Margarida Vieira Mendes
Universidade de Lisboa
Intróito
O Livro Anteprimeiro, escrito e ultimado no “ano santo” de 1665, em Coimbra — ainda que uma parte possa ter sido redigida antes, no Amazonas[1] —, e enviado incompleto para a corte, em cópias manuscritas, é fundamentalmente uma peça oratória dum desterrado político. Com a sua redação e publicitação, Vieira pretendia anunciar de forma aparatosa uma obra, a História do Futuro, pensada para o ano apocalíptico de 1666. Nessa medida, surge como prolegômeno ou apresentação inacabada (falta-lhe pelo menos um capítulo, anunciado mas ausente) de um tratado apenas esboçado, quase só pensado: a “apologia” que o pregador havia iniciado em 1649 e que nunca veio a desenvolver, mas que nessa altura intitulava História do Futuro[2]. Assemelha-se assim à fachada barroca, trabalhada com esmero se bem que incompleta, de um edifício que não chegou a sê-lo.
É explícito o gesto de oferecer esse livro projetado ao rei português, D. Afonso VI (“ofereço, Senhor a Vossa Majestade”), e o de interpelar diretamente Filipe IV e a Espanha (“Ó Espanha”). Vieira coloca-se no papel do profeta, que serve o monarca com o labor dos vaticínios em forma de livro: “o maior serviço que pode fazer um vassalo ao rei é revelar-lhe os futuros” (II, p.11). De fato, a instituição do pregador do rei — de que o jesuíta só então estava compulsoriamente afastado — compreendia as ações de oferecer prognósticos, arbitrar, adular, incitar os ânimos, aconselhar. Daí a maioria dos papéis proféticos escritos por Vieira ter um alcance político-religioso.
Dotado de uma singular ousadia, esse prolegômeno insere-se todavia — enquanto escrito de propaganda ideológica e de intervenção política — na literatura panfletária da Restauração e da guerra da Independência, que responde a uma literatura castelhana e nacionalista do mesmo gênero: a apologética dos direitos imperiais da monarquia espanhola (v.g. Juan de la Puente, don Juan de Palafox y Mendoça, frei Antonio de Santa Maria) e os Prognósticos da vitória castelhana[3].
O Livro Anteprimeiro não se apresenta como obra homogênea, pois o teor dos vários conjuntos de capítulos, quer pelo tom, quer pelo modo discursivo, quer ainda pelo próprio conteúdo, varia como variaram certamente os destinatários. Até o capítulo VI, Vieira dirige-se à corte portuguesa e a Afonso VI; nos capítulos VII e VIII, à Espanha e a Filipe IV; nos restantes quatro capítulos passa a ser mais expositivo que oratório e parece eleger como interlocutores, agora implícitos, teólogos e exegetas. Daí a distribuição irregular e a função variável do tema dos descobrimentos portugueses: relacionados com a exegese dos profetas bíblicos, nos últimos capítulos; usados sobretudo como tópico retórico e como concepto barroco, nos capítulos iniciais.
Destinava-se esta larga introdução a convencer todos (“ó gentes, ó reis, ó reinos”) de que, dadas as promessas ou profecias cumpridas e por cumprir, Deus estava do lado de Portugal, povo eleito. Por conseguinte, a Espanha teria que desistir de fazer guerra e deveria estabelecer a paz: “Considere Castela contra quem peleja” (VIII, p.107). Por seu turno, aos portugueses caberia readquirirem a confiança na vitória e na promessa sagrada da hegemonia do mundo. Esta declaração de intenções do autor da futura História espraia-se pelos oito primeiros capítulos, intensamente oratórios.
