Dez anos dez temas

"Dar a ver": João Cabral de Melo Neto e Sophia de Mello Breyner Andresen

Sofia de Sousa Silva
Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses
 

Para a professora Cleonice Berardinelli 

No texto intitulado "O princípio poético", Edgar Allan Poe empenha-se em estabelecer para a poesia um princípio autônomo, dissociado dos de ordem moral e filosófica. Nos primeiros parágrafos, Poe afirma que um poema deve ser algo capaz de gerar uma emoção duradoura. Observa que o poema não pode ser longo demais nem curto demais; mas que, sobretudo, deve estar inteiramente livre de quaisquer regras que não sejam estéticas.

Todo poema, diz-se, deveria inculcar uma moral [...].

Metemos em nossas cabeças que escrever simplesmente um poema pelo poema e confessar que tal foi o nosso desígnio seria confessar-nos radicalmente carentes da verdadeira dignidade e força poéticas: mas o simples fato é que, se nos permitíssemos olhar para dentro de nossas próprias almas, descobriríamos imediatamente ali que, sob o sol, nem existe nem pode existir qualquer trabalho mais inteiramente dignificado, mais supremamente nobre, do que este mesmo poema, este poema per se, este poema que é um poema e nada mais, este poema escrito por ele mesmo. [1]

 

O esforço é conferir dignidade à atividade poética que não visa à educação de um povo ou à transmissão de exemplos de virtude ou de conteúdo moral de qualquer espécie. Poe recorre à divisão kantiana entre a razão pura (que ele chama "intelecto puro"), o senso moral e o gosto. Atribui a cada uma dessas áreas do pensamento uma competência própria: o intelecto se liga à verdade; o sentido moral, ao dever e o gosto, à beleza.

A poesia e a música se dariam numa luta para apreender a beleza suprema. Não guardariam uma relação necessária nem com a verdade nem com o dever, mas seria por meio delas que poderíamos ter pequenos vislumbres da alegria divina. A emoção diante de uma obra de arte adviria da constatação de que essa alegria incomensurável não pode ser inteiramente captada pelo homem senão através das pequenas iluminações oferecidas pela poesia e pela música.

Poe faz uma tentativa de delimitar o campo próprio da poesia. Deseja libertá-la de certos equívocos que a subordinam à moral ou à filosofia e, fazendo uso da classificação de Kant, encontra uma função nobre para a poesia num âmbito estritamente estético. Dá assim um passo que abre caminho para toda a poesia moderna. Não por acaso, entre seus leitores encontram-se poetas como Baudelaire (seu tradutor), Mallarmé e Valéry [2] .

João Cabral de Melo Neto, no texto intitulado "Poesia e composição" faz uma espécie de balanço da situação da poesia um século depois de Poe. Cabral trata do que resultou da libertação da arte da moral e da filosofia: a multiplicação de visões estéticas, a proliferação de correntes artísticas, a ausência de regras consensuais e a conseqüente impossibilidade de emitir um juízo absoluto - que não diga respeito apenas a uma corrente. O ensaio tem como subtítulo "A inspiração e o trabalho de arte", os dois caminhos identificados por Cabral para a produção artística. A procura da poesia pode-se fazer pela via da inspiração, do subjetivismo - herdeiro direto do romantismo - ou pela busca de objetividade, do trabalho sobre um objeto até que ele adquira autonomia e possa ser apreciado independentemente do seu criador. Segundo o autor, na arte contemporânea, o modo de fazer poesia pelo caminho da inspiração - com que ele não se identifica (e, discretamente, deprecia) - parece prevalecer, já que o investimento na subjetividade de cada um oferece maiores chances de autenticidade.

 

Cada poeta tem sua poética. Ele não está obrigado a obedecer a nenhuma regra [...]. O que se espera dele, hoje, é que não se pareça a ninguém, que contribua com uma expressão original. Por isso, ele procura realizar sua obra não com o que nele é comum a todos os homens, com a vida que ele, na rua, compartilha com todos os homens, mas com o que nele é mais íntimo e pessoal, privado, diverso de todos. [3]

 

A busca de autenticidade e o investimento no que cada homem tem de próprio leva a poesia a perder de vista uma dimensão social. A necessidade de comunicar e de falar da experiência comum é preterida pela de dizer algo novo, mesmo que esse algo possa ser decifrado apenas por pares. Nesse quadro em que as obras perdem a referência ao que é comum a todos e dialogam apenas entre si, surge o risco de se produzir poesia "puramente decorativa". Perde-se de vista a contraparte do leitor.

