Izabel Margato
PUC-Rio
A modernidade é a forma através da qual é elevada à consciência plena de si mesma, sob a figura de mito, a realidade moderna por excelência que é a Cidade. Não uma cidade qualquer mas a Metrópole que a revolução industrial faz descolar do seu estatuto e ritmos milenários.
Eduardo Lourenço
Olhar é uma arte, e a cidade quer ser vista com olhos de ver.
João Barrento
Este texto inscreve-se no universo de uma pesquisa[1] que focaliza o conceito de Modernidade, buscando analisar a forma pela qual muitas de suas manifestações tomaram corpo no universo urbano “semiperiférico”, ou “de fronteira”[2], em que se constituiu a cidade de Lisboa na sua relação com a Europa.
Elegendo como fonte primordial textos literários que tematizam a cidade de Lisboa em sua relação tensa com o universo da Modernidade, procuramos recortar diferentes representações literárias de Lisboa, construídas a partir do que se convencionou chamar Cidade Moderna, e analisar como alguns escritores portugueses viveram essa questão e a expressaram na leitura/escrita da cidade.
Intrinsecamente ligado à Modernidade, o universo urbano passa por transformações profundas e diversificadas que lhe alteram o perfil e a própria vida de seus habitantes: experiências e sonhos, necessidades e temores. Tudo ambiguamente novo. Tudo em permanente mudança, a alterar não apenas o cenário, mas a própria construção do imaginário da cidade.
Espaço ambíguo e contraditório, freqüentemente associado ao inferno e ao paraíso, a cidade moderna, no entanto, não deixa de se constituir, como diz Schorske, em uma “paisagem inevitável”[3], em um
teatro de um heroísmo anônimo desconhecido das épocas passadas: é a Cidade do gás, do carvão, do vapor, com seus ergástulos-fábricas e seus gladiadores-proletários, que a si mesmo se parece como ambíguo inferno e não menos equívoco paraíso entreaberto à sombra (já então) do haxixe e do ópio.[4]
Com o gás, o carvão, o vapor, as fábricas e a multidão, a cidade moderna fecha suas portas ao universo simbólico da velha noite romântica, tão sintonizada com a harmonia e com a paz da natureza.
O homem urbano, marcado por uma “consciência positiva de uma realidade histórica nova”, vai conhecer depressa a dupla face das transformações capitalistas. Baudelaire talvez tenha sido um dos primeiros a intuir a ambigüidade da cidade moderna ao perceber que “o solo sobre o qual [ela] desponta é uma espécie de lodo infame que a alquimia dolorosa do poeta deve transfigurar em ouro”[5]. Com essa percepção, aliada à esgrima necessária à construção das imagens, Baudelaire deu forma nova à nova realidade que o capitalismo burguês instituiu. Ao inserir a sua “palavra poética na textura da cidade”, confundiu-se com ela e, nessa união, leu e mapeou a Cidade Moderna. Traçou o seu paradigma.
Esse novo espaço urbano exige uma outra forma de percepção (um novo olhar) e também uma forma nova para a sua representação. O paradigma de modernidade traçado por Baudelaire — onde ficaram inscritos os objetos e as cores com que se deveria “pintar” o presente — ajudou a compor um universo onde os valores estéticos de “distanciamento” e “unicidade” perderam, nas Artes, o antigo lugar hegemônico. O “transitório”, o “fugidio” e o “contingente”, colhidos nas ruas da cidade e insolitamente aliados ao “eterno” e ao “imutável”, substituíam os objetos auráticos do passado.
Confrontado com esse novo mundo — heterogêneo e contraditório —, o homem moderno, por sua vez, transforma-se em um desconhecido cujo “destino social, num mundo que perdeu a aura e com ela a tradição, é mover-se na multidão, átomo desmemoriado abrindo seu caminho no meio de outros átomos”[6].
Essa realidade nova — pintada com cores vivas e traços rápidos por Baudelaire — ganha corpo de cidade moderna (o de Paris, por excelência) e vai atingir o corpo de outras cidades. Lisboa é uma delas.
