Dez anos dez temas

Viajantes e intelectuais: em se falando de brasileiros

Claudete Daflon dos Santos
PUC-Rio

Um esclarecimento deve ser feito desde já: não se está propondo um estudo sobre o intelectual, mas sobre o importante papel que a viagem e a escrita (compreendidas como instâncias reciprocamente relacionadas) podem desempenhar no processo de formação e produção de alguns intelectuais brasileiros. Não se desenvolverá, portanto, uma discussão teórica que tenha por objetivo a definição de intelectual. Isto, no entanto, não significa dizer que se possa dispensar a determinação de "limites" capazes de esclarecer a acepção em que se está empregando o termo: opta-se, portanto, não por definir, mas por delimitar. A delimitação permite operacionalizar a discussão, na medida em que elucida como o recorte, com o qual se está trabalhando, foi resultado do estabelecimento de prioridades. Estas, por sua vez, decorrem da clareza dos objetivos relacionados com a questão que move o debate. Afinal mais significativo é um aspecto e mais se torna necessário selecioná-lo como critério de delimitação quanto maior for sua relação de proximidade com o que se está discutindo.

Delimitar é importante, portanto, para que não ocorram equívocos, já que expressões como "intelectuais brasileiros" são, a uma primeira vista, bastante genéricas e podem sugerir que haja a pretensão de se dar conta de toda a intelectualidade, no caso, brasileira. Dessa forma, em primeiro lugar, deve-se esclarecer que o termo intelectual está sendo utilizado em seu sentido mais usual. Poder-se-ia perguntar, então, que sentido seria esse. Para responder, remeto a uma observação que o latino-americanista Daniel Pécaut faz, no prefácio de seu livro Os intelectuais e a política no Brasil, sobre a convenção segundo a qual um trabalho que trate do intelectual deva começar por propor uma definição do mesmo.

 

Consideramos desnecessário atender à regra que consiste, nos estudos desse gênero, em propor uma "definição" de intelectual. Parece-nos que esse exercício é inócuo, salvo se a definição já comportar uma referência à natureza do campo intelectual e às formas de constituição do político, isto é, se já incluir a problemática do reconhecimento social do estatuto dos intelectuais e de sua produção numa sociedade e num momento dados. O que redunda em considerar, como faz o senso comum, que intelectual é aquele que se identifica e é identificado pelos outros como tal. O leitor constatará que este trabalho abre espaço àqueles já reconhecidos por seu próprio nome, mas também faz referência amiúde aos anônimos que se sentem participantes das "funções históricas" dos intelectuais. (Pécaut, 1990, p. 11.) (Grifo meu.)

 

O autor rejeita, de início, a obrigatoriedade de se propor uma definição de intelectual como medida "protocolar" que, muitas vezes, pode ser estéril, já que a necessidade de definir ou não vai estar atrelada à finalidade do trabalho. Desse modo, o emprego do termo na acepção consagrada pelo senso comum é suficiente diante dos objetivos aqui pretendidos.

Se, como já foi dito, a referência a intelectuais brasileiros não se traduz como tentativa de abranger "toda" a intelectualidade brasileira, é preciso dizer que critérios especificaram o objeto de estudo. Nesse sentido, um aspecto importante é a escolha do período histórico com o qual se optou trabalhar. Perguntar-se-ia, então, por que a seleção do período que vai do fim do século XIX às primeiras décadas de XX. A essa pergunta se pode responder fazendo menção à questão que envolve o escritor-viajante, uma vez que a partir do final do século XIX se tornou mais expressiva a produção escrita relacionada à viagem produzida por intelectuais brasileiros, pois até então o predomínio era de registros escritos por estrangeiros a respeito do país.

 

Até o início deste século, a imensa maioria dos textos de viagem que se situam na zona de contato entre o Brasil e a Europa ou Estados Unidos tem, como objeto, o Brasil construído pelo olhar do viajante estrangeiro. Em grande parte do período colonial, as viagens se dão de lá para cá, depois dos períodos iniciais da colonização. Já a partir do século XVIII, interesses comerciais e uma crescente mobilidade geográfica ocasionam um expressivo aumento de viajantes europeus circulando pelos demais continentes. Os poucos viajantes brasileiros na Europa, como os estudantes em Coimbra, não apresentam produção textual na forma de relatos de viagem. (Gomes & Cardoso, 2000, p. 7.)

