Renato Cordeiro Gomes
PUC-Rio /CNPq
Cátedra Padre António Viera de Estudos Portugueses
A constituição de uma literatura nacional, já se disse fartamente, tem por base o território, levando a defini-la em forma de fronteira e de modo tautológico: "a literatura brasileira é a literatura do Brasil". Cria-se, assim, uma espécie de geografia literária, que limita um dentro e um fora: um dentro diferencial, que daria identidade em relação a um fora. Há uma linha que separa, circunscreve, pressupondo contato e integração. A base espacial obedece, portanto, a uma territorialização, que fornece imagens, tipos, costumes, linguagem, característicos desse território, que daria a identidade cultural à nação. Esta, mesmo em sua diversidade, é construída como uma unidade, base de um pertencimento. Estamos, portanto, assentados numa geometria de base euclidiana, das medidas, que fundam os traçados dos campos e das cidades. A literatura enquanto discurso de representação do país busca os traços mais característicos, que fornece a substância da expressão. Por essa ótica, conjugam-se nação e narração, para usar o jogo imagístico e conceitual elaborado por Hommi Bhabha (1990).
Grosso modo, está foi a base de um paradigma espacial fundante da literatura brasileira, que, num trajeto de longa duração, abrange desde o plano de José de Alencar expresso no prefácio de Sonhos d'ouro (1872), sintomaticamente denominado "Bênção paterna", que procurava mapear a produção nacional pelas regiões (criava, na verdade, uma geografia literária), passando pelas propostas modernistas de descobrir o Brasil e pela narrativa neonaturalista e regionalista dos anos 30, até a literatura documental dos anos 70, com as exceções de praxe [1] .
Essas observações gerais ajudam a situar e contextualizar a reflexão sobre a narrativa brasileira dos últimos vinte anos, cujas características não se deixam apreender em quadros rígidos, uma vez que marcada pela diversidade, pela multiplicidade de temas, formatos e linguagens. Talvez, só por um procedimento didático (que não é o caso) poderíamos localizá-la numa mesma tendência, com traços comuns. Esses relatos certamente têm a ver com novos paradigmas, que, epistemológica, cultural e ideologicamente, vinham pôr em questão os fundamentos da modernidade.
Neste sentido, não é à toa que um texto ficcional de 1982, portanto publicado logo depois da abertura política que anunciava o caminho para a volta à democracia, irá pôr em xeque tais fundamentos. Refiro-me ao conto "Cenários", do livro O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, de Sérgio Sant'Anna. É o texto de abertura do volume, depois do "prefácio", intitulado "Uma página em branco", que tem caráter metalingüístico, numa espécie de ensaio ficcional, que indica as posições e as propostas de seu autor. A articular o livro como um todo, está a questão da criação literária, num jogo entre a palavra e o silêncio, que, adotando traços ensaísticos na ficção, põe em causa a representação da realidade na literatura. Lembre-se que o concerto de João Gilberto no Rio não aconteceu, a propósito de que, ele escreve "um texto desafinado", caminhando, em seu processo, no espaço branco da página (a "caminhada verbal para o silêncio"), para "mostrar que a recusa dele cantar foi, em si, um importante fato musical" - palavras do narrador-Autor [2] .
As questões enfrentadas no livro de contos O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, já são anunciadas nesse texto de abertura "Uma página em branco", que não é um manifesto, não é mais declaração de princípios de um grupo, como fora para as vanguardas do século XX, mas tem um sentido que se refere ao autor enquanto uma individualidade, que se encena na linguagem (a encenação é traço relevante na ficção de Sérgio Sant'Anna), no exercício de produzir subjetividade. Nesse texto, portanto, o sujeito da enunciação enfrenta o desafio da página em branco (um clichê, já sabemos), a ser preenchida pela linguagem humana (preto sobre o branco), página esta "como, lá fora, um universo cheio de vidas escolhíveis" (1986: 6). A operação/trabalho do escritor/Autor, que se camufla numa apessoalidade, irá "romper o branco das páginas, aprisionar o vazio". E continua: "Mas será a vida um espaço articulado? E os atos, limitam-na ou ampliam-na? Talvez nada possa ser melhorado, arte alguma criar melhor do que o mundo. E se há limites, são os nossos próprios limites. Então escrever a palavra mínima, que não encerra o vivido e antes o abre para o infinito" (1986: 7). A palavra, então, será dimensionada em projetos de livros, essa materialidade que registrará "enredos possíveis de uma vida. Um livro de enredos, um livro de textos, com todas as possibilidades possíveis" (1989: 8). Tudo se passa na cena escrita, em seus bastidores, que remete antes a si mesma, corroendo o princípio de representação. O livro cria o seu próprio espaço literário.
