Patrícia Peterle
A cidade de São Paulo na década de 1920 foi palco de grandes transformações sociais e culturais. Uma geografia demarcada pela pluralidade de formas, sons e cores se confirmava com a consolidação do crescimento industrial e da imigração de diferentes nacionalidades, principalmente a italiana. Nesse mesmo período, a metrópole paulista, em contínuo desenvolvimento, foi palco e cenário da Semana de Arte de Moderna, realizada no Teatro Municipal. Três dias do mês de fevereiro de 1922 reuniram toda a classe intelectual e até curiosos, promovendo encontro e diálogo entre diversas manifestações artísticas. Pintura, escultura, literatura e música dividiram um mesmo espaço físico e reflexões, apontando para um lugar-comum. Mário de Andrade, um dos protagonistas, não poderia deixar de compartilhar dos acontecimentos e mudanças que giravam em torno de sua cidade natal e que de certo modo refletiam no dia-a-dia daqueles que habitavam e perfilavam a geografia da grande São Paulo.
Paulicéia desvairada, obra publicada no mesmo ano do evento no Teatro Municipal, traz desde o título uma rememoração da metrópole brasileira com toda a agitação característica do crescimento demográfico, industrial e urbano sofridos nas primeiras décadas do século XX. O livro é estruturado em dois grandes eixos norteadores. O primeiro é composto por 22 poemas, cuja temática devaneia sobre a cartografia inquieta, física e social de São Paulo: "São Paulo comoção de minha vida!" (Andrade, 1993, p. 83) é o primeiro verso que permeia todos os outros seguintes com uma menção ou outra à cidade. Os poemas escritos numa noite de 1920 podem ser considerados um marco na poesia modernista brasileira, um dos primeiros veículos a difundir novos princípios estéticos. Paulicéia desvairada é uma espécie de ponte imaginária entre passado e futuro. São Paulo é o tema latente e central, o sentimento que envolve a cidade passa por um filtro de intimidade e afetividade, o qual se mistura com o característico humor do autor, permitindo-lhe delinear um perfil detalhado da geografia urbana paulistana: nela as possibilidades de o leitor se perder são poucas e ao mesmo tempo inúmeras.
O segundo eixo antecede as poesias e consiste num texto intitulado "Prefácio Interessantíssimo", no qual Mário de Andrade se posiciona de forma crítica em relação a alguns questionamentos colocados pela Semana e, ainda, introduz e reflete sobre os poemas que preenchem as páginas seguintes de Paulicéia.
Está fundado o Desvairismo
Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem
Pensar tudo o que meu inconsciente me grita.
Penso depois: não só para corrigir, como para
Justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio
Interessantíssimo. (Andrade, 1993, p. 535)
Novas propostas e a expressão de um novo espírito se concretizam desde a primeira linha do prefácio: "Está fundado o Desvairismo". Neste trecho percebe-se, ainda, um hábito constante na prática e na produção do autor: os atos de escrita/leitura/reescrita/releitura, que anos mais tarde se reafirmam com Macunaíma, de 1928. Diante deste processo de idas e vindas, pode-se considerar que o "Prefácio Interessantíssimo" tem uma função bem específica ao anteceder os poemas, a de 'justificar' e 'explicar' os versos que estão por vir. A celebração do experimentalismo, o questionamento do conceito de belo e a tentativa de (re)pensar a realidade são algumas das preocupações tratadas e discutidas por Mário de Andrade.
Paulicéia, sem dúvida, retrata a juventude e a euforia, marcas do que se considerou o primeiro momento do modernismo brasileiro. São Paulo, cidade gestora da modernização e palco de grandes transformações, acompanha o percurso do escritor e pensador modernista que soube como nenhum outro decodificar a cidade e suas tramas, transformando-a no seu grande personagem. Personagem este que retorna com contornos alterados no último livro de poesias, Lira paulistana, de 1945, apontando para uma fase mais reflexiva do autor, a maturidade, na qual repensa e relê posicionamentos iniciais.
O estudo da década de 1940 é de suma importância para o entendimento das múltiplas atividades de Mário de Andrade. Sem dúvida, a produção intelectual e a prática de pensador atento à sociedade de seu tempo são traços fundamentais na construção do perfil do escritor produtor de significados. Os papéis de poeta, romancista, contista, crítico, ensaísta, pesquisador, estudioso do folclore brasileiro, musicólogo, funcionário público, todos reunidos, compõem a pluralidade da personalidade marioandradiana. Os seus escritos podem ser considerados um espelho do exercício contínuo de intelectual na cena paulistana e brasileira.