O discurso recorre assim à matriz enunciativa canônica da pregação régia[4]. Por isto a inventio deste Livro Anteprimeiro contempla grande número de lugares comuns próprios das excelências de Portugal, bem como o tema correlativo e simétrico das excelências do discurso sobre as excelências de Portugal, ou seja, o da excelência da História do Futuro. Na verdade, como logógrafo, Vieira necessita vender o seu discurso, não só pela oportunidade mas também pela qualidade e autoridade, a fim de restabelecer o valimento junto do rei. A palavra “comprador”, aplicada à corte, surge numa missiva sua, a propósito do fragmento inicial do Livro Anteprimeiro que divulgou em 1665 — os doze capítulos hoje conhecidos, porque publicados em 1718. Esse “retalho” introdutório contém uma parte de proposição, dedicatórias e de elogio do futuro livro (capítulos I a VIII), e uma outra, inacabada, de validação e autorização do método que nesse livro o pregador vai adotar: a exposição fundada não nos Padres antigos mas sim nos modernos exegetas, entre os quais Vieira se coloca (capítulos IX a XII).
Nas seções iniciais tudo são arroubos, pasmos, novidades nunca ouvidas, promessas de mudanças espetaculares e portentosas conquistas, com que Vieira enaltece o seu próprio trabalho de cronista do futuro. O estilo é grandiloqüente, laudatório, enfático, com tema e proposição, partição, invocação. O orador declara a vontade de, com a História do Futuro, “mover os ânimos” (IV, p.27), convencendo os “filhos da desconfiança”, “os incrédulos e desanimados”, pondo a profecia ao serviço da terapia e da consolação de um povo, segundo a tradição judaica. Todo o arsenal de recursos do apurado métier retórico do jesuíta é posto em ação: pinturas, descrições, exclamações, protestos veementes, encarecimentos, apóstrofes, imagens e esquemas fortemente simbólicos. É neste contexto que se integra o tema dos descobrimentos[5].
1. A arte oratória e o Livro: Novo descobrimento
Dada a natureza oratória deste extraordinário escrito, Vieira mobiliza uma série de tópicos, sendo o dos descobrimentos o mais insistente, aquele que atrai a si outros, como por exemplo o do par letras e armas. Esta díade fundamenta algumas vezes a associação do livro — profecia — à espada — à conquista do mundo e, como veremos, a do seu conhecimento: “Lerão os Portugueses, e todos os que lhes quiserem ser companheiros, este prodigioso livro do futuro e com ele embraçado em uma mão e a espada na outra”(VI, p.67). E mais adiante: “Os Portugueses foram com a espada aonde Santo Agostinho [por negar a existência dos antípodas] não chegou com o entendimento”(XII, p.205).
A primeira razão de ser da presença do tema dos descobrimentos no anteprimeiro Livro é de natureza retórica ou persuasiva. As descobertas são enaltecidas como feitos épicos, por meio da comparação com as conquistas de Alexandre (VI), pelo número de povos e coroas subjugadas, pela quantidade de oceano navegado, pelos perigos superados, sofrimentos e prodigiosas vitórias. Eis uma constante cultural do nacionalismo português, presente desde as embaixadas de D. João II e de D. Manuel ao papa, o prólogo de Garcia de Resende no Cancioneiro Geral ou alguns autos de Gil Vicente.
Em Vieira, todavia, esse tópico logra um relevo especial, do tipo geométrico. Os descobrimentos passam a fazer parte de um significativo conjunto dos “casos maiores que podem acontecer a um reino”, todos eles dotados de uma origem sagrada porque derivados da profecia, ou seja, do conhecimento e da fé no futuro prometido por Deus: a empresa do infante D. Henrique, tal como a de Ourique com D. Afonso Henriques, havia-lhe sido inspirada por Deus[6], o que voltará a acontecer na Restauração. São assim três os casos providenciais e decisivos para a história de Portugal:
• o nascimento — com a coroação de Afonso Henriques e a fundação do reino em Ourique;
• o crescimento — com as descobertas do Infante e novas conquistas para a dilatação da coroa;
• a restauração — com D. João IV e a recuperação dos territórios das conquistas.