Ao longo do texto, sente-se a nostalgia de Cabral pelo tempo "em que o entendimento era possível", em que as regras correspondiam a necessidades sentidas por todos, quando havia certo consenso nas artes. Quando a inspiração e o trabalho não se opunham simplesmente. O exemplo citado é o do teatro clássico francês. Crê o autor que a presença de regras enriquece a arte.

Como tantas vezes ocorre em ensaios escritos por poetas, ao tratar da poesia em geral, Cabral fala de seus próprios princípios poéticos. O seu conhecido antilirismo pode ser visto como uma tentativa de falar da vida dos homens e não apenas das circunstâncias da vida de um homem, o poeta. O privilégio que concede à objetividade, em detrimento do subjetivismo, é fruto da sua crença na possibilidade que tem a linguagem de dar a ver algo a alguém.  É preciso contemplar o objeto por todos os lados e não apenas por um ponto de vista estritamente pessoal, é preciso tocá-lo com "os mil dedos da linguagem".

Nesse esforço de comunicar, de falar do que é comum, de se aproximar dos objetos, recuperam-se regras de metrificação, resgata-se a antiga poesia espanhola (por sua característica popular e realista), aprende-se a lição das artes plásticas (que igualmente procuram dar a ver). Há em Cabral, na escrita poética e no ensaio citado, uma valorização do trabalho e da disciplina que o autor não encontra nos poetas ditos inspirados. Para ele, um artista deve falar da beleza que pode ser vista por todos e não da que lhe foi oferecida exclusivamente. Para isso, precisa aprender a dominar-se, a conter suas explosões emotivas se quiser atingir outros homens, dar-lhes algo a ver.

Ao contrário de João Cabral, Sophia de Mello Breyner Andresen, poeta com quem tem uma relação de admiração mútua, afirma escrever por inspiração. Mas, em Sophia, trata-se de uma inspiração que requer disciplina e rigor, nada tendo do caráter biográfico, subjetivo e circunstancial de que Cabral fala. Ao invés disso, nela a inspiração é o que põe o homem em contato com os deuses, comuns a todos.

À primeira vista a distância entre esses autores pode parecer imensa. Ao caracterizar o poema feito por inspiração, Cabral chama-o "presente dos deuses", em oposição a "conquista dos homens", o poema resultante do trabalho com a palavra. Para não se deixar enganar por essa mudança de vocabulário, é preciso compreender que os deuses de Sophia são sempre os gregos que, como nos lembra o ensaio O nu na Antiguidade clássica, são deuses que estão neste mundo. Por esse motivo não há propriamente contradição entre a atenção cabralina ao concreto e a audição do poema ditado pelos deuses conforme o descreve Sophia. Entre os muitos textos que referem essa maneira de escrever, talvez um dos mais representativos seja a "Arte poética IV":

 

Sei que o poema aparece, emerge e é escutado num equilíbrio especial da atenção, numa tensão especial da concentração. O meu esforço é para conseguir ouvir o "poema todo" e não apenas um fragmento. Para ouvir o " poema todo" é necessário que a atenção não se quebre ou se atenue e que eu própria não intervenha. É preciso que eu deixe o poema dizer-se. [4]

 

Embora esteja presente a idéia tão criticada por Cabral de que o poema é algo que emerge, dado, há nesse emergir e nessa oferta uma exigência de atenção. E pode-se ver que em Sophia a inspiração nada tem de subjetivo quando se diz; "é necessário [.] que eu própria não intervenha".

Para chegar a esse estágio em que o poeta permite que o poema se diga é preciso abolir qualquer atitude confessional. Assim como Cabral, Sophia procura a objetividade:

 

A dicção não implica estar alegre ou triste       
Mas dar minha voz à veemência das coisas [5]

 

Só através da despersonalização será possível entrar na caçada, devorar "o coração do leão".

A própria "extinção da personalidade" de que já falava T.S. Eliot parece ser o objetivo último do sujeito poético que se exprime no poema "Musa", uma das mais belas artes poéticas de Sophia de Mello Breyner Andresen e cujos versos finais, após uma longa invocação à musa, dizem:

 

Musa ensina-me o canto     
Que me corta a garganta [6]

 

Mas permanece ainda uma questão: como se pode conciliar o pensamento de Poe, que quer a poesia livre da moral, com o de Sophia, para quem a obra de arte "ensina um projecto moral"?

