Dez anos dez temas

Gestos intelectuais no sistema literário

Heidrun Krieger Olinto
PUC-Rio/CNPq

No centro das reflexões propostas localiza-se a figura do intelectual que circula no sistema literário. As questões abordadas ensaiam uma imagem de sua situação hoje, das formas de sua intervenção e auto-encenação em comparação com o mito fundador do intelectual moderno, representado pelo autor do manifesto inaugural J'accuse, o escritor francês Émile Zola.

 

1. A vantagem de focalizar o fenômeno literário a partir de teorias sistêmicas vinculadas com teorias de ação pode ser percebida no deslocamento do olhar da unidade do texto para os diferentes papéis atualizáveis por participantes concretos ativos no sistema literário. Neste quadro emergem novas possibilidades de definir objetos e interesses de pesquisa que não se restringem à interpretação de obras particulares em função de interesses estéticos, mas se abrem à investigação da esfera literária global, em suas dimensões cognitivas, sócio-culturais, históricas e políticas. Estudos de literatura concebidos na ótica de teorias sistêmicas e teorias de ação não tematizam o texto literário como entidade autônoma, mas investigam diversas dimensões do sistema literatura, tais como produção, mediação, recepção e análise teórica de textos literários. Textos são literários apenas na moldura dessas constelações acionais sociais concretas, em sistemas históricos definidos por determinados processos de socialização, necessidades cognitivas e afetivas, intenções e motivações gerais, e, ainda, por condicionamentos políticos, sociais, econômicos e culturais que correspondem aos sistemas de pressupostos de sua ação. Em função dessas articulações, textos são julgados e dotados de sentido. O acento de uma ciência da literatura sobre a esfera "difusa" do sistema literário e sua dinâmica é acompanhado, em nível teórico e empírico, pela procura e construção de quadros abrangentes capazes de tematizar essa transição. Estes modelos demandam, assim, a integração de outros contextos e esferas - "ainda que por enquanto não saibamos quais e quantos", como diria o teórico da literatura Siegfried Schmidt - e, por isso, precisam articular as suas preferências teóricas com molduras eficientes para problematizar a complexidade de forma elástica e abrangente [1] . O desafio maior situa-se, então, na elaboração de teorias e modelos que oferecem a possibilidade de investigar sistemas de diferenciação social altamente complexos, que analisem não só a pluralidade de papéis sociais, mas também as suas inter-relações variáveis ad infinitum. Além disso, essas novas molduras teóricas precisam ser extremamente flexíveis para poder lidar com eventos e processos dinâmicos.

É neste contexto que se pode entender, igualmente, a referência freqüente ao sociólogo Niklas Luhmann, pela elaboração de teorias sistêmicas que permitem lidar com complexidades crescentes e de constante transformação. A novidade de seus modelos está na radicalização de análises funcionais que dispensam pressupostos de estruturas globais subjacentes aos componentes sistêmicos parciais que as condicionam. Em outras palavras, o modelo não comporta partes subordinadas a uma totalidade [2] . O que, à primeira vista, pode parecer mero modelo de redução de complexidade revela seu potencial ilimitado, à medida que sistemas sociais (e sistemas literários) - ou seja, sistemas de sentido - podem ser compreendidos como resultado de processos seletivos que preservam possibilidades não atualizadas, mantendo-se, assim, uma identidade sistêmica atravessada por permanente inquietude e mobilidade que tornam visível a sua condição de complexidade.

