Cidades em Diálogo

“A primeira vista é para os cegos”

Izabel Margato
PUC-Rio

Este texto é um presente. Mais precisamente, fala de presentes: do presente que se ganha em estar em Lisboa; do presente que me foi oferecido pelo escritor José Cardoso Pires ao aceitar que eu escrevesse sobre o seu livro inédito Lisboa, Livro de Bordo — Vozes, Olhares, Memorações e, finalmente, do presente que se colhe no convívio estimulante com os amadores de cidade, que escolhi como companheiros deste percurso. Por tudo isso, eu quero iniciar esta comunicação homenageando três grandes leitores de cidade. São eles : Walter Benjamin, Renato Cordeiro Gomes e José Cardoso Pires. Cada um deles, em diferentes momentos, por terem sabido amar as cidades que leram, emprestado algumas de suas ferramentas e ensinado a ajustar o olhar para entender o percurso das imagens que traçaram. Outras vozes também se assinalam nesta escrita, mas são estas as que aparecem com maior relevo. Por isso, inicio com recortes, com citações que, aqui, funcionam como epígrafes, i. é, fragmentos com moldura de homenagem. As três epígrafes, embora com focalizações diferentes, se aproximam no traço comum que contêm : a questão do encontro do homem com a cidade.

Como primeira epígrafe, destaco um trecho bastante conhecido da obra de Walter Benjamin:

Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução.[2]

Este fragmento coloca em oposição duas formas de contato com a cidade: a que se tem a partir de uma orientação prévia, bem definida e planejada, e aquela que se pode alcançar num processo de decifração atenta e contínua dos signos que a cidade — como uma floresta — esconde e revela. No primeiro movimento, o caminhante é dono de seus passos e o seu encontro com a cidade se dá muito mais na confirmação de imagens já conhecidas, onde tudo parece acomodar-se em um “halo de proximidade”[3], do que como decorrência de um processo de decifração. Esse caminhante, que em qualquer lugar está sempre em casa, procede de forma semelhante à dos geômetras que “planejam seus deslocamentos no interior de um espaço ordenado, compacto e pouco acidentado, que tudo acomoda aos desdobramentos de sua extensão concertada e contínua”[4]. Esta forma orientada de encontro, segundo Benjamin, carece de significação. No segundo movimento, o sujeito não dispõe de “premissas tranqüilizadoras”, não possui mapas ou guias, é o sujeito errante que “desdenha o homogêneo e o contínuo”[5] e que está perdido na rede de significações intrincadas que a cidade contém e, onde, ao mesmo tempo, está contida. Aqui, o conhecimento da cidade tem como limite um “horizonte que obceca e desafia”[6]. Este caminhante precisa de instrução. Não da instrução convencional, vendida nas bancas das esquinas, mas daquela que se constrói com a decifração dos nomes das ruas que, para o caminhante perdido, equivale ao “estalar do graveto seco ao ser pisado”[7], indicia o início de uma direção a ser seguida. Essa instrução pode construir-se, também, com a percepção de que “as vielas do centro da cidade”, tais como um desfiladeiro, podem refletir com nitidez todas as horas do dia[8].

Com esses primeiros indícios, poderíamos dizer que este caminhante já não está tão perdido, pois já começa a perceber um código particular nascido de sua interação com o espetáculo novo e único, ao qual os seus olhos tiveram que se adaptar[9].

Com o seu novo olhar, este sujeito errante já pode iniciar um percurso de conhecimento pela cidade. É o momento, então, de trazermos a segunda epígrafe que também nos guia nesta leitura. Trata-se de uma passagem do livro Lisboa, Livro de Bordo — vozes, olhares, memorações, de José Cardoso Pires:

Ninguém poderá conhecer uma cidade se não a souber interrogar, interrogando-se a si mesmo. Ou seja, se não tentar por conta própria os acasos que a tornam imprevisível e lhe dão o mistério da unidade mais dela.[10]

