Revista Gândara 1

O papel do intelectual na cultura contemporânea Seria almada um intelectual da atualidade?

Ana Lúcia de Vasconcellos Maciel

Este texto trata, especificamente, da obra artística de Almada Negreiros, na sua qualidade de intelectual precipuamente moderno, autodidata de saber e dedicação inquestionáveis. Produtor de obra plural, sendo a heterogeneidade a marca de seu gênio. Nele, na sua obra, logicamente, 1+1= 1. Antes de nos dedicarmos ao romance de formação, característico de o 'Poeta d' Orpheu , Futurista e Tudo', faremos uma leitura sintética do texto "A herança depreciada de Cervantes", em A arte do romance (Kundera, 1988) . Vejamos...

O século XX assistiu à crise da humanidade européia, nascida com a filosofia grega e entendida como identidade espiritual, estendendo-se além da Europa geográfica. A crise teve início com os denominados 'Tempos Modernos', com as descobertas de Galileu e Descartes, época inicial do desenvolvimento das ciências européias, em uma perspectiva unilateral.

O avanço das técnicas, da política, da História, reifica o homem; assim, as forças externas ultrapassam, sobrepassam, possuem-no. O homem - seu ser concreto, seu modo de vida - no percurso dos novos tempos, vai sendo eclipsado, esquecido de antemão. 'O homem não é mais senhor e dono da natureza', como apregoava Descartes.

Para Kundera, os filósofos desvendaram a ambigüidade dessa época, ao mesmo tempo, degradação e progresso, trazendo em si, como tudo o que é humano, o germe do fim em seu nascimento. Considera que 'Descartes e Cervantes são os fundadores dos Tempos Modernos' e que, enquanto as ciências, a filosofia esquecem-se do ser do homem, a literatura recupera a perspectiva humana, explora esse filão.

O romance acompanha o homem, constante e fielmente, desde o princípio dos Tempos Modernos. Tempos que nasceram com Dom Quixote. Herói que não possuía mais as condições de entender o mundo que o rodeava: um mundo abandonado pelos valores maniqueístas medievais (valores de bem e mal), valores de um mundo em que a Verdade cristã não mais orientava a vida. O mundo se relativizava, tornava-se ambíguo. A única certeza passa a ser a 'sabedoria da incerteza'.

O homem, com sua vontade inata de julgar antes de compreender, deseja o discernimento do bem e do mal. Nessa vontade são fundadas as religiões e as ideologias. E o romance, em uma forma conciliatória, traduz as linguagens de relatividade e ambigüidade no próprio discurso.

As aventuras quixotescas abrem caminho para os romances vindouros, o mundo parece ilimitado. Um mundo europeu para o qual o futuro não pode acabar nunca, tempo sem começo ou fim, espaço sem fronteiras.

Ao falar do caráter reducionista que acompanha a unificação da história do planeta, Kundera questiona se não é hoje o momento de ampliar o foco do romance literário, aquele que nos protege contra o esquecimento do ser, mantendo vivo o mundo. O autor afirma que o espírito do romance é o da complexidade. Cada romance diz ao leitor que as coisas são mais complicadas do que se pensa. Resta, então, a 'eterna verdade do romance', ouvida cada vez menos no alarido das respostas simples e rápidas que precedem a questão e a excluem.

A conclusão de Kundera é a de que o romance para sobreviver tem de adquirir a postura de ser contra o progresso do mundo, colocar-se contrariamente ao espírito do tempo. Diz ele que o futuro é o pior dos conformismos, a covarde adulação do mais forte. O futuro é sempre mais forte que o presente. O autor inclui-se, cavaleiresca e contraditoriamente, na herança depreciada de Cervantes, é este o caminho que aponta. Em oposição à conclusão amarga de Kundera, pode-se incluir a obra de Almada, produzida no século passado, no 'breve século XX', tão bem caracterizado por Hobsbawm (1995). Produzida em um ontem próximo - um ontem tão próximo que nos parece contemporâneo, a obra de Almada está, fundamentalmente, ligada à idéia de um século moderno, que seria também o princípio de um mundo moderno, de um modernismo com laivos futuristas. O artista nos diz, de forma otimista, não haver entre si e a vida qualquer mal-entendido.

