Vieira

Profetas, intérpretes e autoridades no processo inquisitorial do padre António Vieira

Luiz Felipe Baêta Neves
UERJ

O trabalho que se segue é uma primeira leitura d’Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, tais como foram apresentados pela professora Adma Muhana[1].

Usando sempre a benemérita edição da prof.ª Muhana, procurei observar algumas linhas-de-força da defesa de Vieira e alguns dos principais vetores da acusação a ele feitos. Privilegiei em especial a questão da interpretação dos textos (e do mundo) e das fontes de autoridade — “externa” e “interna” — que apoiariam as posições em litígio. Procurei, ainda, mostrar a existência de um conjunto de pressuposições comum a ambas as partes e que habitualmente não é visto pela opinião inflamada que costuma alimentar a lenda vieiriana. Os números postos entre parênteses após as citações — salvo exceções apontadas no corpo do trabalho — referem-se às páginas do livro da prof.ª Muhana, e seguem suas regras de transcrição.

O processo de Vieira na Inquisição procura demonstrar os pecados de heresia do jesuíta. Não quaisquer “pecados de heresia” mas, principalmente, aqueles que teriam tido origem na leitura de textos do Bandarra — e que teriam gerado textos e atitudes deploráveis, segundo a ótica inquisitorial. Pode-se, assim, considerar que o processo inquisitorial questiona o caráter cristão daqueles textos e a compatibilidade que teriam com o Texto dos Textos, a Sagrada Escritura.

O que acusação e defesa têm em comum, como objeto de disputa, é a pressuposição de que, pela investigação dos textos referidos, se poderá chegar ao estabelecimento da verdade. A Mesa da Inquisição e Vieira aceitam este território comum — o de que textos devem falar da verdade e podem ser motivo de punição se desta se afastarem — mas não estão de acordo quanto ao real significado dos escritos em questão. Deste modo, se ambas as partes se voltam para as mesmas materialidades, elas têm posições antagônicas quanto ao que efetivamente os textos dizem. O processo inquisitorial se constitui, assim, em uma investigação — em um julgamento — do que há de cristão nos trabalhos focalizados ou, dito de outra maneira, se a interpretação dada ao texto bíblico — e, por conseqüência, a interpretação do mundo terreno — por Bandarra e Vieira é correta ou não.

Na verdade, o processo inquisitorial tem, para os hábitos culturais nossos, de hoje, caráter compósito e que gera certa estranheza. O processo da Inquisição comporta uma acusação — que se quer impor, inclusive pela confissão do acusado — e uma defesa, que busca argumentos para refutar as acusações feitas; o que causa estranhamento e incômodo “formais” é que a acusação é feita por quem julga e a investigação procura corroborar aquilo que “já se sabe” (ou seja, o que a Inquisição estabeleceu antes do julgamento). Convivem o despotismo político e a disputa intelectual; o desequilíbrio de forças e o embate de proposições. Seria um abuso redutor pensar o processo inquisitorial — ou especificamente este de que nos ocupamos — apenas como abjeto exercício de truculência política e institucional ou como elevado torneio analítico. Este processo inquisitorial se dá não apenas graças a razões históricas e culturais “maiores”, mas às articulações (e afastamentos) entre práticas políticas e práticas teóricas “menores”, passíveis de serem observadas mesmo em sua ocorrência quotidiana.

É o caráter estranhamente complexo que permite a possibilidade de compreensão da disputa racional em sua articulação com aquilo que lhe parece “exterior”, isto é, o leque de circunstâncias que se ligam ao exercício analítico sem com ele se confundir. Tal leque compreende de instâncias de consagração intelectual e de validação institucional a instâncias abrangentes do poder político e do econômico.

A controvérsia interpretativa tem como tema privilegiado o discurso profético; Vieira é julgado porque faz profecias a partir de Bandarra, autor de profecias. A Inquisição aponta a natureza herética das proposições de Vieira, que se defende assinalando a especial dificuldade de interpretação de anúncios proféticos:

(…) as quais profecias todas de sua natureza são escuras, e envoltas em metáforas e enigmas de muito dificultosa inteligência, na qual trabalharam os engenhos dos mais doutos homens do mundo em muitos séculos ficando muitas delas sem ser entendidas (p.119).

A natureza escura e a dificuldade de inteligência apresentadas pelo discurso profético têm vantagens para a argumentação do jesuíta. Em primeiro lugar, permitem que a interpretação que ele propõe seja uma dentre outras possíveis; se a questão tratada é complexa, se os próprios “homens mais doutos do mundo” não puderam decifrá-la a contento, se não há possibilidade de verificar suas assertivas no próprio mundo, porque tratam de “coisas e sucessos futuros” (p.119), então o erro interpretativo eventual tem explicações plausíveis e, por certo, não deve merecer acusação ou pena graves. Vieira continua sua defesa:

Provará como no entendimento que ele suplicante dá a muitos lugares dos textos proféticos não só é necessário provar a sua opinião senão também refutar algumas opiniões e explicações antigas por serem de Autores gravíssimos e mostrar como os ditos Autores não alcançaram o verdadeiro sentimento delas e a razão por que o não alcançaram nem puderam alcançar em seus tempos: que é matéria que inclui as maiores dificuldades da Cronologia, e mui exata lição e erudição da História sagrada eclesiástica e profana, e igual conhecimento das opiniões que eram ordinárias em diferentes idades da Igreja e dos Santos Padres, as quais com o tempo se declaram mais, e constou depois não poderem ser verdadeiras, dispondo-a assim a Providência divina para maior glória sua, e da mesma Igreja (p.119).