Esta passagem é uma “instrução” de leitura. A primeira parte destaca a postura do sujeito que busca o conhecimento: o interrogar. Mas o que se propõe aqui é uma dupla interrogação. Interrogar a cidade e, ao mesmo tempo, interrogar a si próprio, pois o processo de conhecimento só poderá constituir-se nessa interação, isto é, a partir de um encontro. Encontro que se constrói com os acasos, os indícios, os signos capazes de revelar o mistério das cidades. Mas esse encontro tem um preço, o preço da nossa transformação. É o que Olgária Matos ressalta quando afirma que “o outro é sempre o que exige de nós distanciamento (de nós mesmos) para que dele tenhamos experiência”[11]. É o que Merleau-Ponty chamou de “o mistério do mundo: essa distância feita de proximidade”.[12]

Lisboa, Livro de Bordo é um livro de encontros, fala de encontros. Fala, principalmente, dos encontros de Cardoso Pires com Lisboa — a partir de vozes, olhares, memorações que ele recolhe em sua viagem pela cidade. Recolhe e registra, formando um singular mapeamento com fragmentos que, na composição, isto é, no registro, indicam as direções e os limites de roteiros que vão constituir o Livro de Bordo de Lisboa: cidade a navegar.

No entanto, o livro que tenho em mãos é, por assim dizer, um texto intermediário: se, por um lado, remete a um texto anterior, o Lisboa, Vistas da cidade, saído em 1991 na coletânea Um Olhar Português, por outro, é ainda um livro incompleto — faltam-lhe as fotos, as imagens gráficas que na edição estabelecem interação com a escrita. Assim, neste momento eu trabalho com “provas” e fantasias, isto é, com uma escrita presente, a partir da qual busco construir uma interlocução da paisagem que vou recuperando na memória com as trilhas do pessoalíssimo traçado de Lisboa, que Cardoso Pires imprime ao longo das páginas com que constrói a sua escrita da cidade.

“Logo a abrir …”, como diz o escritor, uma primeira imagem em moldura

Logo a abrir, apareces-me pousada sobre o Tejo como uma cidade a navegar. Não me admiro: sempre que me sinto em alturas de abranger o mundo, no pico dum miradouro ou sentado numa nuvem, vejo-te em cidade-nave, barca com ruas e jardins por dentro e até a brisa que corre me sabe a sal. Há ondas de mar aberto desenhadas nas tuas calçadas; há âncoras, há sereias. O convés, em praça larga com uma rosa dos ventos bordada no empedrado, tem a comandá-lo duas colunas saídas das águas que fazem guarda de honra à partida para o oceano. Ladeiam a proa ou figuram como tal, é a ideia que dão; um pouco atrás, está um rei-menino montado num cavalo verde a olhar, por entre elas, para o outro lado da Terra e a seus pés vêem-se nomes de navegadores e datas de descobrimentos anotados a basalto no terreiro batido pelo sol. Em frente é o rio que corre para os meridianos do paraíso. O tal Tejo de que falam os cronistas enlouquecidos, povoando-o de tritões a cavalo de golfinhos. [13]

Esta página em moldura é uma paisagem hipersemiotizada. É um microcosmo, um fantástico mosaico que representa Lisboa em cidade-resumo e parece revelar a nostalgia da totalidade. Nessa página se condensam — em dança alucinada — imagens que alegorizam uma paisagem em cruzamento de linguagens: a linguagem “enlouquecida” dos velhos cronistas, a fala “empedrada” das estátuas, praças e calçadas. E em meio a elas, a fala do alegorista da cidade. Colocado na altura das nuvens percebe a cidade nesse “distanciamento feito de proximidade” com que Merleau-Ponty definiu “o mistério do mundo” — é daí que ele vê Lisboa como uma “cidade-nave”, como “cidade a navegar”.

Como “cidade a navegar” ou “cidade-nave”, esta Barca que atende pelo nome de Lisboa possui “ruas e jardins por dentro”; possui “brisa que sabe a sal” e âncoras e sereias e “ondas de mar aberto” delineadas por um olhar que, como uma moldura, recorta e desloca dando a ver o invisível. Essa moldura, como diz Benjamin, “exige ser contemplada”.[14]

