Revista Gândara 1

A poesia deve ser feita por todos, por um só, ou contra todos? - Do surrealismo a Herberto Helder

Izabela Leal

Ninguém acrescentará ou diminuirá a minha força ou a minha fraqueza. Um autor está entregue a si mesmo, corre os seus (e apenas os seus) riscos. O fim da aventura criadora é sempre a derrota irrevogável, secreta. Mas é forçoso criar. Para morrer nisso e disso. Os outros podem acompanhar com atenção a nossa morte. Obrigado por acompanharem a minha morte.

Herberto Helder

Em 25 de abril de 1950, Mário Henrique Leiria, João Artur Silva e Artur do Cruzeiro Seixas escrevem um "Comunicado Surrealista", que deveria ter sido publicado por Simon Watson Taylor, na França, mas permanece inédito por divergências políticas dentro do grupo surrealista francês. Em um dos trechos mais significativos de tal comunicado, podemos ler as seguintes palavras:

 

Quando num país o poeta não é mais poeta se não pertencer a um partido e o homem não pode ser homem se não for um carneiro, o grande mito do século - LIBERDADE - deixa de ser mito para se tornar realidade visível que se procura com ânsia e desejo. Quando num país a igreja católica transforma os homens em seres sem sexo e a ditadura do Papa obriga os poetas a serem padres ou castrados, o nosso furor sexual obriga-nos ao grande acto mágico da subversão de valores e à afirmação total do nosso direito de foder livremente, de sermos os verdadeiros poetas do amor, da destruição, da surrealidade. (Tchen, 2001, p. XVIII)

 

Escrito "precisamente 24 anos antes do 'dia da liberdade'", como observa Adelaide Tchen em A aventura surrealista (2001, p. 125), o comunicado formula explicitamente as aspirações do movimento, que podem ser enumeradas na procura da liberdade, do amor, da destruição e da surrealidade. Apesar de tomar como modelo o movimento surrealista francês, 1  em Portugal o surrealismo deparou-se com situações bem mais complicadas do que as enfrentadas pelo movimento na França, já que foi tardio e coincidiu com a época em que o país se encontrava em plena ditadura salazarista, além de ter-se desenvolvido logo após a II Guerra Mundial.

A poesia feita por todos

O salazarismo em Portugal representou um enorme obstáculo em relação ao desenvolvimento das atividades culturais e artísticas, uma vez que os artistas dos mais variados setores culturais tiveram de se submeter às práticas da censura, vendo seus trabalhos impossibilitados de circular livremente. Assim é que o projeto surrealista, em um primeiro momento, partilha dos ideais neo-realistas, na medida em que ambos se configuravam como projetos coletivos que almejavam mudar a vida, o mundo e, logicamente, a sociedade portuguesa. Devemos lembrar, inclusive, que muitos dos artistas que se engajaram no surrealismo participaram anteriormente do movimento neo-realista. Podemos citar, do grupo que se reunia no café Herminius por volta de 1942 e 1943, nomes como o de Mário Cesariny de Vasconcelos, Marcelino Vespeira, Cruzeiro Seixas, Pedro Oom e Alexandre O'Neill, entre outros. Entretanto, após um curto período, os autores apontados decidem desligar-se do neo-realismo, por julgarem que este estava por demais preso a uma documentação da realidade, ao passo que sentiam a necessidade de buscar uma forma de expressão que unisse dois aspectos, segundo eles, ausentes do projeto neo-realista: a manifestação da subjetividade e a transfiguração da realidade, e não a sua representação.

Essa divergência de objetivos não impede de assinalarmos que há um aspecto revolucionário e coletivo comum a ambos os movimentos. Do lado do neo-realismo, a literatura tornava-se um espaço de representação da realidade que serviria à construção de uma nova ordem social. Assim é que um dos focos sobre os quais esta literatura incidia era a caracterização do trabalhador e da dura realidade enfrentada por este. A arte imbuía-se, então, de uma finalidade que serviria à cons-cientização das desigualdades sociais. Do lado do surrealismo, a existência de um projeto coletivo ficava patente na medida em que um dos principais lemas do movimento se inspirava na afirmação de Lautréamont de que "a poesia deve ser feita por todos, não por um", demonstrando que a poesia era encarada como uma forma de libertação. Como exemplo de realização deste projeto, podemos citar as diversas técnicas de criação coletiva, como o cadavre-exquis , cuja produção foi a tal ponto numerosa em Portugal, que Mario Cesariny de Vasconcelos chegou a realizar uma Antologia surrealista do cadáver esquisito (1961).