É preciso lembrar que Poe queria libertar a arte do seu conteúdo didático e instituir a sua nobreza como puro objeto estético. Ora, é justamente por ser objeto estético, e não por estar subordinada a um pensamento preexistente, por transmitir a "respiração da noite" que Sophia acredita que a arte é uma moral [7] . Próximo a Poe, o conto "Homero" - que também pode ser considerado uma arte poética - diz que "as suas palavras reuniam os restos dispersos da alegria da terra". Num contexto pagão, como o de Homero, pode-se (e mesmo deve-se) ler essa "alegria da terra" como a alegria que resulta da presença dos deuses neste mundo. Não era esse o vislumbre que a arte nos deveria proporcionar?

De algum modo relacionando o pensamento sobre a alegria divina com o respeito a uma forma que não aprisiona [8] , e da poesia como construção de linguagem aparece o texto da "Arte poética II":

 

Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma linguagem. [...] Se um poeta diz "obscuro", "amplo", "barco", "pedra" é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o "obstinado rigor" do poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si. [9]

 

A cuidadosa atenção ao peso das sílabas e das palavras, tão própria à moderna consciência poética, desdobra-se em Sophia, assim como no Auto do frade, de Cabral, num binômio de justeza e justiça (note-se que "justo" é dos adjetivos mais recorrentes na obra andreseniana, freqüentemente usado com duplo sentido [10] ). Veja-se como a adequação do vocabulário se articula com o tema da justiça. No ensaio "Luís de Camões: ensombramento e descobrimento", ela diz:

 

Camões encontra e constrói a objectividade da língua portuguesa. E cria a ressonância e o eco, encontra o justo peso das sílabas, o espaço do silêncio, a articulação justa. [11]

 

O compromisso com a poesia, com a linguagem capaz de dar a ver as coisas sob novos ângulos vindos da dominação do ego, da disciplina e da atenção é um compromisso fortemente ético. Ele implica a reintrodução da experiência compartilhada na poesia, da sua dimensão social, a recusa de viver numa torre de marfim, o desejo de revelar novas maneiras de olhar. João Cabral e Sophia de Mello Breyner, sem perder a consciência de que a poesia é autônoma em relação à filosofia e que os poemas são objetos de linguagem, fazem incidir na poesia moderna uma questão ética.

 

Referências bibliográficas

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. O búzio de Cós. 2. ed. Lisboa: Caminho, 1997.

---. Luís de Camões: ensombramento e descobrimento. Poemas escolhidos. [s.l.]: Círculo de Leitores, [s.d.].

---. Obra poética. 3 vol. Lisboa: Caminho, 1990.

ELIOT, T. S. Ensaios escolhidos. Seleção, tradução e notas de Maria Adelaide Ramos. Lisboa: Cotovia, 1992.

MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.

____. Poesia e composição. In: Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

____. Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

POE, Edgar Allan. O princípio poético. In: Poemas e ensaios. 2 ed. Rio de Janeiro: Globo, 1987.



[1] Edgar Allan Poe, "O princípio poético". In: Poemas e ensaios, 2 ed., Rio de Janeiro, Globo, 1987.

[2] Veja-se o ensaio de T.S. Eliot intitulado "De Poe a Valéry". In: Ensaios escolhidos, seleção, tradução e notas de Maria Adelaide Ramos, Lisboa, Cotovia, 1992.

[3] João Cabral de Melo Neto, "Poesia e composição". In: Prosa, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997, p. 53.

[4] Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra poética III, Lisboa, Caminho, 1990, p. 166.

[5] Sophia de Mello Breyner Andresen, O búzio de Cós e outros poemas, 2.ed. Lisboa, Caminho, 1997, p. 8.

[6] Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra poética II, Lisboa, Caminho, 1990, p. 103.

[7] Na "Arte poética II" diz-se: "A poesia não me pede uma especialização [...]. Nem me pede uma ciência, nem uma estética, nem uma teoria."

[8] Lembrem-se os versos "Tão vasta liberdade em tão estreita / Regra". In: Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra poética III, op. cit., p. 331.

[9] Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra poética III, op. cit., p. 95-6.

[10] De resto, também na de Cabral. Veja-se no poema "O engenheiro": "O engenheiro pensa o mundo justo". (João Cabral de Melo Neto, Serial e antes, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997, p. 29.)

[11] Sophia de Mello Breyner Andresen, "Luís de Camões: ensombramento e descobrimento. In: Poemas escolhidos, [s.l.], Círculo de Leitores, [s.d.], p. 153. Na mesma página Mallarmé é citado: "[Camões] não vem apenas, como diria Mallarmé, dar um sentido mais puro às palavras da tribo, ele vem dar uma forma mais rigorosa e uma maior aptidão às palavras da tribo."

 

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