A extensa citação se justifica porque exemplar a muitos títulos. A interpretação é considerada como tarefa, como esforço de compreensão de um texto que deve ser decifrado. Há uma espécie de combate entre o texto e seu leitor, e árduo combate quando se trata de texto profético. Mas o combate não se dá apenas por aí; trava-se, também, entre autores. É, assim, um embate entre leitores daqueles textos; os autores têm suas interpretações julgadas por critérios públicos, isto é, por critérios que podem ser cotejados e expostos em circunstâncias determinadas — como as de um processo inquisitorial.

A luta entre os decifradores é descrita por Vieira como uma luta em busca da verdade, uma luta racional para estabelecer o “verdadeiro sentido” das profecias. Com o quê, se afirma uma anterioridade, uma prevalência do texto a ser interpretado; ele, efetivamente, viria antes e a demanda que se faz aos autores é que eles re-anunciem o que já está dito. O trabalho do intérprete é o de um detetive — ele descobre algo mais ou menos obscuro que já aconteceu — e o de um saneador — porque afirma que sua versão, sendo a verdadeira, afasta as sombras e os miasmas do erro e da falsidade das demais.

Não parece haver lugar para a polissemia, como não há lugar para múltiplos deuses. O que a defesa de Vieira apresentada ao Santo Ofício propõe é a existência de palavras e coisas unívocas, verdadeiras, como é expressão da Verdade o texto paradigmático da Escritura Sagrada. A tarefa guerreira do intérprete cristão de profecias é a de harmonizar a verdade do Texto Sagrado com as verdades de outros textos e com as verdades do mundo. Todos permitem — pelo menos hipoteticamente, visto que não estão interditados à compreensão humana — acesso correto ao seu âmago, à sua verdade. A interpretação correta mostrará de que maneira Deus, textos e história “concreta” dos homens são intraduzíveis — o erro de tradução de um âmbito contaminará o entendimento dos demais. O papel do intérprete é, pois, decisivo. Para se compreender Céu e Terra é preciso estar corretamente armado — pelas armas cristãs da graça e da inteligência que farão encontrar o sentido.

O estabelecimento do correto sentido, do sentido que re-encontra a verdade, se dá em um fluxo histórico; o saber não é descrito como algo súbito, repentino, feito por uma iluminação de origem divina. É certo que tal intervenção do Sagrado não está afastada de forma absoluta; apenas não é a única possível e pode coexistir com a história humana. Há, mesmo, uma evolução do saber, que não deve ser confundido, pelo menos neste caso, com “saber consagrado” ou saber reconhecido por disciplinas, autores e instituições. O conhecimento da “História sagrada eclesiástica e profana” não é infenso ao conhecimento oriundo da “opinião”, que parece ter uma vida autônoma, sobretudo fluida e oral, em face dos textos.

O reconhecimento de um “campo” histórico autônomo é decisivo para o imaginário vieiriano. Possibilita compreender a singular importância do profético para a vida e a obra (política e de escritor e orador) do jesuíta. A profecia — pelo menos a “boa profecia”, aquela que merece seu nome — é um anúncio, vindo do sagrado, de coisas que acontecerão na sociedade humana. Esta articulação é cara a Vieira porque liga sagrado e profano; mostra que Deus se interessa pelo mundo — dele se ocupa — e conhece sua história, mesmo que esta ainda não tenha acontecido no tempo profano. O papel do intérprete cristão — ou, melhor dizendo, sua tarefa, já que estamos em um imaginário da operosidade — não é o de meramente se alegrar com o interesse divino pelo homem ou se dedicar à decifração de palavras santas. O papel deste cristão é o de conhecer o conhecimento que Deus tem do mundo e fazer coincidir as ações humanas com este conhecimento.

Conhecer não é, assim, visto como tarefa que, ao cumprir-se, esgota seu compromisso cristão. Conhecer é operar para que o futuro previsto efetivamente norteie as atividades terrenas. O futuro — aquelas partes do futuro que foram escolhidas para serem apresentadas à (possível) percepção humana — é uma fonte normativa; deve-se estabelecer uma pauta de condutas que levem a ele. O que nos faz concluir que a história do futuro é, também, a história do presente, que deve se ajustar às determinações de um passado (de uma Gênese) que enuncia o futuro. O presente requer dos cristãos a compatibilização do pretérito e do porvir; a vida — o presente — é um momento de trabalho intelectual / espiritual e prático.