Assim, desde essa entrada no livro, o Autor (uso com maiúscula, porque é assim que Sérgio Sant'Anna se nomeia) já aponta para um outro tipo de espaço que se afasta de uma marca geográfica, para ficar no espaço material da própria criação, que encena a si própria. O caráter ficcional anunciado projeta o primeiro conto, não à toa, denominado Cenários", indicando que o espaço aí é de outra natureza, construído (equivaleria ao que hoje nas exposições de artes visuais denominam-se cenografia, para ambientação que interage, muitas vezes, em pé de igualdade com as próprias obras expostas).
Emblemático, neste sentido, o conto não traça o cenário para aí, nesse espaço, introduzir o personagem escritor; mas, ao contrário, encena (como no teatro [3] ) um escritor no ato de encontrar o cenário adequado e característico para a narrativa que está escrevendo. Vai testando, com sucessivas e minuciosas descrições, cenários urbanos latino-americanos para aí localizar o argumento do texto em processo de elaboração. Cada fragmento do texto, em que constrói o cenário específico, de base geográfica, territorializado, indica, sucessivamente, em seu final, a expressão: "Não, não é bem isso". A última hipótese revela o processo metanarrativo e registra:
E sim, talvez, finalmente, um outro homem sozinho em seu apartamento e que procura escrever nesta noite um texto, buscando palavras para cenários talvez por palavras indizíveis, mas como se sua tarefa fosse esta, buscar o impossível, mostrar uma realidade que escapa de nossa mãos como sapo e sempre se coloca adiante (Sant'Anna, 1989: 22).
Num quarto vazio de uma cidade qualquer não nomeada, busca o escritor deceptivamente dar forma a um cenário, quando se lembra de um quadro do pintor norte-americano Edward Hope, visto há muito tempo em Chicago; supunha ter encontrado o que procurava. Mas conclui, quando não consegue recuperar o colorido do original:
[...] este tom que deverá existir no original e que é precisamente o que este escritor busca para si e que se encontra mais além, talvez porque não caiba em palavras e sim nas obras nos pintores raros que conseguiram captar o tal momento, o tal cenário, a tal cor, que é aquilo que estamos sempre desejando para as palavras, escrevendo, para logo depois saber que não, não é bem isso" (1989: 22).
Não é bem isso o espaço que a narrativa dos anos 80-90 busca construir. Como é praticamente impossível reproduzir o original (a realidade referencial, objetivamente dada), opta-se por um cenário/ambiente, certamente urbano, mas que vai se tornando rarefeito, deslocalizado, anônimo, povoado de seres também anônimos, desenraizados, criados pelas letras na materialidade da folha em branco.
Esse tipo de narrativa não permite mais articular narração-nação (Bhabha), e certamente não seria um tipo de texto, que obedecesse ao paradigma que motivou o livro Atlas do romance europeu (2003), do italiano Franco Moretti. Preso a um sentido moderno do mapa, o próprio autor reconhece que a cartografia literária não pode ser aplicada a qualquer tipo de literatura. Fundamenta-se na noção de lugar, traço de força de toda uma tradição narrativa. Busca ver aí o papel da geografia nos romances nacionais do século XIX, ou dito em outras palavras, busca estudar o espaço na literatura e a literatura no espaço (por exemplo, a propagação do romance europeu por diversas regiões do mundo: não só a língua - como viram os gramáticos do Renascimento - mas também o romance - como tem revelado os estudos pós-coloniais - eram companheiros do império). O método cartográfico de Moretti traça os mapas das relações entre romance e Estado-nação, entre romance e a expansão colonial, e entre romance e as cidades, por exemplo, para demonstrar que a geografia é um componente indispensável e condicionante da estrutura narrativa do romance e não algo externo à obra ficcional.