A construção de sentido, equivalente à construção de identidades, caminha neste modelo, por assim dizer, na via dupla da estabilidade/instabilidade, privilegiando categorias como equilíbrio instável e dinâmica estável. Essas novas teorias modelam sistemas sociais autopoiéticos e auto-referenciais, à medida que se produzem/reproduzem pela diferenciação móvel de sistema/ambiência em função de contornos ou fronteiras porosas e interpenetráveis. Trata-se, portanto, de teorias que tentam lidar com a condição complementar das duas esferas, ao invés de enfatizar a exclusão de um dos componentes do par dicotômico. Pelo fato de seu modelo de sistema/ambiência circundante (Struktur/Umwelt) não eliminar oposições binárias, mas supor relações intercambiáveis e reajustáveis, Luhmann oferece perspectivas importantes para, igualmente, descrever sistemas literários. A operacionalidade do modelo de Luhmann funda-se na diferenciação de duas distinções que permitem descrever o espaço combinatório, incluindo, também, a evolução do sistema e ordens de crescente complexidade. Este tipo de análise não fica sem efeito sobre as concepções de racionalidade em sociedades contemporâneas. Segundo ele, os conceitos tradicionais de racionalidade se alimentavam da existência de pressupostos externos na construção de sentido, visíveis, por exemplo, em modelos referenciais de imitação de leis da natureza. A perda de fé na representação de pontos de vista únicos e verdadeiros implica, também, a perda de fundamentação dessas hipóteses.

Esta perspectiva permite também esclarecer, por exemplo, certos equívocos no contexto das discussões articuladas a partir do "pseudônimo infeliz do pós-moderno" [3] . As análises propostas por Luhmann esvaziam a possibilidade de caracterizar a relação entre moderno e pós-moderno pelo contraste e pela cesura. De acordo com o raciocínio do autor, se o conceito do pós-moderno evoca a falta de uma descrição uniforme do mundo, de uma razão de caráter obrigatório para todos ou, pelo menos de uma atitude correta e comum diante do mundo e da sociedade, essa situação se explica como resultado das condições que a própria sociedade moderna gerou. Ela não suporta idéias e soluções finais e, tampouco, autoridade. Por essa razão, também, não pode conhecer posições a partir das quais uma sociedade possa ser descrita como modelo obrigatório para todos os outros (p. 42).

Uma das vantagens desta proposta para analisar sistemas literários diz respeito, por exemplo, à inclusão do não-literário na categoria tradicional do literário, formando as duas esferas uma unidade relacional auto-reguladora com fronteiras maleáveis. Os limites entre sistema/ambiência, responsáveis pela construção de identidades e sentidos, existem, no entanto, em estado permeável e provisório. O que torna o modelo de Luhmann especialmente atraente para Schmidt é a sua tese de que a sociedade, em seu conjunto, possa ser descrita como sistema autopoiético, auto-referencial e auto-organizativo. As fronteiras entre sistema/ambiência são vistas como simultaneamente porosas e discriminatórias, o que permite entender os vínculos entre os dois elos como interativos e processuais. Assim, as oposições binárias que formam o seu quadro conceitual, na verdade, não operam como dicotomias excludentes, mas oferecem a possibilidade de articular globalidades sistêmicas dinâmicas, suas relações internas e interpenetrações com ambiências externas de modo inovador. Neste sentido, Schmidt valoriza, particularmente, a substituição do teorema da exclusão, traduzido na expressão do "isto ou aquilo", pela fórmula de complementariedade do "isto e aquilo", porque essa perspectiva abre caminhos para modelos de sociedade que lidam com o pluralismo de estruturas dinâmicas e que não discriminam aspectos opostos em detrimento de um dos lados, entendendo-os como suplementares [4] . Quadros teóricos que operam com a inserção da diferença não sintonizam com concepções globais e definitivas, dualismos e hierarquias, mas com construções de mundo parciais e reconsideráveis, que desenham identidades provisórias, equilíbrios flutuantes. Sistemas literários tanto quanto sistemas sociais inexistem na realidade social concreta e, portanto, não possuem status ontológico. Trata-se de categorias do observador, de um construto teórico que precisa ser avaliado "de acordo com a sua utilidade científica, sua competência na solução de problemas - e não segundo uma suposta adequação a uma realidade [5] .