Para a índole política de Vieira, esta tematização do futuro é imprescindível; o político é alguém que se ocupa não somente da realização de tarefas no presente, mas alguém que projeta o futuro e luta por ele. É alguém que procura fazer acontecer. Vieira espera interpretar o sagrado para construir cristãmente o mundo. O mundo não está pronto e os sinais desta incompletude são dados pela própria forma da profecia, que precisa ser traduzida, sem o quê não está completa; não pode agir no destino de Deus na Terra.

O teleologismo vieiriano implica uma apologia da mobilidade. Deve haver uma ocupação do mundo pelo cristianismo. Este não deve considerar fronteiras de quaisquer ordens que impeçam o trabalho de expansão, de integração do que está fora dos limites já conquistados da cristandade. A idéia de “missão” é a que reúne todos os sonhos de estabelecimento da união de todos sob a égide de Deus. O manto sagrado deve ser permanentemente tecido até que tudo recubra; nada lhe deve escapar porque isso seria o sinal da presença do demônio e o fracasso da obra cristã.

A importância do futuro não se limita, entretanto, à suposição de que ele seja sinônimo de ineditismo ou novidade absoluta. A ressurreição (de um monarca, no caso) dos mortos ou a restauração de um império ou instituição são perfeitamente admissíveis. Não representam nenhuma absurda perturbação do tempo; as ordens temporais não são sinônimos de irreversibilidade. Interferem, como vimos, umas com as outras, desconhecendo fronteiras intransponíveis. A idéia de “continuidade” é fundamental para o imaginário vieiriano. A missão é possível porque não há, para a expansão cristã, fronteiras legítimas nem distâncias inalcançáveis, nem povos inconversíveis. O tempo compreende um presente, um passado e um futuro que não são imiscíveis. A terra humana também é contínua; sua constituição física já não apresenta limites finais ou abismos insuperáveis. E Deus prediz a história humana, emite sinais que fiéis decifrarão, intervém no destino do mundo.

A continuidade do saber permite o aparecimento do novo sem que haja ruptura com o passado cristão. Como na passagem em que Vieira diz:

Provará que muitas das ditas matérias, e quase todas são novas e não vulgares, e não tratadas ex-professo pelos Doutores, com que vem a ser precisamente necessário a ele suplicante havê-las de tratar desde seus princípios e abrir novos fundamentos e estabelecer a verdade ou probabilidade deles, todos conforme as Sagradas Escrituras e Santos Padres (…) (p.120; cf. p.134).

Vieira defende suas posições argumentando que elas não significam descontinuidade em relação ao que já está consabido; os argumentos da Inquisição afirmam que o jesuíta — ao ser mau leitor de profetas, ao ser mau profeta — pecou por descontinuidade, pecou por heresia, que é o pecado daqueles que, conhecendo a verdade, dela se afastam. A verdade cristã — para ambas as posições — defende que ela não pode se encerrar; a verdade é a semente de si mesma.

O grave pecado da descontinuidade herética implica a desconsideração de um conhecimento que efetivamente se tem — e deve ser mantido e reproduzido. A heresia é, assim, um pecado do conhecimento; nele não incorrem aqueles que jamais souberam da existência de Deus. O herege, ao romper com o saber, rompe com Deus e passa a ser considerado como “culpado”. Vieira replica:

em proferir, ou escrever as ditas proposições não tivera culpa, nem má tenção alguma, tornando a declarar de novo, que isto não era a fim de defender, ou querer defender as ditas proposições, senão somente para mostrar a ocasião, que tivera de se enganar, como conhecia, e confessava haver-se enganado (p.143).

A afirmação da diferença entre “erro” e “culpa” é a asserção da existência de uma possibilidade legítima de não se seguir a norma cristã. Ou, dito de outro modo, o fato de se conhecer a Verdade não acarreta produção absoluta de conhecimentos verdadeiros por parte dos cristãos. Com o que se afirma que é legítimo tentar expandir o conhecimento de forma mais ou menos ousada e que se pode (deve?) correr riscos em nome de um Saber. Da mesma forma que se pode (deve) arriscar e ousar na obra missionária de evangelização dos povos. Os territórios do saber e da expansão “geográfica” da palavra divina têm analogias em sua paixão pela tradição que se revigora com a incorporação do novo. O erro é, então, alguma coisa “menor” que não deve merecer as sanções que puniriam o pecado; Vieira renega as proposições julgadas heréticas pela Mesa, confessando que errou. Possivelmente, contudo, terá tido, na discussão deste ponto, uma vitória maior, que seria a de impor a idéia de uma possibilidade de errar — a idéia de um erro cristão que não implique uma tenção ruim e culpa de consciência.