De certo modo, Moretti segue um determinado paradigma espacial baseado na ciência convencional que cria e desenvolve fronteiras, tomando a cartografia como técnica de representação de realidades espaciais, encarando os mapas como conjuntos de informações referentes a uma determinada área, organizada a partir de símbolos, e, portanto, são também um sistema de representações, segundo demonstra Cássio Eduardo Viana Hissa, em A mobilidade das fronteiras (2002: 26-30). O método cartográfico e os mapas atrelam-se à noção de lugar, na acepção que lhe dá Marc Augé, que o contrapõe à noção de não-lugar, que ele vê proliferar na surmodernité.
Segundo esse antropólogo francês, em Não-lugares: introdução a uma Antropologia da supermodernidade (1994), o mundo contemporâneo, complexo e globalizante, da supermodernidade é marcado por três ordens de transformações acaleradas e interligadas.
Em primeiro lugar, mudou a concepção de tempo, o uso que dele fazemos e a maneira que dele dispomos. O sujeito experimenta o processo de aceleração da história entendida como uma superabundância factual e de informação. Essa superabundância é marcada pelo excesso e pela emergência de interdependências inéditas no sistema-mundo.
Em segundo lugar, experimenta-se uma nova relação com o espaço, que seria a segunda figura do excesso, característico da supermodernidade. O excesso de espaço, paradoxalmente, é correlativo ao encolhimento do planeta, que, ao mesmo tempo, se abre para nós. A superabundância espacial expressa-se através da mudança de escala, decorrente do desenvolvimento tecnológico, que permite cada vez mais deslocamentos rápidos e intensos, e da multiplicação de referências energéticas e imaginárias. Tais mudanças produzem significativas alterações na configuração espacial: intensificam-se os processos de imigração e do turismo de massa, dá-se o aumento vertiginoso de já vertiginosa vida (lembre-se a imagem antecipadora criada por João do Rio) das grandes concentrações urbanas (as megalópoles), e multiplicam-se os não-lugares, ou seja, espaços voltados não à permanência, mas à circulação acelerada de pessoas e bens: vias expressas, rodoviárias, aeroportos, centros comerciais, shoppings, museus, hotéis, motéis, bares etc. Paradoxalmente, o mundo da surmodernité é o mundo da reafirmação das particularidades em meio à aceleração da experiência espácio-temporal.
Em terceiro lugar, em decorrência desse paradoxo, o indivíduo é submetido às imposições globais da sociedade, mas vê-se, muitas vezes, em condições de desviar-se delas, através de estratégias de singularização, que redunda no fenômeno da grupalização, da etnização, que funcionam como contrapontos ao acelerar do tempo, à experiência da desterritorialização e aos efeitos da homogeneização.
Esse estado de coisas faz com que, no mundo contemporâneo, o espaço urbano se constitua através de uma "complexa arquitetura de territórios, lugares e não-lugares, que resulta na formação de contextos espácio-temporais flexíveis, mais efêmeros e híbridos do que os territórios sociais identitários" - como afirma Antônio Arantes no ensaio "A guerra dos lugares" (1994: 191). Através da apropriação e dos usos que os habitantes fazem das cidades contemporâneas, especialmente nas metrópoles e megalópoles, ou seja, de suas relações com o espaço urbano, estabelem-se fronteiras simbólicas que separam, aproximam, nivelam e hierarquizam. Frente a esse estado de coisas, ressalta Augé:
se um lugar pode ser definido como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode ser assim caracterizado será definido como um não-lugar. A supermodernidade é produtora de não-lugares, isto é, de espaços que não são em si lugares antropológicos e que, contrariamente à modernidade baudelairiana, não integram os lugares antigos: estes, repertoriados, classificados, promovidos a 'lugares de memória', ocupam aí um lugar circunscrito e específico"(1994: 73).
A cidade, contudo, não se estrutura pela justaposição de espaços e significados, formando uma espécie de mosaico, onde lugares e não-lugares estabelecessem relações de contigüidade. O que marca singularmente a cidade moderna e suas derivas pós-modernas é o fenômeno de superposição, do entrecruzamento:
o lugar e o não-lugar são, antes, polaridades fugidias: o primeiro nunca é completamente apagado e o segundo nunca se realiza totalmente - palimpsesto em que se inscreve, sem cessar, o jogo embaralhado da identidade e da relação" (Augé, 1994: 74).