Nos momentos de laudatio o orador aplica aos descobrimentos as imagens retóricas adequadas, tais como a símile da nova criação. Adão saiu das mãos de Deus, abriu os olhos e viu cousas novas, que eram afinal mais antigas do que ele: “ele era o novo”. De igual modo, “aquela ametade do Mundo”, a quarta parte, ou América, esteve oculta e chamou-se “Mundo Novo” (XI, p.175). Porque os portugueses foram os adâmicos descobridores dos antípodas, derrogaram o que era até então conhecido e afirmado, ficando o entendimento aquém da experiência e os portugueses além dos Padres da Igreja, desconhecedores da medida do mundo — “grande louvor na nossa Nação” (XII, p.205).
Do engenho oratório e barroco em geral — que muito deve ao cultivo da faculdade da memória — fazia parte uma organização rítmica e poliédrica do discurso, que gerava formas dotadas da fixidez e do dinamismo de um cristal. Também a estrutura imaginativa se baseava quer no que Gracián chamou proporções, ou seja, esquemas simétricos e numéricos que aqui moldam as imagens proféticas e os seus paradoxos e quiasmos semânticos (os dois hemisférios do tempo, o “cronista do futuro” e o “profeta do passado”), quer na ordem genesíaca da criação, na obsessão holística pelos conjuntos divisíveis. Daí a tripartição da história pátria em momentos; daí também o enquadramento do tema das descobertas numa ordem arquetípica segundo uma concepção estratificada do tempo e do espaço.
É uma característica oratória de Vieira o uso de palavras leitmotiven. No Livro Anteprimeiro, “descobrir” e “descobrimento” integram vários temas justapostos. Freqüentemente a palavra “descoberta/s” emparelha com “encoberto/s”: “De maneira que nas profecias estão encobertos os tempos e os efeitos e nos tempos e nos efeitos estarão descobertas as profecias” (X, p.149). Devo lembrar que parte da força semântica de “encoberto” e “descoberto” fora já usada por Garcia de Resende, na Miscelânia, e por João de Barros, em textos que o jesuíta vai glosando[7].
A irradiação do mito do Encoberto e o fascínio produtivo dessa palavra na época levam a que não pareça artifício a constelação de idéias vierianas centrada no termo “encoberto”: um rei (referência não atualizada no Livro Anteprimeiro), um futuro, um conhecimento, uma terra austral, um passado. Não esqueçamos que no começo da sua carreira de pregador já havia o P. Vieira construído um sermão inteiramente inventado e disposto como um intricado labirinto de conceitos derivados dessa palavra polivalente. Falo do sermão de S. Sebastião, pregado no Brasil em 1634.
Círculos de associações, em permanente expansão e metamorfose, dão largas à imaginação cara a Vieira quando se trata de profecia e do motivo do encoberto, estimulada sobretudo pela matriz do claro-escuro: luz (a metáfora conceptual mais insistente), candeia, claridade, escuridão, véu, nuvem, sombra, e ainda escondido, enterrar, cavar, desenterrar, tesouro, mina. A variação é contínua: “que com a candeia da profecia se podia entrar pela escuridade dos futuros e descobrir e conhecer o que neles está encoberto e enterrado” (X, p.138).
Encobrir e descobrir tanto referem-se às navegações dos portugueses do século XV e o desvendar dos segredos do mundo, como à exploração dos segredos do futuro, acentuando a identidade das ações e dos respectivos efeitos. António Vieira aventura-se pela simetria e assimilação do descobrimento do mundo e do descobrimento do futuro. A sua História irá desocultando as novas regiões e os novos habitadores do que o pregador chama o segundo hemisfério do tempo, ou os antípodas do passado, ignorados até a redação dela: “Oh que de cousas grandes e raras haverá que ver neste novo descobrimento!” (I, p.7).