Mas qual é o papel ou a função do intelectual em uma sociedade? Quais fatores legitimam a afirmação de que Mário de Andrade pode ser considerado um intelectual de seu tempo? Muitos estudiosos e teóricos já discutiram e continuam, ainda nos dias de hoje, a debater sobre a(s) relação(s) existente(s) entre o intelectual e o seu redor. Edward Said, no livro Representations of the intelectual (1994), fruto de sua participação no ciclo de conferências da Bbc Reith Lectures - recupera e discute a questão desta figura multifacetada. Segundo Said, a figura e o papel do intelectual se relacionam com um caráter outsider e 'diletante', além de contestador do status quo. Uma das tarefas do indivíduo intelectual é lutar contra alguns estereótipos que, por se apresentarem como grandes verdades, limitam a capacidade de pensamento e a comunicação entre os seres humanos. Para o ex-professor da Universidade de Colúmbia, o intelectual se depara com uma série de escolhas: não importa sua origem, seja ele um crítico, um professor universitário, um consultor, um escritor, deverá enfrentar a grande gama de questões impostas pela sociedade em que está inserido e tudo aquilo que ela congrega e carrega.
Como já colocado no início, as relações de Mário de Andrade com o que estava ao seu redor, a cidade de São Paulo e a sociedade paulistana da primeira metade do século XX, são bastante complexas. Mário utiliza seus conhecimentos de pesquisador ativo da cultura e do folclore brasileiro, de professor de música, dentre outros, para entender e refletir sobre a sociedade em que estava inserido. Paulicéia desvairada e Lira paulistana, dois momentos diferentes, retratam a contínua atividade de reflexão do intelectual brasileiro. Em Macunaíma, rapsódia que congrega a diversidade da nossa cultura, Mário de Andrade faz do livro o laboratório e a oficina do escritor; experimenta e joga com os diversos elementos que possui, fruto de seu percurso intelectual. No exercício de sua atividade como escritor e crítico, soube captar alguns dos elementos formadores de sua nação; a língua trabalhada em Macunaíma é um exemplo da consciência do autor e da revisão da cultura nacional popular.
No entanto, a questão colocada por Said reside no debate acerca da função do intelectual numa sociedade e do tipo de relação a ser estabelecida entre ele e todo o grupo social restante. A partir de tais questionamentos e reflexões, tem início o delineamento dos traços que poderão definir melhor uma representação do intelectual. Um desses traços é a condição de estar solitário, de se encontrar à margem, quer dizer o outsider. A configuração de um exílio, de um certo afastamento é essencial; de fato, está intrinsecamente ligada a uma questão maior - a independência. Trata-se de uma relação dual: o intelectual necessita da sociedade e da sua inserção nela, mas, ao mesmo tempo, necessita manter uma certa distância, beirando a marginalidade.1 Inserção e marginalidade são dois pólos opostos, e entre eles se gera uma infinita malha, cheia de nós, uma complexa tessitura que é onde o intelectual se move e transita.
No texto O intelectual modernista revisitado (2002), Silviano Santiago analisa a atuação de Mário de Andrade como diretor do Departamento de Cultura de São Paulo e as contradições que vão surgindo e se colocam entre o escritor e o homem público.2 Eneida Maria de Souza em A pedra mágica do discurso (1999) faz um percurso pela produção marioandradiana; nesta busca, discute os conceitos de originalidade, plágio e intertexto que rondam a escrita da obra Macunaíma. O intelectual é aquele cuja atividade se distingue pela sua capacidade de articular pensamentos recorrendo ao uso da linguagem e à crítica da qual nunca se pode ver separado. Mário de Andrade cria com a crítica e critica criando: criar e criticar são dois processos interligados em sua atividade de produção. A construção da tessitura do texto marioandradiano gira em torno dessas duas marcas, a atividade de escritor e a de ensaísta e crítico. Um exemplo dessa mistura e da pluralidade do lugar de onde fala é a publicação de O banquete, de 1943.