Estas reflexões prévias, idealizadas como pano de fundo para localizar possíveis espaços de movimentação do intelectual contemporâneo, permitem igualmente situar as formas de sua intervenção em contraste com os seus precursores clássicos atuantes como mediadores no sistema literário. Assim, no horizonte destas questões pretendo localizar o intelectual de letras como figura pública e como observador de segunda ordem. Não se trata de um projeto tipológico ou de uma análise retrospectiva das transformações lineares de seu papel e de suas funções. Em compensação, ele oferece um olhar centrado sobre momentos circunstanciais de sua atuação no sistema literário entendido como sistema sociocultural complexo. As metamorfoses pontuais de sua imagem serão vinculadas, em contraponto ao nascimento do intelectual moderno idealizado na manifestação pública do escritor francês Émile Zola, no final do século XIX, e desdobrados nas seguintes perguntas: onde, afinal, circula este intelectual hoje, como são percebidos os seus gestos na esfera pública e quais as formas de sua auto-encenação e auto-representação?

 

2.

"Uma verdadeira bomba abalou os fundamentos deste país". Uma repetição deste comentário bombástico do escritor francês Anatole France sobre os efeitos da carta aberta J'accuse, de Émile Zola - publicada em 13 de janeiro de 1898 no jornal L'Aurore e dirigida ao Presidente da República Félix Faure - hoje, além de ser impensável, soaria falso. Naquele momento, uma edição de 20.000 exemplares esgotada em poucas horas, seguida por duas mil assinaturas de protesto de escritores do porte de Anatole France e Marcel Proust, por numerosos artistas, cientistas, jornalistas e estudantes que se entendiam como elite espiritual do país, transformou-se em berço do nascimento do intelectual. Naquele momento iniciou-se de forma espetacular, uma tradição do engajamento político do intelectual de esquerda a favor de causas justas contra a tirania do poder do Estado. Um engajamento político fundado sobre a responsabilidade moral que se fazia presente na esfera pública pelo poder da palavra autorizada, mas, em contrapartida, demandava uma responsabilidade específica por parte daqueles que lidavam com ela profissionalmente, expressa por uma reflexão crítica com respeito à realidade e com respeito a calculados gestos de intervenção. Foi, assim, o chamado affair Dreyfus - a condenação do oficial judeu Alfred Dreyfus suspeito de espionagem e julgado por traição à pátria - que desencadeou uma onda de protestos a favor da revisão de um processo visto pela opinião pública como erro de justiça e que passou a ser considerado marco fundador do intelectual moderno. O próprio Zola não soube da reabertura do processo e da subseqüente absolvição, mas no seu enterro o significado e a ressonância de sua carta aberta, como forma de posicionamento pessoal e público, foram traduzidos por Anatole France com singela sensibilidade como expressão de "um momento da consciência da humanidade" [6] .

Durante décadas essa imagem do intelectual, fazendo parte de um grupo esclarecido de figuras simbólicas que passavam a defender, em atitudes pontuais, valores gerais como democracia, justiça, paz e direitos humanos, se legitimava como expressão de sua própria integridade moral que, por seu lado, justificava o seu engajamento e lhe emprestava autoridade. A atividade comum desse intelectual moderno como crítico auto-reflexivo engajado em causas nobres, e cioso do seu papel de relevância social, se expressava na produção e disseminação de textos como meio central do seu discurso e se traduzia pela eficácia destes atestada pela ressonância na opinião pública e pela atenção prestada por parte de instâncias políticas.