Ao morrer, em 1970, Almada deixou mais de cinco décadas de produção artística. Viveu sob o signo de uma vontade incansável de reno-var o discurso artístico do seu país. Ocupou sempre um lugar de destaque nos debates culturais. Artista plástico, 'Poeta d' Orpheu , Futurista e Tudo', foi mais que um precursor de novos tempos, nele os tempos se fizeram novos. A obra escrita de Almada Negreiros precede sua produção plástica mais efetiva, fazendo parte de um projeto artístico-cultural e, conseqüentemente, de um anseio sociopolítico posto em prática.

Ser autor é o caso mais sério que se regista na história da inteligência humana. Ser autor é, depois de saber tudo o que se conhece, trazer-nos inédito o que ainda pertence ao conhecimento geral. A humanidade é um indivíduo único, colectivo, geral e por isso mesmo anônimo. A humanidade reconhece o seu próprio caminho mas não o conhece senão até onde já foi. O autor toma a dianteira à humanidade para a prevenir de viva voz do seu próprio caminho. Recordai e ligai: autor e artista são ambos da mesma ordem. (Negreiros apud Dine e Fernandes, 2000, p. 85)

 

A leitura do trecho anterior remete, inevitavelmente, à questão proposta por Michel Foucault (2002): 'o que é um autor?', remetendo, ainda, à questão da representatividade do intelectual. Como afirma Humberto Eco (2003): "o intelectual tem de ser a consciência crítica do grupo. Ele existe para incomodar". 1 

A obra literária de Almada consiste, essencialmente, na busca de uma linguagem capaz de descrever, em termos adequados, as múltiplas contradições enfrentadas pelo homem do século XX. O artista foi um dos primeiros escritores portugueses que ousou incorporar, na ficção, uma visão narrativa característica da modernidade, na qual se destacam as ironias implícitas de um mundo que se apresenta radicalmente fragmentado. Para Bauman (1998, p. 156),

os mal-estares, aflições e ansiedades típicos do mundo [...] - resultam do gênero de sociedade que oferece cada vez mais liberdade individual ao preço de cada vez menos segurança. Os mal-estares pós-modernos nascem da liberdade, em vez da opressão. São as outras características da ficção artística, aquelas explicadas por Umberto Eco - a capacidade de simplificar a desnorteante complexidade, selecionar um grupo finito de atos e personagens na infinda multiplicidade, reduzir o infinito caos da realidade a proporções intelectualmente manejáveis, compreensíveis e evidentemente lógicas, apresentar o contraditório fluxo de acontecimentos como uma narrativa com um enredo interessante de se ler[...].- Quanto mais o mundo real adquire os atributos relegados pela modernidade ao âmbito da arte, mais a ficção artística se converte no refúgio - ou será, antes, na fábrica? - da verdade.

A obra em prosa traça os primeiros passos de Almada na criação de um universo outro, produto da sua própria ficção. A riqueza do universo almadiano resulta de uma feliz confluência de idéias, gêneros e meios que, quando apreciados na sua totalidade, permite-nos apreciar diferentes mecanismos constitutivos de seu universo artístico - universo interpretativo da renovação das artes portuguesas, mas, sempre, de um modo bastante pessoal.

As grafias pessoais de Almada produzem uma percepção 'positiva', uma percepção solar, da contemporaneidade, diferentemente da resignação melancólica observada nas análises de Walter Benjamin sobre o papel do poeta na modernidade. Trata-se, pois, de um intelectual que acredita na ação, que narra o mundo moderno e que desenha, em vários matizes, a crença na ação. Almada multiplica seus dons, esperneia, grita manifestos contra o conservadorismo pátrio de

Portugal que com todos estes senhores conseguiu a classificação do país mais atrasado da Europa e de todo o Mundo! O país mais selvagem de todas as Áfricas! O exílio dos degredados e dos indiferentes! A África reclusa dos europeus! O entulho das desvantagens e dos indiferentes! Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia - se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado! (Negreiros apud Bueno, 1997, p. 645)

Vejamos o que diz o escritor no Ultimatum Futurista :

[...] Eu sou um poeta português que ama a sua pátria. Eu tenho a idolatria da minha profissão e peso-a. Eu resolvo com a minha existência o significado actual da palavra poeta com toda a intensidade do privilégio. Eu tenho 22 anos fortes de saúde e de inteligência. Eu sou o resultado consciente da minha própria experiência: a experiência do que nasceu completo e aproveitou todas as vantagens dos atavismos. A experiência e a precocidade do meu organismo transbordante. A experiência daquele que tem vivido toda a intensidade de todos os instantes da sua própria vida. A experiência daquele que assistindo ao desenrolar sensacional da própria personalidade deduz a apoteose do homem completo. Eu sou aquele que se espanta da própria personalidade e creio-me portanto, como português, com o direito de exigir uma pátria que me mereça. Isto quer dizer: eu sou português e quero portanto que Portugal seja a minha pátria. [...] Porque Portugal a dormir desde Camões ainda não sabe o novo significado das palavras. Exemplo: pátria hoje em dia quer dizer o equilíbrio dos interesses comerciais, industriais e artísticos. Em Portugal este equilíbrio não existe porque o comércio, a indústria e a arte não só não se relacionam como até se isolam por completo receosos da desordem dos governos. [...] O povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades.