Essa moldura concentra a proliferação de signos que faz desta primeira imagem uma alegoria compacta, onde os monumentos e fatos históricos ganham uma nova funcionalidade: ora é um “rei menino” montado num cavalo verde ( limo acumulado pelo tempo, ou cor de encantamento?) a olhar para o outro lado da terra. A seguir vem o Cais das Colunas que, nesse momento, “fazem guarda de honra à partida para o oceano”; depois, são os navegadores e as datas de descobrimentos, registrados a basalto, nessa cidade que, antes de tudo, é um livro. Um livro de registros, cujo código é necessário descobrir ou desentranhar nessa densa malha de sinais que tece esse retrato de abertura. Nele há um rio. É o Tejo, “um rio que corre para os meridianos do Paraíso”. Este último traço recupera o tom de um antigo desejo, agora também esculpido em outras letras. Esse “paraíso” é um recorte no imaginário de outros tempos, que agora se inscreve, como uma libertação, como um “Agora”[15] benjaminiano, isto é, uma imagem que, aprisionada nos encartes do tempo, se liberta como uma marca, ou a cor de um sonho ao ser revisitado, e volve e se faz presente, não com força igual, mas com igual capacidade de “corresponder a um olhar”[16].

O traço final dessa cidade-síntese é um recorte, em miniatura, de uma outra página do livro da cidade. Trata-se da escrita “enlouquecida” de antigos cronistas que povoaram o Tejo de “tritões a cavalo de golfinhos”. Cronistas enlouquecidos? Será que do alto das nuvens esta imagem não estaria também revestida de uma nova funcionalidade, ou melhor, não soaria com uma certa familiaridade?

O que poderíamos dizer é que a imagem da Lisboa-nave com que Cardoso Pires abre seu livro tem qualquer coisa de próximo, qualquer coisa que, na distância, faz lembrar a Lisboa dos antigos cronistas. Essa Lisboa, que fala em outro tempo, que fala de um tempo em que se

[…] via a olho nu o Promontório da Lua por toda essa costa além. Tempo, dizem, em que nas margens da Outra Banda havia areias que escorriam ouro, Marco Terêncio fala disso, e pastagens celestes onde as éguas emprenhavam pelo vento. Tempo de poeiras luminosas e lágrimas lunares. E de pérolas. E de tritões. Tritões cantadores, como aquele que consta da Descrição de Damião de Góis.[17]

Esta Lisboa tem aura. É a Lisboa dos velhos cronistas enlouquecidos pela cidade, enlouquecidos talvez por perceberem que a aura dava à cidade “o poder de revidar o olhar”.[18]

É nesse sentido que as imagens traçadas pelos velhos cronistas têm alguma proximidade com a cidade-síntese que abre o livro de Cardoso Pires. Talvez esteja aqui a explicação para a proximidade, ou familiaridade, que percebemos nesses olhares tão afastados no tempo e, curiosamente, tão próximos na capacidade de perceber a aura nas imagens da cidade, isto é, na capacidade de recuperar imagens que revidem o olhar.

Entretanto, o escritor parece não abonar muito esta nossa interpretação. Mesmo depois da imagem construída e transcrita em moldura de primeira página, o que se percebe logo a seguir é uma mudança de tom, é o particularíssimo olhar que espreita como que desconfiado, incomodado mesmo, com a imagem hipersemiotizada que, como um cristal, condensa a cidade.

[…] para mim, panorâmicas e vistas gerais são quase sempre frases feitas ou cenários de catálogo. Claro que ver-te daqui, do Alto do Castelo, é deslumbrante, não digo que não. Mas há a distância, e a distância inventa cidades, como bem sabemos.[19]

Recusa ou não, a verdade é que nesse livro aparecem em menor número as imagens em moldura, as imagens-síntese que condensam a proliferação de fragmentos. Sem recusar os recortes, os fragmentos da cidade ou, como ele diz, os fotogramas, Cardoso Pires vai ao encontro de um particular mapeamento: outros trajetos, outras rotas para uma pessoalíssima navegação.

Se recuarmos um pouco — porque a errância por uma cidade implica também esse caminhar em voltas — nos deparamos novamente com o título: Lisboa, Livro de Bordo, Vozes, olhares, memorações. Nele, Lisboa é um livro de registros de viagem : Livro de Bordo. Mas para aquele que viaja na viagem do outro, para nós leitores que viajamos na viagem mapeada por Cardoso Pires, o livro pode ser também, um livro de orientação. Um livro que recorta direções. Com essa percepção, estreitamos o contato com esse Livro de Bordo, ou de orientação, e podemos perceber que logo à saída ele indicia uma tomada de posição: isto é, deixar claro que roteiros devem ser abandonados — os que estão fora da viagem — para depois iniciar o percurso pretendido.