Entre inúmeros exemplos do intelectual de letras que poderiam ser nomeados destaca-se a figura de Jean-Paul Sartre - batizado por Pierre Bourdieu com singela adequação de intelectual total - ilustrando de forma modelar esse novo papel e justificando a qualificação por sua presença não só na filosofia, mas também na crítica, na teoria e na literatura, no gênero dramático e no romance [7] . Seguindo o modelo de Zola, foi o seu mérito ter reforçado e vitalizado uma forma paradigmática de denúncia que se impôs como padrão normativo, tornando-se tradição não apenas no mundo intelectual francês. O seu ativismo expandia-se em todos os campos da vida pública, à medida que assumia o papel clássico do intelectual de esquerda, envolvido na resistência e ocupado com questões de justiça social, violência e opressão. Mas foi também Sartre, que, nos últimos anos de sua vida, passou a ser relacionado com indagações incômodas acerca da morte do intelectual e do fracasso da missão do escritor engajado. Pierre Bourdieu, ao analisar a mecânica do campo de forças em que se movimentava essa figura, sinaliza uma profunda transformação em sua estrutura e nos efeitos de sua ação associada, entre outros, às perturbadoras descobertas dos gulags e à inexistência de instituições políticas democráticas na União Soviética. Nesta situação passava a ser problemático o silêncio diante dos crimes tornados visíveis, a abstenção diante da violência intolerável associada com Stalin, Mao, Pol Pot e, ainda, diante da cegueira face a regimes totalitários decididos a domesticar o pensamento livre [8] .

Enquanto após a Segunda Guerra Mundial o tipo do intelectual de esquerda tinha-se transformado em culto, seja na atmosfera do existencialismo francês, seja no ambiente do grupo de escritores e críticos alemães de esquerda, o "Gruppe 47", e nos movimentos mundiais de protesto em 1968, o declínio perceptível de sua imagem mítica, pode ser acompanhado na trajetória do lendário intelectual total que, em certos momentos, tinha representado esse papel público em sua inquestionável grandeza política através do poder de sua palavra de protesto contra variadas formas de dominação. Quando Jean-Paul Sartre morre em 1980, os franceses se despedem de um dos grandes representantes do intelectual moderno, mas foi, de certo modo, sintomático o melancólico ocaso deste porta-voz dos injustiçados que, muito antes de sua morte, deixou de ser ouvido. Um século depois da publicação de J'accuse, as lembranças do tempo heróico do intelectual, quando a palavra ainda tinha força, são evocadas com nostalgia diante do seu (quase) autismo na esfera pública presente.

Acrescenta-se à mudança crescente deste clima de indiferença o fato de, nas sociedades democráticas atuais, deixar de existir o intelectual, passando ele a ser substituído por figuras de múltipla atuação, de caráter mais flexível e menos normativo. Ainda que hoje a sua autoridade - baseada no uso público de sua razão e na intervenção eficaz nas condições de vida - não seja aceita incondicionalmente, e que se note uma clara retirada da esfera pública para os espaços da academia que, pela própria natureza, facilitam esse recolhimento a serviço da produção de conhecimentos críticos, as formas de sua auto-representação sinalizam, no entanto, a vontade incessante de transcender o campo restrito de sua comunidade científica e manifestam o desejo de reconhecimento dos seus gestos ativistas em horizontes mais amplos, visíveis os dois na sua colaboração regular nos debates do seu interesse na esfera pública. Não na qualidade de guardião da moral universal e da consciência ferida da humanidade com pretensão de falar em nome de direitos e valores mais elevados, mas a partir de uma espécie de moral circunstancial, com atribuições eventuais e circunscritas, associadas a lutas no campo cultural. Nesta ótica parece-me sugestivo um consenso mínimo em torno de sua definição no campo literário, sugerido por Markus Joch do seguinte modo: "Os intelectuais representam aquele grupo parcial de inteligência que não se limita ao exercício de seu trabalho intelectual no território profissional, mas que busca, além disso, exercer influência sobre a opinião pública, conseguir efeitos políticos ou, no mínimo, participar do discurso sobre concepções de sentido e valor socialmente relevantes" [9] . Em analogia com Joch, Hans Manfred Bock descreve o intelectual como pessoa que, em virtude de sua reputação literária, artística ou científica não apenas se destaca pela ação crítica na esfera pública, mas passa a ser ouvida por esta, acentuando, portanto, explicitamente, a ressonância efetiva de suas idéias, dando desta forma sentido a seu gesto de intervenção [10] . Nesta visão político-sociológica, um intelectual usa a sua posição e autoridade sociais para exercer uma crítica política em dada sociedade. Indispensável para a eficácia deste ato verbal de um agente político é, assim, o reconhecimento público de sua posição social ou a sua legitimação institucional, porque é esta reputação, de fato, que lhe confere autoridade acatada ao interpretar, em caráter individual, temas da discussão pública e ao orientar estrategicamente a forma do debate, da percepção e da assimilação destes temas. Neste âmbito, ele é visto como um agente verbal, que, por um lado, é marcado por disposições de pensamento e conduta do seu tempo, por outro, adquire um papel central na própria formação da esfera pública verbalmente construída.