Em 1943, Mário começa uma contribuição para uma coluna regular intitulada "Mundo Musical" do jornal Folha da Manhã, que continuará até a sua morte em 1945. Apesar do título, essa coluna tem uma varie-dade temática bastante diversificada, que engloba folclore, música e arte em geral. "Mundo Musical" era um meio para o escritor e crítico apontar certas situações, colocar em discussão aspectos da cultura brasileira e questionar problemas de ensino e pesquisa. Os textos dessa seção muitas vezes tinham uma continuação na semana seguinte, formando uma espécie de série que poderia ser intercalada com outros escritos. O banquete é um desses textos longos e se diferencia de outros publicados nessa coluna pelo seu caráter ficcional: cinco personagens caricaturais imaginários se encontram para um jantar onde falam de diversos assuntos.
Tendo em vista a estrutura da coluna, o texto foi dividido em dez capítulos, publicados semanalmente; todavia, os últimos três não foram escritos devido à morte do autor, mesmo possuindo já título e subtítulo. "As despedidas - a luta moral do compositor", "Noturno - Janjão jogado na rua", "Conclusões", "A arte está desorientada e não sabe o que fazer", "Muita discussão e pouca arte", "Retorno às fontes e aos princípios essenciais". "O contraste do conformismo das classes dominantes e do não-conformismo implicado na arte, por definição" foi o título dado à última parte, o capítulo X. Um fragmento do título deste capítulo deixado incompleto pode remeter a uma outra obra de Mário, Macunaíma. "Pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são" é a expressão que se repete ao longo de toda a narrativa da rapsódia; "Muita discussão e pouca arte" também podem ser considerados outros males do Brasil, considerando aqui a arte um instrumento mediador que serve ao indivíduo como um meio de conscientização e reflexão.
A forma de diálogo prevalece na estrutura narrativa dando uma maior flexibilidade à conversa entre os cinco personagens. Tais diálogos são fruto do questionamento interno das contradições de Mário de Andrade com uma orientação reflexiva e crítica, sem nenhuma ambição de encontrar ou buscar uma verdade única. Os diálogos, de fato, confirmam e enfatizam a contínua interrogação presente no texto. Sarah Light, Siomara Ponga, Felix de Cima, Janjão e Pastor Fido são aqueles que tomam parte no jantar e nos temas propostos. As dúvidas e contradições inerentes a Mário de Andrade não estão em um só personagem, mas permeiam a elaboração e construção do perfil de cada um. Logo no início do primeiro capítulo, o autor/narrador cria, por meio do discurso, um canal de comunicação com o leitor; neste já se defende de futuras possíveis acusações ou culpas. Ao mesmo tempo que tenta se isentar da 'autoria' e responsabilidade das palavras, o escritor Mário de Andrade assume e admite a responsabilidade dos autores perante seus textos e propostas:
Oh meus amigos, sim lhes dou este relato fiel de tudo quanto sucedeu e se falou naquela tarde boa, boa e triste, personagens, tão nossos conhecidos, com qualquer pessoa do mundo dos vivos e dos mortos, não seja mais que pura coincidência ocasional. E é também certo, certíssimo, que ao menos desta vez, eu não poderei me responsabilizar pelas idéias expostas aqui. Não me pertencem, embora eu sustente e proclame a responsabilidade dos autores, nesse mundo de ambiciosas reportagens, vulgarmente chamado Belas Artes. (Andrade, 1989, p. 171)
O contato com o leitor será retomado diversas vezes na narrativa, visando também a suscitar e provocar momentos de reflexão no indivíduo que decodifica e imprime significados às páginas marioandra-dianas. Esse diálogo ainda pode ser considerado como uma trama composta por pistas, às vezes ocultas, dadas pelo autor para aquele leitor mais atento e cuidadoso, que funcionam como nós de uma grande malha imbricada de signos. Tais pontos nodais possibilitam um entendimento, uma interpretação e uma interação mais intensa com o texto. O leitor tem diante de si a possibilidade de descobrir um papel na narrativa, o de detetive das páginas literárias. Em O banquete, Mário de Andrade transita em uma fronteira bastante nebulosa entre a ficção e a realidade; ele brinca com a ficção do real e a realidade da ficção. A construção dos cinco personagens principais dessa obra gira em torno desta dicotomia entre o real e o ficcional, todos possuem características que podem corresponder a um plano da realidade, apesar do exagero com que são descritos e apresentados. É com base nas descrições e no posicionamento de cada tipo que o escritor introduzirá questionamentos acerca da arte, da técnica e do papel do artista.
