocupações terrenas dos conquistadores com a missão espiritual dos missionários. O conceito de natureza se converte na base sobre a qual os teólogos-juristas tentarão assentar racionalmente a razão de ser da diversidade e o fundamento das relações entre os habitantes do planeta.

Sem que tenha sido propriamente uma criação dos Descobrimentos, a elevação da "natureza" ao lugar de categoria básica filosófica, jurídica e literária, deveu a eles o maior impulso - o da evidência factual. "O direito natural moderno teve o seu berço na Península Ibérica. E teve-o exatamente no quadro da problemática ético-jurídica e política gerada pelas descobertas".[35] Ao romper com a linhagem histórica que associava o império e a cruzada, a escola teológico-jurídica espanhola (Francisco de Vitória, Domingo de Soto, Bartolomeu de las Casas) nega a existência de uma natural servidão humana para afirmar em troca a liberdade originária dos índios. Assim, se era possível legitimar-se a conquista, à luz do direito natural (com base na "sociabilidade" e na "fraternidade"), o mesmo não se poderia dizer quanto à escravização do índio. Daí a necessidade logo percebida de redefinir a noção de guerra justa, oriunda do espírito de cruzada, para as novas realidades que encontram no Brasil e da qual tentam dar conta a partir do naturalismo cristão como se comprova em Luis de Molina: somente os títulos derivados do direito das gentes poderiam fundamentar legitimamente a convivência entre cristãos e gentios nas regiões "não-ecumêmicas"[36].

Não cabe aqui o desenho do quadro completo não só dos novos conteúdos do saber associados aos Descobrimentos, como do seu impacto ou irradiação no plano mais geral da cultura européia[37]. Preferimos priorizar a questão, pouco ventilada entre n&oacut