Sendo história igual a descobrimento, Vieira desenvolve a proporção. Assim como foram escolhidos os Portugueses para “argonautas apostólicos de seu [de Cristo] Evangelho” (VI, p.63), assim também Vieira terá sido escolhido para novo argonauta[8]: “Ó Portugueses […] Vós descobristes ao Mundo o que ele era, e eu vos descubro a vós o que haveis de ser. Em nada é segundo e menor este meu descobrimento, senão maior em tudo. Maior cabo, maior esperança, maior império”. E os “ditosos tempos” dos descobrimentos passados acabam por ter sido, afinal, menos ditosos quando postos em paralelo com os ainda mais gloriosos que despontam no futuro (II, p.18).
Com a sua História o autor vai dar a conhecer a mítica quinta parte do mundo, a terra incógnita até então chamada “Austral”. Os antigos conheciam três partes do mundo, os modernos, a partir dos portugueses, descobriram a quarta, a América, e esperava-se a quinta. Ou seja: Mundo passado, Mundo presente e Mundo futuro (III, p.25). Eis mais uma vez a ordem triádica, desta feita aplicada à história do conhecimento do universo. Mas o que agora interessa assinalar em Vieira é a seguinte correlação semântica: a empresa da História do futuro decalca e prolonga a dos descobrimentos, pois implica “nova restauração do universo” como descobrimento do que estava oculto (V, p.41)[9]. As propriedades de um livro repetem, por conseguinte, as de um importantíssimo feito histórico.
Ao invés, como num quiasmo perfeito ou num espelho, o livro do futuro tem como Prólogo, previamente escrito, os descobrimentos portugueses, pois eles anunciam a gloriosa fase final que o livro descreverá e, como tal, estavam profetizados ou verbalizados. Invertem-se deste modo os estatutos ontológicos dos dois pólos da metáfora (não é triangular a metáfora barroca de Vieira, mas sempre binária e reversível): os descobrimentos, de feito ou fato, passam a coisa escrita, e a História do Futuro, de livro, passa a fato ou feito. Eis como se sobrepõem o mundo real e o simbólico, numa perda de ser que é simultaneamente ganho ou conquista de mais ser[10].
Neste ambiente semântico bifronte, aflora naturalmente o símile convencional do barco e das velas para designar a escrita do livro. “Antes de abrir as velas ao vento”, no proêmio que anuncia a narração da História, Vieira exclama: “O mar é imenso, as ondas confusas, as nuvens espessas, a noite escuríssima” (I, p.10). De forma idêntica, dada a construção e a concepção oratória do Livro Anteprimeiro, num momento em que o autor expõe a divisão dum assunto, aplica a tópica comum do quid, quis, cui, quando, ao tema do descobrimento: “Que é o que se descobriu; quem o descobriu; a quem se descobriu; e quando se descobriu” (Capítulo X).
A mais importante função dos descobrimentos é assim a de um concepto que, como um facho de luz, vai lembrando, ao longo de todo o texto, o tema do próprio livro. Aponta para ele, ao mesmo tempo que o valoriza pela comparação expressa e latente — nas simetrias e proporções barrocas de Vieira — com as descobertas portuguesas, já então confirmadas, na memória coletiva, como o feito heróico crucial da nação.
2. Gil Vieira no cabo de Não
No Livro Anteprimeiro, descobrimento torna-se ainda sinônimo de conhecimento. Trata-se de mais um aproveitamento das virtualidades da palavra leitmotiv (esse significado esteve já presente, como é sabido, na figuração final d’Os Lusíadas)[11]. Dentro do esquema conceptual em que Vieira discorre aqui, tal como o futuro caminha para o presente, que o dá a ver, e já havia sido escrito no passado pelo “espelho da profecia”, também o conhecimento não faz mais do que descobrir o que já existe. A ciência é a revelação e o novo o que fica à vista quando se levanta o véu colocado por Deus sobre o antigo. Saber novidades equivale a desocultar ou iluminar o que permanecia na sombra: “Nas ciências nascem poucas verdades; as mais delas ressuscitam” (XI, p.175).