Sarah Light, uma milionária, pertencente à classe dominante, é quem oferece o banquete para os outros convidados. Nascida em Nova Iorque, vive no Brasil, sem ter estabelecido durante a sua vida raízes em lugar algum. A arte, para ela, é mera representação de um status social. E a música é uma ligação, talvez a única, com Janjão, por quem é apaixonada e para quem faz realmente o banquete.
Era o ambiente em que ela vivia, o meio dos milionários de Mentira. Meio infecto de estúpidos, de granfinos, de indiferentes às artes; meio que apenas principiava reconhecendo uma boa aplicação de dinheiro comprar livros antigos, gravuras antigas aquareladas com sabença pelos boticários de 'antiguidades' e algum Guido Reni falso. (Andrade, 1989, p. 171)
Como afirma o fragmento, Sarah Light é indiferente às artes, o seu benefício é o privilégio e o reconhecimento. Outro personagem que divide o mesmo meio de Sarah é o político Felix de Cima, de origem italiana; este representa os descaminhos da política e a precária visão dos políticos sobre as artes em geral. Não tem nenhum interesse verdadeiro pela arte, tenta simplesmente satisfazer a todos, pode ser considerado um grande demagogo. O seu programa de proteção à arte é desastroso, não há um verdadeiro programa. A noção de arte para Mário de Andrade é totalmente diferente daquela apresentada pelo político e pela milionária. Para o primeiro, a arte possui uma função específica, 'moralizadora', tem um fim e, portanto, serve para algo. Para os outros dois, a arte é mais um elemento efêmero e sem importância no seu plano político e social.
Siomara Ponga, cantora virtuosa, viajada e culta, completa junto com os dois anteriores o grupo de personagens provenientes da classe dominante. Siomara possui todos os instrumentos e ferramentas para trabalhar com a arte e fazer uso de sua função 'moralizadora'. A problemática que envolve a construção do perfil deste personagem é a vaidade, ou seja, todo o conhecimento, técnica e inteligência possuídos por Siomara são somente utilizados em seu benefício e não em benefício de outros. As descrições e falas da cantora virtuosa permitem a identificação de seu perfil academicista e técnico, no qual a direção do olhar é limitada por pré-concepções advindas da classe à qual pertence e dos indivíduos com quem se relaciona. A estética, estudo do belo, marca característica de Siomara, é um elemento auxiliar e determina mais um posicionamento moral do que uma postura crítica perante a obra de arte.
Em oposição a estes personagens, Mário apresenta Janjão, um compositor brasileiro. Janjão é o verdadeiro artista, apesar de não possuir toda a bagagem de Siomara Ponga. Pode-se afirmar que sua figura, preocupada com a função da arte na sociedade, é a antítese da cantora virtuosa. É por meio de Janjão que se cria um canal de discussão sobre as definições de artista e de arte, além de suas relações com a sociedade e a realidade onde estão inseridos. Ao contrário de Sarah Light, a milionária, de Felix de Cima, o político, e de Siomara Ponga, a cantora com virtudes, Janjão busca de alguma forma a reumanização de alguns aspectos da sociedade - este é seu ideal, ao qual é extremamente fiel. O artista deve ser perturbado e estimulado pelo fazer contínuo, a sua prática é inquieta e dinâmica.
A arte é uma doença, é uma insatisfação humana: e o artista combate a doença fazendo mais arte, outra arte. 'Fazer outra arte' é a única receita para a doença estética da imperfeição. O artista que não se preocupa de fazer arte nova é um conformista, tende a se academizar. (Andrade, 1989, p. 171)
A arte é um exercício contínuo contra o conformismo e a aceitação de uma situação qualquer vigente, é a busca pela conscientização. Janjão, o compositor brasileiro, é aquele que luta por esta condição da arte e participa por meio dela das lutas humanas. O posicionamento e as atitudes deste personagem da ficção se assemelham com os do seu criador. Tanto Mário quanto Janjão assumem um comportamento de mediador; o estar no meio e mediar são um dos traços marcantes do intelectual como já apontou Beatriz Sarlo (1995).