 

De fato, a produção escrita relacionada à viagem entre brasileiros é esparsa até o final do século XIX quando aumenta grandemente. Certamente, até os oitocentos, a viagem não era uma prática rotineira e se restringia, muitas vezes, à conclusão dos estudos em Coimbra. No entanto, no século XIX, vai-se tornando cada vez mais freqüente, devido à difusão do hábito de viajar e à existência de condições mais favoráveis ao viajante no mundo, com a melhora das estradas, o progresso dos meios de transporte e o aperfeiçoamento da hotelaria. Viajar torna-se, então, moda.

No Brasil, com a chegada da corte portuguesa em 1808, ocorreram muitas mudanças, mas foram, todavia, insuficientes e levou tempo ainda para que houvesse avanços nas condições oferecidas àqueles que desejassem dar início a uma viagem. Mesmo assim, viajar foi-se tornando, crescentemente, entre os brasileiros uma prática mais presente. As viagens, contudo, não se restringiam unicamente ao exterior, houve algumas empreendidas em solo brasileiro. Diante disso, poder-se-ia esperar uma proliferação de relatos, mas não foi o que aconteceu, pelo menos até o final do século.

Em seu livro O Brasil não é longe daqui, Flora Süssekind se volta para os primeiros passos da ficção brasileira e revela a importância que a viagem vai assumir na configuração do narrador de ficção no Brasil do século XIX. Nesse contexto, a autora destaca a relevância que os relatos de viagem de estrangeiros tiveram para os românticos e como a visão desses viajantes de outras terras influenciou a "composição" de um Brasil no Romantismo. Todavia, a despeito do intenso diálogo que as narrativas românticas estabeleceram com os escritos de viajantes, os escritores brasileiros da época pouco produziram textos que pudessem ser considerados relatos de viagem. Como isso se explica?

Para discutir essa questão, Flora Süssekind lança mão do texto de Brito Broca, "Um viajante romântico: Pereira da Silva", exatamente quando o crítico se ocupa em refletir sobre essa, digamos, escassez de relatos de viagem e se questiona acerca da razão disso.

 

Em primeiro lugar, reflete sobre o fato, a seu ver surpreendente, de, apesar de terem viajado tanto, românticos como Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães, Araújo Porto-Alegre, Torres Homem, Varnhagen, José Odorico Mendes, João Francisco Lisboa não terem deixado muitas páginas de impressões e notas sobre curiosidades e costumes, registros diretos de tais viagens. O que, se poderia parecer explicável com relação a escritores que viveram em Coimbra e viajaram pela Europa no período colonial, tornava-se estranho com relação aos românticos, tendo em vista que se estava então "numa época em que já havia muitos jornais e revistas no Brasil favorecendo a divulgação do referido gênero literário". E, estímulo, igualmente poderoso, "desde as últimas décadas do século XVIII", ressalta Brito Broca, o gênero "florescia no Velho Mundo". (Süssekind, 1990, p. 65.)

Flora Süssekind acrescenta à problematização apresentada por Brito Broca um outro dado: não era escassa somente a produção de relatos decorrentes de viagens à Europa, eram também os que resultariam de incursões por terras brasileiras. E isso não se poderia explicar por um desprestígio do gênero entre os românticos.

 

Mas, se de fato incentivam-se as viagens e multiplicam-se as narrativas de viajantes estrangeiros sobre o país, não são muitos os diários e relatos de viajantes locais. O que permitiria acrescentar à questão de Brito Broca - sobre a falta, na primeira metade do século XIX, de depoimentos de brasileiros sobre a excursão à Europa - duas outras: por que - à exceção de textos como a "Memória histórica e documentada da revolução da província do Maranhão desde 1839 até 1840" (1848), de Gonçalves de Magalhães, por exemplo - tão poucos relatos de viagem também pelo Brasil? Por que se teria praticado aparentemente pouco gênero ao mesmo tempo útil para a política imperial, caro ao ideário romântico e tão em voga? (Idem, p. 67.)

 

Torna-se assim uma questão intrigante a diminuta produção romântica diretamente relacionada à viagem. No entanto, a autora não se abstém em apontar possíveis razões para isso e acredita que a resposta a essas questões esteja no reconhecimento da presença das viagens na escrita, mas não em textos que seriam necessariamente do gênero dos relatos de viagem. Em outras palavras: a viagem se inscreve na ficção - "Observando-se a produção literária brasileira das décadas de 30 e 40, percebe-se que os relatos estão lá, mas não propriamente enquanto tais. E sim habitando sobretudo a prosa de ficção que aparece no período". (Ibidem.)