Um olhar sobre o cenário atual confirma certa economia de gestos de intervenção e silêncios prolongados, além de deslocar o acento da afirmação autoral do intelectual que fala para um circuito comunicacional mais pertinente que enfatiza o processo de recepção: quem, afinal, o escuta?

De algum modo as idéias filosóficas que animavam o debate democrático, prosaicamente, começaram a ceder espaço a discussões pragmáticas acerca da luta de sobrevivência econômica, por exemplo. No mais tardar na década de 90, se tornou mais visível um comportamento apático acerca de lutas intelectuais, o que levou o historiador e fundador da renomada revista Le Débat, Pierre Nora, a formular a sua inquietação no edital do número 110, publicado em 2000 por ocasião do seu vigésimo aniversário, nos seguintes termos: "Adieu aux intellectuels?" Uma indagação que retoma, de forma negativa, o próprio texto iaugural da revista que começava a circular em 1980, ano da morte de Jean-Paul Sartre.

A metamorfose da figura do intelectual francês, de mandarim admirado e celebrado, segundo Nora, ao escárnio da nação, é comentada por ele também em função da visível transformação do intelectual engajado em intelectual midiático, que se despenca de um show de televisão para outro evento-espectáculo disseminando suas banalidades. Mesmo assim, ou por causa disso, o historiador tenta revitalizar a imagem apagada do intelectual ao assumir de forma explícita o seu papel de intelectual, enfatizando que "em Le Débat eu não escrevo sobre as finanças de Luís XIV, mas eu marco uma posição como interventor no debate", ainda que a sua cruzada intelectual possa parecer, a ele próprio, como luta contra moinhos de vento. Entretanto, ele não é o único a prever o fim dos pensadores franceses, porque também Jean-François Lyotard, em Tombeau pour l'intellectuel [11] , tinha negado legitimidade à existência dos intelectuais franceses e Régis Debray, intelectual de esquerda, anunciava em 2000 de modo explícito o seu fim, no polêmico livro I.F. Suite et fin, em que minimizava e apagava a sua importância na própria abreviação verbal irônica: I. F., por intelectual francês. As alegações acerca das causas da perda de prestígio, vinculadas por Debray com reiterados equívocos nos diagnósticos da política mundial, cumulam pateticamente na sua afirmação de que o século XX, inaugurado gloriosamente com J'accuse, de Émile Zola, termina de forma melancólica com a transformação do I.O. (intelectual original) em I.T. (intelectual terminal), visto como figura abjeta que comete reiterados pecados capitais, entre eles autismo coletivo, desrealização grandiloqüente, narcisismo moral, crônicos equívocos em seus diagnósticos do tempo.

As ameaças de extinção de sua espécie - por incompetência e inutilidade de sua ação e por indiferença de uma eventual audiência - se repetem periodicamente. Mas igualmente propostas que restauram, senão a sua aura, pelo menos uma função aceitável e significativa balizada pelo exercício criativo de suas capacidades intelectuais na projeção de mundos alternativos. Quais, então, poderiam ser os espaços, hoje, capazes de oferecer algum tipo de atração ao intelectual que não só permitem formas de auto-encenação, mas igualmente a circulação e o intercâmbio de seus desejados gestos de intervenção?