A partir da matriz francesa, outras cidades foram lidas ou iluminadas por essa espécie de luz reflexa que Paris passou a destilar. Autores portugueses do século XIX e XX — nomeadamente Eça de Queirós, Cesário Verde, Sá-Carneiro e, de certa forma, Almada Negreiros — caminharam muitas vezes por Lisboa sob a orientação de mapas parisienses ou ingleses. É pensando em outros mundos que Cesário inicia a sua longa caminhada pelo O Sentimento dum Ocidental:
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se de uma cor monótona e londrina.
Batem os carros d’aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo![7]
E é com melancolia, ainda mais aguda do que a de Cesário, que Eça descreve o Largo do Loreto:
que àquela hora, num fim de tarde serena, concentrava a vida da cidade. Tipóias vazias rodavam devagar; pares de senhoras passavam, de cuia cheia e tacão alto, com os movimentos derreados, a palidez clorótica duma degeneração de raça; nalguma magra pileca, ia trotando algum moço de nome histórico, com a face ainda esverdeada da noitada de vinho; pelos bancos da praça gente estirava-se num torpor de vadiagem; um carro de bois, aos solavancos sobre as suas altas rodas, era como um símbolo de agriculturas atrasadas de séculos; fadistas gingavam, de cigarro nos dentes; algum burguês enfastiado lia nos cartazes o anúncio de operetas obsoletas; nas faces enfezadas de operários havia como a personificação de indústrias moribundas… E todo esse mundo decrépito se movia lentamente, sob um céu lustroso de clima rico, entre garotos apregoando a loteria e a batota pública, e rapazitos de voz plangente oferecendo o Jornal das Pequenas Novidades […][8]
Aqui ou ali, nesta ou naquela página com que cada um escreveu a cidade, é sentida ou “ressentida” a ausência de signos que constituem o esplendor da chamada “vida civilizada” — tão contraditória quanto parisiense —, vivida em Lisboa como uma ausência incurável, como uma falta apenas suportável em cidades sabidamente periféricas. Mas não é este o caso de Lisboa. Sua posição no contexto da moderna Europa é, antes, a de um “estar entre”, é a de ocupação de um entrelugar, um estado limite entre centro e periferia — “o estar na fronteira”.
Almada Negreiros soube intuir esse lugar delicado na modernidade de seus versos:
Le Portugal se trouve là-bas, dans un en-
droit du Sud-Ouest de l’Europe le plus
éloigné de Paris.
Le Portugal est le dernier coeur Européen
avant la Mer.[9]
Ao colocar Portugal no sudoeste da Europa, o mais afastado de Paris, o poeta retoma o mito Paris, mas para demarcar Portugal na diferença de um outro signo, porque, para ele, não está mais em questão a difícil comparação de Portugal com a Europa Moderna. O que importa agora é olhar (com olhos novos e muito bem situados no tempo) Portugal numa espécie de margem que faz dele o “último coração Europeu / diante do mar”. Por ser dono de um olhar sintonizado com o seu tempo, Almada pôde também imprimir nesses versos uma releitura do famoso verso camoniano: “Onde a terra se acaba e o mar começa.”
Esse escritor português também “transfigurou em ouro” o que lhe poderia parecer soturno ou, como diria Eça de Queirós, de humilhante “pachorrice”. Também soube inventar o olhar novo para ver de perto uma cidade que, olhando bem, poderia ser uma paisagem possível.
Nous avons notre Soleil National Portu-
gais qui fait grandir les pastèques et qui
rend les femmes belles comme des pommes et
les hommes dûrs come des mâts.
[…]
Nous avons aussi des vendeuses de poisson
qui vont dans les rues comme les bateaux
sur Mer.
— Elles ont le goût du sel. Dans leurs pan-
niers elles portent la Mer.
Elles se marient avec les pêcheurs qui ont
des têtes d’Océan et pantalons bleu-marin.
(Au bout d’une dixaine d’années cela fait une
dixaine de petits matelots tout neufs!)