O estilo argumentativo da mesa inquisitorial é essencialmente afirmativo, “proposicional”; zela pela tradição ao falar em seu (dela) nome e ao asseverar e re-asseverar sua vigência. O estilo de Vieira é também afirmativo, mas com uma discrepância grave em relação àquele dos inquisidores: afirma a existência de um universo de “proposições interrogativas”, em que o caráter de certeza das proposições, da tradição, se alia à indagação de novas respostas. O “interrogativo” afirma, então, a existência de questões indelimitadas, de problemas de conhecimento que não estão resolvidos. Há uma movência do saber que torna difícil reconhecer as fronteiras do sagrado e do herético e, se me for perdoado o cronocentrismo, parece — tal indeterminação de fronteiras — prenunciar uma necessidade de autonomização do saber dentro do cristianismo, daquele cristianismo.

A discrepância apontada não nos deve fazer esquecer de um “acordo prévio” entre os litigantes. Este acordo é relativo a um “universo pressuposicional” que os enquadra criando um código comum para a disputa. Os elementos deste universo são múltiplos e de variada extração; eles formam o elenco de questões indiscutíveis que permitem a discussão. A existência de Deus, a Igreja — única, católica — e seus sacerdotes, a pertinência da Inquisição, a vida eterna, estabelecem uma relação que deve ser criteriosamente estabelecida e minuciosamente precisada para que se dificulte a ingênua e tosca imagem de uma cena inquisitorial ocupada por dois personagens que se digladiariam sem nada ter em comum.

É evidente que ao se falar em território comum não se está elidindo o caráter de desequilíbrio de poder (para não falar em outros) que marca o processo inquisitorial nem, tampouco, se está a irrevelar as formas específicas de articulação de poder / saber / instituição que constituem o mesmo processo. A cena vincada pelo desequilíbrio e pela disputa do processo inquisitorial — e toda a significação cultural que a envolvia — revela um singular contraste com a noção de interpretação que põe em jogo. Observemos este trecho de Vieira:

tendo para si que o sentido que dava às ditas proposições era a própria e natural significação que tinham; e que quem as qualificara e censurara em diferente sentido ficara qualificando outras proposições e não as suas (p.134).

Penso em todo o aparato da Inquisição, em sua capacidade de atingir os mais variados âmbitos da vida das pessoas e dos povos, em todos os rituais precisos que continha, em toda a gravidade de que se imbuía, em todo o (ao menos suposto) requinte intelectual de seus tribunais — penso, dizia, em tudo isso e no trecho citado. Ele afirma a simplicidade, a irrelevância do trabalho interpretativo, causa de tanta celeuma. Vieira afirma que o sentido que deu às proposições proféticas em questão nada mais era do que aquilo que elas eram. Ou seja, Vieira nada teria feito. Ou, no máximo, suas proposições seriam as proposições de que se ocupara, escritas de modo diferente sem que nada ocorresse quanto ao que estas de fato asseveravam.

A simplicidade — mesmo a negação — da intervenção interpretativa de Vieira tem correlato no estatuto que atribui ao texto em que se baseara. Este apresentava proposições “naturais e próprias”; continham “a si” e às interpretações possíveis, que não devem ser mais do que uma transcrição — ou um eco — que re-apresentem a verdade que já fora proferida. Vieira imagina, então, que nada inventara, nada acrescentara, nada complicara, nada deturpara; sua singela intervenção — se é que houve alguma — manteve a “natureza” íntegra e a “propriedade” singular daquilo que lera e repercutira.

O tribunal da Inquisição é, pois, um elevado instrumento do Supremo que estaria a se ocupar de pouco ou nada. Se aceita a posição vieiriana que acabamos de ressaltar, tal tribunal incorre em um despropósito: na verdade, ele nada teria a julgar, visto que Vieira apenas reproduzira o que a Inquisição e a Igreja defendem, que é a Letra de Deus. Assim,

Perguntado de que Autores e livros se aproveitou ele declarante mais principalmente para a composição dos ditos livros. Disse que mais principalmente se aproveita da Sagrada Escritura, que é o seu livro mais particular, procurando entendê-la quanto lhe é possível, conforme o verdadeiro, e radical sentido pretendido pelo Espírito Santo, e para que isso se aproveitava dos expositores que tem por mais sólidos (p.57).

Descreve-se um esforço humano — que surge aqui como esforço pessoal para encontrar no texto não uma “coisa outra”, mas o que já está lá, sendo o texto mesmo. O sentido está de tal modo no texto que está, nele, enraizado. O radical sentido da Sagrada Escritura é sua verdade, única e íntegra que devemos encontrar. A fé cristã é, deste modo, operosa; implica superar enigmas textuais para que se tenha acesso ao Grande Escritor que é o Senhor.

A Sagrada Escritura admite — ou, mesmo, requer — outras escrituras, frutos daquela mesma raiz. Há, então, uma linhagem de Autores que seriam aqueles que teriam compreendido corretamente os desígnios do Espírito Santo, tal como expressos na Bíblia. Esta não se distingue de seu Autor, mas é d’Ele expressão, do mesmo modo que os Autores cristãos profanos expõem, com maior ou menor sabedoria, aquilo que corretamente leram.

