Nuno Teotónio Pereira
Arquiteto
Um testemunho das transformações de Lisboa desde os anos 30 até ao presente, através de uma vivência em que a actividade de projecto e a intervenção cívica não conhecem fronteiras, fundidas numa paixão pela “polis” que abarca tanto a estrutura física como o ambiente humano, a actividade cultural como as pulsões políticas e sociais.
Da Lisboa das colinas com os eléctricos e as tertúlias literárias, ao mesmo tempo popular e aristocrática, até à metropole dos nossos dias, com as periferias desumanizadas e a congestão automóvel, passando pelas propostas de qualificar a cidade com intervenções pontuais que se foram sucedendo no tempo e que são apresentadas no seu contexto urbano, cultural e político.
A cidade que herdámos
À guisa de introdução, vejamos de relance a Lisboa que eu e os da minha geração herdaram, no rescaldo da I guerra mundial e nos alvores da ditadura que governou o País durante meio século (1926/1974). A Lisboa dessa época era a Lisboa de Pessoa, poeta ignorado, apenas conhecido pelos seus pares do estreito círculo das tertúlias literárias, mas que não tinham consciência da envergadura da sua obra. A Lisboa de Álvaro de Campos em “Lisbon Revisited”: “Cidade triste e alegre, outra vez soube aqui… outra vez te revejo — Lisboa e Tejo e tudo…”. Dessa Lisboa diz José Rodrigues Migueis, que se considerava alfacinha de gema, quando com nostalgia recorda o que entretanto desaparecera: “Mas ainda há beirais floridos, varandas com nespereiras, gaiolas de passarinhos, papagaios, vôos de pombas; e mulheres de luto, pimenteiras, namorados esquecidos, velhos dormindo ao sol nos parques e jardins”. Enfim, a Lisboa da instabilidade política e das revoluções militares frequentes e em que a penúria da Fazenda Pública não dava para “fazer cantar um cego”. E por isso não deixou marcas significativas na Arquitectura.
A Lisboa que herdámos era a Lisboa das colinas e da Baixa, em que as Avenidas Novas eram uma espécie de subúrbio de novos-ricos; a Lisboa em que a aristocracia habitava nos seus palácios nos bairros populares da Lapa e da Graça e em que as senhoras da Alta iam de eléctrico ao Chiado para as compras e os capitalistas iam a pé pela Baixa até aos bancos; a Lisboa em que os escritores importantes faziam tertúlia à porta das livrarias e em que os médicos e advogados de renome tinham os consultórios e escritórios nos velhos prédios pombalinos. Enfim, a Lisboa em que havia lavadeiras de Caneças, varinas da Madragoa, pretos da Casa Africana, galegos nas esquinas à espera de frutas e sinaleiros a comandar o escasso trânsito.
É desses longínquos anos vinte, profundamente estudados por José Augusto França em obra recente, uma das vivências mais recuadas de que me lembro, passada num belo prédio da Calçada Marquês de Abrantes, todo de azulejo azul e com um florido jardim suspenso. Funcionava aí uma escola de Misses inglesas, cujo grau pré-primário eu frequentava. Uma manhã, estávamos no recreio e ouviram-se tiros de canhão. “É uma revolução”, gritava-se, e logo a escola encerrou e as crianças foram despachadas para casa. Aí, durante dois ou três dias, com as grossas portadas das janelas fechadas, ouvi o matraquear das metralhadoras. Era o 7 de Fevereiro de 1927, a primeira revolta contra a ditadura fundada um ano antes, e que acabou fracassada.
Justifica-se trazer aqui este episódio porque o prédio em questão é reproduzido na capa do catálogo da exposição “Aspectos da Arquitectura Portuguesa, 1550-1950” apresentada no Palácio da Cultura do Rio de Janeiro no 4º centenário desta cidade em 1965/66 e organizada pelos professores Tavares Chicó, Viana de Lima, Paes da Silva e Maia Ataíde. Trata-se de um edifício pombalino tardio, construído em meados do século XIX e situado no bairro da Esperança, na encosta da colina da Lapa, a olhar o Tejo. É bem digno de ver-se, embora não figure nos roteiros de Lisboa nem esteja tombado. Mas os organizadores da exposição do Rio de Janeiro souberam dar-lhe honras de capa.