A organização de um grupo surrealista em Portugal só ocorre de fato em 1947, sob a denominação de Grupo Surrealista de Lisboa, do qual fazem parte muitos dos jovens que se reuniam no café Herminius. Entretanto, o grupo rapidamente começa a se desarticular e, na data da realização da primeira exposição, no ano de 1949, este já não contava mais com Mario Cesariny, 2  que dará início à formação de um outro grupo chamado Os Surrealistas, conhecido também como Grupo Dissidente.

A data dessa primeira exposição surrealista coincide também com o ano em que se daria a eleição para a presidência da República. Para marcar a ligação desejada pelos surrealistas entre vida e arte, e entre arte e atuação política, podemos dar como exemplo a capa do catálogo da exposição, que apresentava, na verdade, um texto de intervenção.

 

Na referida capa, era possível ler uma mensagem, com letras de diversos tamanhos e tipos, que tinha como objetivo aconselhar o voto no general Norton de Matos, candidato da oposição: 3 

O GRUPO SURREALISTA DE LISBOA
PERGUNTA
DEPOIS DE 22 ANOS DE
MEDO
AINDA SEREMOS CAPAZES DE
UM ACTO DE
LIBERDADE?
É ABSOLUTAMENTE
INDISPENSÁVEL
VOTAR CONTRA
O FASCISMO

A leitura de um texto como esse obriga-nos a considerar que os limites entre surrealismo e neo-realismo são de fato bastante tênues. Ambos apostam na construção de um futuro melhor, ainda por vir. A literatura será, então, o lugar da aparição do homem, lugar também de vislumbrar um novo horizonte, de fazer com que a poesia se transforme em um projeto que não é somente estético, mas sobretudo ético ou, como diria António Maria Lisboa em "Erro próprio", um projeto para "INVENTAR O MUNDO!" (1995, p. 47).

 

A poesia feita por um

Todavia, a crença nas possibilidades de transformação da vida e do mundo - que são os verdadeiros objetivos do movimento - não consegue se sustentar por muito tempo dentro da realidade portuguesa. E no próprio ano de 1949 Mário Henrique Leiria e Pedro Oom começam a demonstrar um ceticismo em relação ao futuro do movimento, por conta da enorme dificuldade enfrentada pelos artistas em decorrência da situação política do país. Um ano mais tarde, no comunicado já citado anteriormente, Mário Henrique Leiria, João Artur Silva e Cruzeiro Seixas chegarão a afirmar que "em Portugal, não é possível a existência de qualquer agrupamento ou movimento dito surrealista, mas de que apenas poderão existir indivíduos surrealistas agindo, por vezes, em conjunto" (Tchen, 2001, p. XVIII - grifos do autor).

Tal afirmação não põe em questão a validade da experiência poética da forma como é pensada pelo surrealismo, mas lança uma sombra de dúvida em relação à possibilidade de constituir-se um projeto coletivo por meio do qual seria possível atuar sobre a realidade e provocar a sua transformação. Tudo se passa como se, a partir de um determinado momento, as aspirações revolucionárias fossem dando lugar a uma realização que diz mais respeito a uma redenção individual do que à salvação do coletivo. Assim é que Pedro Oom escreve, também em 1949, um texto intitulado "Carta ao Egito", 4  no qual formulará a sua concepção de poesia como "um meio de conhecimento e acção". Esta concepção de poesia influenciará vários outros poetas de sua geração, dentre eles António Maria Lisboa.

Na referida carta, Pedro Oom discorrerá a respeito do caráter do conhecimento produzido a partir do fazer poético: "A poesia é um meio de conhecimento e acção de cujos frutos, bons ou maus, só o poeta aproveita [...]" (apud Vasconcelos, 1966, p. 95). Do mesmo modo, como observa Fernando Martinho, António Maria Lisboa, influenciado pelas idéias de Oom, no já aludido texto "Erro próprio", assinalará que o ato poético é "fechado e não aberto, [...] hermético, [...] íntimo e não espetacular" (apud Martinho, 1996, p. 61).