A que se deve, no entanto, essa opção romântica? Para Flora Süssekind, seria resultado de uma delimitação ainda precária entre gêneros textuais decorrente, talvez, da produção ficcional ainda incipiente naquele momento.

 

De fato, só se multiplicam significativamente os exemplos do gênero a partir do momento em que são definidas fronteiras um pouco mais rígidas entre a escrita literária e os diários e narrativas "científicos" ou de simples registro de expedições, e redefinidas essa figuração inicial do narrador de ficção como viajante e o tipo de relações possíveis entre prosa e ficção e relato de viagem, já nos anos 50. (Idem, p.74.)

 

O caminho de reflexão escolhido pela autora vai destacar o papel da viagem na escrita romântica, mostrando ser expressiva a produção relacionada ao viajar. O que, de fato, se fazia escasso era um texto que se assumisse como registro direto das viagens empreendidas. Contudo, essa situação muda substancialmente nas últimas décadas do século XIX, quando se torna cada vez mais freqüente a viagem à Europa e também a produção escrita que pretende, de alguma forma, relatá-la explicitamente. Longe de haver um esmorecimento da importância assumida pela viagem na produção escrita, o que se processará são novas relações entre viajar e narrar, daí o aumento das produções diretamente ligadas à viagem.

A proliferação dessa escrita de viagem no final dos oitocentos constitui um dos critérios que chancelam a escolha do período para estudo aqui. Há ainda outro critério que, pode-se dizer, reafirmou a escolha pelo final do século XIX e primeiras décadas do XX. Somou-se à maior abundância dos escritos explicitamente voltados para a experiência de viagem a possibilidade de se estabelecerem duas linhagens como parâmetro de leitura. De que linhagens se trata?

A princípio, uma que receberá aqui a denominação de linhagem de Nabuco e outra chamada modernista. Tais linhagens vão-se distinguir, entre outras coisas, quanto ao caráter e aos objetivos da viagem revelados na escrita dos viajantes. Sua formulação constitui um artifício para contrapor dois roteiros de viagem e escrita. A proposta de construção de duas linhagens, portanto, está atrelada ao processo de determinação de parâmetros que permitam "ler" a escrita que pontua a diferença entre duas práticas de viagem.

A denominação relacionada a Nabuco se deve à compreensão deste como um "representante" do viajante intelectualizado que dava continuidade ao seu processo de formação com necessárias viagens ao continente europeu e que, na escrita, muitas vezes de cunho memorialista, buscou registrar os caminhos "reais" e intelectuais percorridos. O viajante de Nabuco se assenta, por conseguinte, na matriz eurocêntrica. A linhagem modernista, por sua vez, vai indicar um movimento que sugere cortes e continuidades com a tradição da viagem representada por Joaquim Nabuco. Assim figura-se a viagem à Europa, ainda necessária, mas numa escrita que se opõe à assimilação deslumbrada até então predominante (aí principia o corte). Mais ainda se aprofunda o corte quando o roteiro das viagens passa a incluir excursões pelo território brasileiro. E quão maior for a ruptura com o viajante à Nabuco mais ela se revelará na escrita, à medida que a viagem se inscreve nos meandros do papel sem medo do ficcional.

Cabe neste momento, todavia, fazer algumas considerações sobre viajantes brasileiros, o que inclui uma discussão sobre os aspectos relacionados ao processo de formação dos intelectuais no Brasil. Poder-se-ia indagar por que esse caminho, por que se embrenhar por questões relacionadas à formação intelectual. A resposta reside, fundamentalmente, na identificação de dois pontos relacionais: o primeiro parte da compreensão de que quem viaja, em geral, no Brasil do final do século XIX e início do século XX, são os mais privilegiados socialmente. Dessa forma, a viagem é vista como prática de uma determinada elite e, por isso, não causa surpresa que, de um modo geral, o viajante brasileiro se considere viajante e não turista [1] , no modelo que contrapõe este àquele. O que significa dizer que sua condição de elite lhe permite fazer viagens "de verdade" graças aos seus recursos financeiros, à tradição que inclui a viagem no processo formativo e à sua própria bagagem intelectual que motiva e justifica viajar. Logo, faz-se necessário discutir o papel desempenhado pela viagem, sob a perspectiva das elites brasileiras, no processo de formação dos jovens pertencentes às classes dirigentes.