Nessa viagem, o primeiro roteiro a ser abandonado, como vimos, são os miradouros, porque, além de produzirem imagens “inventadas”, achatam a cidade em panoramas que insinuam uma totalidade impossível, porque tecida com a superfície enganosa das fachadas. Em outras palavras, essas vistas gerais são abandonadas pelo autor porque põem diante dos olhos uma “cidade desfocada”.

Nós, tanto quanto me apercebo, estamos os dois em mais ou menos: tu, cidade desfocada pela luz mundana dos videos-turistas que te vieram espreitar de miradouro, eu um pouco à margem porque, para mim, panorâmicas e vistas gerais são quase sempre frases feitas ou cenários de catálogo.[20]

A cidade desfocada impossibilita o encontro, a troca, a empatia necessária a uma viagem que se quer construir com roteiros genuínos:

Aqui tens porque é que eu, nesta vista tirada do Castelo de São Jorge, me sinto assim distante, quase alheado. Talvez porque daqui não te ouço, cidade. Porque não te respiro os intentos nem te cheiro. Numa palavra, porque me falta cumplicidade…[21]

A imagem sem cumplicidade, ou melhor, a imagem inventada na distância pelos “roteiros de catálogo”, são os portos que o escritor vai descartar logo de saída. São as “imagens de primeira vista” que, como o autor nos ensina, são imagens para os cegos.

Por essa razão é que eu nunca me esqueço daquele aviso que alguém deixou um dia nesta varanda de curiosos:
A primeira vista é para os cegos! [22]

Essas imagens de “primeira vista”, muitas vezes já trazemos de casa, arrumadas e embaladas à espera de confirmação. Como sabemos, toda cidade está cheia delas. São as vistas para os que não podem ou não sabem ver e precisam do excesso de deslumbramento, precisam de vistas panorâmicas, miradouros, ou, como diz o autor: “Varandas de curiosos”. Essas vistas gerais carecem de significação, como também são pouco significativos os roteiros dos manuais de turismo:

Porque mesmo para quem desça da vista geral e mergulhe nos interiores em catecismos de city tour a paisagem tem muito de encomenda.[23]

Outras paisagens descartadas pelo autor sãos os roteiros planejados por “eruditos em trânsito” e outros amantes de imagens consagradas. São eles os

[…] que praticam as vias-sacras dos monumentos para ficarem de bem com a consciência cultural, vi disso aos montes; há os romeiros da dança tarântula, Alfama abaixo, Mouraria acima, por amor aos labirintos de roteiro; há os viajantes de museu para os quais este mundo tem de andar sempre muito bem datado e arrumadinho; há de tudo.[24]

Com esse posicionamento, com essas recusas, fica demarcado o que não faz parte da viagem, o que não tem espaço nem registro nesse Livro de Bordo que busca, antes de tudo, as paisagens genuínas, os portos que permitem os encontros cúmplices, capazes de revelar o que Cardoso Pires denomina “o do espírito do lugar”.

Essa busca da “alma” de Lisboa vai demarcar os três grandes recortes da navegação do autor. Vai definir um traçado e, com ele, um percurso. Diante de uma malha intrincada de signos, Cardoso Pires escolhe as suas rotas significantes. Porque só assim é possível descobrir “onde na cidade ainda vibram sinais de vida, por onde passa o lençol freático que a inunda de rumores ou de onde vem a luz que por vezes a faz resplandecer”.[25]

Guiado por vozes, cheiros e memorações, ele se faz cúmplice da cidade, porque

[…] sem a cumplicidade com a imagem, com os saberes, os gostos e os defeitos dum mundo tão privado como o teu ninguém aprende a vivê-lo. Eu, melhor ou pior, cá vou tentando. Para chegar a esse entendimento já recapitulei infâncias de bairro, já revisitei lugares; já te disse e contradisse, Lisboa, e sempre em amor sofrido.[26]

Essa fala-declaração é um recorte que define a natureza deste livro. Não se trata de mais um livro sobre Lisboa, de mais uma representação da cidade na literatura. Trata-se de uma construção mais íntima, trata-se da revelação da intimidade do escritor com a cidade que habita. É a sua Lisboa. Nela, cidade e corpo se misturam, se reconhecem e interagem. É isso que ele nos dá a ver com a belíssima construção de sucessivos portos a ancorar.