As descobertas trouxeram um aumento do conhecimento — ressurreição de verdades —, relação de conseqüência que Vieira transforma numa identidade. Deste modo, a própria noção de conhecimento surge representada por meio das metáforas concretas, singulares e marítimas das explorações portuguesas:
Houve neste grande oceano de ciências alguma nau Vitória que desse a volta a todo o mar? Ou algum Gama que, passado o cabo de Boa Esperança, a tirasse a todos os outros de novos descobrimentos? E se depois deste famoso círculo do Universo, ainda ficaram mares e terras incógnitas que prometem novas empresas e novos argonautas, que será na esfera da sabedoria e da verdade, cuja infinita circunferência só a pode abraçar O que é imenso e compreender O que é infinito? (XI, p.169).
Ora é nesta esfera da sabedoria que Vieira declara atrever-se a novas empresas, como descobridor do futuro. Impossível escapar à metáfora, pois sem ela desmorona-se o próprio pensamento do jesuíta; e, neste texto, os descobrimentos constituem uma permanente fonte de metaforização conceptual.
A referida noção de conhecimento joga com o esquema espacializante do tempo (intrínseco às próprias línguas naturais). O futuro é um lugar para cujo conhecimento se caminha: “vemos de mais perto porque estamos mais chegados aos futuros” (X, p.154), ou ainda, no modo gnômico, a “candeia de mais perto alumeia melhor” (X, p.139). Lugar que só quando iluminado se dá a ver. Daí as virtualidades, a múltipla energia da palavra “descobrimento” neste escrito de Vieira, associada ao vocabulário da visão (domínio sensorial que fornece à língua uma das mais copiosas fontes de metáforas conceptuais): conhecer é descobrir, levantar o véu, arredar a cortina, aproveitar a claridade e ver. Repetem-se com algum furor as metáforas apocalípticas do lume que vence “as nuvens que Deus põe sobre a profecia” (X, p.153). Para Vieira, essa luz não reside no entendimento humano, mas na hora ou momento, igualmente determinado por Deus.
Convém precisar a funcionalidade deste conceito de conhecimento nos capítulos X e XI. Ao ilustrá-lo por meio de um exemplo — a saber, o indiscutível contributo das descobertas marítimas para o conhecimento ou desvendamento do mundo, cuja novidade não era nova — e ao guardar com disciplina artística o leitmotiv dos descobrimentos, o autor pretendia persuadir uma parte do seu público (os teólogos mais severamente ortodoxos e conservadores) de que a novidade da História do Futuro não só o não era (a novidade no saber era então proibida) como traria também o conhecimento do que até ela permanecera oculto, se bem que desde sempre redigido por Deus[12]. Mais uma vez Vieira mobiliza o imaginário ligado aos descobrimentos como estratégia argumentativa para justificar o seu tratado profético.
Em Vieira, as categorias de espaço e de tempo identificam-se, como já observou João Mendes ao discorrer sobre o “simultaneísmo” do jesuíta e a sua “concepção diádica” dos dois hemisférios do tempo. O mundo seria uma “sala de espelhos” e o tempo anular-se-ia pela profecia, pois tudo é presente[13]. João Mendes não o esclarece, mas essa justaposição das duas categorias dá-se exatamente no Livro Anteprimeiro, onde o discurso se funda na metáfora binária, intencionalmente equívoca ou bissêmica. Daí a similitude da navegação marítima e suas descobertas com a navegação do historiador que, no “espelho da profecia”, vai descobrir o futuro, ou seja, a verdade do tempo. O futuro é, metaforicamente, o oceano por arar e, Vieira, o Gil Eanes disposto a quebrar tal “encantamento”. Ambos se encontram a passar um cabo e ambos a inaugurar uma nova era. O futuro incoativo e ostensivo, que se pode apontar com a mão porque está presente, sempre foi uma obsessão para Vieira. Por isso aqui se deixa sugestionar pela imagem de um lugar: o cabo.