O último personagem, Pastor Fido, conhecido de Janjão, partilha com o compositor muitos de seus posicionamentos. Ligado ao jornalismo, será Pastor Fido a trazer à baila, durante o banquete, alguns temas como a censura, a não liberdade de expressão, a repressão e o abuso exercido muitas vezes pela classe dominante. É nos sete capítulos escritos por Mário de Andrade de O banquete que se pode verificar o seu posicionamento e pensamento sobre a arte em geral e a(s) atitude(s) do(s) artista(s), mediante a construção de seus personagens. Sarah Light, por exemplo, possui uma discoteca colossal só para ela, uma espécie de domínio particular apesar de não apreciar tanto música. Na verdade, a discoteca serve para mostrar e confirmar seu status social. Tanto Sarah quanto os outros dois personagens pertencentes à classe dominante não vêem e não colaboram para o caráter social da arte. Tal concepção é bastante divergente daquela apresentada por Mário por meio de Janjão: "Toda arte é social porque toda obra-de-arte é um fenômeno de relação entre seres humanos"(Andrade, 1989, p. 171). Se a arte é social e mediadora, possui uma função dentro da sociedade. Mas a qual sociedade pertencem esses três personagens, Sarah, Siomara e Felix? Os dois últimos são de origem européia, respectivamente espanhola e italiana, e Sarah, como já colocado, não tem raízes em lugar algum. Nenhum deles apresenta relações estreitas, além de seus interesses pessoais, com a sociedade brasileira. Janjão é o único de origem brasileira e aquele que se preocupa com a realidade do lugar onde vive. As concepções sobre a arte apresentadas por meio de Janjão podem ser identificadas em um outro texto de Mário de Andrade.
A bem dizer, não existe uma arte de combate. Mas si não existe uma "arte de combate", toda arte é essencialmente combativa por definição. Pois que ela nunca foi um exclusivo problema de beleza; a beleza não é sinão o elemento trans-positor de que a arte se serve pra funcionar dentro da vida humana coletiva. (Andrade, 1995, p. 30)
No fragmento extraído de uma carta enviada ao pintor Errico Bianco, Mário defende o conceito de 'arte de combate', ou seja, uma arte engajada com tudo aquilo que a cerca, uma manifestação voltada não só para seu criador, mas também para algo maior. Para o pesquisador e intelectual brasileiro, o conceito de arte é inseparável de um comprometimento, o 'combate' de encontrar um papel e uma função dentro da sociedade à qual pertence. "Todos os homens são intelectuais [...]; mas nem todos os homens exercem na sociedade o papel de intelectual" (2000, p. 216): esta frase do filósofo Antonio Gramsci corrobora o posicionamento diante da função do artista, da arte e do intelectual defendidos pelo modernista brasileiro. O intelecto, capacidade de pensar, é uma característica inerente a todo homem, o que faz a diferença é a maneira como tal faculdade é exercida pelo indivíduo.
Mário de Andrade, no seu percurso, trabalhou, exercitou e soube construir um lugar na sociedade brasileira. Os papéis de pesquisador e escritor se articulam em travessias e rotas que delineiam os diferentes caminhos percorridos e traçam também o contorno da fisionomia do intelectual, interessado nos diversos setores da sua sociedade. Mário de Andrade, sujeito múltiplo, não fala de um único lugar; ao contrário, suas falas reproduzem a pluralidade de lugares por onde transita, mostrando as diversas faces e a complexidade do seu perfil: poeta, musicólogo, pesquisador, folclorista e escritor. E é nessas travessias que um dos maiores representantes da Semana demonstra a unidade essencial entre teoria e prática, no exercício de sua atividade de intelectual e pensador da cena cultural brasileira da primeira metade do século XX.
Referências Bibliográficas
ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Belo Horizonte: Villa Rica, 1993.
______. O banquete. 2.ed. São Paulo: Duas Cidades, 1989.
______. Carta ao pintor moço. São Paulo: Boitempo, 1995.
BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder. São Paulo: Edunesp, 2004.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, vol. III. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
SAID, Edward W. Representations of the intellectual. New York: Pantheon, 1994.
SANTIAGO. Silviano. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
SARLO, Beatriz. Intelectuais. Cenas da vida pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1995.
SARTRE, Jean. Em defesa dos intelectuais. São Paulo: Ática, 1994.
SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: UFMG, 1999.
NOTAS DE RODAPÈ
2 Ver a esse respeito: Bobbio (2004).