Assim é que, no painel que se desenhava na passagem para os anos 50, ficavam manifestas duas formas de encarar o futuro do movimento, de acordo com Adelaide Tchen. Do lado do Grupo Surrealista de Lisboa alguns artistas expressariam otimismo e conformismo à situação. Já do lado dos Dissidentes, seriam redigidos discursos que afirmavam a ruína do movimento, e Mário Henrique Leiria chegaria a considerar a ação do grupo como um malogro (Tchen, 2001, p. 136).

Perante este cenário pessimista, o grupo d'Os Surrealistas começa a dissolver-se a partir de 1951. Alexandre O'Neill rompe com os parceiros, e Cruzeiro Seixas parte para Angola, de onde só retornará em 1961. António Maria Lisboa é internado em uma clínica devido a complicações pulmonares. Nos anos posteriores, a crise será agravada - Mário Henrique Leiria desligar-se-á do grupo em 1952 e António Maria Lisboa morrerá em 1953.

Não é de surpreender, portanto, que ao encarar os maus prognósticos sobre o futuro do movimento, Pedro Oom proponha uma nova saída para a surrealidade, concepção chamada pelo poeta de abjec-cionismo 5  e que representaria uma postura ética e estética de total insubmissão em relação às regras preestabelecidas, condenando, por exemplo, a possibilidade de o surrealismo vir a tornar-se uma escola. Assim, o abjeccionismo basear-se-ia, como afirma o autor, na "resposta que cada um dará à pergunta: 'que pode fazer um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?'" (apud Vasconcelos, 1966, p. 291). Mas não devemos nos enganar com tal afirmação, supondo-a representativa de uma visão pessimista, pois o autor logo se apressa em explicar que o alvo de sua proposta é a busca de uma saída para impedir a anulação da singularidade. A compreensão que o poeta nos dá do abjeccionismo é, portanto, afirmativa, pois assegura que esta pergunta "tem também como ponto de fé que, seja qual for a resposta, a 'esperança' não será aniquilada, pois se acredita que 'c'est au fond de l'abjection que la pureté attend son heure'" 6  (apud Vasconcelos, 1966, p. 291). Assim, devemos entender o abjeccionismo como uma tensão entre as forças que atravessam a relação do indivíduo com a sociedade, e não como uma visão negativista ou pessimista sobre a vida.

A partir da segunda metade dos anos 50, começa a formar-se uma segunda geração surrealista, que se divide em dois grupos: um que se reunia no Café Royal e outro no Café Gelo. Dos que freqüentavam o segundo, podemos citar os nomes de Manuel de Lima, Luiz Pacheco, Mário Cesariny, Raul Leal, José Manuel Simões, Helder Macedo, João Rodrigues, Gonçalo Duarte, Escada, Cargaleiro, António José Forte, Manuel de Assumpção, Virgílio Martinho, Saldanha da Gama, Ernesto Sampaio, Herberto Helder, Manuel de Castro e João Vieira. De acordo com Cesariny, essa geração teria uma forte influência do abjeccionismo, compartilhando as concepções de Pedro Oom e António Maria Lisboa. Os artistas dessa geração terão como órgão difusor dos seus escritos a revista Pirâmide , cuja publicação durará três números, saídos entre 1959 e 1960.

Apesar de ter participado de muitas das reuniões do Café Gelo, Cesariny insiste em não assumir uma ligação mais direta com o grupo e não assina a sua declaração coletiva, aparecida em 1958. Seria bastante interessante retomarmos as suas palavras, citadas por Fernando Martinho, e a sua justificativa para não ingressar em nenhum dos grupos. "No Grupo do Café Royal, [...] condena ele a futilidade; no Grupo do 'Gelo', rejeita a 'experiência [...] trágica'" (Martinho, 1996, p. 79). Do mesmo modo, segundo o poeta, esta segunda geração estaria mais relacionada a um 'abjeccionismo conjuntural' do que ao surrealismo. É preciso, pois, investigarmos o que o poeta quer dizer com "expe-riência trágica" e "abjeccionismo conjuntural".

Fernando Martinho explica-nos que talvez Cesariny estivesse aludindo ao suicídio, de João Rodrigues, e à morte - ou "autodestruição sistemática" 7  -, de Manuel de Castro, como também a uma atitude niilista e negativista relacionada ao contexto político e social nos finais dos anos 50 em Portugal. Sabemos que durante os dez anos que separam as duas gerações a situação política em Portugal só tendeu a agravar-se. Houve um endurecimento do regime ditatorial, um aumento da repressão e várias tentativas frustradas de eleições livres.