O conceito de não-lugar, na perspectiva de Marc Augé, diz respeito a espaços constituídos ou ressemantizados para fins de circulação (transporte, comércio, lazer que proliferam na sociedade de serviços contemporânea, ou no que Guy Debord denominou sociedade do espetáculo), que, ao contrário dos lugares, criam uma tensão solitária (seria à toa a temática da solidão na cidade na ficção - a brasileira entre muitas - contemporânea?). Se na modernidade o cidadão e o espectador contemplam a possibilidade de imbricação do velho e do novo, a supermodernidade reduz o passado a um espetáculo, curiosidade passageira no tempo de um percurso. O não-lugar não constrói laços tradicionais de identidade, mas relações pragmáticas com indivíduos tomados como clientes, passageiros, usuários, ouvintes. O lugar enraíza e identifica, fortalecendo a dimensão gregária; o não-lugar desterritorializa e permite os particularismos, possibilitando a dimensão solitária e autista do indivíduo. O lugar fortalece os sentimentos de pertencimento a algo que lhe é exterior e anterior, a cultura, as tradições, a nação - espaço da memória enraizada. O não-lugar, ao desterritorializar a experiência do indivíduo, institui a possibilidade e a necessidade do voltar-se sobre si próprio, abrindo possibilidades para a configuração da subjetividade. O não-lugar é o espaço da identificação, atrelada a descontinuidades e deslocamentos que marcam a experiência social dos sujeitos contemporâneos.
Se é na cidade contemporânea que lugares e não lugares estabelecem relações de contigüidade e atravessam as experiências dos habitantes, é também aí que se percebe a coexistência de múltiplas culturas urbanas no espaço que chamamos todavia urbano, afirma García Canclini (1997: 77). Na passagem de cultura urbana para a multiculturalidade, certamente, não se pergunta mais que é o específico da cultura urbana, pois se há mais de uma cidade na cidade, há uma complexidade multicultural, que antes não se considerava de maneira forte, uma vez que a preocupação era a construção de uma unidade nacional (Canclini, 1997: 78).
Esse estado de coisas leva à problematização da representação da cidade na literatura brasileira contemporânea que se complexifica, quando a narrativa que tematiza o mundo urbano ganha dominância incontestável, apresentando cenários urbanos largamente deslocalizados, mas onde tudo é implicitamente urbano, onde não é mais praticamente possível uma geografia à Balzac. A vertiginosa multiplicidade de representações contextualiza-se na cidade global, levando a verificar grande liberdade em relação ao localismo, ao espaço de origem. Verifica-se a dissipação das relações estáveis com o lugar físico e com a cultura geográfica em função do capital globalizado, dos meios eletrônicos de produção e da cultura de massa, que concorrem para a desparticularização do espaço, ao lado da obsessão com a "segurança", responsável pela proliferação de novos modos de segregação que fazem minimizar o antigo papel histórico da rua como integração de comunidade (Sorkin, 1992). Nesta linha, parece que a literatura brasileira também procura seguir um caminho que vai da "grande cidade" ao "domínio urbano do não-lugar" (Williams & Wallock, 1987).
Ao abdicar da visão panóptica, totalizante, essa narrativa abre-se para a fragmentação e tematiza a errância, o trânsito de personagem à deriva, que, preso ao seu individualismo exarcerbado, vê cortados os laços de pertencimento, introduzindo num novo mecanismo contratual de identificação pela semelhança do anonimato. O trânsito pelos não-lugares só autoriza, no tempo de um percurso, a coexistência de individualidades distintas, semelhantes e indiferentes umas às outras (Augé, 1994: 101), ou seja, comunhão de destinos humanos experimentada solitariamente no anonimato do não-lugar (p. 101).