 

3.

O papel idealizado para o intelectual contemporâneo por Hans Ulrich Gumbrecht, ao localizar a sua forma de atuar no espaço da universidade, corresponde segundo ele ao "catalisador de complexidades intelectuais" e representa, de certo modo, uma revitalização de sua intervenção, ainda que minimizada em sua ressonância pública [12] . O pensamento complexo que surge em territórios transdisciplinares, nos interstícios das ciências analisadas, não a partir de convencionais contrastes, mas em função de múltiplas sintonias entre as ciências naturais e as humanidades, se explica, parcialmente, em função da localização da maioria dos intelectuais hoje, no recinto protegido da academia, vista de forma positiva como espaço propício para produzir e multiplicar complexidades com que a civilização moderna se confronta, sem causar dano na esfera social e política concreta. De certo modo, em analogia aos filósofos do século XVIII que alegaram a necessidade de se distanciar do mundo - sem que isso significasse um exílio - para poder pensar sem ser importunados, Gumbrecht radicaliza essa idéia ao traduzir a experimentação do intelectual contemporâneo em necessidade de desenvolver um "pensamento de risco" (p. 145).

Sendo uma das marcas de distinção a sua capacidade auto-reflexiva que acompanha a análise das ações humanas, a sua forma de intervenção se legitimava pelo poder da razão em sintonia com a inspiração, a coragem e o talento polêmico que, em seu conjunto, contribuíram para construir uma imagem aurática desta figura, hoje reduzida à própria vontade de ser ouvida e levada a sério nos debates políticos urgentes, ainda que praticamente digam e escrevam tão somente aquilo que deles se espera. O que ocorreu, então, indaga Gumbrecht, para que, por um lado muitos intelectuais ainda sonhem em poder sacudir e polarizar a esfera pública, enquanto, por outro, as suas opiniões, no melhor dos casos, pareçam ter apenas status ornamental? Uma das razões alegadas é a mudança do próprio conceito de verdade em relação à convicção do intelectual de falar em nome da verdade. Hoje o valor de verdade se encontra pluralizado e disseminado entre as competências de especialistas distintos. Se, além do mais, fora do mundo dos próprios intelectuais sequer sobrevive a expectativa de formas de conduta e de ação de valor geral, o que, então, sobra para justificar o seu papel social? Uma vez que grande parte habita no espaço universitário intramuros, uma eventual resposta corresponde à auto-imagem criada pelos próprios acadêmicos profissionais.

Gumbrecht articula o seu argumento com a idéia desenvolvida por Niklas Luhmann que entende a universidade como sistema social de segunda ordem cuja tarefa básica - em contraste com a da redução de complexidades dos demais sistemas sociais - deveria ser a produção de complexidades. Neste sentido, uma nova autocompreensão da universidade e dos intelectuais, contrariando a interpretação de mundos e formas de prática institucionalizadas, precisava favorecer a imagem de produtores de alternativas e contra-modelos potenciais orientados no princípio de um pensamento contra-intuitivo. No contexto dessas reflexões a figura do intelectual emerge como catalisador de complexidades em uma cultura de excesso ameaçada por processos negentrópicos. O conceito do "pensamento de risco" converge com essa idéia, à medida que transformações idealizadas como melhorias, mas pouco testadas concretamente, podem implicar determinados perigos na prática. O exemplo de uma eventual transferência das possibilidades da tecnologia genética para a criação do gênero humano ilustra, no caso, os riscos inerentes à experimentação de pensamentos alternativos fora de certos recintos protegidos. Em suma, o mundo acadêmico - morada dos intelectuais - deveria abrigar e fomentar pensamentos de risco, ainda que - e porque - a sua imediata transformação em prática possa ser considerada perigosa. Dito por Hans Ulrich Gumbrecht na primeira pessoa do plural, "nós, antes de mais nada, deveríamos refletir sobre aquilo que não é refletido fora dos muros do mundo acadêmico, porque nas condições práticas atuais, esta forma de pensamento comporta excessivo risco nas condições práticas atuais" (p. 145), este papel de catalisador de complexidades, demandado para o intelectual, coincide assim com a projeção de sua própria imagem, e auto-encenação, como intelectual contemporâneo.