Entretanto, António José Forte não compartilha das opiniões de Cesariny e no artigo "Breve notícia, breve elogio do grupo do Café Gelo", publicado no Jornal de Letras e Artes em 18 de fevereiro de 1986, caracteriza o grupo como 'iconoclasta' e 'libertário', afirmando que "a vários títulos surpreendente, no entanto, é o ponto de vista do poeta Mário Cesariny". De acordo com a opinião de José Forte, os ideais dos freqüentadores do Café Gelo repetiriam as preocupações de António Maria Lisboa e Pedro Oom, de que a poesia não estivesse relacionada a uma finalidade puramente estética, mas sim a uma postura ética perante a vida, ou seja, a um entendimento da atividade poética como uma forma de conhecimento e ação. A influência desses dois autores na segunda geração é tão marcante, que a pergunta de Pedro Oom - "o que pode fazer um homem desesperado quando o ar é um vômito e nós seres abjectos?" (apud Vasconcelos, 1966, p. 291) - foi impressa na capa do segundo número da revista Pirâmide , juntamente com uma frase de António Maria Lisboa que servirá de epígrafe a um texto de Máximo Lisboa: "É às palavras-actos, não às palavras que supõem actos, que me dirijo" (Martinho, 1966, p. 84).

Mas seria de fato uma posição pessimista e niilista a dos poetas dessa geração? Fernando Martinho acredita que sim, e cita, entre outros, o poema "Libertação", de António José Forte, comparando-o com um poema de Herberto Helder, ambos publicados no segundo número da Pirâmide .

Descerão por paredes sangrentas
e subirão do asfalto
ganindo com um prego na língua
com os pulsos atados às patas
sobre pulmões raivosos em barcos de esterco
e não olharão nem para baixo nem para o alto
mas para a frente
para o horizonte de fatias vermelhas
e para tráspara os afogados sem mar sem terra natal
sem paisagens marinhas
cada um com um buraco em seu peito
esguichando palavras estridentes
descerão atravessando gargantas
e subirão pela espinha a golpes de jejum
descerão empurrando palavras
transportando-as ao pescoço como cintos de salvação
abrindo crateras nas cabeças queridas
e olhos nos olhos dos aflitos
subirão do asfalto
transparentes e feridos
com os olhos nas mãos
a cabeça no sangue
chegarão aos pares ligados pela boca
com um estandarte negro seguro nos dentes
e descerão sempre cada vez mais e cada vez mais de alto
até chegar à orla do inferno chorarem as últimas lágrimase partirem de vez

(Forte apud Martinho, 1966, p. 90)

Obviamente, o poema de José Forte tem um tom sombrio, estabelecendo, nas palavras de Martinho, uma relação entre o ato poético e "uma descida ao inferno" (1996, p. 90). Assim, o 'esguicho de palavras estridentes' corresponde a um movimento vertiginoso, que conduz cada vez mais a um abismo repleto de imagens assustadoras. Em oposição a esta visão 'descensional' do ato poético, Martinho nos remete ao "Poema", de Herberto Helder, não sem antes ter apontado que o autor seria uma voz dissonante em relação aos outros poetas do Gelo, pois apresenta um lado exaltante da aventura surrealista; exaltação que Cesariny julgava ausente na geração.

Em "Poema", Herberto Helder apresenta-nos uma visão mágica do ato poético e é bem verdade, como aponta Martinho, que há um movimento de elevação, e não de descida, como no poema de José Forte. O lado exaltante e encantatório da poesia está aí presente, bem como a sua ligação com o sagrado, como veremos a seguir:

Fecundo mês da oferta onde a invenção ilumina / a harpa, e a loucura desperta a pura espada / em pleno sangue ; ó vasto, / amargo e límpido mês interior onde a graça / se toca do fogo e o corpo se torna o casto / e longo varão de música; escada de seiva / entre arbustos de estrelas / e cubos de sal perpetuamente ardendo. [...] - Entanto, mês dedicado para uma corola / de nuvem, para um vivo transporte / de verde ternura entre mamas e coxas femininas. / E entre a areia e a lama se descobre / a ideia, se perde a memória, se possui / uma estreita palavra virgem e extrema como / um bago de veneno, um cálice / de morte. [...] E eu dormia. O sangue atravessava a noite / como cantando baixo, o instinto / envolvia o punhal e o fruto. Tecedeiras / deixavam mãos sobre a atenção, flores / começavam e esfriavam ao comprido das veias. / Mês, mês! Um beijo caía sobre o peito, e o coração / subia no beijo. Gastava-se em cinza, renascia, / vibrava no beijo puro da loucura. / - Pela terra adiante crescia o trigo insensato / e divino do canto, pela terra adiante / o perdão nascia das formas, e por todas as coisas corria o sopro alucinado / e redentor / de um primeiro minuto de entre as mãos e a obra [...].

(Helder apud Martinho, 1996, p. 89)

Apesar de existir uma nítida diferença entre os poemas, acreditamos que há um ponto que torna justificável uma aproximação entre ambos. Este ponto está relacionado com a compreensão do ato poético como uma espécie de sacrifício, o que remete à sua dimensão sagrada. O sacrifício existente no poema de Herberto Helder, como bem observa Fernando Martinho, é o de um corpo que será transfigurado por meio de um ritual de criação, do qual não está excluído o 'sangue', a 'espada', o 'punhal', a 'morte' e o 'veneno'. Mas, se insistimos para que o poema de Forte não seja lido apenas como o exemplo de uma postura niilista, é porque devemos lembrar que o seu título é "Libertação", e que a descida ao inferno é também uma experiência votada à dimensão sagrada, na qual o horror equivale ao êxtase.

Por outro lado, não nos devemos enganar com o movimento ascendente apontado no poema de Herberto Helder. Pois nem tudo é elevação em sua poética, embora este seja um dos aspectos mais comumente comentados do autor. A importância concedida à matéria aparece como contraponto dessa elevação, chamando a atenção para a relação entre poema e corpo, como podemos perceber no seguinte trecho de Photomaton & Vox :

Agora o poema é um instrumento, mas não das disciplinas da cultura, é uma ferramenta para acordar as vísceras - um empurrão em todas as partes ao mesmo tempo. Bem mais forte que uma boa dose de LSD. Age no córtex cerebral, caímos em percepções novas, tudo se torna físico. Compreendemos em sentido revulsivo. As tripas digerem o universo. (Helder, 1995, p. 124)

 

A poesia feita contra todos

No já citado artigo de António José Forte, o autor define a sua geração como um grupo de "franco-atiradores", afirmação que une uma dimensão iconoclasta, violenta e criminal a uma dimensão prática, isto é, ativa, do ato poético. Assim é que os poetas da segunda geração surrealista abraçaram completamente a concepção de poesia como 'destino', como um 'estilo de vida', rejeitando a finalidade puramente estética da literatura.

É a partir dessa concepção da poesia como 'estilo de vida' que o ato poético ganha um estatuto ético. Pois o que se enfatiza aqui é a possibilidade de criar, sem que a criação esteja submetida a finalidades exteriores a ela, o que a identifica com destruição, com um exercício soberano de afirmação do desejo, de ruptura com os valores da sociedade. Esta formulação aproxima-se do pensamento de Bataille, no sentido que este deu à relação entre o Mal e a prática literária. O Mal manifesta-se na literatura pelo fato de esta ser um espaço de transgressão, de oposição aos valores utilitários que regulam as relações mundanas. A visão do fazer poético como um ato destrutivo é apontada por Ernesto Sampaio, poeta da segunda geração surrealista:

Destruição que sobretudo diz respeito e sobretudo põe em perigo as normas , os valores, as trocas sociais que criam ao homem um número, um espaço, uma experiência própria, a meio das nossas brilhantes sociedades de produtividade. Um acto livre põe em perigo esse armazém de estruturas, porque o seu objetivo será a provocação, a destruição desta sociedade de limitações conforme for ou não densa a ambiência ética que lhe deu origem e o seu conseqüente sentido revolucionário. Por isso a definição legal que lhe dão é a de crime , e por isso há nele a luz soberana de todos os grandes crimes da história. (Helder, 1985, p. 269)