A interpretação não permite dissociar ética e razão. Não unicamente porque “oferecer para outrem” um texto sagrado é propagá-lo, é expô-lo mais e mais para que lugares obscuros recebam a luz, mas também porque esta finalidade de revelação tem que ser compatível com sua origem divina. A interpretação é o estabelecimento do sentido correto que unirá o princípio e o fim, assim como é a possibilidade que se tem de reconhecer no mundo aquilo que Deus já escrevera. Os textos heréticos — as interpretações más da letra e do mundo de Deus — não são, conseqüentemente, meras perversões do conhecimento, sem maiores efeitos para a vida na terra ou no céu. Os textos heréticos são inimigos da vida — onde quer que ela se dê — porque impedem que se construa uma ação cristã que depende, para se desenvolver, de rumos bem definidos, e de bússolas capazes para se edificar, a cada instante, o caminho do Bem.

A defesa de Vieira no processo inquisitorial que lhe é movido procura diferentes meios para demonstrar sua inocência ou, pelo menos, para demonstrar que, se errou, não teve culpa, não teve “má tenção”. Um dos meios principais para atingir os objetivos da defesa é o de estabelecer por meio de um novo texto de Vieira — afirmado como douto, longo, denso, irretorquível — o que outros textos e ditos vieirianos efetivamente teriam enunciado. Com o que se pode perceber que, entre Autor e texto, a relação é transparente; o Autor sabe exatamente o que seu texto quis dizer, sua interpretação re-encontrará seu texto-‘pai’ e irá expô-lo mais aprofundadamente. Concomitantemente, o Autor poderá ver reconhecida a inteireza de suas intenções, tais como sua voz e sua letra tinham — já por uma vez — evidenciado. A enredada história desse texto definitivo e restaurador mereceria um livro (outro texto) à parte, tal a soma de peripécias por que passa.

O ataque ao profetismo de Vieira põe em jogo não somente a figura do jesuíta e de seus escritos. Envolve outros livros, outros Autores, além de “opiniões”, pessoas famosas, instituições etc. A defesa de Vieira procura manifestar que ele não está isolado, que o que escreveu, disse (diz) e pensou (pensa) não foi fruto de um desatino pessoal nem pode ser visto como exemplo de exterioridade, antagonismo, alteridade à Igreja. Vejamos:

os motivos que teve para ter por provável este terceiro estado consumado do dito império na terra, foram a autoridade de muitos Doutores católicos antigos e modernos, que assim o prometem, e esperam, revelações de muitos santos, recebidas comumente, e sobretudo alguns lugares da Escritura, em que os sobreditos doutores se fundam (p.158).

Vieira postula a sua inclusão na lista de Autores respeitáveis ou, pelo menos, passíveis de consideração. O que só pode ser obtido se estiver ele incluído na cristandade; a busca de interioridade no Reino de Deus é decisiva para que seja re-conhecido. Sua busca de pertencimento — ou melhor, da aceitação desse pertencimento pela Inquisição — se vitoriosa, quebrará definitivamente o rigor acusatório da Mesa, que ficaria, então, diante de não mais que um “erro cristão”.

O pertencimento requerido poderia ser visto pela inserção do nome de António Vieira em uma linhagem que começa nas Sagradas Escrituras, passa por santos, por Doutores e que chegaria até ele. Esta genealogia do pertencimento cristão não discrimina sagrado e saber; há que pertencer aos dois para atingir a excelência. Tal genealogia é um elogio do tempo, da duração temporal, que tem na extensão e na continuidade qualidades essenciais. O elogio da duração temporal admite o aparecimento de “novidades”, como vimos. Dirimindo dúvidas, interpretando melhor ou mais claramente a tradição, re-apresentando de modo diferente a Escritura, há um movimento no saber. A gravíssima questão para a ortodoxia religiosa é a da observação das fronteiras, que não devem ser violadas por “novidades” disparatadas. É possível que a palavra “modernos”, no texto citado — em “autores modernos” —, seja estimulante para a compreensão desta imprecisa noção de “novidade”.

“Moderno”, para Vieira, parece designar o que não tem a “pátina do tempo”, o que não tem a solenidade do remoto, o que não se reveste da gravidade da ancestralidade, o que não tem o valor simbólico da proximidade (ou, mesmo, da inserção) à “fundação” da cristandade, que a palavra “antiga” alcança. O moderno parece dever ser considerado desde que não represente distância ou antagonismo face à tradição ou ruptura quanto ao sagrado. Os termos “antigo” e “moderno” são expressão da relevância da marcação temporal mas são muito genéricos; são cronologicamente imprecisos. Talvez porque não se enquadrem apenas pela cronologia, são sinônimos de autoridade, pertencimento específico, consagração.