Exemplar, nesse sentido, é a obra de João Gilberto Noll, que, tal qual uma recorrência, dramatiza personagens que viajam, vivendo a imediaticidade do deslocamento espacial, mas a viagem quase sempre são esvaziadas, corroendo a carga semântica que esse motivo carrega da tradição narrativa. Elas perdem o caráter formativo; o componente pegagógico cede lugar ao performático. Como demonstrou Claudete Daflon (2002: 10), em sua tese de doutorado A viagem e a escrita: uma reflexão sobre a importância da viagem na formação e produção intelectual de alguns escritores-viajantes brasileiros:
Os personagens viajam pela necessidade do trânsito permanente, mas não têm experiências a registrar, uma vez que é o próprio trânsito que os libertam brevemente da des-identidade que é, ao mesmo tempo, sua e do espaço por que passa. Sua jornada denuncia a dessemantização dos parâmetros identitários, como a cidade natal, sem os quais nenhum espaço pode constituir-se lugar (na acepção dada por Augé). As cidades e os mapas fazem cada vez menos sentido, porque não integram o jogo vivo das semantizações; daí restar ao personagem apenas partir e novamente partir (2002: 10).
Está nesse caso o romance Hotel Atlântico (1989), que acompanha o trajeto do personagem sem nome, de um hotel em Copacabana a um outro hotel num balneário do Rio Grande do Sul (o hotel do título); de uma cena de morte (um corpo morto é levado do hotel carioca) a outra cena de morte (a morte do protagonista). A imagem que o personagem faz de si é de "um doente em convalescença, se preparando para deixar o hospital" (p. 11): sente o corpo se deteriorando, sente uma espécie de incapacidade, e parte para saber o que estava acontecendo com ele. Nessa viagem, meio ao acaso, os mapas (ele abandona na rodoviária o mapa que levava) e os direcionamentos motivados tornam-se inúteis; não são os pontos de partida e de chegada, com seus objetivos, que dão sentido aos deslocamentos. A negatividade é a marca registrada: o personagem era apenas um ator desempregado que vive às margens do presente: sem nome, sem back-ground familiar, sem biografia (e, logo, sem passado), sem rumo, sem nexo, sem sentido, sem volta, sem telos, sem utopia, sem projetos (sejam eles políticos, sociais, ou mesmo individuais): "Eu não guardo nada comigo" - diz ele (p. 41). Certamente poderíamos dizer que esse livro do Noll, mais que os outros, é um romance da "mutilação", tanto no sentido figurado, quanto no sentido próprio: ele tem uma perna amputada e, no final, vai perdendo os sentidos (fala, visão, a audição), ou seja, os meios que o conectavam com o mundo.
Essa viagem desterritorializada, apesar da nomeação de pontos geográficos do mapa (Rio de Janeiro, Florianópolis, o oeste catarinense, o balneário Atlântico, RGS), segue ao sabor do acaso: como diz o personagem quando consegue uma carona em Florianópolis: "A coisa me saiu assim, como poderia ter saído para qualquer outra direção geográfica. O que importava é que eu precisava continuar dando rumos à minha viagem" (Noll, 1989: 30). A desterritorialização, deste modo, conjuga-se à desreferencialização (as referências vão sendo corroídas de sentido). O trajeto por não-lugares, pontuados por sítios de passagem (hotel, rodoviária, ônibus, bordel, casa paroquial, hospital, e novamente um hotel: na verdade, não há circularidade, uma vez que a viagem é um moto contínuo que se pauta pela deterioração do corpo e da mente do personagem, e não volta ao ponto de partida, até porque não tem ponto de chegada); esse trajeto é registrado pela agudeza de um olhar invisível como se fosse uma câmera que, minuciosamente, captasse o personagem em seus mínimos detalhes. A narrativa mostra que "os nômades não têm história, só geografia", como formula Brissac (1987: 82).