É que isto aqui não é só luz e rio, sabes bem. Não é só geografia, revelações ou memórias e o restante diz-que-diz dos manuais e dos oradores frustrados.[27]

Recortando ainda mais este fragmento, chegamos a uma imagem genuinamente lisboeta: a singular luminosidade de Lisboa. Mas este é um porto de difícil travessia. Muita vezes Cardoso Pires carrega de ironia o tratamento desta imagem. Estou a ver o início do texto Lisboa, Vistas da cidade em que os dois (cidade e escritor) aparecem “desfocados” e a explicação vem como um encolher de ombros: “Excesso de luz, talvez”. Mas o que se percebe, afinal, é que o autor não rejeita esse signo que já se tornou uma marca da identidade de Lisboa; rejeita a sua sobreexposição, rejeita o signo mal trabalhado. O que faz, então, é ajustar as imagens: diz “não” ao gasto e à repetição que anula o imprevisto, e convoca outros olhares mais atentos como os de Fernando Assis Pacheco, Pedro Tamen, Vieira da Silva e outros, e muitos outros. Porque, para Cardoso Pires, “em poucos lugares como este de tantas cores cada cor é feita. Azul de azuis ? Branco áspero de pérola e cinza? Ocres de pardacentos e vermelhos lisos?”. Tons que fazem jurar “um verão de agosto”, ou uma claridade destilada de “um sol carregado de andorinhas”[28]. Isso tudo deve ser verdade. Mas o que para mim é mais verdadeiro é que, antes de tudo, existe um tom iluminador e iluminado, que nasce das cintilações de um olhar capaz de restituir o brilho às cores já esmaecidas pela opacidade dos olhares distraídos. E, como é de se esperar, esse olhar não se restringe às cores de Lisboa:

Há vozes e cheiros a reconhecer — cheiros, pois então: o do peixe de sal e barrica nas lojas da Rua do Arsenal, não vamos mais longe; o da maresia a certas horas das docas do Tejo; o do verão nocturno dos ajardinados da Lapa; o dos armazéns de aprestos marítimos entre Santos e o Cais do Sodré; o do peixe a grelhar em fogareiro à porta dos tascos de recanto ou de travessa, desde o Bairro Alto a Carnide; há, no inverno pelas ruas, o cheiro fumegante das castanhas a assar nos fogareiros dos vendedores ambulantes.
E acima de tudo há a voz e o humor, o tom e a sintaxe, aquilo que te está, cidade, mais no íntimo. Falo, é claro, do imaginário vocabular e da construção da frase que por si sós se fazem ironia. Ah sim, uma ironia arguta e tão fechada que pode ir do elogiar em travessura à provocação de mau destino, tal qual como o calão em constante mutação de cada bairro.
Isso e o acento privado do gesto e do diálogo são registos inconfundíveis do espírito do lugar, qualquer coisa que se sobrepõe àquele visual imediato….[29]

Estes registros inconfundíveis do espírito de Lisboa são portos de fácil ancoragem para Cardoso Pires. São talvez as suas paisagens preferidas. No entanto, estas não são paisagens de passagem livre para o visitante desavisado. Ele não saberia distinguir na fala do autêntico “Lísbia” a diferença entre o “cuspir fininho”, o “ponto mosca” e outros conversares desse “praticante vivido de Lisboa”[30]. Mas se o visitante não consegue habitar tranqüilamente este porto, nem por isso esta viagem carece de companhia:

É realmente a cuspir fininho e a mandar-vir que se trabalha o intruso e se dá expediente à discussão. Na circunstância há uma acidez quase gutural a rematar a voz mas quem for de ouvido e preceito saberá que muitas vezes não se trata dum espalhafato, duma arruaça. Que se resume a um travo natural que será talvez um resto dos antigos pregões de ruas.
Este travo, que é a cor da voz, sente-se no fado que vem do bairro e nas entrelinhas de Alexandre O’ Neill. Devia estar também em Cesário […]
Por isso é que eu para apanhar o tom de voz mais lisbonense reabro o Alexandre O’ Neill. António Lobo Antunes será outro escritor a tratá-lo com uma ironia e uma sintaxe muito daqui, muito de classe social … Mas em O’ Neill o que domina é a quase perversidade do cantar, aquele trilar ladino assente no mandar vir e no cuspir fininho com que o lisboeta tece o seu discurso íntimo. Leio-o e, a cada frase, estou a ouvir a cidade na tal entoação que a torna singular. Uma entoação que só volto a descobrir no fado mais nativo e mais de bairro que hoje em dia é prenda rara de escutar.[31]