Anos trinta
Em 1933 o ditador Salazar organizou um plebiscito para referendar a nova Constituição que consagrava um Estado autoritário, com base num recenseamento eleitoral falseado, como veio a acontecer sempre em todas as eleições organizadas até final da ditadura. É então criado um departamento chefiado pelo escritor modernista António Ferro para dirigir a política cultural do País: o Secretariado da Propaganda Nacional. É este organismo que cria os prémios literários e artísticos oficiais, sendo que um dos primeiros é atribuído a Fernando Pessoa pela sua obra “Mensagem”, primeiro livro (e único em vida do Autor) publicado pelo poeta, que morre pouco depois em 1935.
Entretanto, com o saneamento financeiro conseguido por Salazar, é lançada uma vigorosa campanha de Obras Públicas, dirigida pelo dinâmico ministro Duarte Pacheco, cujos projectos são encomendados aos mais talentosos arquitectos da época, ao mesmo tempo que a construção privada conhece um grande impulso devido a uma política proteccionista. Assiste-se então ao aparecimento fugaz de uma arquitectura de vanguarda, inspirada nos modelos do Movimento Moderno europeu, que o regime deixa florescer livremente.
Com a guerra civil de Espanha em 1936, o salazarismo, que desde a primeira hora fornece todo o tipo de apoio ao general Franco, e com o ascenso do nazismo na Alemanha, sofre um processo de fascização, que irá ter nefastas consequências ao nível da Arquitectura.
Tendo feito o exame de admissão à Escola de Belas Artes, meu Pai, a conselho de um professor amigo, ofereceu-me uma viagem à Grécia. Comprei passagem para um paquete que escalava Lisboa a 1 de Setembro de 1939 — dia em que rebentou a 2ª Guerra Mundial. A viagem foi por isso adiada, e só 50 anos mais tarde tive oportunidade de a realizar.
Anos quarenta
É ao longo destes anos que começam a ser publicadas em livro as Obras Completas de Pessoa, em edições da Ática e da Editorial Confluência. As primeiras sob a direcção de Gaspar Simões e Luis de Montalvor, as segundas de Adolfo Casais Monteiro.
Em Lisboa realiza-se logo em 1940 a grandiosa Exposição do Mundo Português, para celebração do 8º centenário da nacionalidade, ao mesmo tempo que as divisões Panzer de Hitler varriam a Europa. Esta exposição, na qual o Brasil estava representado com um grande pavilhão da autoria de Raul Lino, transformou-se numa gigantesca operação de propaganda do regime salazarista, ao mesmo tempo que deu pretexto para a reabilitação de uma vasta área urbana em volta do mosteiro dos Jerónimos e da Torre de Belém. Para a sua execução foi mobilizada toda a classe dos arquitectos, que de novo se mostravam agradecidos pela oportunidade de realizarem trabalho, embora a totalidade dos edifícios fosse efémera. Assistiu-se aqui ao canto do cisne do modernismo arquitectónico, já que se prenunciava a reviravolta que os mentores do regime estavam a preparar.
Efectivamente, desde há anos que os ânimos nacionalistas mais exaltados reclamavam uma arquitectura que expressasse os valores nacionais e a Praça do Areeiro, paradigma do novo estilo “português” era entretanto construída. A partir d’aí, o Estado começou a exigir a rejeição da arquitectura moderna, de carácter internacionalista e portanto anti-nacional, não só nas encomendas oficiais como também nas particulares. Grande parte dos arquitectos, mesmo os que tinham sido protagonistas da vanguarda, submeteram-se às directivas, havendo casos em que foram obrigados a refazer projectos modernistas traduzindo-os na nova linguagem, que ia buscar os seus modelos por vezes aos palácios do século XVII, às aldeias portuguesas ou à arquitectura nazista, conforme os casos. Foi a arquitectura do Estado Novo. Ao longo da década, e mesmo para além dela, foi esta arquitectura mascarada com ornatos de fachada que cobriu o País, e a que mais tarde foi dado o nome de “português suave”. Uma exposição de Arquitectura alemã, apresentada por Albert Speer em Lisboa, no auge do poder de Hitler, deu uma ajuda a esta onda.