Esse modo da narrativa, que se concretiza pela indeterminação espacial ou a aparente falta de lógica causal entre esses espaços, bem como a ruptura do continuum temporal, substituído por uma paralisante repetição, parece agudizar-se no romance A céu aberto (1996). Os comentários de Analice Martins, na tese Identidades em vôo cego (2003a), em que analisa João Gilberto Noll, são elucidativos: "Os espaços eventualmente marcados (acampamento militar, paiol, navio, porto, Brasil, Suécia) não chegam a constituir um trajeto do qual o personagem está cioso, mas, ao contrário, configuram uma geografia espacial aleatória e indefinida". Essa assertiva é desbodrada analiticamente para demonstrar que "a céu aberto tudo me abrigava melhor do que numa casa, ali não tinha obrigação social a cumprir" (Noll, 1996: 102): há um apagamento das marcas identitárias localistas e a diluição dos aspectos contextuais sociais que se subjugam ao imperativo da subjetividade, da solidão, da incomunicabilidade. Não é à toa que a metáfora do título - A céu aberto - , por si só, atravessa a narrativa, fecundando-a e confrontando-a com as situações freqüentes de confinamento, experienciadas pelo personagem. Espaços fechados, sem horizontes, confrontam-se com a sugestiva imagética do título, pontuando os limites existenciais do personagem anônimo, sem urgências, sem perspectivas (Cf.: Martins, 2003a: 91-108).
A casa como lugar, enquanto identitário, que conota origem, já aparecia esvaziado nas impossibilidades dramatizadas em Hotel Atlântico. Aí, a volta à casa da avó redunda em nada; não há mais resíduos da memória. A origem é um lugar vazio, impedindo qualquer sentido pleno, que já estivesse aí em embrião a ser plenamente realizado no ponto de chegada, um telos. A próprio estrutura da narrativa, que rompe com a linearidade causal, aponta para isto. O final não confirma um sentido em evolução (que, afinal, não existe, neste caso). Há um rebaixamento da épica e sua ligação com o mar. Não há no romance de Noll nenhum herói assinalado que vai da lei da morte se libertando. A presença insidiosa da morte mostra que o homem se tornou humano, demasiadamente humano. A viagem nada explica e fecha as portas do futuro e da utopia. Caso contrário, a narrativa teria necessidade de trabalhar os lugares, que repertoriados, inventariados, seriam definidos como identitários, relacionais e históricos (para repetir a formulação de Marc Augé).
Não há, portanto, reconcialiação com a origem, do mesma maneira do que se dá em Rastro de verão (1986), em que o personagem que retorna a Porto Alegre para reencontrar o pai doente, pergunta-se sobre a história pessoal que poderia contar, depois de anos andando por aí: "Por essa geografia rarefeita quem tinha gerado comigo alguma memória duradoura?" (Noll, 1997: 333).
Parece que a resposta, em outro diapasão, se dá com o romance Berkeley em Bellagio (2002), dedicado a Porto Alegre, que, mesmo trazendo a marca da origem anunciada na epígrafe tirada de Fabrício Carpinejar: "A morada em que nasci me habita", é escolhida para o novo começo. Entre dois espaços que funcionavam mais como não-lugares, há uma opção pelo terceiro termo - Porto Alegre - agora ressemantizada no cotidiano em que o personagem acaba por "se reconciliar com sua história e geografia" - disse Noll numa entrevista ao caderno Idéias do Jornal do Brasil (nov. 2002). O personagem João, agora nomeado, anuncia: "Digo-lhe que tenho o que festejar, que voltar para a casa é o melhor da vida".
Como comenta Analice Martins, nesta síntese, na resenha "Retorno possível" (2003b), que escreveu sobre o romance de Noll, idéias ampliadas na tese de doutorado Identidades em vôo cego:
Berkeley em Bellagio, mais do que outra narrativa de Noll, assume intencionalmente uma discussão a respeito de pertencimentos, sejam eles territoriais, sexuais, afetivos. Na condição de estrangeiro, o personagem João, agora nomeado e localizado, experimenta o deslocamento da própria língua, tendo que se apropriar de uma língua estrangeira, o inglês, no caso, para que pudesse testemunhar e protagonizar suas histórias. Como professor convidado de Universidade da Califórnia, em Berkeley, e escritor agraciado com uma bolsa da Fundação Rockefeller, em Bellagio, na Itália, o protagonista experiencia o deslocamento agora voluntário e consentido, como condição de existência. (2003b: 184)
Na ótica apontada, o retorno à casa, à língua portuguesa, a uma territorialidade, é combate a uma amnésia, e provoca o retorno do recalcado, "para deflagar a ressemantização do espaço de origem, da familiaridade tão esgarçada" (Martins, 2003b: 185), mas essa volta se dá em diferença, pois não retoma a ponta do fio do tempo e do espaço perdidos. Porto Alegre é o ponto de onde recomeçará, não é a origem recriada tal qual, mas o novo começo, intencionalmente escolhido, que não anula as vivências acumuladas. E aponta para uma felicidade possível, mais dinâmica e ciosa de si, ainda que marcada pela
certeza da inviabilidade de uma única vinculação, seja ela afetiva, seja sexual, seja territorial. Nenhuma promessa de felicidade a vingar sem a possibilidade do outro lugar. [...] Porto Alegre não é apenas um pertencimento pela memória [...]; é uma escolha, não uma deriva, como talvez ainda fosse em Rastros de verão e Hotel Atlântico" (Martins, 2003a: 132-133).