Le dimanche on va déjeuner sur l’herbe
pour voir notre Soleil National Portu-
gais faire grandir les pastèques au tour de pe-
tites maisons blanchies où l’on fait encore des
Portugais. Les femmes du Portugal sont les
seules qui sachent faire des Portugais! [10]
Esta paisagem, olhando bem, é mais do que possível. É portuguesa. Aqui o Sol, como o de Cesário de “Um Bairro Moderno”, é um “intenso colorista” que faz crescer melancias e torna as mulheres belas como maçãs. Não temos nesta paisagem a menor lembrança daquele sol que, nas farpas do Eça, amolecia os portugueses e os quebrantava. As varinas, os cavalos, o Tejo, o “Sol Português”, vistos agora pelo olhar de Almada, vão compor um novo repertório de imagens emblemáticas de Portugal. Muitas fazem lembrar O livro de Cesário Verde, mas há agora uma positividade, um sabor a paraíso que as distancia de um certo tom crepuscular, tão presente no universo urbano de Cesário.
Almada escreve este poema-história em Paris, mas é de Lisboa que ele fala, porque soube conjugar dois paradigmas aparentemente opostos: o da grande Metrópole Moderna com o da cidade semiperiférica para poder “reconhecer a riqueza e as virtualidades que se escondem sob essa suposta negatividade. A riqueza está, acima de tudo, na disponibilidade multicultural da zona fronteiriça”[11].
Por ter a consciência de ser um habitante de fronteira, Almada pôde escrever a sua Histoire du Portugal par Coeur em francês. No entanto, a sua explicação para essa “insólita escolha” desmente qualquer interpretação de uma possível subalternidade provinciana:
A HISTOIRE DU PORTUGAL PAR COEUR foi escripta para ser espalhada por todas as partes, depois de julgada por todos os Portugueses.
Está em francez, porque foi assim que ensinei aos extrangeiros a Raça onde nasci.[12]
Entretanto, esse olhar de Almada parece não ser comum aos seus colegas de Orpheu. Se para Sá-Carneiro, fascinado por Paris, a Cidade Moderna ainda é um mito difícil, senão de impossível solução: “Paris, então. Ah! uma glória — outra glória — outra maravilha”[13]; para Fernando Pessoa, a questão do cosmopolitismo / provincianismo é objeto de uma particularíssima reflexão:
Recordo-me de que uma vez, nos tempos do Orpheu, disse a Mário de Sá-Carneiro: “V. é europeu e civilizado, salvo em uma coisa, e nessa V. é vítima da educação portuguesa. V. admira Paris, admira as grandes cidades. Se V. tivesse sido educado no estrangeiro, e sob o influxo de uma grande cultura européia, como eu, não daria pelas grandes cidades. Estavam todas dentro de si”[14].
Como interpretar esse “não dar pelas cidade”? Como ler essa des-leitura que o poeta faz do mito Cidade Moderna — a Grande Metrópole em cuja fronteira, como “último coração europeu/virado para o mar”, se situa Lisboa? A hipótese de interpretação talvez possa ser dada por um “outro” de Pessoa, mais precisamente, por Bernardo Soares:
A minha consciência da cidade é, por dentro, a minha consciência de mim.[15]
Dotados de olhares individualizados, esses poetas, escolhidos como representantes de um momento especialmente demarcado no percurso da Modernidade, cada um a seu modo, nos ensinam que o conceito de cidade é um espaço movente e heterogêneo, onde tempos e lugares se misturam em cruzamento de signos. Marcados com o signo da Vanguarda, inaugurada pelo movimento de Orpheu, Pessoa, Sá-Carneiro e Almada vão trabalhar esse grande e complexo teatro em que se transformou a cidade de Lisboa, atendendo aos princípios estéticos do momento histórico que representam, cuja autonomia, ao modificar o conceito de obra de arte, também dessacralizou o imaginário urbano que o universo burguês instituiu.
No espaço da contemporaneidade, a cidade assumiu outras feições, mas, do mesmo modo que em momentos anteriores, ela é a grande questão da Modernidade. A maneira de colocar a questão é que substancialmente é outra. A questão que a contemporaneidade propõe aos estudos sobre a cidade diz respeito, principalmente, à sua (in)visibilidade. Não se trata mais de discutir o espaço urbano como inferno ou como utopia, nem tampouco estaria em pauta a peculiar posição de Lisboa no contexto da modernidade européia. Essas questões parecem hoje esgotadas, não estão na ordem do dia. Na ordem do dia está a Lisboa contemporânea que José Cardoso Pires dá a ver ao longo de sua obra.