Mas o ano de 45 ficou assinalado com a derrota do nazismo e lembro-me de assistir ao desfile na Avenida da Liberdade das garbosas tropas brasileiras que haviam combatido em Itália, tendo à sua frente o general Mascarenhas de Morais.
Entretanto, a década iria acabar com esperança para novos rumos na Arquitectura. Em 1948 o governo organizou uma grandiosa Exposição de Obras Públicas e ao mesmo tempo o 1º Congresso Nacional de Arquitectura, com o intuito de glorificar a sua acção nesse campo. Como estudante finalista participei nesse evento que ficou na história da Arquitectura em Portugal, porque a ele acorreu toda uma nova geração, fortemente politizada e organizada, que deu a volta ao Congresso com uma defesa acalorada do Movimento Moderno, obrigando até os arquitectos oficialistas a fazerem auto-crítica do seu colaboracionismo e da sua submissão às directivas oficiais.
Anos cinquenta
É desta década que data a minha primeira intervenção significativa em Lisboa: o prédio das Águas Livres, por ficar próximo ao aqueduto com este nome, nas Amoreiras, projecto conjunto com o arquitecto Costa Cabral. 2º Prémio Nacional de Arquitectura da Fundação Gulbenkian, sendo que o 1º foi concedido ao arquitecto portuense Viana de Lima, falecido há poucos anos e pioneiro do modernismo, que trabalhou no Brasil na área do Património em projectos de reabilitação de Ouro Preto, São Luiz do Maranhão, Forte do Príncipe da Beira e outros locais.
Reconquistada pelos arquitectos a liberdade de expressão, verificou-se uma forte influência da moderna arquitectura brasileira, cuja brilhante eclosão na época de um outro “Estado Novo”, foi revelada ao mundo através dum belíssimo livro publicado pelo Museu de Arte Moderna de Nova York escrito por Kidder Smith, e que também destacava a importância do património histórico do Brasil. Desta influência são notórios em Lisboa o Bairro das Estacas, premiado numa Bienal de São Paulo, os prédios da avenida Infante Santo e várias escolas municipais. Oscar Niemeyer tornou-se uma referência para as novas gerações de arquitectos. As Exposições Gerais de Artes Plásticas, que congregavam artistas que se opunham à ditadura e que rejeitavam os modelos oficiais, tornaram esta corrente imparável.
É nestes anos que se constroi o bairro de Alvalade, de que intelectuais das novas gerações são dos primeiros moradores, e que vai sofrendo sucessivas alterações de adaptação aos princípios da Carta de Atenas. Um importante acontecimento no capítulo dos transportes públicos é dado com a inauguração das primeiras linhas do Metropolitano.
No final da década assiste-se a um quase terramoto político com a campanha eleitoral do general Humberto Delgado, candidato à Presidência pela Oposição em 1958. Como sempre, o cadastro eleitoral falsificado evitou a derrota de Salazar, mas tudo foi diferente daí em diante: o Bispo do Porto escreve uma carta ao ditador contestando o regime, prenunciando assim a passagem para a oposição de sectores católicos cada vez mais importantes, num quadro em a que a Igreja era um dos suportes da ditadura.
Ainda no campo da Arquitectura, é ainda nestes anos que o Inquérito à Arquitectura Regional, impulsionado por Keil Amaral e organizado pelo Sindicato dos Arquitectos, é lançado. Dele resultou um importante livro que tem conhecido sucessivas edições e que teve repercussão junto de arquitectos brasileiros, pois mostra as raízes comuns da arquitectura popular.
Anos sessenta
Durante este período tive a fortuna de construir três edifícios em Lisboa que mereceram o Prémio Municipal Valmor: uma torre de habitação no novo bairro dos Olivais, a igreja do Coração de Jesus e um prédio de escritórios que ficou a ser conhecido por “Franjinhas” por causa das palas de concreto penduradas da fachada. Os dois primeiros foram trabalhos feitos com o arquitecto Nuno Portas, bastante conhecido nos meios académicos do Brasil, onde tem leccionado cursos em várias universidades e que está neste momento a dirigir um projecto de reabilitação urbana no Rio, na zona da Cidade Nova, a convite do Prefeito Luís Paulo Conde.