As condições de felicidade de ambos os heróis residem no momento de cada uma das ações: o tempo moderno, mais propício à descoberta porque mais perto da “hora determinada por Deus”[14]. Será então “prerrogativa dos tempos” descobrir e alcançar o que os antigos não conheceram (X, p.144). Os modernos descobrem mais facilmente o futuro do que os antigos, porque estão mais perto dele. A hora é a do que já está a vir e representa uma oportunidade providencial (kairos): “entendamos que se passou o cabo porque chegou a hora” (X, p.146). A cada um seu cabo de Não: Gil Eanes, “em uma tão pequena barquinha como a do seu limitado talento” afrontou o Não, o proibido, e logrou descobrir e dar notícia da verdade; Vieira, ao comparar expressamente a aventura do seu livro com esse feito histórico, pretende ultrapassar o proibido e medonho — o segredo das profecias bíblicas — a fim de lograr e dar notícia de maior verdade do que a conhecida pelos autores antigos.
Como acima observamos, o depois, o logo, o já, o perto, o ali tanto pertencem ao espaço como ao tempo, troca que ocorre em muitas formulações discursivas estereotipadas no barroco (do tipo “os longes da espera, e os pertos da promessa”)[15], que aprofundam e investigam a natureza metafórica e sensorial da própria língua. O que é singular em Vieira é o reverso: se a representação da história se espacializa, também a representação do mar e da costa africana adquire dimensão temporal, no capítulo X do anteprimeiro Livro. Seguindo Barros, Vieira sustenta que, desde a fundação da Espanha por Túbal até 1428, o termo da navegação do oceano era o cabo de Não. Gil Eanes “quebrou aquele antiqüíssimo encantamento e mostrou com estranho desengano à Espanha, ao Mundo e ao mesmo Oceano que também o não navegado era navegável” (X, p.145). Repare-se no alcance do trocadilho ou da anfibologia “o não navegado”, que o editor optou escrever com minúscula, entendendo a palavra “não” como um advérbio, quando ela é igualmente o nome próprio do cabo. Os dois sentidos integram a bidimensionalidade tempo / espaço: “o não navegado” — forma negativa do verbo — refere-se ao antes, que só depois passou a navegado e descoberto; e “o Não navegado” — forma afirmativa do verbo — refere-se ao local da navegação.
Entram aqui a história e o tempo como segunda dimensão do espaço geográfico: “Ali donde chega o presente, e começa o futuro, era até agora o cabo de Não; não havia historiador que dali passasse” (X, p.146). Começaram então a navegar-se os mares imensos que “depois dele [do cabo e de Gil Eanes] se seguem”: o depois e o a seguir servem para localizar tanto o espaço como o tempo. Gil Eanes é desta maneira convertido em fazedor de história futura; e, dentro da lógica prevalecente das reciprocidades, Vieira, ele sim historiador, situado num cabo bem presente de interditos e perseguições, feito Job[16], vai ultrapassá-lo e dar a ver a nova geografia do mundo.
É exatamente neste ponto do texto que a escrita do pregador ganha intensidade estética e ressonância literária (João de Barros, Camões). Vejam-se as poderosas metáforas do futuro desconhecido, nascidas na esfera poética do Bojador, diante do Não: “o que confusamente se representava adiante ao longe deste cabo, era a carranca medonha, o temerosíssimo Bojador do futuro, coberto todo de névoas, de sombras, de nuvens espessas, de escuridade, de cegueira, de medos; de horrores, de impossíveis” (X, p.146).
Este o efeito da reversível metáfora barroca: assimilar um livro ou um discurso especulativo a um fato real e histórico, a um empreendimento de descoberta com repercussões para o conhecimento da humanidade, e fazer do seu protagonista um herói. Gil Eanes ganha o heroísmo visionário do historiador e Vieira o do argonauta.