O segundo ponto relacional consiste no caráter predominantemente literário da educação dos filhos da elite; ou seja, a formação intelectual desses brasileiros teria como alicerce uma educação fundada nas letras. A importância de se levar em conta que os intelectuais brasileiros eram antes de tudo letrados está no quanto isso possibilita a construção de uma viagem por letras e como esta se relaciona intrinsecamente com uma viagem "propriamente dita" que pode ainda alcançar mais uma vez o espaço reservado do papel. Homens letrados, viajantes letrados.

Diante disso, para que se encaminhe uma discussão que vise a elucidar os dois pontos relacionais de conexão entre formação e viagem em se tratando de brasileiros, seria um bom começo perguntar por que os filhos da elite viajavam para a Europa desde o Brasil colonial. Ao se formular tal pergunta, não se perde de vista as diversas implicações históricas, algumas talvez já bastante debatidas e outras possivelmente óbvias, que podem estar presentes numa possível resposta a essa questão. Todavia, longe de propor uma resolução que dê conta de todas essas implicações, voltar-se-á a atenção para aqueles aspectos que melhor operacionalizam a discussão que situa a viagem como uma importante etapa na formação intelectual dos viajantes brasileiros. Certamente, tal consideração pressupõe a prevalência, entre aqueles que viajavam, de uma concepção cumulativa de viagem, segundo a qual viajar é antes de tudo "crescer" intelectual e moralmente. Isso desde os românticos:

 

A alta conta em que se tinha então no país a viagem na formação individual não é difícil imaginar em que se baseava. Em certa concepção ilustrada de aprendizado, de viagem. No elogio de Rousseau ao exame pessoal e intransferível, ao contato estreito com a Natureza, ao "ir ver coisas" com os próprios pés e direto "onde estão", exatamente "como são". (Süssekind, 1990, p. 77.)

 

O prestígio da viagem de formação não se circunscreveu, no entanto, aos românticos. O caráter ilustrado, formativo, da viagem perdurou entre os brasileiros e encontrava ressonância no próprio processo educacional responsável pela instrução dos membros da elite.

No Brasil colonial, ainda que se contasse com alguns colégios graças às missões jesuítas, as possibilidades educacionais eram bastante limitadas, já que a educação ministrada pela Igreja na colônia nunca ultrapassou o equivalente ao secundário. Completar os estudos só seria possível, conseqüentemente, com a ida à Europa, onde se poderiam freqüentar universidades, entre as quais a preferida era a de Coimbra.

 

 [...] não tardou a surgir, com a instrução ministrada pelos jesuítas, uma nova categoria social - a dos intelectuais que, feitos os estudos e formados mestres nos colégios de padres, iam bacharelar-se em Coimbra, para adquirirem, com o título de licenciados e de doutores, o acesso fácil à classe nobre pelos cargos de governo. Era costume velho, nas famílias abastadas, cujo primogênito, herdeiro da terra, seguia o destino do pai, mandarem o segundo filho à Europa, para estudos, enquanto reservavam à Igreja o terceiro, que professava num dos conventos (geralmente) do país; um filho doutor e outro padre ou frade constituíam motivo de orgulho para as famílias antigas. (Azevedo, 1996, p. 273 e 274.)

 

O bacharelado representava, sob essa perspectiva, uma das vias, garantidas à elite, de acesso ao poder, ou mesmo de sua manutenção. No entanto, a ausência de instituições de ensino superior no Brasil até o século XIX obrigava aqueles que almejavam completar sua formação à travessia do Atlântico. Nesse contexto, a concepção da viagem como etapa do processo de formação era, antes de tudo, decorrência de uma necessidade objetiva, uma vez que a situação educacional do país tornava forçoso o deslocamento para o continente europeu caso se desejasse uma educação mais refinada.

Contudo, após a vinda da família real ao Brasil em 1808, as mudanças significativas que ocorreram, inclusive com o incremento das instituições educacionais (que já não eram monopólio religioso), deram origem às primeiras instituições de ensino superior no Brasil [2] . A criação dessas instituições não representou, porém, o fim das necessárias viagens à Europa para terminar os estudos. Continuou a prevalecer a idéia de que para se garantir uma boa formação era necessário estudar na Europa. Isso pode ser atribuído, em parte, à incipiência e à precariedade das instituições educacionais secundárias e de nível superior existentes no Brasil quando comparadas às européias.