A imprecisão, na defesa vieiriana, ocupa lugar relevante. Fala de “revelações” recebidas comumente; de “opinião geral”; de fatos “consabidos”; menciona Doutores sem arrolar seus nomes; invoca as Sagradas Escrituras sem apontar as passagens que viriam em seu (da defesa) socorro. Parece — intencionalmente? — querer inverter a posição da Mesa inquisitorial; é ela que merece ser acusada de ignorância; de desconhecimento do saber e de sua formas de repercussão social; de má-fé por querer “singularizar” o acusado sabendo ela que este apenas repete o saber sagrado e a opinião comum dos cristãos. A tática da imprecisão, apesar dos evidentes riscos que acarreta, pode levar o adversário, que a aceita como campo de disputa, além de se sentir acusado, a ter de responder a questões gigantescas e legitimadas. Nesse “jogo do óbvio” proposto pela argumentação do jesuíta, a própria memória do acusado tem papel protagonista: “(…) seguindo o parecer de muitos Doutores de que em especial agora não é lembrado, entende ele declarante, que (…)” (p.152).

A alegação de “falta de memória” é, em muitos momentos, reiterada pelo padre Vieira; as fontes da verdade a que recorrem continuam válidas para ele. E, claro, devem continuar válidas para a Mesa, tal a obviedade de que se revestem as fontes e seus ditos. A memória é alguma coisa irrelevante e transitória — pelo menos naquele momento e em relação a assuntos que dela não dependem. É importante lembrar que Vieira também associa a “falta de memória” às circunstâncias em que vive naquele momento e, em especial, à impossibilidade, a que está reduzido, de acesso aos Autores que admira ou cita por determinação da Inquisição (exceção feita de uma ou outra obra, como a Bíblia e o Breviário).

A memória, assim, não é faculdade unicamente “pessoal”, mas é afetada pela situação histórica em que se encontra. É evidente que, se tivesse acesso a uma boa biblioteca (livraria), Vieira tudo poderia corretamente sustentar; como seus juízes impedem tal acesso, não podem exigir do jesuíta uma comprovação escrita daquilo que afirma. Situação clara em:

Perguntado que fundamentos são os que ele declarante tem para propor no dito livro (…). Disse que alguns fundamentos tinha de que agora em especial, não é lembrado, mas que deles poderá constar quando ele declarante fizer o dito livro (p.93).

O livro — o dito livro que Vieira estaria a escrever para fundamentar suas razões e rebater as incriminações da Inquisição — aparece como objeto “poderoso em si mesmo”. Há uma confiança atribuída às razões cristãs a serem apresentadas em forma de livro, suposto de materialidade mais completa, séria, complexa do que outros modos de exposição, escrita ou oral. Por este livro, Vieira clama; quer ter condições para escrevê-lo porque a ele confere o poder de testemunho, de prova de sua inocência. Surge, no imaginário de Vieira, como autoridade não apenas por ser o que é, um livro, mas por ser o resultado da leitura de outros livros (sagrados ou não) e, ainda, lugar de “re-afirmação” de uma “oralidade” que Vieira tanto afirma prezar: a da “opinião geral”.

Poder-se-ia dizer que, ao lado de uma argumentação interna ao saber, interpretativa e “teológica”, constitui-se uma argumentação externa. Esta última se ocupa das contingências em que se dá a defesa naquele processo inquisitorial. A defesa — beneficiada ou não por intervenções divinas — não é da ordem da revelação ou da graça do Senhor; a defesa é uma obra de cristãos que se desenvolve em um plano humano e terreno.

A argumentação externa da defesa — notadamente no que se refere ao livro alegado — aponta para carências sofridas por Vieira, para restrições materiais que lhe são impostas, para dificuldades atinentes ao próprio corpo do jesuíta, maltratado por desconfortos e doenças. O conjunto de elementos que integram tal nível de argumentação, ao apontar e insistir na debilidade do acusado, acaba por fortalecê-lo: o centro do problema (propõe Vieira veladamente) não é o que a Inquisição sustenta mas, sim, a impossibilidade material, injustamente imposta, de contra-argumentar.

A alegada dificuldade em escrever sua principal peça de defesa oferece outra vantagem ao jesuíta incriminado: como não é apresentada, essa “argumentação máxima” não pode ser avaliada. Não se sabe se a fundamentação é boa ou ruim, talvez simplesmente porque seu Autor, simplesmente, não esteja em condições “práticas” de produzi-la. E como é possível que a fundamentação exista — ou seja, “boa” —, a Mesa fica na incômoda posição de poder ser facilmente acusada de impedir o exercício de defesa e, assim, malbaratar a justiça. A situação ficaria ainda pior justamente neste último caso — o de uma defesa fundamentada — porque a Inquisição teria estado a impedir, ou a prejulgar, a demonstração da palavra divina que Vieira apresentaria.