3. A Bíblia e os descobrimentos: Isaías fala com Job
Todo o extenso capítulo XII, mais expositivo do que oratório, recorre à exegese sistemática e minuciosa de versículos de David, do Cântico, de Isaías, de Abdias, de Habacuc e do Apocalipse de S. João, a fim de provar que as descobertas dos portugueses, nas suas circunstâncias particulares, foram inspiradas por Deus pois estavam profetizadas no Antigo Testamento. Não me vou alongar sobre o modo como Vieira entende esses passos textuais[17]; adianto apenas que o jesuíta pratica uma exegese nacionalista que visa justificar ou validar a candidatura de um referente único — o de Portugal, na sua singularidade histórico-geográfica — para o posto guardado nos mais obscuros, enigmáticos e poéticos significados de certos trechos da Bíblia, geralmente os trechos que foram estudados pela comunidade interpretativa dos teólogos do século XVI.
De qualquer modo, a candidatura é sempre a das viagens e feitos concretos das conquistas portuguesas no mundo — para Vieira conquistas de Cristo —, particularmente no Novo Mundo, chegando o jesuíta a individuar referentes com bastante pormenor. É o caso das embarcações usadas pela tribo dos Igaruanas, no Amazonas, “descritas” por Isaías — in vasis papyri super acquas — e que Vieira conheceu bem (XII, p.238).
O itinerário do autor parte sempre do real e experimentado para o escrito nas profecias bíblicas: do claro para o escuro. Prevalecem a história e a geografia das missões, dos pregadores missionários (Vieira era um deles) e, acima de tudo, a catequese dos índios e demais gentios. A conversão à fé cristã torna-se o grande tema, responsável pela colação textual e pelo recurso explícito à autoridade dos anteriores comentadores de cada um dos textos sagrados, ou seja, de todos aqueles que vão “rastejando o sentido verdadeiro” (XII, p.244). Vieira é o último deles e exatamente porque vem depois, como ele mesmo defende, estará em condições de ver a verdade iluminada mais de perto. Deste modo — e não é coisa pequena — ficam os descobrimentos a fazer parte integrante do relato apocalíptico, ou seja, da revelação.
Duas convicções entrelaçadas sustentam e dão forma à relação entre a Bíblia e os descobrimentos portugueses: a de que eles só aconteceram porque estavam previamente escritos por Deus, e a de que a história da conversão do Mundo, nos passos bíblicos onde vem contada, é a das descobertas lusas. Nenhuma de tais convicções aparecia como bizarra na época, fazendo parte de uma tradição consistente. Basta lembrar que Cristóvão Colombo, em 1501 — momento da vida em que passou a sofrer as atribulações de Job —, ao escrever aos Reis Católicos, enviando-lhes justamente a figura de uma esfera, afirmava: “Ya dise que para la hesecuçion de la inpresa de las Indias no me aprovechó rason ni matemática ni mapamundos; llenamente se cumplió lo que diso Isaias”[18]. Isto permitir-lhe-ia defender no seu Libro de las profecías, com os mesmos textos bíblicos e os mesmos autores, o desfecho da conquista e conversão das Índias, ou seja, a futura restituição à Igreja da casa santa de Jerusalém.
Ao longo dos dois séculos seguintes discutiu-se vivamente — dadas as implicações geopolíticas do assunto — o entendimento das profecias relativas às descobertas como sendo de referência lusa ou castelhana, americana ou asiática, brasileira ou peruana. Segundo Bataillon, “Vieira prolonga, com o seu gênio impróprio, uma corrente biblista de teologia da história nascida com as descobertas do século XVI”[19]. Os exegetas que interpretaram Isaías à luz da nova geografia dos descobrimentos vêm amplamente citados no livro de Vieira: Cornélio A. Lápide, Malvenda, Mendonça, Rebelo — comentadores que situam nas Índias Orientais passos dos profetas do Antigo Testamento; José de Acosta, Arias Montano, Luis de León, Bozio — comentadores que os situam nas Índias Ocidentais.
