Revista Gândara 1

Entrevista

Maria Alice Rezende de Carvalho

Maria Alice Rezende de Carvalho é doutora pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), professora titular e pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) desde 1987. É autora de Quatro vezes cidade (Rio de Janeiro: SetteLetras, 1994), O quinto século - André Rebouças e a construção do Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1998); co-autora de Corpo e alma da magistratura brasileira (Rio de Janeiro: Revan, 1997) e de A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999). Organizou a coletânea República no Catete (Rio de Janeiro: Museu da República, 2001) e o Centro de Referência da História Republicana Brasileira, versão eletrônica www.republicaonline.org.br.

 

No seu livro O quinto século, você traça a biografia intelectual de três grandes figuras do início do século XIX, André Rebouças, Joaquim Nabuco e Alfredo Taunay, entrecruzando gêneros literários (autobiografia, diários e cartas) e criando um quadro biográfico para dar conta da formação e da inserção intelectual desses personagens no Império. Essa seria uma das características do intelectual contemporâneo: reagrupar fragmentos em uma outra ordem cognitiva e, com isso, suscitar novas visões sobre o estabelecido, sobre o canônico?

 

MA - Penso que esse é o trabalho específico do historiador, na medida em que ele é obrigado a selecionar do passado os fragmentos que poderão ser rearticulados em uma proposta de interpretação de um tempo diverso do seu. As formas de seleção e os modos de reorganização daquele material são, porém, tributários da ambição que acomete todo historiador em resolver problemas que lhe são contemporâneos. Não sei se essa é uma característica generalizável, se é um procedimento que está presente na atividade de todos os intelectuais de nosso tempo. De qualquer modo, seria possível dizer que os grandes sistemas de conhecimento estão em franco desuso e que, em termos muito gerais, a missão do pensamento contemporâneo é procurar conferir sentido aos indícios, evidências, informações e pistas isoladas e lançá-lo ao debate público.

 

Ainda sobre o seu livro O quinto século, em que medida a trajetória dos irmãos Rebouças prefigurou novos caminhos de acesso à vida pública para grupos considerados historicamente minoritários?

 

MA - Quando escrevi O quinto século buscava recuperar a origem de uma das grandes tensões presentes na vida do país, que diz respeito à disputa, ainda hoje, entre uma perspectiva de modernização que abomina a nossa trajetória e pretende romper com a tradição brasileira e uma outra, que reconhece que o moderno, no Brasil, é instaurado mediante um longo e permanente processo de incorporação de temas, atores e caminhos, liderado pela tradição. André Rebouças, nesse caso, atendia plenamente aos meus objetivos analíticos, na medida em que a sua própria biografia é reveladora do trânsito de uma posição mais dura, fortemente crítica em relação ao Brasil, para uma adesão ao que se poderia chamar de revolução passiva à brasileira, para utilizar uma expressão de Luiz Werneck Vianna.1

Não pensei, enquanto redigia o livro, na questão da exemplaridade de Rebouças, um engenheiro negro em pleno contexto escravista, para os nossos dias, em que a marca cultural mais saliente é a emergência pública de movimentos de afirmação de identidades étnicas. Até porque, esse não era, decididamente, um problema do século XIX. Penso, porém, que não deixa de ser uma homenagem aos negros e à sua contribuição à vida nacional a recuperação da história de André Rebouças, um estadista que, afinal, foi parte ativa na construção da civilização brasileira.

 

No seu livro Quatro vezes cidade, você lança mão de biografias para subsidiar a construção do que chamou de uma 'paisagem social do Rio'. Até que ponto biografias ou autobiografias se configuram como ferramentas para esse tipo de análise?