Não é de espantar que, a respeito de Ernesto Sampaio, Herberto Helder escreva, na pequena biografia do autor em Edoi Lelia Doura , que "as reflexões sensíveis deste autor, os seus poemas-meditações - ou como se lhes queira chamar - são dos textos mais agudos e corajosos que entre nós já se escreveram, na modernidade, dentro da e sobre a 'experiência poética'" (Helder, 1985, p. 265). Pois Herberto Helder é um parceiro do mesmo crime, da mesma atividade transgressora exercida por Ernesto Sampaio. Como o poeta, afirma em "Breve notícia e regresso", de Photomaton & Vox , "[...] há uma criminalidade que me interessa" (Helder, 1995, p. 40). E continua o seu discurso em uma construção que remeterá diretamente à concepção de Pedro Oom e António Maria Lisboa de que a poesia é um ato de conhecimento realizado apenas pelo próprio poeta:

Deixem-se de lado as muitas possíveis implicações de várias palavras. Acentue-se unicamente a energia poética contida num só acto de um só homem, e cuja expressão, na existência cotidiana ou transferidamente, salvaguarda a preciosidade do espírito. Chamar-lhe 'espontaneidade criadora'? Sim. O mundo afinal transformou-se, algures, em certo momento. E esse algures é em toda a parte, e o momento é o tempo inteiro. Fui eu quem o transformou, em cada instante e ao longo da minha vocação criminal. Essa revolta de um só [...] pertence-me desde os alcances da memória. Os poemas são apenas equivalências do crime, ou são então, eles mesmos, um acto explosivo no próprio centro do mundo. (Helder, 1995, p. 40)

Se a poesia passa a ser entendida como um crime, é justamente porque a sua finalidade não atende a desígnios exteriores a ela, não entra em sintonia com os interesses determinados por uma moral, interesses que têm como objetivo último a manutenção da sociedade. O seu poder é um poder de destruição, de revolta. A linhagem de poetas da primeira e segunda geração surrealistas aos quais procuramos dar destaque têm em comum o fato de estarem empenhados nessa espécie de "guerra santa", 8  isto é, na realização de uma atividade que não visa à conservação dos valores. Assim nos diz António Maria Lisboa em "Erro próprio":

Vim, de facto, para falar do Poeta e da Poesia, duas coisas esquecidas pelos Políticos ao elaborarem os quadros do trabalho remunerado ou remunerador, duas coisas sempre fora do tempo e dos interesses de quem esquece: - Eles são os complicadores perpétuos dos Sistemas e da exaltação do Trabalho. É que o POETA não ama o trabalho, ele não dignifica, e sabe-se afastado incondicionalmente, e cada vez mais, da sociedade dita moderna e civilizada. (Lisboa, 1995, p. 31)

Desse modo, as marcas do desespero facilmente observáveis nos poetas da segunda geração surrealista, reconhecidas por Cesariny como um "abjeccionismo conjuntural", dizem respeito a uma forma muito específica de encarar a criação poética e a um desejo de afirmar-se contra os interesses utilitários da sociedade, que sempre subordinam o presente a um futuro por vir, à construção do amanhã. Fernando Martinho, apesar de parecer concordar, pelo menos em alguns aspectos , com a visão de Cesariny a respeito dessa geração, não deixa de observar, ao comentar um poema de António José Forte, que não é apenas a situação política de Portugal dos anos 50 o que desencadeia a revolta do poeta, mas sim a situação do indivíduo na sociedade, com o seu conjunto de imposições e interdições.

Herberto Helder, em um texto de Photomaton & Vox , publicado primeiramente na revista anarquista & Etc em 1973, retoma o lema de Lautréamont de que "a poesia deve ser feita por todos, não por um" e subverte-o de uma forma bastante curiosa. O texto intitula-se "A poesia é feita contra todos" e logo de início dispara:

Nós respeitamos os atributos e instrumentos da crimi-nalidade: agressão, provocação, subversão, corrupção. Queremos conhecer, exercendo-nos dentro de poemas, até onde estamos radicalmente contra o mundo. [...] Temos tudo o mais contra os trabalhadores. O trabalho de uns e o capital de outros não bastam para alugar-nos, embora estejamos usualmente disponíveis. [...]