Vieira afirma querer escrever um livro, quando o que de fato pode fazer, naquele momento, é produzir um texto que não teria a materialidade de um livro. O que reforça a idéia de sobrevalorar o que diz estar escrevendo e indica o prestígio da palavra “livro”. É preciso que não nos esqueçamos, por outro lado, de que Vieira não só não pretende escrever um texto qualquer, como não tenciona escrever um livro qualquer. Afinal, tal livro poderia ter o peso de sua própria vida e não seria lido, na ocasião, por pessoas incultas nem tampouco por amigos ou colegas. Vieira afirma querer ser lido por juízes, integrantes de um tribunal temido, e que fazem parte da mesma “comunidade interpretativa” que ele. Seu livro seria lido por seus pares intelectuais / sacerdotes em uma situação de julgamento (de desequilíbrio) pessoal / moral / religioso / intelectual. Aqui, a Mesa da Inquisição é a reunião de “árbitros dos códigos” — códigos partilhados por todos os envolvidos, sem o quê o processo, tal como se constituía, sequer poderia existir. Os cuidados com a “argumentação externa” são amplamente compreensíveis, dada a difícil contingência da apreciação pela qual deve passar a “argumentação interna” a ser lavrada por Vieira.

A existência de uma “comunidade interpretativa” não deve ser confundida — por nós, anacronicamente — com uma hegemonia absoluta do que hoje chamamos de “razão” nem, tampouco, com um “saber cristão” que seria composto apenas do que reconhecemos atualmente como sua ortodoxia ou tradição. A comunidade interpretativa é, pelo contrário, formada por pessoas que reconhecem como legítimas — e podem ter meios para tornar legítimas — instâncias de consagração compósitas — e, mesmo, inusitadas ou paradoxalmente compósitas — a nossos olhos.

Falando na missão atribuída a Portugal por profetismos seiscentistas, Hernâni Cidade dá excelente exemplo dessa variegada população de “autoridades de legitimação” em seu P. Antônio Vieira — Defesa perante o tribunal do Santo Ofício[2]:

Vieira radica esta fé na literatura autonomista que o nacionalismo exacerbado gerara sob o domínio filipino, principalmente a historiografia alcobacense, que dera todo relevo às promessas a Afonso Henriques, na aparição de Ourique. Às profecias de Bandarra, juntavam-se, entre outras, nacionais, a do Beato Amadeu e de S. Fr. Gil de Santarém; mas não faltavam profetas estrangeiros a fortalecer-lhe a convicção sobre a futura realidade do Quinto Império: Santo Isidoro de Sevilha, Santa Brígida, Santo Ângelo Carmelita, Mártir, Fr. Bartolomeu de Salúcio e ainda astrólogos e visionários, ou fantasistas como Tycho-Brahe, Kepler, Justo Lipsio, Jerônimo Vechietto, de todos os quais recolhe dados que, em sua pureza ou acrescidos do sentido que lhes empresta, adapta como esteios à sua atrevida arquitetura ideológica.

Há todo um trabalho, fascinante, a ser feito quanto a cada um dos Autores mencionados, quer quanto ao que Vieira poderia ter tomado de empréstimo a cada um (e a cada uma das correntes de pensamento que integrariam), quer quanto ao simples resgate de Autores e livros que se ofuscam no esquecimento a que muitos deles estão relegados. De todo modo, fica patente que o caráter (para nós) diversificado ao extremo não impede que o imaginário cristão vieriano tudo reúna. O que parece acontecer é que, não havendo notória reputação de “malignidade”, qualquer Autor pode ser lido e pode ser aproveitado. O que não é, necessariamente, demonstração de fraqueza intelectual ou institucional do saber cristão; pode ser compreendido como índice de poder, de um poder tão forte que tudo pode examinar e assimilar — mantida a ressalva feita acima — sem que se perca a integridade do poder / saber sagrado. Que atua por força centrípeta, agregando ao Centro tudo aquilo que pôde ser filtrado e reelaborado (ou apenas “somado”). A origem empalidece diante do resultado e dos fins a que se destinam. Lembra Hernâni Cidade:

Estava em voga a cabala, perante cuja interpretação alegórica da Bíblia, a vida de Cristo era tomada como uma alegoria da história futura da sua Igreja (idem, XVIII).

A decifração do mundo é a chave para a afirmação e a ampliação do universo cristão por uma “mística dos números”, para usar uma expressão do mesmo Hernâni Cidade. Mística que faz a apologia do medir e do pesar como conhecimento e comprovação das coisas do mundo e que, mais do que isto, busca traduzir os símbolos bíblicos pelas chaves que os números propiciariam.

Tudo está contido na Bíblia e no mundo; tudo que o mundo é pode ser compreendido pela Bíblia. Esta, por seu turno, não é um conjunto “ficcional”; fala de coisas que efetivamente aconteceram — e que acontecerão — de inúmeras outras formas, que cabe ao cristão deslindar. Universo de interpretações e de variedade extrema que é de difícil visibilidade, porque envolto pelo manto unificador do cristianismo e por instâncias centrais de verificação da religiosidade e do saber, como a Inquisição. Vieira evita atacar a Inquisição enquanto instância legítima da Igreja — apesar de condenar muitas de suas práticas durante o processo que o atinge — mas não a considera instância máxima capaz de “tudo saber” e pede a intervenção de assembléia mais elevada:

E que se estas, e outras suas proposições lhe foram estranhadas, era somente por não serem vulgares, nem tratadas ex-professo pelos Doutores, e por se não ter notícias dos textos, autoridades, e razões, em que ele Réu as funda, com grande concordância das Escrituras Sagradas; havendo aliás quem considerando a grandeza e a importância de muitas das ditas matérias, e a utilidade que do conhecimento delas se podem seguir à universal Igreja, e à conversão de muitas almas de Ateus, Gentios, Judeus, e de todo o outro gênero de infiéis, e hereges, julgou e disse, que eram merecedoras as próprias matérias de que na Igreja se fizesse um Concílio para maior qualificação delas (p.359).