MA - Não me recordava que o recurso a biografias já havia participado de minha estratégia analítica sobre o Rio de Janeiro, muito antes, portanto, de reaparecer no livro sobre André Rebouças. De fato, a análise da trajetória de Leila Diniz me permitiu falar de uma das mais importantes características da nossa cidade, qual seja a da comunicação entre intelectuais e mundo popular - tema que retomei, mais recentemente, em um ensaio sobre a história do samba carioca, que integra a coletânea intitulada Decantando a República, organizada por Berenice Cavalcante, Heloísa Starling e José Eisenberg.2 Revendo, porém, agora, o caminho que me levou a associar personagens a cidades, e que resultou na incorporação de algumas biografias em um livro basicamente dedicado ao Rio de Janeiro, talvez possa dizer que, à época, o trabalho de Carl Schorske sobre Viena e seus intelectuais3 influenciou fortemente a minha perspectiva e desenhou uma agenda de questões que me acompanha até hoje.

Em seu texto "Itinerário suburbano" você afirma que a academia, a partir de um determinado momento, teve de ser traduzida pela mídia. Você utiliza a imagem da 'academia descendo às calçadas'. Se pensarmos que esse processo ainda vigora, quais os desdobramentos que podemos esperar dessa 'descida às ruas'?

MA - De fato, nos últimos anos, houve um encontro entre a academia e a mídia e esse foi um fenômeno que decorreu naturalmente do fortalecimento da democracia política no Brasil, da ampliação do debate público e da constituição, por parte das ciências sociais, de uma agenda de questões mais próxima da vida do 'homem comum', que é também o destinatário dos grandes veículos de comunicação de massa. Nesse caso, pode-se prever que uma certa conjugação entre a produção e a circulação de conhecimentos úteis ao aperfeiçoamento da vida coletiva venha a ter continuidade, na medida em que esse ambiente favorável ao debate de idéias se reproduza e se enraíze entre nós.

Nesse mesmo texto, você fala do desinteresse 'típico das ditaduras em financiar inovações no campo das ciências sociais'. Você poderia explicar essa relação entre poder público e produção de conhecimento?

MA - "Itinerário suburbano" é um ensaio interpretativo das transformações que têm ocorrido na cidade do Rio de Janeiro nos últimos 20 anos, com um breve e introdutório balanço sobre o estágio em que se encontra o debate sobre a vida urbana local. Ali, portanto, não se encontram maiores subsídios para a discussão sobre a relação entre o mundo público e a atividade intelectual, o que poderá ser encontrado em um trabalho intitulado "Cientistas sociais e vida pública",4 realizado juntamente com Luiz Werneck Vianna e Manuel Palácios Cunha e Melo. Sinteticamente, o que se pode dizer é que as ditaduras, em geral, desconfiam da produção de conhecimentos sociais e, principalmente, inibem a constituição de movimentos de opinião que partam de agências intelectuais tão diversas quanto os sindicatos, as associações de cidadãos para finalidades diversas, os partidos políticos etc. Com isso, cortam a comunicação entre a academia e o mundo público, que, do meu ponto de vista, ainda é a principal fonte de estímulo da pesquisa social, já que é dessa comunicação que surgem os temas e objetos de interesse dos cientistas sociais. Por isso é que, mesmo quando as ditaduras não cancelam a atividade científica - o que ocorreu no Brasil, onde, ao contrário, se observou a institucionalização de um sistema nacional de pós-graduação e pesquisas - produzem uma sociedade inerte que, da perspectiva do conhecimento social, é um obstáculo ao seu desenvolvimento e à sua inovação.

 

No caso do Brasil, poderíamos identificar possíveis heranças que ainda hoje afetam nossa academia?

MA - Poderíamos dizer que, paradoxalmente, o período conheceu alguns efeitos positivos sobre a ciência nativa, que ainda vigem. Tais efeitos são os que me referi anteriormente, e concernem à construção de um sistema nacional de ensino pós-graduado e pesquisa, com a ampliação dos cursos em todas as áreas, inclusive nas ciências sociais, a formação de quadros qualificados para o sistema universitário e o investimento em publicações, bolsas, sistema de avaliação e outros itens relevantes à produção científica. Os efeitos negativos, contudo, também continuam a ter vigência. E para citarmos apenas o caso das ciências sociais, observa-se, ainda hoje, a permanência de um isolamento social da nossa atividade, como se ela interessasse apenas ao pequeno mundo universitário - isolamento que deriva tanto da percepção que desenvolvemos de nós mesmos e do tratamento esotérico que muitas vezes emprestamos à disciplina quanto de uma visível dificuldade da sociedade em perceber a reflexão social como uma necessidade sua e uma 'aliada' para os seus propósitos. Mudanças significativas nessa 'cultura' são, como sabemos, lentas e o isolamento persistente das ciências sociais é um poderoso entrave a essa área.