Com responsabilidades num organismo de promoção da habitação popular, onde trabalhei durante mais de 20 anos, participei em Congressos da União Internacional dos Arquitectos, o primeiro dos quais em Cuba logo após a revolução, onde conheci os arquitectos paulistas Vilanova Artigas e Joaquim Guedes, tendo com este último estabelecido uma relação de amizade que dura até hoje.
Ao longo desta década dois acontecimentos marcaram a história do meu país: as guerras coloniais em Angola, na Guiné e em Moçambique, iniciadas em 1961/64 e que duraram até 1974, e a emigração massiva para França de perto de um milhão de portugueses, que para ali partiram clandestinamente em busca de melhores condições de vida. Em 1968 o ditador Salazar teve um acidente que levou à sua substituição por Caetano. Durante estes anos e até à revolução do 25 de Abril envolvi-me em acções clandestinas de oposição à ditadura, que me levaram por várias vezes à cadeia, no grupo dos chamados católicos progressistas, inspirados pela acção do papa João XXIII e pelos ensinamentos do Concílio. Helder Câmara era então um dos nossos herois.
Em Lisboa, para além de expansões urbanas planeadas como a dos Olivais, a periferia cresceu desordenadamente com favelas — os nossos bairros de lata — e com extensas áreas de casas a que chamamos clandestinas.
Anos setenta
No nosso escritório, com o contributo decisivo de Nuno Portas e ainda com o de Pedro Botelho e João Paciência, desenvolvemos um grande projecto de expansão urbana na encosta do Restelo, a cavaleiro do mosteiro dos Jerónimos, e que mereceu menções honrosas do Prémio Valmor. Infelizmente esse projecto foi desvirtuado anos mais tarde, d’aí resultando um amontoado caótico de prédios sem qualquer coerência. Foi nossa intenção realizar uma estrutura urbana de alta densidade mas de reduzida altura, que pudesse servir de alternativa à construção de prédios altos que então começavam a alastrar pela cidade destruindo a sua escala.
Em Abril de 1974, após o levantamento militar acompanhado de uma revolução popular, fui libertado com muitos companheiros da prisão política de Caxias e engagei-me no Movimento de Esquerda Socialista onde participei no processo revolucionário. Com a conquista da democracia e a descolonização alteraram-se profundamente as condições do País e tive oportunidade de participar no movimento pela amnistia no Brasil, ao lado de minha futura Mulher, a pintora paulista Irene Buarque de Gusmão, que entretanto viera para Portugal com uma bolsa da Fundação Gulbenkian. Foi aí que conheci, entre muitos outros, Leonel Brizola, Miguel Arraes e Márcio Moreira Alves.
Nuno Portas, entretanto chamado ao Governo como Secretário da Habitação, lançou o chamado processo SAAL como resposta aos habitantes das favelas organizados em Comissões de Moradores e que reclamavam melhores condições de vida. Participei desse processo, ao lado de muitas dezenas de arquitectos e estudantes de Arquitectura, mas o bairro que estava a meu cargo não chegou à fase de construção. O SAAL foi sufocado por decisão governamental em 1976, na fase da chamada normalização democrática, que virou costas aos movimentos populares, tanto nas cidades como no campo, onde entretanto os trabalhadores sem terra tinham realizado, com o apoio dos militares, uma reforma agrária.
Em Lisboa, as novas expansões urbanas de Telheiras e de Chelas tinham arrancado. Infelizmente, passados mais de 20 anos, mal estão terminadas. É que as democracias têm por vezes mais dificuldades do que as ditaduras em levar para a frente grandes operações urbanas.
Entretanto a rarefacção de encomendas no escritório tinha-me deixado tempo livre para me ocupar com alguma intensidade de um domínio que sempre me tinha atraído: o Património. Foi assim que no final da década realizei com Irene Buarque como fotógrafa um levantamento das tipologias habitacionais de Lisboa desde a época medieval até 1940, subsidiado pela Fundação Gulbenkian. Desse trabalho, que me deu ensejo de conhecer ainda melhor a minha cidade, resultou o livro, publicado somente há dois anos “Prédios e Vilas de Lisboa”.