A poesia é feita contra todos, e por um só; de cada vez, um e só. A glória seria ajudar a morte nos outros, e não por piedade. A grandeza afere-se pelas conveniências do mal. Aquilo que se diz da beleza é uma armadilha. Pena que não pratiquem o pavor, todos. Seria o lucro do nosso emprego e um pequeno contentamento para quem está com alguma pressa em agravar. (Helder, 1995, p. 160-162)

A oposição ao trabalho é mais uma vez afirmada, e é interessante notarmos de que forma essa condenação aparece, no mesmo texto, associada ao mal e aos "instrumentos da criminalidade". Se o mal se opõe ao trabalho, como aponta Bataille em A literatura e o mal (1998), é justamente na medida em que o bem se configura como uma força subordinada ao futuro, uma força de construção do amanhã que encontra a sua finalidade na medida em que conserva a estrutura produtiva da sociedade, na qual impera um "cálculo do interesse", ou seja, a preocupação, típica da sociedade capitalista, de submeter o indivíduo à manutenção dos meios de produção.

Se a poesia 'deve ser feita contra todos, e por um só', se ela está então relacionada à criminalidade, é na medida em que se oferece como recusa de uma atitude servil, recusa da conservação da ordem e da moral. Mas, como observa Bataille, "esta concepção não envolve a ausência da moral, exige uma 'supermoral'" (Bataille, 1998, p. 6). E é no âmbito de uma supermoral que a poesia 'feita contra todos' é feita inclusive contra o próprio poeta, uma vez que ele não pode encarnar esse ideal sem que a experiência 'criminosa' se reflita também nele próprio, sem que ele seja também atingido pela destruição que provoca. Nessa medida, a prática literária encontra a prática sacrificial, uma vez que a literatura põe em evidência um desejo que se manifesta para além de qualquer necessidade de conservação.

 

Referências Bibliográficas

 

BATAILLE, Georges. A literatura e o mal . Lisboa: Vega, 1998.

CUADRADO, Perfecto. A única real tradição viva - antologia da poesia surrealista portuguesa . Lisboa: Assírio & Alvim, 1998.

FORTE, António José. Breve notícia, breve elogio do grupo do Café Gelo. Jornal de Letras e Artes , Lisboa, 18 fev. 1986.

HELDER, Herberto. (Org.) Edoi Lelia Doura - antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa . Lisboa: Assírio & Alvim, 1985.

_______. Photomaton & Vox . Lisboa: Assírio & Alvim, 1995.

_______. Entrevista. Inimigo Rumor , n.11. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2° semestre de 2001.

LISBOA, António Maria. Poesia . Lisboa: Assírio & Alvim, 1995.

MARTINHO, Fernando J. B. Tendências dominantes da poesia portuguesa da década de 50 . Lisboa: Colibri, 1996.

ROCHA, Clara. Revistas literárias do século XX em Portugal . Lisboa : INCM, 1985.

TCHEN, Adelaide Ginga. A aventura surrealista . Lisboa: Colibri, 2001.

VASCONCELOS, Mario Cesariny de (Org.) A intervenção surrealista . Lisboa: Assírio & Alvim, 1966.

_______. (Org.) Antologia surrealista do cadáver esquisito . Lisboa: Guimarães Editores, 1961.

_______. (Org.) Surrealismo/Abjeccionismo . Lisboa: Minotauro, 1963.

 

NOTAS DE RODAPÉ

1 Muitos dos artistas que participaram do movimento português encontraram-se pessoalmente com André Breton e mantiveram um diálogo constante com este.

 2 Cesariny deixa o grupo em 1948 por meio de uma carta escrita "Ao amigo António Pedro", na qual explica que se separava do grupo "por não acreditar que seja Grupo e ainda menos surrealista" (Cuadrado, 1998, p. 31).  3 O catálogo acabou não saindo com a referida capa pelo fato de esta ter sido censurada; em seu lugar constou uma capa branca riscada com um 'X' azul.  4 Carta ao poeta Egito Gonçalves (Helder, 1985).  5 Pedro Oom escreve em 1949 um "Manifesto abjeccionista", que se perdeu.  6 A parte da frase escrita em francês parece ser a citação de outro autor, já que foi colocada entre aspas pelo próprio poeta. No entanto, não foi possível verificarmos a fonte da citação.

 7 Este termo provém da biografia do poeta redigida por Herberto Helder para a antologia Edoi Lelia Doura (1985) e está reproduzido no livro de Fernando Martinho.

  8 Herberto Helder refere-se à atividade poética como uma espécie de guerra santa em uma entrevista publicada pela revista Inimigo Rumor (2001).