(Negreiros apud Bueno, 1997, p. 649-665)

A partir de 1925, depois de escrito o romance Nome de guerra , que expõe a trajetória de lembranças de um personagem que deve ser feito homem, podem-se considerar como bem definidos os contornos do projeto artístico de Almada. O romance já indica a maturidade plena do autor e revela a percepção clara dos mecanismos que estruturam e organizam a transmissão de um conhecimento pessoal por intermédio da criação artística.

Desde 1915, Almada experimenta várias estratégias narrativas com o fim de descobrir um modo de comunicação adequado para relacionar o sujeito com o objeto, isto é, para inserir o seu 'eu' em um mundo caracterizado pela fragmentaridade da experiência moderna. Os contos e novelas do autor, até então, consistem não só em textos de questio-namento do sujeito; são também os textos de um sujeito que a si próprio se busca.

A atualização da novela de aprendizagem, que se verifica em Nome de guerra , leva Antunes, moço provinciano, a Lisboa. O rapaz é apresentado à cidade por um amigo do tio, D. Jorge, um 'experimentado', aquele que conhece os códigos de sociabilidade do universo urbano: "bruto como as casas e ordinário como um homem" (Negreiros, 1986, p. 43). O moço é e sempre fora policiado no seu crescimento masculino, deveria tornar-se um homem nos parâmetros do tio. Mas o papel da sociedade, foco do capítulo II, "A Sociedade Só Tem a Ver com Todos, Não Tem Nada que Cheirar com Cada Um", é apresentado diferentemente do que a do guia familiar, não cabendo a ela dirigir o destino das pessoas.

 

O papel da sociedade é imediatamente mais evidente sobre cada pessoa do que o atropelado movimento das gerações que a antecederam e lhe determinaram o seu sangue, mas aquela não vale esta. Que uma pessoa tome a seu cargo dirigir o próprio destino que lhe coube, é com ela. Que seja a sociedade quem se proponha dirigi-lo, é ingenuidade. (Negreiros, 1986, p. 29)

 

"É um rapaz sem importância coletiva; é apenas um indivíduo" (Sartre, 1986, p. 7) - o rapaz provinciano chega despreparado e passa a transitar pelos caminhos do desconhecimento de si e da cidade até, aos poucos, descobrir-se e à cidade. O desconhecimento liga-se à província. Sua chegada à capital, as dificuldades provocadas pela falta de cultura urbana, provocam a reflexão, os questionamentos. O olhar perscruta, as inquirições se sucedem. A lógica infantil não conclui decisivamente, anota comportamentos como se a organizar um novo código.

[...] eu não faço a apologia da ignorância nem o desprestígio da sabedoria, tão-somente me refiro que nas idades da ignorância existe uma força vital que não parece trespassável para as da sabedoria. Há um ditado que diz: se a juventude soubesse e a velhice pudesse [...] ora a juventude é bem o sinónimo de ignorância e a velhice de sabedoria. O que importa é que as energias da ignorância não se estiolem na sabedoria. (Negreiros apud Bueno, 1997, p. 895)

Mas o mais difícil era esquecer o que lhe ensinaram. O mais difícil era ficar outra vez ignorante: aquela genial ignorância das idades onde se começam todas as coisas deste mundo. Se era sabedoria o que faltava ao Antunes não era contudo o que ele desejava para já. Pelo contrário o que ele queria era ter contacto com a multidão, fazer parte dela, das massas ignorantes e inconscientes, ter a inconsciência e a ignorância dos que nada sabem e vivem assim mesmo. (Negreiros, 1986, p. 76)

Mesmo que se admita que o mundo não possa ser desvendado, Almada o enfrentou, prazerosamente, como um enigma a se desvendar. Não chegou armado de respostas prontas, categóricas e definitivas. Aceitar que o mundo é um enigma e que a partir desse enigma o que se pode fazer é fabular, lutar com as palavras, torná-las ação, avançando em suas incertezas, buscando respostas aos seus questio-namentos, tornou-se o Norte do intelectual.