Por outro lado, se a precariedade da educação brasileira justificava a realização dos estudos no exterior, fomentava as idas à Europa o prestígio social conferido à habilitação alcançada no Velho Mundo, graças à visão eurocêntrica predominante. Seguindo a lógica da formação que receberam, desde as aulas com tutores até a participação em escolas prestigiadas que propagavam o modelo europeu, os jovens da elite do século XIX ansiavam pelo encontro com a cultura em que se formaram e que assimilaram passivamente como ideal. Isso aponta para o fato de que, nos oitocentos, a jornada rumo ao Velho Mundo não decorria unicamente da falta de instituições de ensino superior no Brasil, pois encontrava suas raízes na própria relação de subserviência cultural que dominava o país.

Responder, por conseguinte, à pergunta inicial que questionava o porquê da viagem à Europa, significa, pelo enfoque aqui dado, entender que essa viagem constituía, sem dúvida, etapa integrante do processo de formação da elite brasileira. As relações de dependência que figuravam a superioridade européia ao lado de uma situação social que, ao mesmo tempo em que valorizava o bacharel nas instâncias do poder, apresentava opções precárias de educação, criaram um campo fértil para as idas ao continente europeu. Assim, mesmo com a criação dos cursos superiores no Brasil do século XIX, a viagem à Europa não perde a sua importância ou o seu prestígio entre as elites brasileiras: continua-se a ir para o exterior.

Todavia, aliam-se ao valor educativo atribuído à viagem transoceânica as possibilidades de conforto e lazer proporcionadas pelos avanços tecnológicos que se realizavam na Europa, esta cada vez mais confundida com Paris já no final do século XIX. Viajar compreendia, por conseguinte, não só a oportunidade de encontro com "a cultura" como representava também compartilhar hábitos que permitissem um aumento da qualidade de vida. O desejo de melhora efetiva das condições em que viviam as famílias da elite consolidou a prática de importação de costumes e produtos europeus juntamente com as viagens periódicas ao Velho Mundo.

A motivação para viajar à Europa não pode, de fato, ser vista estritamente como parte da "boa formação" dos membros da elite brasileira, uma vez que se justifica também pela busca de opções de divertimento e prazer que os costumes, principalmente parisienses, propiciavam. No entanto, quando se parte de uma concepção de viagem segundo a qual esta vai a um só tempo deflagrar a escrita e por ela ser deflagrada, o papel das letras na viagem vai também se associar à discussão sobre a própria motivação do viajante e, por isso, se inclui na tentativa de compreensão da necessidade de viajar à Europa. Por esse prisma, o espaço dado às letras pelos que se sentiam impelidos a viajar precisa ser avaliado também sob a perspectiva da formação das elites. Prioriza-se, então, o valor formativo delegado à viagem.

Alguns autores são contundentes em afirmar que cabe à educação jesuítica a responsabilidade pelo predomínio de uma mentalidade letrada, humanista, retórica, entre os intelectuais brasileiros. Um desses autores é Fernando Azevedo:

 

No entanto, a formação intelectual que recebiam, eminentemente literária, orientada não para a técnica e a ação, mas para o cuidado da forma, adestramento na eloqüência e o exercício das funções dialéticas do espírito, não podia fazer desses mestres em artes e licenciados senão letrados, imitadores e eruditos, cujo maior prazer intelectual consistia no contato com os velhos autores latinos. Força de conservação antes do que instrumento de libertação do espírito, esse ensino de classe, dogmático e retórico, que modelava todos pelo mesmo padrão de cultura, fundia as minorias ralas de letrados, que flutuavam, estranhas e superpostas ao meio social, como uma elite intelectual de importação. (Azevedo, 1996, p. 273 e 274.)