Estamos, pois, no território do discurso íntimo do “lísbia” — “o tom de voz mais lisbonense”. Ele não está franqueado a todos, nem mesmo a todos os lisboetas, já que para habitar esse porto — esse código cerrado e quase imperceptível — é necessário um grau de cumplicidade há muito esquecido ou abandonado pelo comum habitante da cidade. Só àquele que se dispõe a interrogar e decifrar os signos íntimos da cidade é que ele se revela, mas aí, ainda é preciso “ser de ouvido e preceito”.

Também é preciso ser de olhar e de preceito para descobrir na cidade as imagens ou pessoas que, em outros tempos, imprimiram as suas presenças:

De charuto a fumegar à porta da Havaneza, Ramalho Ortigão assistiu à passagem por aqui du tout Lisbonne do seu tempo. Snobérrimo como um gato de salão, era uma figura do Álbum de Glórias de Bordalo transposta ao vivo para as tardes urbaníssimas, mão enluvada, bengala fina e o Figaro a espreitar do bolso do fraque. Cumprimentava Teófilo Braga com subida consideração e talvez discutissem os dois alguns parágrafos de Proudhon, não me admirava nada. Ao Fialho de Almeida via-o em bom dia e passe bem, uma vez que a parada das letras com janotas de província como o Fialho ficava uma penúria de se olhar por cima da luneta, achava ele.
Com o Eça encontrava-se muito, apesar de o Eça andar constantemente misturado com as personagens que descrevia. Logo abaixo da Havaneza, no Hotel Universal tinha sempre um cavalheiro dos seus romances de passagem pela capital, e na pastelaria Ferrari costumava reservar mesa para certos diálogos e certas cenas de capítulo para uso muito dele. Passear, passeava mesmo na companhia do Ega e do Carlos d’Os Maias em voltinhas apressadas pelo Loreto e pelo Largo de Camões, e para dar gosto à malícia ia até ao Conselheiro Acácio que ficava logo ali, na rua Victor Cordon. À Luísa tudo leva a crer, procurava-a no Jardim de São Pedro de Alcântara que era onde aquele coraçãozinho costumava fazer horas para cair nos braços do Primo Basílio, esse galdério.[32]

Esta é uma viagem que passa também pela viagem dos outros. Mas na passagem ele as atualiza e recupera — torna-as presentes. Estes são autores e personagens de outras épocas que permanecem na cidade. Fazem parte da sua memória. Os seus olhares e obras pertencem ao colorido único dessa paisagem que só o olhar atentamente cúmplice do autor é capaz de resgatar e tornar presente, visível. Esse olhar que resgata o invisível não vê apenas o passado no presente, mas — como bem percebeu Walter Benjamin — dá a ver o que desse passado ainda existe como presença, porque

Não se trata de apresentar as obras literárias no contexto de seu tempo, mas de apresentar, no tempo em que elas nasceram, o tempo que as revela: o nosso.[33]

Na esteira de Walter Benjamin, eu acrescentaria que Cardoso Pires, na escrita do seu Lisboa, Livro de Bordo, vai além do caminhante privilegiado de olhos e ouvidos atentos, pois não se trata apenas de “recolher em seu espírito a impressão das coisas; seria mais exato dizer: que é ele quem imprime o seu espírito nas coisas”. O seu olhar “de preceito” é que institui a visibilidade, é que resgata o ilegível para construir, na escrita, uma outra página do Livro de Registros da cidade[34]. É agora o momento de trazermos a terceira epígrafe-homenagem que, neste texto, destacamos como os principais eixos norteadores de sentido. Trata-se agora de um trecho do livro Todas as cidades, a cidade, de Renato Cordeiro Gomes,

Decifrar / ler uma cidade é cifrá-la novamente, é construí-la com cacos, fragmentos, rasuras, vazios, jamais restaurando-a na íntegra …
Escrever uma cidade é inscrevê-la novamente no livro de registros; é superpô-la a outras cidades sígnicas cujo desenho é, desde a origem, indecifrável.[35]