Anos oitenta
Abriu esta década ainda sob o signo do Património, com um imenso abraço ao Brasil. Em 1980, com o apoio da então SPHAN e passagens oferecidas pela Transbrasil a título de mecenato, fiz, também com Irene, um périplo pelas cidades históricas, desde os estados do norte até Santa Catarina, passando pelo Nordeste e Bahia, Minas, São Paulo e Paraná. Estive então em Brasilia com o dr. Aloísio Magalhães, ao tempo Presidente da SPHAN, e também no Rio de Janeiro onde colegas me falaram do programa de reabilitação do casco antigo da cidade. Foi nessa ocasião que visitei o lendário Ministério da Educação e fizemos amizade com Dora e António Pedro Alcântara. Fizemos centenas de fotografias que constituem um acervo maravilhoso.
Em Lisboa, entretanto, um acontecimento serviu de aviso para as transformações que a cidade iria conhecer d’aí para diante: as torres das Amoreiras, do arquitecto Tomás Taveira, no seu post-modernismo agressivo e ostentatório, quando um dos supostos postulados deste movimento era a celebração do “espírito do lugar”. Efectivamente, a proliferação que se sucedeu de centros comerciais, com parqueamento facilitado e imagem atraente dirigidos à sociedade de consumo, juntamente com o congestionamento do tráfego, tem levado à decadência da antiga área central. O incendio do Chiado em 1988 e a construção de novas sedes empresariais nas Avenidas Novas, alimentada pela especulação imobiliária e pela ausência de planeamento, agravaram essa tendencia.
Mas se a cidade assim se modifica, a periferia que hoje faz a grande Lisboa inicia, sob a égide do Poder Local democrático, um processo de reestruturação e requalificação urbana de que já se vêm resultados palpáveis. Os súburbios harmonizam-se e procuram identidade própria no sentido de serem também cidade.
É neste contexto que fizemos no escritório um projecto de habitação social dirigido pelo arquitecto Pedro Botelho no vizinho município de Oeiras que obteve o prémio anual do Instituto Nacional de Habitação.
Foi ainda nesta década que assumi durante cinco anos a Direcção da Associação dos Arquitectos Portugueses, o que me deu oportunidade para procurar com os colegas portugueses e também de outros países as soluções para os problemas que a profissão agora enfrenta.
Com a integração na Comunidade Europeia, Portugal, que perdera o seu império africano, entrou numa nova era. Assumindo os prejuízos e as vantagens de tal opção e aceitando os desafios que ela comporta, retomou a sua identidade europeia, sem no entanto deixar de procurar revigorar os laços com os países onde se fala o português, em obediência a uma vocação mais universal em que o Brasil tem um papel preponderante.
Anos noventa
A década de noventa começou sob bons auspícios pelo facto de ter sido eleita um ano antes para a Câmara Municipal uma coligação de esquerda presidida pelo actual Presidente da República Jorge Sampaio. Efectivamente, depois de muitos anos de governação casuística à margem de todo e qualquer planeamento, a nova vereação dotou a capital em poucos anos de um plano estratégico de desenvolvimento e dos instrumentos de gestão urbanística indispensáveis a uma responsável tomada de decisões na defesa dos interesses da cidade e da preservação da sua identidade. Nos últimos anos, agora já sob a presidência de João Soares, abriram-se novas vias para maior fluidez do tráfego, criaram-se estacionamentos para tirar os carros das calçadas e dos espaços nobres, foram aceleradas a reabilitação dos bairros históricos e a construção de habitações sociais para acabar com as favelas, foi dotada a cidade de novos equipamentos culturais e mais espaços verdes.
O próprio governo tem contribuído para este esforço com as dotações financeiras necessárias para a melhoria dos transportes públicos como a expansão do Metropolitano, construção de vias rápidas, e a modernização das ferrovias, e para a erradicação das barracas em toda a área metropolitana.
Foi neste contexto que fizemos o projecto de reconstrução de um prédio na artéria mais representativa de Lisboa — a avenida da Liberdade. Este projecto inscreve-se no novo plano dessa artéria que prevê a modernização dos edifícios com um ligeiro acréscimo da altura e a preservação das fachadas que dão identidade ao espaço público. Trata-se de um estimulante exercício de convivência do novo com o antigo sem qualquer recurso a pastiche, antes afirmando as diferentes épocas da construção.