O trecho insiste (cf. sua semelhança, especialmente nas primeiras frases, com passagem anteriormente citada) no desconhecimento, pela Inquisição, de textos importantes para a defesa. O que parece permitir que Vieira mantenha o tom acerbo de crítica sem que incorra em acusação definitiva à Inquisição, que “não sabe” por várias razões, mas que, “se soubesse”, se lesse o que Vieira leu e interpretasse o que lesse como Vieira “corretamente e naturalmente” o fez, estaria de acordo com o jesuíta.

A argumentação de Vieira procura deslocar a discussão; procura reduzi-la a uma discordância quanto ao conhecimento cristão, interior a ele, o que afastaria necessariamente o julgamento de heresia. O que tal argumentação propõe é que se continue — dentro das instituições e do saber cristãos — uma disputa de saber que os litigantes não conseguem resolver no âmbito em que estão. O que significa dizer, no caso, que estarão nivelados — e não mais em uma situação marcada pelo desequilíbrio — ao apresentarem suas razões a uma instância superior (a ambos).

Recorrer a uma instância superior — a um terceiro ator — enseja que a matéria em questão (e, eventualmente, todas as outras que estejam em situação similar, o que poderia representar sério risco para o poder inquisitorial) seja “retirada” da Inquisição de forma legítima, e que a solução seja adiada (adiamento que vai ao encontro do que muitos analistas do processo afirmam ser do interesse de Vieira, que esperaria mudanças políticas favoráveis na composição do Estado português).

É de se notar que Vieira reforça sua proposição de um tribunal superior — por suposto isento, competente, justo e equilibrado — ao dizer que tal proposição não é sua; impessoaliza a proposta (com “havendo quem”), o que evidencia não somente sua isenção como re-afirma que a questão em pauta é uma questão de saber a ser dirimida por um colégio de cristãos sábios e de elevada posição na hierarquia da Igreja de Cristo. Questão de saber que não deveria ser confundida com uma questão pessoal ou com uma questão entre ordens religiosas (entre jesuítas e dominicanos — mas ele não menciona, por certo).

O estabelecimento do verdadeiro saber não é um fim em si mesmo; ele precisa ter efeitos e, notadamente, efeitos no combate pelo cristianismo, por sua vitória universal e imperial contra todos os inimigos. Jóia do pragmatismo vieiriano é sua manifestação pela “utilidade” que do “conhecimento das matérias se podem seguir à universal Igreja”. Recorrer a instâncias superiores não foi expediente exclusivo de Vieira. A Mesa da Inquisição, do processo que examinamos, se vangloria de despachos exarados do topo hierárquico da Igreja. O que pode ser visto, por exemplo, em:

as primeiras nove proposições tiradas do dito papel do Quinto Império do mundo, das quais todas as outras são dependentes, e deduzidas pelo Réu, não somente foram censuradas (…) pelos gravíssimos qualificadores da Sagrada Congregação do Santo Ofício de Roma (…) sendo sua censura vista pela Santidade do Papa Alexandre 7º a aprovou expressamente, e mandou disso fazer aviso pela mesma Congregação ao Conselho Geral do Santo Ofício deste Reino, e que nele fossem proibidos o dito papel censurado, e novamente as Trovas do Bandarra, como em efeito se proibiram (p.368).

A passagem, colhida da “Sentença” do referido processo, mostra como este pôde percorrer uma escala de poder — que compreende uma rede administrativa, que valeria a pena examinar de perto — e de saber capaz de produzir efeitos onde quer que estejam em jogo os interesses cristãos. Ou, pelo menos no episódio em pauta, o poder de censura da Sagrada Congregação do Santo Ofício e o do Papa (para ser mais preciso: pela Santidade do Papa) desconhecem as fronteiras do Estado português.

Seria atitude simplista apontar a censura apenas como símbolo do obscurantismo e repressão, assim como seria tão óbvio quanto enganoso apontar a Inquisição somente como instrumento das fraturas internas da Igreja. É importante que se complexifiquem estas “verdades parciais”, fazendo com que se articulem com as faculdades de reforço e reprodução que, ambas, censura e Inquisição, têm. Do ponto de vista teórico, é danoso insistir na diabolização ou na santificação destes fenômenos históricos, atitudes que só fazem repercutir arcaicas e inflamadas discussões que atravessam séculos graças ao sólido terreno comum em que terçam as mesmas e antigas armas.

 

Notas

  • 1 Op. cit. São Paulo/Salvador: Editora da UNESP. Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1995.
  • 2 Op. cit. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1957, p. XXVI. vol.1.