Dono de uma escrita particular sobre Lisboa — e de um “particularíssimo tom”[16]—, esse cronista da cidade procede a uma recuperação imagística, partindo de uma cuidadosa recolha de signos que pertencem ao imaginário da cidade, para “atualizá-los em segredo”[17], numa construção dramatizada própria do universo simbólico que compõe a sua narrativa. Aqui a cidade não aparece como um “pano de fundo” pouco significativo que suporta o desenvolvimento de um enredo, nem tampouco como um recorte difuso capaz de acolher os traços comuns de uma qualquer cidade. Não, a Lisboa recolhida, “soletrada” e recriada por Cardoso Pires tem fisionomia própria; é particular e fundamental para a economia significativa de seus textos; faz parte da intriga ou dos segredos com que o escritor enreda os seus personagens (em muitos casos, chegando a funcionar como uma espécie de eixo irradiador de sentidos), numa simbiose em que o corpo vai tomando sentido, vai fazendo sentido num espaço urbano hipersemiotizado. É o que Maria Alzira Seixo denominou de “recriação discursiva da cidade como entidade matriz da organização romanesca”[18].
No seu recente livro Lisboa, Livro de Bordo — Vozes, Olhares, Memorações há a encenação dos vários encontros do escritor com a cidade em recortes de paisagem “com um rio em fundo num azul de entontecer”… É que a sua Lisboa possui uma “geometria esquiva, colinas, requebros, ondulações [… ] um corpo para soletrar sem pressas”. E,
uma cidade de caprichos como esta nunca o sol a pode iluminar por igual. Tem de se lhe afeiçoar aos contornos e aos instintos desordenados, à sua placidez aqui, ao burburinho dos bairros velhos acolá, e é com esses desvelos que ele lhe dá cor singular.[19]
Por habitar assim a sua cidade é que o autor rejeita o visual imediato capaz de enganar o turista desavisado e também as declarações apressadas que escamoteiam o “espírito do lugar” — como a de John Dos Passos para quem Lisboa se confunde com “uma nostalgia adormecida” ; a de Saint-Exupéry, que vê a cidade como “um paraíso claro e triste” ou, ainda, a de Alain Tanner,
Cineasta civilizado, [que] não esteve com mais aquelas e chamou a isto Cidade Branca
Cidade Branca, que cegueira a deste Tanner lumière. É cor, o branco do filme dele ou é metáfora? Interroga as impetuosidades duma luz que no mesmo lugar, no mesmo instante e na mesma cor nunca se repete ? Pergunto.[20]
Cardoso Pires recusa essas imagens (como também rejeita aquelas produzidas por tantos outros “patriarcas da boa escrita a sublinharem-na com outros desabafos a despachar no mesmo tom”[21]) porque busca uma Lisboa de encontros, uma Lisboa genuína, que nasce de uma convivência praticada em cumplicidade, uma vez que
sem a cumplicidade com a imagem, com os saberes, os gostos e os defeitos dum mundo tão privado como o teu ninguém aprende a vivê-lo.[22]
Sem a cumplicidade ninguém aprende a viver um mundo privado, ninguém consegue habitar a sua dimensão erótica.
Para Barthes, o erotismo da cidade não vem à tona nos bairros reservados a esse tipo de prazeres, mas nasce “como um ensinamento” revelado na “natureza infinitamente metafórica do discurso urbano”[23]. Habitar (ou conhecer) a dimensão erótica do discurso urbano é perceber a linguagem da cidade que se revela quase sempre “no centro, no lugar do encontro com o outro, o ponto de reunião de toda a cidade”.