Na obra de Almada Negreiros, encontra-se a reflexão sobre a construção do sujeito no lugar mesmo de sua constituição, a cidade moderna. Ela mesma enigmática, inscrita em códigos e só aberta aos que souberem decifrá-los. A cidade moderna nas suas formas representativas constrói sujeitos e suas formas de pensar, sentir, agir, imaginar e narrar. Sujeitos que se manifestam de maneira diversa em diferentes textos, sejam eles um edifício, um romance, um poema, um comportamento, uma escultura, um quadro.

A necessidade modernista de criar a própria identidade a partir da arte é reiterada por Almada na sua expressiva produção artística. A ficção literária foi o seu primeiro passo no sentido de uma possível libertação do sujeito. Ao contar histórias, Almada inventa a sua identidade. Esta invenção possibilitou-lhe a descoberta da liberdade de criação, consolidando-lhe a personalidade estética e, por extensão, a nossa, também em busca do desvendamento dos 'eus' de todos nós, das cidades e do grande mundo em que vivemos.

Em Gramsci (1979, 1981), lê-se que é preciso destruir o julgamento de que a filosofia é algo sumamente difícil por ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto, demonstrar que todos os homens são filósofos e definir os limites e as características desta filosofia espontânea própria de todos.

Assim, todos os homens são filósofos, porque pensar é próprio do homem como tal. O que separa um grupo do outro (intelectual e o não intelectual) não é a forma de conhecimento em si mesmo, mas um tipo de logicidade do pensamento, a coerência sistemática, a possibilidade de usar a própria história do pensamento, o seu sentido e também o seu desenvolvimento nas ações e tentativas de explicações do mundo.

O moderno, no ontem próximo ou no hoje, continua enigmático, fechado a quem não possui as chaves certas do desvendamento. E refletir sobre o mundo - grande cidade em sua confusão de códigos - constitui uma nota especial de interesse que só revigora a discussão de tantos temas - Ocidente e Oriente, transculturação, a cidade, o príncipe eletrônico, o desencantamento do mundo, os mitos e as mitologias - na aparência distintos, mas que se ligam na textura interior da reflexão sobre eles. A fascinação pela literatura, pelas artes, instrumentos privilegiados do conhecimento, propicia o aceite da diferenciação enigmática da cultura deste mundo que segue o curso da globalização, no fundo nada novo - como bem o disse Teixeira Coelho, 3  ao analisar o livro de Octavio Ianni (2000), Enigmas da modernidade-mundo .

Permanece o dilema pós-moderno, já tantas vezes debatido, fazendo-nos lembrar o título do capítulo XL de o Nome de guerra - "Uma mesa pequena para um grande assunto" ou, melhor dizendo, uma grande mesa para um pequeno assunto.

Lembramo-nos também de frase singular da personagem Scarlett O'Hara, em ... E o Vento Levou : "amanhã eu penso" . Peço a todos que participem desta tarefa...

 

Referências Bibliográficas

 

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

BUENO, Alexei. (Org.) Almada Negreiros: obra completa . Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.

DINE, Madalena Jorge; FERNANDES, Marina Sequeira. Para uma leitura da poesia modernista: Mário de Sá Carneiro e José de Almada Negreiros . Lisboa: Presença, 2000.

ECO, Humberto. A função dos intelectuais. Revista Época , fev. 2003.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 5.ed. Lisboa: Vega, 2002.

GRAMSCI, Antonio. Maquiavel: a política e o estado moderno. Rio de Janeiro . Civilização Brasileira, 1979.

________. Materialismo histórico e a filosofia de Benedetto Croce . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX - 1914-1991 . São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

IANNI, Octavio. Enigmas da modernidade-mundo . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

KUNDERA, Milan . A herança depreciada de Cervantes. In:________. A arte do romance : ensaio . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

NEGREIROS, José de Almada. Nome de guerra ou um outro amor em Portugal . Lisboa : Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986. v.II.

SARTRE, Jean-Paul. A náusea . 6.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

 

 

NOTAS DE RODAPÉ

 

1 Época , 3 de fevereiro de 2003, p. 22-23.

2 O Ultimatum foi escrito em 1917 e lido, nesse mesmo ano, no Palácio da República, em Lisboa.

 3 Teixeira Coelho é ensaísta, escritor e diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC-SP), autor, entre outros, de Niemeyer: um romance (Geração Editorial) e Dicionário crítico de política cultural (Iluminuras).