Registrar em um livro de bordo uma cidade por onde se navega é cifrá-la novamente, é mapeá-la em registro novo para “superpô-la a outras cidades sígnicas diferentes”, mas iguais no nome e no destino. Quando Cardoso Pires lê o Livro de Registro, percebe que a cidade é uma paisagem de signos, onde cada página traz uma representação. Passar esse Livro em revista é o mesmo que rever imagens em busca de um ajuste. E isso demanda conhecimento, demanda tempo e sensibilidade. E demanda, principalmente, o que Nelson Brissac Peixoto denominou “a ética das imagens”. A partir dessa postura, um roteiro singular é revelado. É nele que se dá o encontro da cidade com seu escritor.

E, nesse sentido, diante da questão colocada por Brissac no seu ensaio sobre a Ética das imagens: “somos capazes de ver através desta mitologia esvaziada pela repetição?”, Cardoso Pires nos faz pensar que sim, porque ele descreve uma forma nova de olhar. Porque ele recupera “olhos que haviam por assim dizer perdido a capacidade de olhar”[36]. Trata-se de uma questão de tom, ou melhor, é uma particular questão de tom que resgata a ética das imagens. Se tudo isso não explicar o particularíssimo olhar de Cardoso Pires, eu acrescentaria que seu olhar é o particular olhar do alegorista, do Alegorista de Lisboa, cidade que para ser decifrada exige além de “preceito”, muita cortesia já que é
[…] uma cidade em geometria esquiva, colinas, requebros, ondulações, reflexo dum rio de tons incertos, conforme os dias e conforme as marés, um corpo para soletrar sem pressas. […] uma cidade de caprichos como esta nunca o sol a pode iluminar por igual. Tem de se lhe afeiçoar aos contornos e aos instintos desordenados, à sua placidez aqui, ao burburinho dos bairros velhos acolá, e é com esses desvelos que ele lhe dá cor singular.[37]

 

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Notas

  • 1 PIRES, José Cardoso. Lisboa, Livro de Bordo — Vozes, Olhares, Memorações. (1998) p.11.
  • 2 BENJAMIN, Walter. “Infância em Berlim — por volta de 1900”. In:——. Obras Escolhidas II. (1987) p.73.
  • 3 MATOS, Olgária. “O direito à paisagem”. O olhar. (1988) p.47.
  • 4 CARDOSO, Sérgio. “O olhar dos viajantes”. O olhar. (1988) pp.351-2.
  • 5 Ibidem.
  • 6 Ibidem.
  • 7 BENJAMIN (1987) p.73.
  • 8 Ibidem.
  • 9 BENJAMIN, Walter. “Sobre alguns temas em Baudelaire”. In:——. Obras Escolhidas III. (1989) p.141.
  • 10 PIRES (1998) p.11.
  • 11 MATOS, Olgária. “O direito à paisagem”. O olhar. (1988) p.48.
  • 12 Apud MATOS (1988) p. 48
  • 13 PIRES (1998) p.7.
  • 14 BENJAMIN (1989) p.119.
  • 15 BENJAMIN (1987) p.229.
  • 16 BENJAMIN (1989) p.140.
  • 17 PIRES (1998) p.114.
  • 18 Ibidem, p. 140.
  • 19 Ibidem, p.10-11.
  • 20 Ibidem, p.10.
  • 21 Ibidem, p.13.
  • 22 Ibidem, p.11.
  • 23 Ibidem, p.11.
  • 24 Ibidem, p.11.
  • 25 PEIXOTO, Nelson Brissac. “É a cidade que habita os homens, ou são eles que moram nelas?” Revista USP. no. 15, p.72.
  • 26 PIRES (1998) p.13.
  • 27 Ibidem, p.11.
  • 28 Ibidem, p.10.
  • 29 Ibidem, p.12.
  • 30 Ibidem, p.16.
  • 31 Ibidem, p.17-18.
  • 32 Ibidem, p.66.
  • 33 Benjamin (1931).
  • 34 GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
  • 35 Ibidem, p.38.
  • 36 BENJAMIN (1989) p.141.
  • 37 PIRES (1998) p.41.