Para ilustrar os seus argumentos, o autor cita ainda Jacques Derrida que se aproveitava da liberdade específica do intelectual acadêmico ao considerar que, na análise da obra de Martin Heidegger, o problema não seria meramente indagar se o filósofo era fascinado pela ideologia do Nacional Socialismo mas, antes, se a sua filosofia sem esta fascinação poderia ter atingido as questões mais importantes e significativos para nós.

Gumbrecht termina a caracterização do novo intelectual, habitante do mundo universitário, com a inclusão dos cientistas naturais "clássicos" - os físicos, químicos, biólogos - porque não foi a questão das aplicações práticas que resultou nos "progressos" decisivos - o ganho em complexidade - das ciências naturais modernas, mas antes a disposição dos pesquisadores em assumir todas as observações experimentais novas como desafio para reformular o quadro teórico. De qualquer modo, segundo ele, seria uma antecipada condenação à morte acreditar que o intelectual do futuro corresponda exclusivamente ao padrão das humanidades e das artes, porque neste caso o seu papel permaneceria, para sempre, colado à "crítica social", à sociedade como tema exclusivo, articulado com uma retórica tradicional da compaixão, quase sempre aliada a uma autocompaixão filosoficamente induzida. Se vincularmos esta proposta de Gumbrecht com idéias desenvolvidas por Niklas Luhmann em Soziologie des Risikos (Sociologia do risco), podemos entender ainda mais claramente os novos campos de ação e intervenção do intelectual contemporâneo.

Uma sociologia crítica não se devia contentar com a descrição de regularidades - ou de estruturas latentes - supostamente existentes na sociedade, mas incluir explicações sobre desvios do normal, do acidental, do surpreendente. Esse, como diria Niklas Luhmann, "obscuro lado da vida", esse peso de frustração de todas as expectativas, chamará mais atenção quando confiamos em percursos normais previsíveis [13] . A contingência e o acaso, apenas tolerados e até privilegiados em certos âmbitos, entre eles o da esfera estética, afrontam, de modo geral, a nossa sensibilidade da experiência cotidiana avessa a desvios que perturbam esquemas rotineiros e mobilizam contra-esforços de proteção à normalidade precária, entendidos como defesa da racionalidade. No entanto, e este é um dos argumentos de Niklas Luhmann, precisamente pelo fato de registrarmos a imprevisível ruptura da forma normal como acidente, como evento contingente, a sua explicação não pode ser deixada ao acaso. Ela precisaria indicar uma ordem própria, por assim dizer uma normalidade secundária. Trata-se do lado avesso da forma normal e somente a sinalização deste outro lado da forma normal, a torna reconhecível como forma.

Niklas Luhmann lida com tais questões especificamente na análise da sociedade atual como sociedade de risco, mas chama atenção que termos similares surgem na linguagem das ciências como desordem, catástrofe, caos. Em todo o caso, ainda que atualmente prevaleça certa desconfiança de que turbulências dissolvem todas as tradições tornando pertinentes, de certo modo, indagações sobre o grau de normalidade do normal, o autor do livro Soziologie des Risikos (1991) não pensa que a normalidade - por ele conceituada como diferença entre normal e desviante - deixa de ser um instrumento significativo para observar a sociedade a partir desta distinção. A questão que se impõe refere-se à compreensão de racionalidade quando falamos em risco, ou seja, refere-se à questão de como lidamos com problemas de tempo e especialmente com o futuro, se este permanece no reino das conjecturas prováveis.