 

De um lado, letrados; de outro, elite intelectual de importação. Fernando Azevedo inter-relaciona assim a submissão aos padrões estrangeiros (mais precisamente europeus) à predominância de uma cultura letrada. O nexo entre uma coisa e outra se situaria justamente na falta de pensamento crítico, decorrência de uma educação que esteve sob direção religiosa, à qual o autor atribui em boa escala o atraso do desenvolvimento científico no país. Para ele, a educação tradicional alicerçada na memorização, no conhecimento enciclopedista que visava à erudição, desprezava a reflexão investigativa necessária à produção de conhecimento científico. Privilegiava-se, assim, a formação literária e estimulava-se uma erudição não crítica que propiciava a absorção passiva da cultura européia. [3]

Nesse contexto, observa a existência, de um lado, de uma verdadeira proliferação de doutores e, de outro, do que chama de "deserção dos quadros profissionais". Enfatiza ser o prestígio alcançado pelos bacharéis parte de uma mentalidade em que ainda predominava a valorização da erudição enciclopedista em detrimento do conhecimento científico. As faculdades de Direito, que estavam em alta, a seu ver, contribuíram muito para esse estado de coisas ao não inovarem a forma de pensar dominante e acentuarem "a feição literária e retórica da cultura colonial". (Idem, p. 282.) Ser bacharel torna-se assim passaporte para salões bem freqüentados, configurando-se quase como título de nobreza, ao mesmo tempo em que consolida uma tradição letrada.

 

O importante não era, para nós, a prática de negócios, nem a técnica industrial, nem a ciência aplicada, nem mesmo a pesquisa científica, mas tal ou qual conhecimento que os indivíduos adquiriam empalidecendo sobre os livros, e em que encontravam ponto de apoio, sobretudo quando adornado pelas letras, para a expansão de todo o seu prestígio de letrados, eruditos, jurisconsultos e oradores políticos. O bacharel tomou assim o primeiro lugar na escala profissional e social, e, entre as profissões liberais, nenhuma outra desempenhou papel mais importante na vida intelectual e política do país. (Idem, p. 287 e 288.)

 

Junto ao destaque dado à posição que ocupa na vida intelectual brasileira da época, o bacharel detém o prestígio conferido pelo "adorno das letras". Constituirão justamente elas o aval necessário para que esses bacharéis desertem da profissão em que se graduaram para exercerem outras atividades. Na verdade, o fato de doutores e bacharéis serem antes de mais nada homens letrados fazia deles um contingente disponível para o exercício de tarefas não ligadas diretamente ao seu bacharelado, uma vez que era permitido transpor as fronteiras profissionais.

Para libertar-se da tirania da profissão e escapar às especializações estreitas, não havia outro recurso para o brasileiro senão a literatura que lhe alargava os horizontes, lhe dava novas armas intelectuais e lhe fornecia "esse grão de fantasia e de sonho que viesse moderar o furor da atenção ordinária do homem aos seus fins práticos". Assim, pois, se poucos profissionais deveram todo o prestígio que conquistaram exclusivamente ao exercício de sua profissão, a maior parte dos que, entre eles, atingiram as eminências intelectuais, não só não desdenharam as letras, mas nelas procuraram e às vezes encontraram um ponto de apoio e o meio mais eficaz para dilatar a sua autoridade além das fronteiras das profissões liberais. (Idem, p. 295.)

A literatura apresenta-se como um possível caminho para a conquista de prestígio, dado o seu caráter legitimador em uma tradição acostumada a admirar a erudição. Torna-se habitual a profissionais liberais a incursão pelas letras para aí serem bem-sucedidos. Para Azevedo, é notória a importância da literatura na formação intelectual no Brasil.

Mas esses homens letrados, formados em colégios de padres, ou nas escolas secundárias de prestígio, como o Colégio Pedro II [4] , ou sob a orientação de um tutor estrangeiro, que viam, num primeiro momento, como única opção Coimbra e, depois, encontraram nas escolas fundadas no Brasil oitocentista a possibilidade de bacharelar-se, constituíam antes de mais nada uma elite intelectual que "trazia, toda ela em suas sucessivas gerações, o caráter comum que lhe imprimiu a cultura universalista e europeizante, estritamente literária [...]" (Idem, p. 310.) A sua condição de elite vai estar, na verdade, fortemente atrelada à assimilação e à reprodução da cultura européia, cujo conhecimento legitimava os homens letrados como elite intelectual.

Dessa forma, reitera-se a força e o impacto da educação humanista, retórica, letrada na formação dos intelectuais no Brasil, ao mesmo tempo que se torna evidente como esse impacto se relaciona, num processo de alimentação mútua, à atitude de assimilação passiva dos padrões europeus. Em uma perspectiva altamente valorativa do literário e erudito, mais prestigiado era o intelectual quanto mais se aproximava do modelo representado pelos escritores europeus e, ao longo do século XIX, cada vez mais prioritariamente, os franceses.