Recentemente, a Administração do Porto de Lisboa divulgou um plano de reconversão da orla ribeirinha para usos não portuários, que consistia na afectação de uma extensa faixa ao longo do Tejo para a construção de edifícios. Esse plano desencadeou uma forte campanha de contestação ao nivel da opinião pública, pois os lisboetas há muito que tinham a aspiração que a cidade retomasse o contacto com o rio, perdido com a construção do porto. E o tal plano agravava a separação, dando lugar a uma nova e definitiva barreira. A reacção foi de tal ordem que obrigou as autoridades portuárias a abandonar o projecto e as levou a tomar uma série de iniciativas no sentido de satisfazer as reivindicações dos lisboetas. Uma delas foi a de desactivar conjuntos de velhos armazéns e de os alugar para actividades lúdicas. É assim possível hoje dispor de muitos restaurantes e outros espaços de lazer ao longo da margem, o que se traduziu numa importante conquista para a cidade.
Entretanto um grandioso projecto de regeneração urbana foi posto em marcha para a exposição internacional de 1998, para comemoração da chegada de Vasco da Gama à India abrindo caminho ao encontro de culturas entre a Europa e o Oriente. Essa exposição, que é consagrada aos oceanos, está a ser construída na zona oriental da cidade, abrangendo uma vasta área antes ocupada por reservatórios de petróleo e indústrias poluentes, que foram removidos. Para além dos pavilhões, está em construção uma nova área residencial junto a um extenso parque urbano ao longo da margem do Tejo e a exposição conta com mais de cem países inscritos, número jamais alcançado em eventos do género. Lisboa ficará assim dotada com uma nova frente marginal preenchida com residências e equipamentos lúdicos e culturais e com transportes rápidos ao centro da cidade.
No ano passado um violento incêndio ocorreu na Câmara Municipal, destruindo a parte superior do edifício. As obras de reconstrução começaram de imediato, sob a dinâmica orientação de João Soares, no sentido de reformular os Paços do Concelho, abrindo novos espaços ao público e integrando no edifício uma linguagem e obras de artes contemporâneas. Tenho a fortuna de fazer parte da equipa de arquitectos encarregada deste aliciante projecto.
Lisboa que futuro?
Lisboa está assim no bom caminho e espera-se que nas eleições a ocorrer no final do ano a coligação actual seja reeleita.
No entanto, a cidade carrega consigo problemas difíceis de superar, sendo que alguns deles, como a delinquência e a correspondente insegurança dos cidadãos, se tem agravado. Por outro lado, a degradação de uma grande parte dos edifícios, provocada em grande parte pelo congelamento dos alugueis decretado há muito e pela especulação imobiliária que mantem milhares de apartamentos desocupados na expectativa da venda dos prédios para demolição e posterior construção, não cessa de agravar-se, apesar da liberalização dos novos arrendamentos.
Se a degradação das fachadas empobreceu o espaço público, a dificuldade em promover uma eficaz limpeza pública e em manter a um nivel satisfatório os espaços verdes, tem contribuído para a sua deterioração. Finalmente uma publicidade selvagem, justificada pelas autoridades com as receitas que revertem para os cofres do Município, não faz senão agravar a situação. O espaço público urbano, e não só em Lisboa, está efectivamente em crise. Crise também motivada pela proliferação de centros comerciais e de condomínios residenciais fechados, que retiram das ruas e das praças o comércio de qualidade e que consagram o domínio do automóvel individual, remetendo o uso dos transportes públicos para as classes economicamente mais débeis. Como está longe a Lisboa da convivialidade de outros tempos, evocada no ínicio deste trabalho!
No entanto, é-nos vedado cultivar o pessimismo. Esta maravilhosa cidade “triste e alegre” tem um destino a cumprir num mundo que queremos melhor. Lisboa está agora transformada num gigantesco estaleiro de obras, que vão dar um empurrão decisivo para uma cidade mais organizada, mais humana e tão bela como sempre foi.