 

Você afirma que a ignorância sobre a cidade tem muitas faces. Uma delas seria o desconhecimento político que resulta num grave obstáculo à democratização da cidade, no sentido de estabelecer nexos entre os cidadãos e a esfera estatal. Seria possível estabelecer metas e prazos para que essa situação se modifique?

MA - A ênfase na política tem sido a tônica de algumas reflexões que desenvolvi sobre a violência5 e, principalmente, a que tem curso na cidade do Rio de Janeiro. Isso se deve ao fato de que, analisando parcela significativa da produção bibliográfica sobre esse tema, concluí que fatores culturais e estritamente sociais participam de forma muito mais evidente na consideração sobre as causas da violência brasileira do que os de natureza política. Minha hipótese é que tais análises trazem embutido um ideal normativo que é o da igualdade, desconsiderando, em larga medida, o quanto um ambiente livre e democrático, com tudo o que ele implica em termos de vitalidade associativa, padrões cooperativos de convivência e confiança nas instituições, pode significar do ponto de vista de soluções negociadas para o conflito e o conseqüente bloqueio da irrupção da violência. Portanto, o desconhecimento da importância da liberdade política para a integração e a participação sociais tem levado a um empobrecimento da reflexão sobre a violência, sobre o Rio de Janeiro e sobre as eventuais soluções que deverão ser buscadas para muitos dos problemas do mundo urbano brasileiro. Afinal, sem uma boa formulação sobre si, as cidades e seus atores não poderão estabelecer metas adequadas para o seu aperfeiçoamento.

Você poderia definir as novas configurações do intelectual contemporâneo? 

MA - Penso que, a despeito de todas as transformações que vêm ocorrendo no plano da cultura, da ciência e da informação, sempre haverá espaço para o intelectual singular, autoral. Contudo, são muito evidentes as tendências para o surgimento de uma figura distinta desta, que poderíamos chamar de intelectual coletivo. Esse é um termo semanticamente contaminado, já que alguns autores, como, por exemplo, Antonio Gramsci, o utilizaram com um sentido preciso no âmbito de suas respectivas obras. Aqui, da forma como o refiro, ele não tem a carga de um conceito. Traduz, apenas, a percepção empírica de que o modelo de produção cooperativa que se desenvolveu em campos específicos da ciência ou em agências que, por destinação, estão obrigadas a produzir reflexões acerca de si e do seu entorno social, vem ganhando espaço no mundo contemporâneo.

 

 NOTAS DE RODAPÉ

1 Vianna, Luiz Werneck. A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997.

2 Cavalcante, Berenice; Starling, Heloisa Maria; Eisenberg, José (Orgs.) Decantando a República: inventário histórico e político da canção moderna brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004. v.1 - Outras conversas sobre os jeitos da canção.

3 Schorske, Carl. Viena fin-de-siècle: política e cultura. São Paulo: Unicamp/Companhia das Letras, 1988.

4 Werneck Vianna, Luiz; Carvalho, Maria Alice Rezende de.; Melo, Manuel Palácios Cunha e. Cientistas sociais e vida pública: o estudante de graduação em ciências sociais. Dados, Rio de Janeiro, v. 37, n. 3, p. 345-535, 1994.

5 Ver, sobretudo, Carvalho, Maria Alice Rezende de. Cidade escassa e violência urbana. Série Estudos, n.91, Rio de Janeiro: Iuperj, 1995.