Assim desponta, entre os vários aspectos discutidos acerca dos brasileiros viajantes e intelectuais, o peso que as letras tiveram juntamente  com o eurocentrismo pujante. Desde a necessidade de viajar, por conta da falta de condições para a continuidade dos estudos no Brasil, até a viagem vista como símbolo de prestígio social e confirmação da superioridade européia, os brasileiros, ao longo do Oitocentos, não temiam cruzar o Atlântico; pelo contrário: esse era o seu maior desejo.

Assim, ao lado da formação europeizada estava a valorização das letras. O caráter literário da formação do intelectual brasileiro se ancorava no fascínio exercido pela cultura européia e alimentava o prestígio das idas ao velho continente, tornando possível a costura de uma viagem literária a uma viagem "propriamente dita". Logo, o debate acerca do intelectual brasileiro aponta para, no processo de formação deste, a viagem "propriamente dita" como etapa essencial à sua "boa formação". No entanto, sua importância não se limita ao processo formativo, mas alcança o produtivo, até mesmo porque não se pode dissociá-los de todo. Na escrita que busca registrar a jornada, o viajante agora escritor (ou vice-versa) revela o caminho que vai da literatura ao porto e deste de volta para a literatura. E o que isso representa, fundamentalmente, é que para esses viajantes, de uma forma ou de outra, viagem e escrita nunca estiveram dissociadas.

A viagem aparece, por esse prisma, em sua intrínseca relação com a escrita, e, diante disso, a abordagem aos textos em que se insere a marca do viajante, seja ele da linhagem de Nabuco ou da modernista, se dará pelo espaço privilegiado ocupado pelas letras. Diante disso, torna-se clara a opção por um enfoque que priorize a interseção. Em outras palavras, a apreciação crítica dos registros aqui estudados segue uma orientação pautada fundamentalmente na fenda em que imaginário e real circulam. Encaminha-se, desse modo, um processo de aproximação mútua entre viagem e escrita sob a tensão da permeável fronteira entre o fora e o dentro, entre o real e o imaginário.

 

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[1] A distinção entre viajante e turista é freqüentemente evocada pelos intelectuais brasileiros que viajam. A contraposição entre um e outro atenderia à necessidade das elites de diferenciarem sua viagem da massificação representada pelo turismo. A "arte de viajar" seria, assim, privilégio de poucos, habilitados por sua formação intelectual e situação socioeconômica. Por essa perspectiva, o viajante seria aquele que faz longas viagens, constrói seus próprios roteiros e, diferentemente do turista, rejeita a interferência de um guia, pois sua formação lhe daria condições de se situar no lugar visitado.

[2] Já em 1808, abriram-se cursos médico-cirúrgicos em Salvador e no Rio de Janeiro, inaugurando assim oficialmente o ensino da medicina no Brasil, embora se exigisse a confirmação da graduação pela Universidade de Coimbra, situação que perdurou até 1826. Também no ano de chegada da corte, foi fundada no Rio de Janeiro a primeira instituição técnica brasileira: a Academia Real da Marinha. Dois anos depois, ocorre a fundação da Academia Real Militar. As academias militares seriam as responsáveis pelo ensino de engenharia. Mais tarde, em 1827, surgem as Escolas de Direito de São Paulo e do Recife.

[3] Vale a pena esclarecer o ponto de vista a partir do qual se pronuncia Fernando Azevedo; afinal, foi um nome importante da Escola Nova no Brasil junto com Anísio Teixeira e, como tal, defendia o ensino laico e democrático, contrapondo-se duramente à Igreja e à exclusão das massas do processo educacional. Posicionava-se a favor do desenvolvimento do pensamento científico, crítico, que se distanciava do ensino tradicional, fundamentalmente humanista, que havia prevalecido na história da educação brasileira.

 

[4] O Colégio Pedro II surge como modelar do ensino secundário do país e, portanto, destinado a ser freqüentado pelos filhos das famílias de maior prestígio. O colégio formou muitos ministros, senadores, banqueiros, advogados, médicos, donos de grandes fortunas: nomes como Rodrigues Alves e Joaquim Nabuco, por exemplo. A continuidade da formação daqueles que passavam pelo Pedro II normalmente se dava nas faculdades de Direito, fosse em Recife ou São Paulo.

 

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