Cardoso Pires em Lisboa, Livro de Bordo traça um mapeamento da cidade, demarcando-a com muitos centros. São uma espécie de “portos locais” onde a dimensão erótica da cidade mais se evidencia: são os bares, os jardins povoados de velhos que “aparecem como gatos quando há sol, mas em bandos”, são os largos habitados por poetas de todos os tempos; é a rua Garrett, o Jardim da Estrela e o Alto de Santa Catarina. Mas, principalmente, é o Chiado, Vila Berta e, ainda, “a voz e o humor, o tom e a sintaxe”, os “registos inconfundíveis do espírito do lugar”. Em cada um desses portos o que se percebe é uma ancoragem pessoalíssima, onde os habituais freqüentadores já vêm misturados a uma espécie de figurantes ou habitantes marginais fidelíssimos à paisagem. São eles: as dinastias de gatos de telhado, canários de janela, pombas maneirinhas, gaivotas e corvos. Corvos, todos eles Vicentes. Figurações ou não, funcionam como marcas do discurso da cidade que nenhuma seta de turismo é capaz de indicar. São recortes de Lisboa, é o levantamento de um enunciado que Cardoso Pires “atualiza em segredo”, para o revelar na escrita de uma vida inteira, para o revelar, em síntese, numa página de abertura. Trata-se da primeira página do livro Lisboa, Livro de Bordo — Vozes, Olhares, Memorações, onde o autor nos dá a ver uma cidade condensada em moldura de homenagem:
Logo a abrir, aparece-me pousada sobre o Tejo como uma cidade de navegar. Não me admiro: sempre que me sinto em alturas de abranger o mundo, no pico de um miradouro ou sentado numa nuvem, vejo-te em cidade-nave, barca com ruas e jardins por dentro, e até a brisa que corre me sabe a sal. Há ondas de mar aberto desenhadas nas tuas calçadas; há âncoras, há sereias. O convés, em praça larga com uma rosa-dos-ventos bordada no empedrado, tem a comandá-lo duas colunas saídas das águas que fazem guarda de honra à partida para os oceanos. Ladeiam a proa ou figuram como tal, é a ideia que dão; um pouco atrás, está um rei-menino montado num cavalo verde a olhar, por entre elas, para o outro lado da Terra e a seus pés vêem-se nomes de navegadores e datas de descobrimentos anotados a basalto no terreiro batido pelo sol. Em frente é o rio que corre para os meridianos do paraíso. O tal Tejo de que falam os cronistas enlouquecidos, povoando-o de tritões a cavalo de golfinhos.[24]
Segundo Ítalo Calvino, há diversas maneiras de falar de uma cidade: uma delas é a descrição. No trecho citado acima, Cardoso Pires fala de Lisboa, mas não seria preciso voltar a lê-lo para percebermos que não se trata de uma descrição. Antes é uma construção da cidade, uma recuperação dos signos que a cidade escamoteia ou, de tanto exibir, esvazia de significados.
Por isso a sua Lisboa é diferente daquelas cidades que, em Paisagens Urbanas, Nelson Brissac Peixoto nos apresenta como cidades que se tornaram “opacas ao olhar”, como cidades que
resistem a quem pretenda explorá-las. Uma simples panorâmica não dá conta de seus relevos, de seus rios subterrâneos, da vida latente em suas fachadas. Tornaram-se uma paisagem invisível.[25]
Lisboa pode, às vezes, ser invisível, mas o último livro de Cardoso Pires dá a ver um enunciado de decifrações de uma paisagem que, na cumplicidade, pode ser contemplada. Consciente das particularidades de seu tempo e sabedor de que além de “uma paisagem invisível” — a cidade “não é um dado, mas obra de citadinos”[26]—, José Cardoso Pires sabe também que a cidade é, antes de tudo, “um livro aberto” sujeito a diferentes leituras, diferentes construções. Também não ignora o seu traço mais forte, brilhantemente intuído por Walter Benjamin em sua visita a Moscou nas “Imagens do Pensamento”: “a cidade grande se defende […] se mascara, foge, faz intrigas, seduz, até confundir à exaustão seus círculos”[27].
Cardoso Pires trabalha a cidade aceitando-a como ela se coloca, isto é, como um jogo de significantes que se organiza na combinação de signos; como uma obra que se transforma em texto a cada leitura. E a leitura da cidade, nas palavras de Barthes, nada mais é do que a travessia de uma rede sígnica. Com esse conhecimento o autor se confunde com a cidade. Participa de suas intrigas, seduz e é seduzido porque participa do jogo de máscaras através do qual a cidade se nos revela. Este é o seu modo de leitura, com ele a construção brilhante, o sortilégio da escritura.
Muitos olhares se cruzam nesta leitura de Lisboa que aqui se apresenta. Todos olham a cidade com “olhos de ver”. Todos são olhares “de arte”. É esta a nossa leitura: trabalhar uma cidade inventada por vários olhares, ou melhor, as Lisboas que diferentes “olhares de arte” construíram como um campo de relações; como um horizonte de semelhanças e diferenças a decifrar.
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Notas