Esta possibilidade que se conjuga com o sentido de localidade, de reterritorialização, está associada ao resgate de resíduos utópicos, num momento em que as certezas da modernidade caíram por terra. Isto indica certa tendência da narrativa brasileira dos últimos anos, que busca ver o que não é inferno no meio do inferno, para usar as imagens com que Ítalo Calvino encerra As cidades invisíveis. Resíduos utópicos são buscados em narrativas que, quase na contramão das cidades distópicas, sem aura, caóticas e violentas, dramatizadas na ficção contemporânea, prendem-se aos aspectos próximos, localizados, não num não lugar dito na etimologia de "utopia". Fazem frente à imagem da cidade globalizada, que se torna toda e qualquer.
A literatura brasileira dos anos 80-90 e do início deste século, ao focalizar de dentro a cidade, toma imensa liberdade quanto ao localismo e mostram apenas fragmentos, imediações, recortes isolados do todo. Se, de um lado, esta cidade é cenarizada com imagens saqueadas de todas as partes, indicando o não-compromisso com o local, apontando para a desconstrução do sentido de localismo (não mais associado à elaboração de alegorias nacionais), por outro lado, paradoxalmente, sem poder negar esse estado de coisas, é que a volta ao local se dá como resistência ao mundo que dá boas vindas ao deserto do real (imagem de Matrix, dos irmãos Wachowski, de 1999). Nesse sentido, algumas narrativas buscam dramatizar aspectos mais característicos da cidade recuperados pela memória, na demanda, às vezes nostálgica, de uma legibilidade que se ata às marcas identitárias e à problematização do pertencimento, associado ao local, ao mundo próximo observado, como no romance Cidade de Deus (1998), de Paulo Lins, ou mesmo em Eles eram muitos cavalos (2001) de Luiz Ruffato, a par de suas propostas, faturas e estilos diversos, ou ainda como antes mostrara Rubem Fonseca no conto "A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro", do livro Romance negro e outras histórias (1992).
Nesse conto, o protagonista-escritor tenta resgatar do esquecimento pedaços de sua memória individual e da memória da cidade, que se imbricam em territorialidades atreladas a uma concepção de lugar (no sentido dado por Marc Augé), que, repertoriados, trazem as marcas da historicidade e do pertencimento que se vinculam às identidades. Augusto tenta resistir nostalgicamente ao estilhaçamento da cena de outrora; quer recuperar o enraizamento na cidade de sua origem. Seu projeto mantém simultaneamente o tom nostálgico e a desilusão pós-utópica, ao alimentar o desejo de tornar legível o espaço urbano, salvando em sua escrita as promessas de significação que a cena moderna permitia. O personagem, entretanto, tenta resgatar aquela antiga narratividade pelo viés nostálgico, experimentando, embora deceptivamente, resistir e perverter essa impossibilidade, escavando uma outra alternativa, a de configurar, por meio da escrita (ele está escrevendo o livro homônimo ao título do conto), resíduos utópicos, em meio a um cotidiano opaco. As marcas dessa realidade estão sempre lá, expressando não a recusa da realidade do mundo dos monstros entre os quais estamos destinados a viver, mas a sua exposição em excesso (nesse sentido é sintomática a narrativa de Cidade de Deus, de Lins).
Tais relatos indicam que a cidade se tornou uma imposição, uma realidade incontornável, revelando que além da cidade é ainda a cidade. Emblemático nesse aspecto, é o conto "Exílio", do livro Deixa o quarto como está (2002), do gaúcho Amílcar Bettega Barbosa, que dramatiza a tentativa de um homem solitário, estrangeiro neste mundo de silêncio e de vazio, em tentar deixar a cidade com a qual não mais compartilhava, mas o trem da fuga continua a atravessá-la sem fim.