Enquanto na vida cotidiana negligenciamos o altamente improvável ao normalizar o provável, na experiência artística prevalece, ao contrário, uma fascinação diante de possibilidades de eventos extremamente improváveis. Sobretudo a literatura de caráter experimental vive da tematização de extremas improbabilidades, situando o valor estético na expectativa de frustrações diante do inesperado, seja ela de inserção modernista, seja rotulada de pós-modernista. Uma situação que torna igualmente difícil formular consensos sobre ofertas artísticas, mesmo prevalecendo de antemão certa atmosfera de aceitação.

Para Gumbrecht, como vimos, a figura do intelectual como catalisador de complexidades, ou seja, como dinamizador e não como normalizador do caos, no sentido de redutor da complexidade, sintoniza nesta função, com os estudiosos atuais de literatura. Se, para alguns, a hipercomplexidade dos processos culturais e sociais pode ter efeito de desalento e frustração, arrastando para distâncias longínquas e utópicas a meta de entendê-la, para o teórico da literatura Gebhard Rusch, ao contrário, ela se dá como desafio autêntico e interessante, "sobretudo levando-se em consideração que esta tentativa nunca tinha sido feita" [14] . E neste sentido ele se aproxima igualmente do modelo do intelectual contemporâneo proposto por Gumbrecht.

A sua intervenção não terá o efeito de uma bomba capaz de abalar os fundamentos de uma nação. Mas em nosso momento atual de expectativas diminuídas, o seu gesto - ainda que mínimo - talvez seja capaz de converter as perspectivas melancólicas do intelectual apático em pequenos atos de resistência, ao estimular reflexões complexas como antídoto ao pensamento normatizado, fundado sobre formas de redução de complexidade.

 

Referências bibliográficas

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[1] Siegfried J. Schmidt, Selbstorganisation- Wirklichkeit- Verantwortung, Lumis-Schriften, 9, 1986, p. 3.

[2]   Niklas Luhmann, Erkenntnis als Konstruktion, Bern, Benteli, l988, p. 98.

[3]   Niklas Luhmann, Beobachtungen der Moderne, Opladen, Westdeutscher Verlag, 1992, p. 41.

[4]   Siegfried J. Schmidt, "Liquidation oder Transformation der Moderne?". In: H. Holländer e C. Thomsen (eds.), Besichtigung der Moderne, Köln, Dumont, 1987, p. 66 e 67.

[5]   Siegfried J. Schmidt, Die Selbstorganisation des Sozialsystems Literatur im 19, Jahrhundert, Frankfurt, Suhrkamp,1989, p. 28.

[6]   Rolf- Bernhard Essig, Der offene Brief, Würzburg, Könighausen & Neumann, 1999.

[7] Pierre Bourdieu, Die Erfindung des totalen Intellektuellen, Romanistische Zeitschrift für Literaturgeschichte, 4, 1981; Pierre Bourdieu, As regras da arte, São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

[8]   Pierre Bourdieu, As regras da arte, op. cit., p. 219.

[9]   Markus Joch, Brüderkämpfe. Zum Streit um den intellektuellen Habitus in den Fällen Heinrich Heine, Heinrich Mann und Hans Magnus Enzensberger, Heidelberg, C. Winter, 2000, p. 11.

[10] Hans Manfred Bock, Intellektuelle. In: Robert Picht et alii.(org.), Fremde, Freunde, Deutsche und Fanzosen vor dem 21, Jahrhundert, München, Piper, 1997.

[11] Jean-François Lyotard, Tombeau de l'intellectuel et autres papiers, Paris, Galilée, 1989.

[12] Hans Ulrich Gumbrecht, Riskantes Denken. Intellektuelle als Katalysatoren von Komplexität. In: Uwe Justus Wenzel, Der kritische Blick, Frankfurt, Fischer,  2002.

[13]   Niklas Luhmann, Soziologie des Risikos, Berlin/ New York, Walter de Gruyter, 1991, p. 1.

[14] Gebhard Rusch, Erkenntnis, Wissenschaft, Geschichte. Frankfurt, Suhrkamp, 1987, p. 489.