Os trechos bíblicos são aqui entendidos “de” Portugal, “do” Brasil, “da” China; ou seja, referem-se às conquistas portuguesas no mundo. Isaías, por exemplo, que “verdadeiramente se pode contar entre os cronistas de Portugal” (XII, p.244), quando escreve “terra longínqua” fala da Etiópia (A. Lápide), da Índia Oriental (Mendonça e Rebelo), da América (Acosta, Bozio, León, Montano), da província do Maranhão (Vieira). O mesmo Isaías aludiu à conversão dos Chinas, explicou a das Índias Ocidentais e escreveu, no capítulo LVIII, sobre o próprio Infante D. Henrique, “primeiro autor dos descobrimentos portugueses”.
A exegese de Vieira integra-se numa corrente que tentava ler, ver ou descobrir, prefigurada em passos proféticos do Antigo Testamento, a nova geografia do mundo, neste caso com sentido português e, mais especificamente ainda, com sentido brasileiro, pois o Amazonas ou Maranhão — lugar apaixonadamente presente para o missionário Vieira — torna-se o protagonista das suas elucubrações interpretativas. Pretendia justificar pela expansão da fé junto dos índios a aventura americana dos portugueses, nomeadamente a sua, pessoal, e a dos seus companheiros jesuítas. No capítulo XII do Livro Anteprimeiro, Vieira procede como exegeta, mas o assunto e a intenção são iguais aos que presidiram a sermões como o da Epifania (1662) ou parte do da Sexagésima (1655).
Um dos resultados dessa prefiguração poética na Bíblia foi o enriquecimento imagético do modo de representar os descobrimentos, reconhecido aliás pela perspicácia estética do próprio autor. Assim, a propósito dos versículos de Habacuc (III, 15), António Vieira não se esquece de frisar “a formosura da metáfora, senão a propriedade do caso, e a verdade da história e cumprimento de profecia”, aplicada ao infante D. Henrique (XII, p.252). Desse trecho sagrado (“tu abriste no mar um caminho aos teus cavalos”) deriva a estupenda figuração dos portugueses como cavaleiros de Cristo que pisaram as ondas do mar, e a das naus como as carroças que levam a salvação pelo oceano afora.
Epílogo
Não é fácil reconhecer e recapitular aqui todas as metamorfoses a que se prestou o tema dos descobrimentos, tratado pelo gênio inesgotável de Vieira com as vibrações ao mesmo tempo do cristal e da chama (duas imagens absolutas)[20], ou seja, baseando-se numa estrutura fixa, herdada mas sempre em expansão, e sujeitando-a a uma incessante agitação interna: das figuras do Infante, do medonho e literário Bojador e de Gil Eanes com a sua humilde barquinha, aos índios do Amazonas, a S. Francisco Xavier e ao próprio Vieira; dos mitos de Túbal, da terra austral e do Encoberto às excelências na nação portuguesa; da escrita bíblica ao conhecimento físico e real da Terra; do prólogo do futuro império cristão à duplicada criação; da justificação escriturária da expansão portuguesa e do relato apocalíptico da conversão do Novo Mundo à guerra com Castela; da querela entre Antigos e Modernos aos conceitos de verdade, de tempo, de conhecimento; de um feito da história nacional à parte intrínseca da história da revelação. Enfim, dos passos barrocos à seca exposição do comentário.
Se a lista fica incompleta, distorcido fica também aquilo a que se pode chamar a vida ou a energia dos descobrimentos no anteprimeiro Livro. É que haver de ordenar e separar uma matéria tão musical e sinuosa como a deste texto máximo de Vieira não pode deixar de ser senão ação forçada e impertinente violência, que reduz e desfigura rudemente tudo o que nele é chama, variação contínua, complexo sistema de ecos, de dilogias, de metáforas imprescindíveis. Ou seja, tudo o que segue o curso das viagens de um engenho, acossado pelas faltas e necessidades de uma hora.
Notas