Talvez se possa afirmar que narrativas contemporâneas, ao se fazerem na tensão entre lugares e não-lugares, recorram a estratégias de singularização, num mundo rarefeito, indefinido, desterritorializado, cuja representação se torna quase impossível. Para representá-lo, isto é, para que possa significar, é preciso denunciar essa impossibilidade, fazendo dela o tema da própria narrativa e, para tal, é entretanto "preciso forçar a vista ou mesmo usar a imaginação", como diz Amílcar Bettega, o escritor, que como o personagem do conto "Auto-retrato", do mesmo livro, está sempre em "prontidão", para lutar contra o cansaço, o esgotamento do sentido, o esvaziamento do mundo, o silêncio, o vazio. Nisto, consiste a alquimia da palavra, o seu poder de metamorfosear o mundo. O escritor, sujeito desse trabalho, é o mago, o bruxo, o mágico, que manipula a linguagem, forçando-a a representar o mundo, o mundo dos monstros que é o nosso, aqui e agora.
Escavar a possibilidade de configurar essa realidade, em meio a um cotidiano opaco, pode ser lido como uma das perturbações dramatizadas pela narrativa brasileira contemporânea. Boa parte dessa produção testa os limites de uma impossibilidade que sempre se atualiza, por meio da reflexão sobre a matéria com que a literatura trabalha, questionando os modos de representação da realidade Ao tentar buscar sentidos/valores, os textos apontam para impasses da literatura desta virada de século, marcado pela saturação da informação, em que o velho sistema de valores substituído pela troca generalizada de mercadorias nos leva à impossibilidade de trocar (como disse Baudrillard em entrevista ao Jornal do Brasil: Idéias), impossibilidade que se associa às imensas dificuldades interpostas aos fluxos de transmissão. Se o antídoto para a impossibilidade de trocar é o mundo privado, psicológico, afetivo, esses mecanismos também foram incluídos no sistema (como provam os massmedia). Ao abordar a crise do presente, cruzando ficção e subjetividade, frente à heterogeneidade das culturas, parte da narrativa contemporânea abole a busca da verdade, mas busca ver a literatura como aquele antídoto, almejando devolver-lhe a função utópica que perdera num século que assistiu aos conflitos das propostas autoritárias de homogeneização e a agudização da heterogeneidade que caracteriza as sociedades pós-modernas.
Narrativas desse naipe plasmam formas de expressar vivências, subjetividades, expectativas, bem como formações culturais residuais, surgidas no passado, a exemplo da história familiar e cultural, a memória que atuam ainda no sujeito, embora o façam em função do presente, esse tempo que se tornou obsessão na cultura contemporânea; esse tempo que atua nos sujeitos ancorados na cidade e atravessados por temporalidades diferentes em meio a um sistema cultural hegemônico. Neste sentido, muitas dessas ficções narrativas, ao propor configurações espaciais que tensionam lugares e não-lugares, situam-se num espaço que aciona as principais tradições do sistema narrativo das sociedades em que os relatos se inserem. Tradições, mesmo em ruínas, são reapropriadas enquanto legados culturais, testados em sua capacidade de ainda significar em outras contingências.
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[1] Generalizações deste tipo implicam riscos, mas ela serve aqui para localizar a narrativa brasileira dos últimos 20 anos, que, no mínimo, por motivos vários de base econômica, política e cultural, desconfia desse paradigma.
[2] Sérgio Sant'Anna, O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, São Paulo, Ática, 1982, p. 217.
[3] Em "O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro", lemos: "O Silviano Santiago diz que eu não deixo viver meus personagens. De fato, meus personagens quase sempre são antes atores do que personagens. E sempre gostei de escrever minhas histórias como se elas se passassem num teatro. Ou mesmo um teatro de marionetes" (1982: 211). Remete-se esta observação ao caráter de "representação", através de um artifício literário, que ao mesmo tempo põe em xeque a representação direta dos fatos sociais, que pressupõe a existência de um "fora", que constituiria o referencial a ser representado.